segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Wellington Figueiredo escreve sobre índios autônomos

Amigos, vamos começar o dia com um artigo de um colega indigenista, Wellington Firgueiredo, sobre a questão dos índios autônomos. Wellington é sertanista aposentado, mas que continua como assessor da Funai em trabalhos ocasionais. Conhece muito a questão indígena brasileira por ter participado do contato ou do relacionamento posterior com diversos povos indígenas, especialmente os Guajá do rio Turiaçu e Pindaré, os Arara do rio Iririr, e os Matis do rio Javary.

O artigo é fruto da preocupação de Wellington com a falta de assistência à saúde com os índios recém-contatados, o que implica uma relação difícil entre a Funai e a Funasa. Wellington descreve com seriedade, corretude e pungência diversas situações que conviveu em sua vida de sertanista. Mostra como morreram índios recém-contatados em certas situações e como sobreviveram bem em outras situações.

Boa leitura. Aproveito para dizer aos indigenistas que queiram escrever que este Blog está aberto!!!!!

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Tragédia Anunciada


A falta de assistência à saúde dos índios, recém contatados, pode contribuir para que desapareçam

Estive presente nas primeiras aproximações com os índios matis (1977). Eles eram muitos. De certa feita, quando adentrei a mata, tentei conta-los. Enumerei-os até 83, depois perdi a contagem, pois as crianças cruzavam rapidamente à minha frente, esgueirando entre as dezenas de tapiris, enquanto as conversas e os sorrisos dos adultos e adolescentes revezavam pelas dúzias de fogueiras. Este burburinho me obrigava constantemente a reiniciar a contagem dos Matis. Acabei por desistir! Mas suponho que eram mais de cento e cinqüenta pessoas, entre homens, mulheres e crianças ( e como havia crianças de peito!). Depois do quarto encontro com os índios Matis, fui transferido do Amazonas para trabalhar no estado do Maranhão.

Quando cheguei para trabalhar com os Awa Guajá do Alto rio Turiaçu, sua população era de 56 índios, entre adultos e crianças. Na época havia apenas duas pessoas com mais de 60 anos. O Major, servidor remanescente dos primeiros contatos, relatou-me que à época da aproximação, os índios que se reuniam em volta do posto, somavam mais de cem pessoas.

Alguns meses após minha chegada ao posto, os índios Awa Guajá enfurnaram-se na mata. Trinta a quarenta dias depois de haverem partido, alguns índios começaram a regressar ao posto, acometidos de forte gripe e assustadoramente debilitados. Dos cinqüenta e seis que partiram somente trinta e seis retornaram. Eu, Sydney, Major, Venacio, Mundico e Ferreira , sem contar com um profissional da área de saúde, nos empenhávamos em medicar e alimentar, de forma precária, todos os enfermos. Assim que os índios melhoraram, adentramos no interior da mata à procura de algum sobrevivente. O esforço foi em vão! O que encontramos foram algumas ossadas daqueles que sucumbiram às doenças que haviam contraído, numa infeliz aproximação com populações vizinhas à terra indígena.

No inicio de 1980 fui transferido juntamente com o Sydnei para a região de Altamira (Pa), com o objetivo de promover o contato com os índios Arara isolados da rodovia Transamazônica. Em uma das minhas idas à cidade de Belém tomei conhecimento, por narrativa de um amigo, que havia ocorrido uma mortandade entre os Matis (Am), causada por gripe e outras doenças adquiridas. Quantos? Ele não soube precisar, mas achava que os Matis haviam sido reduzidos quase à metade.

As inúmeras histórias lidas e ouvidas sobre a alarmante quantidade de índios, que morriam após os primeiros contatos, e as experiências traumáticas vivenciadas, nos forçou a pensar medidas que fossem capazes de impedir incorrer em erros de outrora. Quando da criação da Frente de Atração Arara, foram incluídos no seu quadro de servidores um enfermeiro, e três atendentes de enfermagem. Nos postos da Frente havia grande quantidade e variedade de medicamentos. A Equipe Volante de Saúde (EVS), sediada em Belém, e formada por um médico, uma enfermeira, um atendente, um laboratorista e uma odontóloga permaneciam em alerta para um eventual contato com os índios arara. E o Departamento de Saúde, em Brasília, acompanhava por intermédio de informes (radiogramas e telex) os trabalhos que a Frente de Atração Arara desenvolvia.

Em meados do ano de 1980, aconteceu o contato com o primeiro grupo de índios Arara. Após alguns meses a gripe os atacou. Foram meses de tormenta. Os medicamentos estocados, e a rapidez na assistência medica, demonstraram que as medidas preventivas adotadas foram determinantes para combater a morbidez que abateu sobre os índios. Eram dias e noites de constante vigília. A atuação da equipe de saúde era ininterrupta, enquanto isto os trabalhadores se embrenhavam pela selva à procura dos índios, que se encontravam afastada do posto indígena. O estado de debilidade física que atacou os índios obrigava que os trabalhadores da frente ocupassem desde alimentá-los até transportá-los para atenderem suas necessidades fisiológicas. Em que pese os esforços desprendidos, não foi possível localizar a tempo sete índios (dois homens, uma anciã, duas mulheres e duas crianças com menos de quatro anos de idade) que foram a óbito antes que os encontrássemos.

Um ano mais tarde foram contatados os índios Arara do Penetecau. Eles eram dezenove índios. Não houve óbitos. Dois anos depois foram contatados os índios Parakanã do igarapé Bom Jardim. Os cuidados preventivos adotados e a experiência vivenciada com o povo Arara foram fundamentais para que, em um grupo de cento e quatorze índios houvesse um óbito, cuja circunstância não foi possível evitar (um índio foi vítima de um acidente ofídico, distante do posto indígena, e quando o encontraram já havia falecido). Depois foram contatados os Arara do rio Iriri sem que houvesse óbito, e depois pequenos grupos Guajá que, assistidos devidamente, também não houve falecimento.

Aquele tempo passou. A Funai, atualmente, não prioriza as expedições para contatar índios isolados. Ao contrario. A política é não promover o contato. Entretanto as frentes desenvolvimentistas de expansão (agropastoris, madeireiras, aberturas de estradas, construções de hidroelétricas, linhas de transmissão de energia etc.) na Amazônia, avançam inexoravelmente sobre as terras aonde vivem os últimos índios isolados deste país. A proximidade e a constância desses eventos encurralam os índios isolados, sem lhes oferecerem a opção da fuga. Uma das conseqüências deste movimento de conquista é a rendição dos índios.

Existem atualmente alguns grupos indígenas isolados, cuja proximidade com as atividades desenvolvimentistas, ou a vizinhança com os brancos e alguns grupos índios assistidos pelo estado brasileiro sinalizam que, em breve, entrarão em contato com a nossa sociedade. Esta situação parece inevitável para os Korubos (no vale do rio Javari), para os Hi-merimã (rio Purus-Am), para os isolados do rio Envira (Acre) e para os Awa Guajá da terra indígena Arariboia no estado Maranhão.

A FUNASA, responsável governamental pela assistência à saúde indígena, não possui uma política, nem estabeleceu diretrizes para atender os índios que por desventura entrem em contato com a nossa sociedade. As conseqüências advindas de uma falta de planejamento e da inexistência de pessoal devidamente treinado para atuarem numa situação, em que os índios adquiram doenças infecto contagiosas, remeterá invariavelmente aos tempos apocalípticos, que se contabilizavam uma assustadora mortalidade entre os índios recém contatados.

No passado a mortandade, que avassalava os grupos indígenas recém contatados, era aceita sob a égide da falta de imunidade às doenças do branco. Ou seja, a culpabilidade de adoecerem ( e virem a morrer) era imputada a eles próprios . Mas os tempos mudaram! Hoje a sociedade brasileira organizada, as entidades de defesa dos direitos humanos e os organismos internacionais cobrarão pela omissão que vier a ocorrer na defesa da vida dos índios recém contatados.

Wellington Gomes Figueiredo
sertanista

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