quarta-feira, 8 de outubro de 2008

O Índio na História: Cap.10 - A Demarcação das Terras Indígenas

Neste Capítulo analiso como transcorreu o dramático processo de demarcação das terras indígenas no Maranhão desde o período imperial até o ano 2000. Há que se considerar que de lá para cá foram demarcadas as terras dos Krikati e dos Guajá, ambas homologadas quando eu era presidente da FUNAI.

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Capítulo X
A Demarcação das Terras Indígenas


Terras e territorialidade

A posse, o usufruto e o controle efetivo da terra pelos índios têm sido reconhecidos por todas as pessoas conhecedoras da questão indígena no Brasil, como sine qua non para a sobrevivência dos povos indígenas. A terra é a natureza culturalizada dentro da qual uma etnia indígena realiza suas virtudes e potencialidades. Um povo indígena sem terras suficientes para exercer seu modo de ser se vê forçado a mudar, a deixar de lado muitas características sociais e culturais que reforçam sua etnicidade, e se adaptar a um novo modo, mais parecido com o modo camponês de ser. No limite, a etnia pode se desagregar em grupos familiares ou indivíduos desconectados que passam a buscar sua sobrevivência por conta própria. Havendo a perda da convivência étnica, eventualmente os indivíduos desagregados perderão as principais condições de manutenção de sua indianidade, a qual desaparecerá em uma ou duas gerações (embora com alguma possibilidade de retorno). Já um grupo coeso de caboclos ou remanescentes indígenas que se auto-reconhecem como índios, que reclamam o direito sobre uma área de terra justificando-o na ocupação tradicional, ou em outro qualquer título de propriedade, tal como uma antiga doação de sesmaria, serão reconhecidos efetivamente como uma etnia, como índios, pelo estado e pela tradição brasileiros, mesmo que esse grupo não fale mais uma língua original nem tenha uma cultura substancialmente diferenciada da dos não indígenas e que consequentemente não possa ser claramente distinguido dos campônios locais.

Registrei um caso desse tipo, no qual um grupo de índios, ou mais propriamente descendentes de índios já bastante acaboclados, migrou do estado do Ceará para o Maranhão no início da década de 1950. Por muitos anos viveram em terras devolutas ou trabalhando para fazendeiros na região do baixo Mearim, até que, finalmente, foram acolhidos na T.I. Pindaré, dos Tenetehara. Os camponeses brasileiros os chamavam de “caboclos”, de quem se diferenciavam pelos traços físicos mais fortes de índios, mas os Tenetehara os chamavam de “cearenses”, como se quisessem exclui-los da noção de índio, embora não lhes pudessem negar o sentido de sua etnicidade. Esta se manifestava na forma de uma organização familiar extensa centrada nas figuras de um homem e sua esposa com seus filhos e filhas que agregavam genros e noras. As sessenta e tantas pessoas do grupo compartilhavam a certeza de que eram descendentes próximos de índios, e deviam respeito e acato ao velho patriarca que organizava e dirigia as atividades do grupo. Seu sistema de produção, suas crenças em geral e sua recreação eram essencialmente as mesmas dos camponeses brasileiros. Eles se diziam índios Timbira, o que naquela região significa simplesmente que não eram Tenetehara, ainda que as únicas palavras não portuguesas que eles sabiam eram palavras de origem tupi como pakó (banana) e chiram (farinha de mandioca). Tinham vindo da Serra Grande, na cordilheira da Serra do Ibiapaba, no Ceará, que foi historicamente território tanto de índios tupi (Tupinambá) como não tupi (Teremembé, Tucurujus e outros), os quais poderiam não ser de filiação timbira, mas certamente eram jê (Metraux 1963b: 573-574), e que foram aldeados em missão pelos jesuítas.

De todo modo, esses “Timbira” queriam se considerar índios e estavam tentando ser plenamente reconhecidos como tais pela FUNAI. Estavam no limite final de sua condição de indianidade. Para isto chegaram ao ponto de incentivar casamentos de suas jovens mulheres com homens tenetehara, ao invés de atrair jovens brasileiros para ser parte de seu grupo, como vinham fazendo na primeira geração de descendentes do patriarca. Quando da minha primeira visita a esse grupo, em novembro-dezembro de 1975, não havia ocorrido ainda nenhum casamento com Tenetehara, mas dois jovens Tenetehara estavam cortejando várias netas do velho e contavam claramente com seu apoio. Posteriormente a relação entre eles e os Tenetehara se azedou, não houve casamentos e eles terminaram sendo expulsos da T.I. Pindaré e se incorporando no meio da campesinada pobre da baixada maranhense.

A terra constitui o meio de produção fundamental de povos caçadores, coletores e agricultores. É dela que se retiram os bens de subsistência. Mas a terra significa também o espaço circunscrito onde uma cultura se territorializa, se faz real concreto, se faz ambiente de um povo. Sua amplitude, sua ecologia ganham significado através da cultura, e esta se condiciona pelos meios que encontra ao seu dispor. Terra, espaço, meio ambiente, portanto, constituem cultura materializada. Existem como modos de sobreviver, mas também modos de ser e pensar. Por isso é que os Tenetehara dizem que suas terras, os pedaços da natureza que eles têm para si, onde vivem as onças e os Àzàng, os cupelobos, os espíritos ou “donos” dos animais se tornaram suas por terem sido “amansadas”, isto é, domesticadas, culturalizadas, por eles.

Entretanto, por mais que se possa afirmar a imensa identidade de um povo com sua terra, não se pode mistificar o sentido de territorialidade. Os Tenetehara vivem nas matas das franjas da floresta amazônica e nas matas de transição por um processo histórico, o qual se realizou nos últimos 500 ou 600 anos. Talvez antes disso eles não estivessem no vale do Pindaré, e só a partir de meados do século XIX é que eles migraram para as matas de transição, as matas secas, e lá se adaptaram de tal modo, a “amansaram” tanto que consideram parte inerente de suas vidas. Por elas é que lutaram desesperadamente, especialmente na década de 1970. Não querem jamais de lá sair, mas este sentimento se dá por um sentido de identificação histórica, de formação cultural, não de participação mística. Isso vale para os Tenetehara como para todos os povos indígenas e todos os demais povos da humanidade.

Antecedentes de demarcação de terras indígenas

Antecede à época colonial a idéia de que aos povos indígenas deveriam ser concedidas glebas de terras para sua sobrevivência física e sua integração com o mundo colonial, e que sobre essas terras eles teriam prioridade de uso e posse. A coroa portuguesa via e agia como se as terras do Brasil fossem parte de seu patrimônio, embora muitos juristas da época não considerassem o direito de conquista como um direito sobre as terras e bens dos conquistados (Cunha 1987: 53-63). Em diversos alvarás e cartas régias, notadamente o alvará de 1º de abril de 1680, a coroa explicitou o reconhecimento dos direitos dos índios sobre as terras em que viviam, por “serem primários e naturais senhores delas”. Entretanto, a coroa portuguesa jamais se encabulou de mandar descer índios de suas terras para viver perto dos povoados portugueses, sendo eles de bom trato, onde lhes seriam dadas novas terras; nem vacilou em condenar povos indígenas à guerra ofensiva, se fossem de má índole, perdendo o direito às suas terras e bens, como explicita a carta régia de 9 de março de 1718 (ver Capítulo IV, pg. ???). No Maranhão diversas sesmarias foram doadas a povos indígenas durante a vigência do Diretório de Pombal (1757-98) e no ínicio do século seguinte, as quais foram objeto de disputas durante o regime imperial. Apenas uma delas, as terras dos “caboclos de Taquaritiua”, como vimos no Capítulo VI, continuou valendo por ter sido mantida pelos seus descendentes. As terras de sesmarias em geral compreendiam dois tamanhos padrões: ou de duas léguas em quadra, ou de uma légua de testada por três de fundo, se fosse à beira de um rio (Lisboa 1865, vol. ???).

Seguindo essa tradição é que em 1840 o tenente-coronel Luís Fernando Ferreira, a mando do então Marquês de Caxias, comprou de um fazendeiro local duas léguas em quadra para constituírem a primeira colônia indígena para os índios Tenetehara do rio Pindaré. Essa gleba de terras foi considerada ambiguamente tanto como terras da colônia quanto como terras dos índios, mas, uma vez extinta a Colônia São Pedro do Pindaré, foram entregues à Companhia Progresso em 1881, e hoje constitui a cidade de Pindaré-mirim.

Após a promulgação da Lei das Terras (1850) e sua regulamentação em 1854, a política indigenista de Diretoria Geral dos Índios procurou demarcar glebas de terras para diversos povos indígenas no Brasil. Todavia, apesar de ser reconhecido como importante, nenhuma gleba foi demarcada e registrada para os Tenetehara, embora se presumisse que as colônias indígenas e as diretorias parciais tivessem territórios próprios. A Diretoria Geral dos Índios reconheceu o direito indígena sobre algumas glebas de terras que haviam sido doadas anteriormente, ou eram reconhecidas como indígenas, tais como aquelas dos “caboclos” que viviam no Lugar de São José dos Índios e na vila de Vinhais, ambos na ilha de São Luís, no Lugar de Nossa Senhora da Lapa e Pias, na vila de Pinheiro e em outros lugares (Coelho 1990: 76), mas abandonou à sorte o destino dos índios Anapurus que tanto vinham pedindo providências sobre suas terras perto da vila do Brejo.

Havia, portanto, um reconhecimento oficial, que na prática demonstrou ser absolutamente negligente e relapso, por parte do Estado e da própria sociedade maranhense sobre a legitimidade dos índios terem suas próprias terras. Em virtude dessa atitude, a tarefa de delimitar e garantir terras para os índios do Maranhão foi insignificante durante o Império, e a República, nas suas primeiras duas décadas, pouco caso fez sobre o assunto. Alguns estados, como Rio Grande do Sul e Amazonas, chegaram a legislar sobre a questão, reservando terras para alguns povos indígenas. No Maranhão, entretanto, nada foi realizado até a chegada e instalação do SPI. Os índios Tenetehara, que se espalhavam por um vasto território em vários municípios mantinham suas terras por força de sua presença em aldeias e pelo uso dos recursos naturais de determinados territórios ainda indefinidos. Os novos imigrantes freqüentemente se aproveitavam dessa indefinição para estabelecer fazendas ou sítios, sempre tomando o cuidado para pedir licença e atar um relacionamento amistoso, de troca de bens e serviços, com os índios. Às vezes os Tenetehara se aborreciam com essas presenças e, ou os forçavam a sair ou saíam eles mesmos para outras áreas.

A delimitação e as demarcações da Terra Indígena Guajajara-Canabrava

No Maranhão, o SPI, isto é, sua 3ª Inspetoria Regional, tomou as primeiras providências em relação a terras indígenas movido pela urgência de responder ao bárbaro incidente contra os índios Canela Kenkateye, em outubro de 1913. Como vimos no Capítulo VIII, pelo menos uns 50 Kenkateye haviam sido massacrados em uma traiçoeira emboscada planejada e executada por fazendeiros vizinhos, que justificavam seu ato como o último recurso para evitar que os índios contiuassem a comer seu gado. Ora, essa mesma acusação vinha sendo jogada há anos contra os Canela Ramkokamekra e Apanyekra, e, em todos os casos, os índios se defendiam alegando que o gado solto dos fazendeiros invadia suas roças e campos de caça. Assim, parecia ao SPI e aos demais interessados que a delimitação e demarcação de terras próprias seria a solução. Não mais para os Kenkateye, que haviam perdido o fulcro étnico e seus sobreviventes estavam dispersos entre os Krahô, mais ao sul, no então norte de Goiás, e os Canela Ramkokamekra e Apanyekra. A criação da Vigilância de Barra do Corda, provavelmente a partir da chegada do coronel Pinto em dezembro de 1916, certamente teve como um dos objetivos resolver essa questão de delimitação de territórios indígenas. Mas veio também para desanuviar as tensões interétnicas, ou o potencial conflituoso que existia entre os Tenetehara, já de volta nas terras que haviam ocupado antes da Rebelião do Alto Alegre, e os regionais.

Os Tenetehara tinham uma concepção de que as terras eram suas porque nelas estavam na atualidade, delas faziam uso, mas também porque as haviam feito suas há muito tempo atrás, por lembrança histórica ou por conhecimento mitológico. Já o SPI tinha sua própria visão, à época mais utilitarista e dentro da tradição luso-brasileira, ainda sem conteúdo antropológico e ecológico. Tudo indica que os fundadores do SPI, apesar de reconhecer a importância das terras para os índios, não se preocupavam com a realização do conceito de territorialidade indígena. Seguiam a tradição do indigenato, segundo o qual os índios tinham um direito apriorístico sobre as terras em que viviam, mas cabia ao Estado, por conveniência de índios e brancos, reconhecer os tamanhos e limites adequados para serem doadas permanentemente as povos indígenas. Parece que a partir de 1940 o SPI passou a se preocupar com o tamanho adequado das terras a serem doadas aos índios, mas, efetivamente, só com a formulação dos termos de justificação do Parque Nacional do Xingu, escritos por Darcy Ribeiro e Eduardo Galvão em 1953, é que se esboçariam os princípios antropológicos e ecológicos da noção de territorialidade indígena.

O SPI estava consciente de que a questão fundiária constituía o próprio cerne da elite rural brasileira e que fazia mister negociar com essa elite, os fazendeiros vizinhos aos índios, pois estes no mais das vezes consideravam suas as terras onde os índios viviam. Apesar de haver um argumento bastante claro de juristas como João Mendes Jr. (1912), segundo o qual as terras dos índios não podiam ser consideradas como “devolutas” (que ficaram, pela Constituição de 1891, na jurisdição dos estados, não da União), o fato é que ficou subentendido na própria criação do SPI que as terras dos índios deveriam ser garantidas em conjunção com os estados (Cunha 1987: 75). Só a partir da Constituição de 1934 e do Decreto Executivo nº 736, de 6 de abril de 1936, é que o direito dos índios sobre suas terras passaram exclusivamente à jurisdição federal. O título IV, art. 129, da Constituição rezava que “Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nellas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes vedado aliená-las”. Já o Decreto nº 736 rezava que eram terras indígenas: “Aquelas em que presentemente vivem e já primariamente habitavam; aquelas em que habitam e são necessárias para o meio de vida compatível com seu estado social; aquelas que já lhes tenham sido ou venham a ser reservadas para seu uso ou reconhecidas como de sua propriedade a qualquer título”.

Assim, naqueles primeiros anos o SPI precisava convencer os políticos locais e negociar com os governos estaduais. Não há dados sobre quem fez as primeiras gestões e negociações com o governo do Maranhão para a demarcação das primeiras terras indígenas do município de Barra do Corda. Da parte política local, possivelmente foi Frederico Figueira, deputado estadual de Barra do Corda, ex-promotor municipal, jornalista respeitado, que saudara a chegado do SPI ao Maranhão com entusiasmo; da parte do SPI local foi Marcelino Miranda, que era o chefe da Vigilância na época (1917-22), e que iria deixar o órgão no final do ano para assumir uma cadeira de deputado estadual na Assembléia Legislativa do Maranhão. Ambos eram correligionários do caudilho maranhense Urbano Santos, que ditava as ordens políticas na ocasião. Não se sabe quem era o inspetor do SPI em São Luís, à época, provavelmente não mais o Capitão Pedro Dantas.

O certo é que aos 25 de abril de 1923 o governador recém-empossado Godofredo Viana já sancionava e promulgava a Lei Estadual nº 1.076 que ordenava a criação de uma reserva indígena para os índios Canela Ramkokamekra, com quatro léguas quadradas, e uma outra para os Tenetehara, com dimensões bem maiores e a ser localizada não muito longe da própria cidade de Barra do Corda. Eis como reza o artigo referente à área dos Tenetehara:

“Ficam também concedidas aos índios guajajaras, no município de Barra do Corda, uma área de terras com quatro léguas de frente, a partir do lugar Maré Chico, por uma e outra margem do rio Mearim, em direção sudeste, e seis léguas de fundo a esquerda do dito rio e para o lado direito até o rio Corda, compreendendo as actuaes aldeias Maré Chico, São Pedro, Colônia e Cachoeira”.

Na verdade, além das aldeias mencionadas, estavam inseridas nessa área as aldeias Coco, Lagoa Grande, Jenipapo e Sardinha, conforme se pode ver no mapa incluído no livro de Fróes Abreu (1931). Os limites dessa área haviam sido negociados com os fazendeiros e sitiantes vizinhos nos dois anos que precederam o decreto estadual e, pelo que indica o relatório do sub-inspetor do SPI Raymundo Nonato Maia (apud Bandeira 1930), todos haviam ficado de acordo. Os capuchinhos, que mantinham missão em Barra do Corda, aparentemente não foram consultados, mas até então não haviam tentado legalizar as terras onde haviam situado a malfadada missão do Alto Alegre, que ficou dentro da área reservada. A aldeia mais próxima dessa abandondada missão era Coco, mas toda aquela área se encontrava então despovoada.

Vê-se que área reservada comprendia um retângulo cuja altura é exatamente o trecho de quatro léguas abeirando o rio Mearim em montante a partir do ponto próximo da aldeia Maré Chico . O comprimento é dado pelos lados paralelos que saem das duas extremidades da altura; um deles sai pelo ponto Maré Chico em direção sudeste até tocar no rio Corda, e em direção noroeste por seis léguas; o outro lado sai do ponto quatro léguas acima do Maré Chico, no rio Mearim, nas mesmas direções. Considerando as curvas e inclinações dos rios Mearim e Corda, o comprimento desses lados era irregular. A área total projetada sobre um mapa foi calculada, com base na equivalência de 6,6 km para 1 légua, em 1942 em 164.557 hectares (SPI 1942).

O processo de demarcação começou logo após a promulgação da Lei com as primeiras providências tomadas pela 3ª Inspetoria. É possível que alguma tentativa de abrir as veredas das linhas secas e medi-las tenha sido feita nos primeiros anos, mas só a partir de 1928 é que foi contratado um agrimensor de Barra do Corda, Antônio Oliveira de Carvalho Netto, que ficou conhecido pelos índios e pelos locais como Dr. Carvalho. Em 1929, o sub-inspetor Raymundo Nonato Maia foi enviado pelo inspetor de Belém, Virgílio Bandeira, para verificar o progresso da demarcação. Maia chegou em Barra do Corda em fins de julho de 1929 e lá permaneceu até 31 de outubro, quando as chuvas e a falta de recursos alimentares, e aparentemente a pouca colaboração dos Tenetehara em fornecer alimentação para os homens que trabalhavam na demarcação, tornaram proibitivas a continuação da demarcação, e ele retornou a Belém.

O relatório de R. N. Maia, inserido no relatório geral do inspetor Virgílio Bandeira (1930), dá uma idéia bastante clara das dificuldades da demarcação in situ, bem como das primeiras disputas com um fazendeiro local Raimundo Rodrigues Lopes, representado por seu filho Zeca Lopes, e com alguns posseiros que lá já se encontravam na extremidade noroeste. Demonstra também como o próprio SPI foi abrindo mão da demarcação in toto. Zeca Lopes chegou a oferecer a pretensão de terras que teria à margem esquerda do rio Mearim, dentro da área projetada, pela soma de dois contos de réis, que Maia considerava exorbitante. No seu relatório geral à direção do SPI, de 5 de fevereiro de 1930, Vírgílio Bandeira prometeu que iria recorrer dessa pretensão ao “Congresso do Maranhão”.

Parece que o primeiro trecho demarcado foi a altura do retângulo, de Maré Chico até o lugar Xupé. Entretanto, já esse trecho terminou ficando curto em uns quatro a cinco quilômetros das quatro léguas (26,4 km) projetadas. Segundo os Tenetehara Silvaninho Pereira e Manuel Conrado, da aldeia Colônia, que eram jovens na época da primeira demarcação, a distância certa atingia o lugar Pedra Branca, onde estava a fazendola de um senhor Luís Gomes, que pediu aos Tenetehara para que ele pudesse permanecer por lá . Assim, a altura do retângulo foi diminuída para uns 22 quilômetros.

Do Xupé estava projetada uma linha seca rumo sudoeste até o rio Capim (cerca de 28 km), e rumo noroeste de seis léguas, ou 39,6 quilômetros. O relatório de Maia deixa claro que ele achava, junto com o Dr. Carvalho, que esse último trecho não devia ser completado integralmente, mas sim parar no Baixão de Grajaú, chegando até a margem esquerda da então chamada estrada real, que vai de Grajaú a Barra do Corda. Eis como se expressa o relatório de Maia: “... Porém, depois de estudar bem o caso, afim de evitarmos questões futuras, achei prudente fazer os limites da dita área na citada estrada do Baixão, com o fito único de não prejudicar velhos moradores alli existentes. Esses moradores acham-se localizados na margem esquerda da estrada [de Grajaú, certamente], sendo a direita completamente desabitada”. E prossegue: “Se, ao contrário, fôssemos tirar as seis léguas de fundos como manda a Lei, com isso só traríamos prejuízos aos moradores antigos daquella zona, o que não é justo. Vencendo todas as dificuldades que se nos apresentaram, conseguimos avançar 21 quilômetros de matta a dentro, a começar da margem do Mearim, rumo NO”. Entre essas dificuldades estava a recusa do índio Praxedes, da aldeia Coco, a uma légua e meia do ponto em que estavam, de dar ajuda à turma de demarcação, supostamente, segundo Maia, por incitamento do chefe da Vigilância, Raimundo Miranda.

Maia não podia desconfiar das confusões que isso causaria nos anos seguintes. É provável que esses mencionados “velhos moradores” fossem os primeiros a situar o lugar Cacetes, que mais tarde ficou sendo o povoado São Pedro dos Cacetes. Será que eles lá já estariam antes de 1922 quando foram negociados os limites da futura reserva com os moradores do município de Barra do Corda? Segundo o próprio Maia, quando da negociação dos limites, em 1922, todos teriam ficado de acordo. Portanto, ou os moradores de Cacetes não haviam sido consultados, ou não existiam na época, tendo migrando para lá logo depois. De qualquer modo, a incúria do ato de Maia e Carvalho justificou inadvertidamente os muitos moradores de São Pedro dos Cacetes, durante quase setenta anos, a acharem que estavam certos em lá ficar, porque era de justiça, tomando como verdadeira a demarcação primeira desse trecho. Porém tal demarcação não podia tirar a razão aos Tenetehara, que aceitaram os termos originais da Lei 1.076 de constituição de sua área, desimpedida dos sítios e fazendolas de terceiros.

Não há dados sobre se no ano seguinte, 1930, o SPI tentou prosseguir na demarcação, mas logo depois o assunto morreu, mesmo porque quase toda a década de 1930 iria ser de pouca atividade e poucos recursos para o SPI. A inspetoria do Maranhão havia sido desativada em abril de 1928 (e de fato já estava sob o controle da inspetoria do Pará desde 1925, ou antes) e a Vigilância de Barra do Corda ficaria em modorna até 1940.

Entrementes, a delimitação dessa reserva para os Tenetehara do município de Barra do Corda não contemplou as terras de diversas outras aldeias tenetehara. Num mapa apresentado por Fróes de Abreu, de sua viagem à região em 1928, haviam ficado de fora as aldeias Farinha, Morcego, Monte Frio (ou Montevideo, como às vezes é chamada) e Parrião, esta última nas imediações. Em meados da década de 1930 iria se formar a aldeia Uchoa, na margem esquerda do rio Mearim, três léguas a jusante de Barra do Corda, perto de uma famosa cachoeira local. Uchoa agregaria habitantes das aldeias vizinhas, principalmente Morcego e Monte Frio, e chegaria a ter cerca de 160 moradores em 1941. Adiante da reserva, já no município de Grajaú, ficaram de fora a aldeia Bananal, que se situava a oeste, à beira do riacho Enjeitado, que cai no Mearim, bem como as aldeias da Pedra, Campestre ou Cocal Grande, Morro Branco e Talhado, muito a montante no rio Mearim. Desde o início, a Vigilância tentou de várias formas, com presentes e admoestações, transferir os Tenetehara dessas aldeias para dentro da reserva. Todavia, os índios não se convenceram de que isto seria bom para eles e foram ficando em suas aldeias. Assim relatou Fróes de Abreu esse quiproquó cujo desdobramento terminou sendo positivo para os Tenetehara (Abreu 1931: 119). O próprio Marcelino Miranda, já então líder político de Barra do Corda e pai do chefe da Vigilância, Raimundo Miranda, em carta ao inspetor do Pará, Vírgilio Bandeira (apud SPI, Bandeira, 1930) expôs o seu plano de transferir todos os índios Tenetehara que estavam no município de Barra do Corda e nas imediações para dentro da reserva delimitada, argumentando que, dadas as precárias condições de assistência e força política, (as quais iriam piorar a partir de 1931), o SPI não teria alternativa melhor.

Enquanto isso, no distrito de Montes Altos, então parte do município de Grajaú, estava havendo uma tremenda pressão por parte de fazendeiros locais para expulsar os cento e pouco índios Krikati das terras que ocupavam . Uma vez mais é Marcelino Miranda quem se dispõe a ajudar ao órgão a retirá-los de lá e transferi-los para umas terras chamadas Rodeador, na beira do rio Corda, não muito longe das terras dos Canela, que estavam sendo compradas para esse fim por 576$000, o que significa que o órgão indigenista tinha verbas para essas eventualidades. Marcelino foi a Grajaú, recrutou alguns soldados e seguiu para as aldeias São Félix e Recurso, de índios Gaviões, mas todos se recusaram a vir para Barra do Corda. Daí ele se dirigiu para a aldeia Canto da Aldeia de onde convenceu doze Krikati a vir para o Rodeador. Porém logo os liberaria para que eles atraissem os demais que haviam se refugiado na fazenda de um Manduca Milhomem, que prontamente enviou uma conta de cobrança ao SPI de 500$000 réis pelas despesas que estava tendo com aqueles índios. Afinal, o perigo de ataque dos Guará e Lopes não fora sério, e este assunto foi abandonado. As terras dos índios Krikati ficariam em litígio com fazendeiros e posseiros até 1996, quando finalmente foram demarcadas.

Em 1930, motivado sem dúvida pelo processo de demarcação das terras dos Tenetehara, os frades capuchinhos se movimentaram para fazer reconhecer na justiça o direito que alegavam ter sobre as terras do Alto Alegre. Em 1931 o Juiz de Direito da Comarca de Barra do Corda, a pedido dos frades Estevão de Sexto e Hilário de Lodi, e tendo ouvido testemunhos de moradores dos lugares Cacete, Cocalinho, São Miguel e São Estevão, os quatro pontos que limitavam as terras do Alto Alegre, considerou legítimas as pretensões dos frades, que apresentaram uma cadeia dominial desde a compra de uma gleba de terras do fazendeiro Raimundo “Cearense” Ferreira de Melo (apud SPI 1931). Isto iria dar confusão a partir da década de 1950.

A segunda tentativa de demarcar essa área iria ser retomada a partir de 1940, quando o SPI nacional ganhou força novamente, aumentou suas verbas, reativou a 3ª Inspetoria em São Luís, criou planos e condições para demarcar essa e outras terras e passou a financiar uma turma de demarcação, isto é, algumas dezenas de trabalhadores braçais para demarcar terras indígenas, sob a liderança de um agrimensor.

Contratado em outubro de 1940 pelo inspetor José Gama Malcher, o agrimensor Jair Guimarães foi mandado em dezembro para concluir a demarcação da reserva Guajajara, iniciada pelo Dr. Carvalho em 1928. Em abril de 1941, na passagem de Malcher pela região, Jair Guimarães havia demarcado apenas 13.853 metros da linha que saía de Maré Chico, ao longo do rio Mearim, alegando que os rigores do inverno impediam a continuação do serviço. Nessa ocasião estava presente, entre outros o órfão Tenetehara de nove anos José Galdino, que, em 1998, se lembrava do serviço ter parado por falta de mantimentos para os trabalhadores. Malcher menciona em seu relatório, com extrema má vontade, que o velho mandão Marcelino Miranda pressionava Jair Guimarães para fazer “uma volta” na altura do Xupé, para deixar de fora parte das terras de Zeca Lopes, que era então o chefe político de Grajaú. A mesma contenda de 1929. Isto quer dizer que Jair Guimarães seguia o exemplo do Dr. Carvalho, diminuindo o tamanho da linha ao longo do rio Mearim em alguns quilômetros, deixando de fora o lugar Pedra Branca e em conseqüência toda uma extensa faixa de mais ou menos 67 km por 4 km, isto é, cerca de 27.000 hectares. Malcher reclama também que, tendo se casado com uma filha de Francisco Milhomem, Jair Guimarães passara a se abastecer no armazém do sogro, o que teria aumentado as despesas da Ajudância de Barra do Corda.

Por volta de setembro de 1941, em relatório do recém-nomeado inspetor do Maranhão, José Teodoro Mendes, o referido agrimensor havia demarcado as linhas que saem do rio Mearim rumo ao rio Corda, somando 19 quilômetros a linha que vem de Maré Chico, e 28 quilômetros a que sai do Xupé, por causa das inclinações dos rios Mearim e Corda. O último dado a respeito dessa demarcação é um telegrama que Malcher passou de Belém para Barra do Corda, em 1º de outubro de 1941, no qual admoestava Jair Guimarães a concluir a demarcação da reserva projetada e não se distrair na construção da sede do posto Tenente Manuel Rabelo recém-criado.

Não sabemos se Jair Guimarães chegou a concluir essa demarcação, isto é, se ele abriu as picadas que formariam as linhas secas que saem dos dois pontos no rio Mearim rumo noroeste. É provável que sim, embora não haja dados sobre isso, a não ser uma nota do inspetor Dr. Sebastião Xerez, em 1949, de que toda a reserva estava demarcada desde 1942 com marcos a cada um quilômetro. Não há dados sobre disputas ou negociações com os moradores do lugar Cacetes, ou com o fazendeiro Zeca Lopes na ocasião. Jair Guimarães trabalhou em outras demarcações na época, como as terras reservadas aos Canela Ramkokamekra pela Lei de 1923, e uma projetada para os Apanyekra .

É importante notar aqui que Jair Guimarães foi o agrimensor responsável pela delimitação, por sugestão de Malcher, de outras áreas indígenas, que infelizmente não chegaram a ser demarcadas. Uma delas seria uma área de 52.272 hectares entre Barra do Corda e o povoado (ex-aldeia) Naru, onde estavam as aldeias de Farinha (33 Tenetehara), Mundo Novo (99) e Boa Vista (61). Outra, também nas vicinidades, teria 41.382 hectares e englobaria as aldeias Taboqui (?), Montevidéu (?) e Uchoa (160 Tenetehara). Essas propostas estão contidas no relatório geral do SPI de 1942, mas não foram levadas adiante, especialmente por causa da chegada, em 1944, da Companhia Agrícola Nacional do Maranhão, a “Colônia Agrícola” de Barra do Corda, que tomou exatamente essas terras como seu patrimônio.

Jair Guimarães continuou como chefe da turma de demarcação até junho de 1946, quando Raimundo Miranda foi transferido de Barra do Corda para Belém e a 3ª Inspetoria sofreu algumas mudanças administrativas. É possível supor que Jair Guimarães, por pressão local, inclusive do chefe da Ajudância, não tenha concluído a demarcação. O novo inspetor Mota Cabral o demitiu alegando falta grave no serviço, sendo substituído pelo agrimensor Arnaud Guedes de Paiva, que ficou no SPI até a chegada do Dr. Sebastião Xerez, em agosto de 1948.

O Dr. Xerez chegou com idéias próprias e força de vontade para demarcar as diversas terras que haviam sido projetadas por Malcher desde 1941-42. Sua primeira providência foi contatar e comunicar ao governo do estado do Maranhão seus planos de demarcação das terras indígenas e dele requisitar a cessão de alguns agrimensores para trabalhar no SPI. Para demarcar uma vez mais a área já reservada pediu os serviços do Dr. Durval Henrique da Silva, agrônomo da Colônia Agrícola, que chegava no município com muita força política e recursos. Entretanto, sentindo que com isso ele poderia ficar nas mãos do diretor da Colônia, o Dr. Eliezer Rodrigues Moreira, que se tornaria figura política importante na região, Xerez desligou o Dr. Durval e requisitou o agrimensor Elzemar Cunha.

Desde 1944 a 3ª Inspetoria do SPI e a Ajudância de Barra do Corda vinham sendo pressionadas para retirar os Tenetehara que viviam nas aldeias fora da área indígena, Uchoa, Farinha, Boa Vista, Montevidéu, cujas terras não demarcadas a Colônia Agrícola havia recebido do governo federal. A aldeia Descanso (provavelmente a antiga Parrião), também estava fora, embora próxima, dos limites da reserva, e seus habitantes se mudaram sem problemas. Xerez realizou esse ato no verão de 1949. A maioria dos índios da aldeia Uchoa foi para uma nova aldeia na beira do rio Corda, perto da aldeia Sardinha e confronte às terras do Rodeador, onde lá ficariam por uns dois, três anos até saírem e situar as terras da antiga aldeia Canabrava, no extremo norte da área reservada. Outros saíram para fazer roças na beira do rio Mearim, dentro da área reservada, onde se deram mal com epidemias de gripe e tifo. Alguns outros, provavelmente aqueles saídos da aldeia Descanso, foram situar as terras ao norte da reserva, perto da aldeia Leite, já existente desde a década de 1930, onde fundaram a aldeia Lagoa Comprida.

Em seu relatório para o ano de 1948 Xerez escreveu que ao visitar Barra do Corda fizera uma petição ao juiz da comarca para notificar quem estivesse nas terras indígenas para desocupar. Afirmou outrossim que as terras da reserva indígena estavam delimitadas com marcos de quilômetro a quilômetro, e que não houvera “oposição legal de terceiros senhores e possuidores nestes últimos vinte anos”. Com efeito, um croquis de um mapa da reserva feita pelo agrimensor Elzemar Cunha, provavelmente de 1949 ou 1950, consta os pontos já definidos desde 1929. A área é estimada em 127.000 hectares, o que indica tanto que o marco montante do rio Mearim teria permanecido no Xupé e que as linhas secas rumos noroeste estavam aquém das seis léguas projetadas.

Apesar dos esforços iniciais e, na verdade, da quase certeza da demarcação da reserva, essa demarcação não iria ficar confirmada e oficializada em definitivo na década de 1950. É que no decorrer daqueles anos as disputas com os frades capuchinhos e com novos moradores de São Pedro dos Cacetes deixaram Xerez sem condições políticas de assegurar a demarcação oficial.

Em novembro de 1960, em ofício ao Diretor do SPI, Xerez propôs uma solução para viabilizar a demarcação oficial da reserva, a qual, no seu entender, contemplaria os interesses de todos: os capuchinhos do Alto Alegre, os moradores de São Pedro dos Cacetes e os Tenetehara, tanto os das aldeias dentro da reserva, quanto os que se achavam em novas aldeias fora da área, Leite, Lagoa Comprida e Porco. Diante do crescimento de São Pedro dos Cacetes, que Xerez calculava em mais de 2.000 pessoas (cálculo esse que se manteve inflacionado nos anos seguintes), e dos títulos documentados dos capuchinhos sobre as terras do Alto Alegre, que compreendia um retângulo de 6.600 metros por 12.000 metros, Xerez não via outra possibilidade senão abrir mão dessas terras, recompensando as perdas com o prolongamento das linhas secas rumo noroeste até alcançar o rio Grajaú, englobando o baixão que vem das aldeias Lagoa Comprida, Leite e Porco, que estavam fora da reserva projetada. Xerez calculou que como isso o SPI perderia cerca de 3.200 hectares - e se livraria de “contendas com intrusos apoiados por chefetes políticos” - mas ganharia uma área bem maior, embora não calculada . Xerez pediu ao Diretor do SPI a aprovação dessa proposta e o encaminhamento para o governador do estado para que este providenciasse a área de compensação em terras devolutas. Todavia, essa proposta não foi levada adiante, e no ano e meio que lhe restou, Xerez iria se concentrar na tentativa de encontrar uma solução para as terras do posto indígena Gonçalves Dias, no baixo Pindaré.

Assim, a demarcação com registro oficial da primeira área de terras dos Tenetehara ficou irrealizada uma vez mais. Nos anos seguintes, a preocupação dos diversos chefes da Ajudância de Barra do Corda, tais como Olímpio Cruz, Júlio Alves Tavares e Hugo Ferreira Lima, iria aumentar com a entrada cada vez mais intensa de novos moradores em São Pedro dos Cacetes, no Alto Alegre, onde os capuchinhos passaram a arrendar lotes de terra para lavradores pobres, e em novos povoados que surgiram ao redor, como Centro do Meio, ou de Felipe Preto, Jacaré, Sabonete, Pau Ferrado, Sumaúma e outros. A passagem do SPI para a FUNAI aumentou a confusão por algum tempo, tanto que até os próprios chefes de Ajudância aceitaram a presença de invasores e não se encabularam em cobrar uma renda pelo uso das terras da reserva indígena, ou das terras pretendidas para os índios, como aquelas próximas às aldeias Lagoa Comprida e Leite.

Os Tenetehara, entrementes, permaneciam firmes no seu propósito de assegurar as terras que lhes haviam sido reservadas e tantas vezes já demarcadas in situ. Olhavam a enchurrada de imigrantes com apreensão, buscavam entabular um relacionamento cordial, mas insistiam com todos que as terras que eles estavam situando haviam sido reservadas para os índios. Eram contestados pelos antigos e primeiros moradores de São Pedro dos Cacetes, que relembravam incidentes de demarcações que haviam deixado parte das terras dos Cacetes fora da reserva. Na argumentação histórica os moradores diziam que São Pedro dos Cacetes existia desde meados de século XIX, e que o nome Cacetes viera da brincadeira de bater paus que fizeram as duas turmas de abertura da estrada real entre Grajaú e Barra do Corda ao se encontrarem precisamente naquele local. Já os Tenetehara diziam que o nome vinha de uma lagoa, Wyràhangpaw, ou Lagoa dos Cacetes, onde, muito anos atrás, uns Tenetehara haviam matado dois índios Timbira e deixado, como de costume, as bordunas ao lado dos cadáveres. Duas histórias interessantes, ambas semi-históricas e semi-mitológicas. O certo é que, se a estrada real existia desde pelo menos a década de 1880, senão antes, o lugar Cacetes, como aglomerado de civilizados, não existira nem antes nem durante a Rebelião do Alto Alegre; portanto, só se formara após, provavelmente na década de 1920, depois das negociações que delimitaram a área indígena decretada em 1923. Os Tenetehara sabiam disso e assim não se intimidavam com as histórias dos velhos moradores e objetavam com a segurança de quem estivera presente nas primeiras negociações, convencendo dessa forma velhos e novos servidores do órgão indigenista.

Por sua vez, a presença de aldeias fora dessa reserva também exigia do SPI e da FUNAI um posicionamento positivo. Vimos que Xerez previra a demarcação de uma área para as aldeias que estavam além do limite setentrional da reserva indígena, e antes, em 1941, Malcher havia planejado a demarcação de outras áreas indígenas contemplando quase todas as áreas de aldeamento tenetehara. Vale notar outrossim que, em 1949, Xerez registrou ter conhecimento dos remanescentes dos Timbira Crenzés e Pobzés, que haviam entrado em relacionamento com a sociedade maranhense em 1854, na beira do rio Mearim, na altura de onde é hoje a pujante cidade de Bacabal, tendo vivido nos anos do Império sob o controle da Colônia Leopoldina. O SPI até então não tomara conhecimento desses índios, mas eles tinham condições de recuperar sua indianidade, pois ainda falavam a língua nativa, além do português, e guardavam a memória de uma gleba de terras que lhes havia sido reservada nos tempos do Império. Xerez anotou que essa gleba se limitava, “pela frente, com a margem direita do igarapé Bambu, tributário da margem direita do rio Mearim. Pelos fundos, com com a margem esquerda do igarapé Salgado. Pelos lados de baixo e de cima com terras devolutas”. Infelizmente, nenhum esforço foi feito para assistir a esses índios, que foram perdendo as condições de sobrevivência étnica onde viviam. Em 1960 seriam transferidos para o posto Gonçalves Dias, onde ainda hoje subsistem.

Por todos os motivos administrativos e políticos, inclusive a falta de apoio dos governadores do Maranhão, como se queixou Xerez, anos depois, ao sertanista João Américo Peret (1964), a demarcação oficial dessa área de terras dos Tenetehara, bem como as demais demarcações previstas, esboçadas, delimitadas e até demarcadas in situ não se realizaram nos tempos do SPI, e só se realizariam no auge da força política e administrativa da FUNAI, no período entre 1974 e 1979, sendo presidente da FUNAI o general Ismarth de Araújo Oliveira, no governo do general Geisel.

Em 1976, a FUNAI reiniciou pela quarta vez o processo de demarcação da Área, depois Terra Indígena Guajajara-Canabrava, como passou a ser chamada, enviando o antropólogo Alceu Cotia, junto com uma equipe do Projeto RADAM, para fazer um levantamente da situação social e fundiária e reconhecer uma vez mais os limites da área reservada. Em seu relatório, Cotia parece ter ficado impressionado com a quantidade de invasores da reserva. Apresenta o povoado do Alto Alegre com uma população de cerca de 300 famílias, enquanto São Pedro dos Cacetes abrigaria 7.000 pessoas. Ambos os números parecem bastante exagerados, e serão usados como bandeira pelos defensores dos interesses desses povoados. Em 1980 equipes da FUNAI e do governo do Estado fizeram um recenseamento da população de São Pedro cujo número chega a apenas 511 famílias com um total de 2.656 pessoas. Em 1990 uma equipe de borrifadores de casas da SUCAM contou 459 prédios ocupados em São Pedro, com uma população de 1.639, números estes muito inferiores aos alegados anteriormente, embora muitos já tivessem abandonado o povoado.

O grupo de trabalho de que fez parte Alceu Cotia foi criado por portaria da presidência da FUNAI no momento em que o órgão indigenista dava um ímpeto na demarcação de terras indígenas em todo o Brasil. Com efeito, a FUNAI tentava responder tanto a um clamor nacional quanto à pressão que os próprios índios vinham exercendo para que o órgão indigenista tomasse as medidas necessárias contra os invasores velhos e novos de suas terras. Nesses anos de muita agitação social e política, todo o Maranhão fervilhava com a entrada maciça de lavradores pobres em busca de terras, bem como de médios e grandes fazendeiros de outros estados que procuravam terras baratas para comprar e instalar novas fazendas. A presença dos povoados de São Pedro dos Cacetes, Alto Alegre, Centro do Meio, dentro da área indígena, bem como o aumento populacional em povoados como Sabonete e Jenipapo dos Vieiras, situados nos limites externos da reserva, intensificavam a tensão interétnica em toda a região.

O relatório Cotia não se apresentou de todo favorável às pretensões dos Tenetehara. Sugeria que o povoado São Pedro dos Cacetes fosse considerado como estando fora da nova área a ser demarcada, e que as terras do Alto Alegre também deveriam ser não incluídas pois seriam de propriedade legítima dos capuchinhos. Entretanto, para que isso pudesse ser feito, a área iria ser deformada dos limites originais da Lei Estadual de 1923. A pressão dos índios sobre os funcionários da Ajudância de Barra do Corda e da 6ª Delegacia Regional da FUNAI, em São Luís, fez com que a presidência da FUNAI, em Brasília, lançasse, em março de 1977, o edital de demarcação administrativa da área a ser chamada de Guajajara-Canabrava. Os limites consignados no edital incluíam os povoados referidos e grande parte das terras usadas por seus moradores. Previa uma área de 127.648 hectares, a qual, quando terminou de ser demarcada em campo, em novembro de 1977, ficou avaliada em 131.868 hectares. Esse pequeno aumento se deu porque, a pedido dos Tenetehara e com a anuência do chefe da Ajudância de Barra do Corda, a empresa de demarcação fez um desvio de angulação do ponto Maré Chico rumo ao rio Corda, o qual englobou uma cachoeira considera de suma importância para os Tenetehara. Anos mais tarde, em nova medição topográfica a área ficou com 137.400 hectares. Entretanto, como pode ser deduzido, a altura do retângulo ficou no Xupé, conforme as demarcações de 1928, 1941 e 1949, e as seis léguas rumo noroeste não foram completadas, conforme as ponderações de 1928. Perdeu-se com isso uma área de pelo menos 27.000 hectares.

Os Tenetehara passaram por uma verdadeira guerra de confrontos e de nervos para demarcar essa terra indígena e outras do município de Barra do Corda, de Grajaú, Amarante, Bom Jardim e Carutapera. Entre os principais líderes desse período, destacam-se os velhos Antonio Goiabeira e Ribeiro, Antonio Lima Guajajara, Zé Lopes, Zezinho Potiguara, Adriano Carvalho, Celestino de Souza, José Galdino, José Pompeu, Antônio Mariano, Alderico Lopes, Virgulino Guajajara, Japonês e outros mais. Em vários confrontos armados, tanto posseiros e invasores de terras indígenas quanto índios foram feridos e mortos. Em maio de 1978, o paiol de arroz do Centro do Felipe Preto foi saqueado pelos Tenetehara da aldeia Canabrava. Em julho, foi a vez do povoado Couro Dantas sofrer a queima de seus armazéns. Num conflito com moradores do Alto Alegre, em julho de 1979, um posseiro foi morto pelos índios. Em fevereiro de 1980, um fazendeiro no lugar Arranca foi morto acidentalmente por uma Tenetehara. Em represália, e num ato de covardia e brutalidade odienta, os velhos Tenetehara Mateus e Moacir Carvalho foram assassinados friamente na beira do rio Mearim por um bando de vingadores. No julgamento do principal acusado, que só iria ocorrer em 1991, sua absolvição foi aplaudida de pé, recaindo a culpa sobre os soldados da Política Militar de Barra do Corda.

A presteza na demarcação dessa área evitou maiores conflitos sangrentos. Ela foi realizada no momento em que chegava a Barra do Corda, para ser o chefe da Ajudância que jurisdicionava sobre os índios e as terras indígenas desse município, o sertanista José Porfírio Fontenelle de Carvalho. Entre 1977 e 1980, Carvalho tomou as rédeas do processo de demarcação da T.I. Guajajara-Canabrava, com todos os perigos e ameaças por que passou, e a demarcaria antes de ser transferido do seu posto. Em 1978 Carvalho teve a abilidade de aproveitar da necessidade que tinha a empresa Eletronorte em passar as linhas de alta tensão elétrica pela área indígena para obter uma boa recompensa e criar projetos econômicos para os Tenetehara e assim consolidar sua posição de força com os índios e os demais moradores. Tomou também a iniciativa de demarcar as áreas das aldeias que desde sempre estavam fora dessa terra indígena, as quais se tornaram as terras indígenas tenetehara Lagoa Comprida e Urucu-Juruá. Tomou as providências para a demarcação da T.I. Geralda-Toco Preto, na beira do rio Grajaú, onde sobreviviam os remanescentes dos Timbira Krepumkateye, do primeiro e abandonado posto Araribóia. Reavivou a demarcação da área do Rodeador, comprada em 1928 para os Krikati, a qual ficou de usufruto para os Tenetehara e Canela. Ajudou também na demarcação das terras indígenas Bacurizinho e Morro Branco, no município de Grajaú, esta última praticamente um bairro no perímetro urbano da cidade. Carvalho foi demitido da FUNAI em 1980, junto com mais 40 indigenistas, alegadamente por terem criado uma associação de classe; foi reintegrado em 1984, passando a supervisionar a 6º Delegacia Regional no uso das verbas obtidos pelo acordo entre a FUNAI e a Companhia Vale do Rio Doce; foi demitido em setembro de 1985, em virtude da guinada antiindígena dada no governo Sarney, mas continuou a trabalhar pelos Tenetehara e outros índios do Maranhão, Pará e Amazonas até os dias de hoje, como consultor da Eletronorte, cujas hidrelétricas e linhas de transmissão impactam terras indígenas.

Outro funcionário da FUNAI que se destacou naqueles primeiros anos por sua determinação e destemor foi o chefe do P.I. Canabrava, Eliomar Gerhardt, que, por seu enfrentamento com os posseiros dos povoados Centro do Meio e Alto Alegre, terminou sendo retirado da região por perigo de morte. Nas demarcações de outras terras indígenas destacaram-se Jorge Muniz, Mário Daltrozo, Domingos Faria, Luís Jatobá, Raimundo Mourão e outros. A 6ª Delegacia Regional e os diversos delegados da época, Francisco Rennó, Alípio Levay e Armando Perfetti, este último sempre a contragosto, se curvaram à determinação dos Tenetehara de que era preciso fazer a desintrusão dos invasores, tradicionais ou recentes, de expulsar os frades capuchinhos e os arrendatários do Alto Alegre, os moradores de São Pedro dos Cacetes e de outros povoados, bem como estabelecer novas terras indígenas para outras aldeias fora daquela reserva. De algum modo eles têm uma pequena parte no mérito dessas lutas.

Nesses anos, e até 1983, a FUNAI tinha a prerrogativa constitucional de demarcar terras como terras indígenas por um simples processo administrativo. Aquilo que os índios e um laudo histórico-antropológico determinassem que fosse terra indígena, seria terra indígena, independentemente de quem lá estivesse vivendo ou alegasse posse ou propriedade. De modo que, para todos os efeitos legais, a demarcação da T.I. Guajajara-Canabrava foi concluída no segundo semestre de 1977, passando por cima de todas as reclamações dos moradores de São Pedro dos Cacetes, dos frades capuchinhos e dos políticos de Barra do Corda e Grajaú, particularmente o deputado estadual Fernando Falcão, que buscavam votos entre esses moradores.

Demarcada, sim, englobando dois povoados, sim, mas com quê garantia de inviolabilidade e até quando? Essa pergunta ficou no ar durante muitos anos. Em 1979, o deputado Falcão, que fazia uma carga política e pessoal duríssima contra o sertanista Carvalho, acusando-o de subversivo e insuflador do ódio indígena, morreu de infarto no coração. Os moradores dos povoados incrustrados ficaram sem seu grande defensor, e Carvalho ficou com um inimigo a menos, mas com o ódio rancoroso da população, que não o perdoava por ter se colocado ao lado dos Tenetehara na sua determinação em demarcar as terras desses povoados. Em 1980 o governo federal repassou ao governo do Maranhão uma verba suficiente para retirar os posseiros de São Pedro dos Cacetes e transferi-los para terras que estavam sendo abertas no rio Buriticupu, próximo à sua desembocadura no rio Pindaré. Eram terras boas, de mata, terras que até já haviam pertencido aos Tenetehara no século passado, mas que sofriam pela falta de água corrente. Por esse e outros motivos esse projeto de colonização falhou. Ao que tudo indica, a verba de indenização e remoção dos posseiros foi desviada para outros fins, e o povoado permaneceu como estava.

Por mais uma década e meia, São Pedro dos Cacetes foi ficando, incrustado nas terras dos Tenetehara; porém, sob a pressão contínua dos índios cujas aldeias avizinhavam. De vez em quando estouravam brigas pessoais entre Tenetehara e moradores do povoado, mas por sorte nunca resultaram em conflitos armados de maiores proporções. Os políticos tentaram preservar o povoado de vários modos, inclusive elevando-o a município após a proclamação da nova constituição do estado do Maranhão, em 1990. Desfeito esse golpe legislativo pelo Supremo Tribunal Federal, seus moradores foram aos poucos vendo que era impossível viver por lá, mesmo porque as terras que ocupavam em roças haviam se desgastado pelo uso contínuo, e a região sofria pela falta de água perene para beber e cuidar dos animais. O próprio povoado do Alto Alegre já não lhe servia de apoio, pois fora desmobilizado em 1981, quando os capuchinhos, pressionados pela ala indigenista da Igreja Católica, se retiraram, desistindo (ao menos temporariamente, já que uma vez mais entraram com um processo na Justiça) de sua pretensão de propriedade. Seus moradores, diversos dos quais haviam comprado lotes dos frades, foram indenizados e transferidos para outras áreas disponíveis ao assentamento. Ainda assim havia resistências políticas para a manutenção do povoado, as quais foram afastadas pela decisão da governadora do estado, Roseana Sarney. Com recursos de empréstimo do Banco Mundial ao estado do Maranhão, São Pedro dos Cacetes foi definitivamente abolido pela transferência de todos seus moradores. Muitos moradores já haviam se retirado para outros assentamentos e para a cidade de Grajaú. Cerca de 85 famílias receberam lotes de 15 hectares, com casas e infra-estrutura na antiga fazenda Remanso, a qual faz limite com um canto da T.I. Guajajara-Canabrava, provavelmente na parte que foi deixada de fora dos termos originais da Lei Estadual de 1923 . Os Tenetehara, como haviam feito após a saída dos moradores do Alto Alegre, festejaram muito, tomando formalmente o terreno e se apoderando das coisas que foram deixadas para trás.

Somando cerca de 2.100 pessoas, em 18 aldeias, em dezembro de 1979, em outubro de 1998 eram quarenta aldeias na T.I. Guajajara-Canabrava somando 4.464 pessoas. Recortada pela estrada BR-226, que estava finalmente sendo asfaltada, os Tenetehara dessa terra indígena se sobressaem como índios determinados a defender suas terras e buscar seu espaço na sociedade regional. Já tentaram algumas vezes eleger vereadores no município, mas não conseguiram. O atual chefe da Administração Regional de Barra do Corda é um mestiço Tenetehara, e tudo indica que desse posto não mais abrirão mão.

Vejamos agora como as demais terras indígenas tenetehara foram demarcadas. O quadro seguinte resume os dados principais dessas áreas, incluindo a Guajajara-Canabrava.

Quadro 1

Terras Indígenas dos Tenetehara no Maranhão

Terra Indígena Área (hectares) Município População (1999)
Guajajara-Canabrava 137.400 Barra do Corda 4.464
Lagoa Comprida 13.198 Barra do Corda 470
Urucu-Juruá 12.697 Grajaú 442
Bacurizinho 82.432 Grajaú 2.333
Morro Branco 49 Grajaú 220
Araribóia 413.288 Grajaú, Amarante 3.290
Pindaré 15.002 Bom Jardim 600
Caru 172.667 Bom Jardim 110 __________ Total: 846.462____________________ ____ _ Total: 11.929 Fonte: FUNAI, 1998

Terra Indígena Lagoa Comprida

Em meados da década de 1950 algumas famílias tenetehara oriundas das aldeias que haviam ficado fora da reserva projetada, sobretudo das aldeias Descanso, Mundo Novo e Farinha, se deslocaram para um baixão que escoa as águas no rio Grajaú formando algumas lagoas perenes. Criaram as aldeias Lagoa Comprida e Porco, já havendo desde a década de 1930 a pequena aldeia Lagoa do Leite. Em 1960 Xerez planejou que a T.I. Guajajara-Canabrava deveria ser extendida para abarcar essas aldeias e seguir até a própria beira do rio Grajaú, projeto que não foi aprovado pela direção do SPI e não foi levado adiante.

Nos anos seguintes, algumas dezenas de famílias vindas do Piauí e Ceará foram assentando e abrindo roças nessa micro-região, agregando-se em torno de um povoado que ficou conhecido como Centro do Meio, ou Centro do Felipe Preto. Desde fins da década de 1950 o SPI havia colocado como responsável por essas aldeias um descendente de Tenetehara, Arão da Providência Araújo, que ainda falava a língua, mas cuja família vivia em Barra do Corda, tendo sido seu pai criado no Instituto Indígena dos capuchinhos, entre 1897 e 1901, e se tornado músico, como o mérito de ter composto o hino da cidade. Arão ficou na aldeia Lagoa Comprida por alguns anos, sendo substituído, por volta de 1965, pelo Tenetehara Domingos Soares, natural da região, mas que havia sido educado em Barra do Corda e São Luís, e se tornara funcionário do SPI. Domingos não vacilou em cobrar renda dessas famílias, certamente que ordenado pelos seus superiores em Barra do Corda. Se havia algum entendimento e camaradagem entre lavradores e índios, conforme ponderaram os moradores desse povoado por ocasião da sua retirada, em 1979, o fato é que a inimizade se desmoronou a partir de meados da década de 1970, culminando num ataque que os índios da aldeia de Canabrava, onde havia um posto indígena, fizeram ao Centro do Meio, queimando os seus paióis de arroz e assustando os moradores, após um primeiro assalto a um grupo de índios feito pelos moradores do Centro umas semanas antes. Isto se deu em julho de 1978 quando essas terras já haviam sido demarcadas in situ e os moradores teimavam em lá permanecer se fiando no apoio dos políticos de Barra do Corda, especialmente o deputado Fernando Falcão.

A Terra Indígena Lagoa Comprida compreende uma área de 13.198 hectares e se situa no lado setentrional da T.I. Guajajara-Canabrava, sendo quase uma extensão desta. Seu formato não seguiu as linhas daquela terra indígena, isto é, o de um retângulo simples, pois seu limite ocidental ficou recortado em vários ângulos para deixar de fora alguns pequenos povoados e sítios de moradores tradicionais.

Em dezembro de 1979, as duas aldeias da T.I. Lagoa Comprida abrigavam cerca de 197 Tenetehara. Quase vinte anos após esse número alcança a casa dos 470 habitantes.

Terra Indígena Urucu-Juruá

Embora localizada no município de Grajaú, os Tenetehara que habitam essa terra indígena se relacionam mais proximamente, desde início da década de 1960, com as aldeias da T.I. Guajajara-Canabrava e, por conseguinte, com a Ajudância de Barra do Corda (embora atualmente esteja fora de sua jurisdição). A história de sua demarcação está ligada à história da demarcação dessa última terra indígena, bem como do seu apêndice, a T.I. Lagoa Comprida.

Na expansão dos Tenetehara do rio Pindaré para o alto rio Mearim, o rio Grajaú foi um caminho natral. Diversas aldeias tenetehara se estabeleceram nesse rio, desde sua foz até a uns 50 quilômetros a jusante de onde se formou a cidade de Grajaú. Nesse último trecho, por volta do último quartel do século passado, havia um povoamento bastante expressivo, com umas seis aldeias e uma população superior a 600. A diretoria geral dos índios criou uma diretoria parcial, cognominada Chapada, em 1881, para atender e fazer uso da força de trabalho desses índios. Mais abaixo se situava a Colônia Palmeira Torta, composta por umas duas ou três aldeias tenetehara, que entretanto teve pouca expressividade política ou econômica na região. Por ocasião da Rebelião do Alto Alegre, em 1901, havia apenas três aldeias tenetehara naquela altura do rio Grajaú, a mais próxima estando a uns 24 quilômetros de distância da missão dos capuchinhos. Os frades visitaram esses aldeias e levaram crianças para seu internato, o que provocou a participação de seus habitantes naquele violento acontecimento. Após a fuga e o retorno, algumas novas aldeias se formaram mais ou menos na mesma localidade e os homens passaram a trabalhar no serviço das canoas.

Em 1924 a aldeia Oratório foi visitada pelo cientista alemão Emil Snethlage, que a viu bem posicionada no alto de uma barranca do rio Grajaú. Por volta de 1932, Oratório foi mudada dois quilômetros fora da margem do rio por causa de uma epidemia de sarampo (Nembro 1955b: 144). Nos anos seguintes sua população foi caindo, provavelmente por causa do árduo trabalho nas canoas e a altíssima incidência de varíola, sarampo e malária. Por volta de 1936 havia nas proximidades as aldeias de Catingueiro, Curupati e, mais para dentro, na banda esquerda do rio Grajaú, uma grande aldeia chamada Cururu, cujos habitantes eram descendentes daqueles que haviam participado na Rebelião do Alto Alegre. O missionário capuchinho que visitou essa aldeia, Frei Sigismundo de Ombriano, relatou que suas casas formavam um grande círculo (Nembro 1955b: 47). Essa aldeia iria sobreviver até o início da década de 1960, quando seus habitantes se transferiram para a área da futura T.I. Araribóia.

Em 1942 o SPI criou o posto indígena Araribóia na beira do rio Grajaú, um pouco abaixo de onde se situavam as aldeias tenetehara e mais próximo de onde moravam os índios Timbira-Krepumkateye. A idéia era ter um posto para servir ambas as etnias. Porém a região era tão insalubre que dos 190 Timbira e 50 Tenetehara que para lá se mudaram, em 1941, sobraram menos de 60 alguns anos depois. Na década de 1950 os Tenetehara se mudaram de todo, ou para as aldeias da T.I. Araribóia ou para aquelas da T.I. Guajajara-Canabrava, mas os sobreviventes Timbira permaneceram no extinto posto, cada vez mais em piores condições. Em meados da década de 1970 a condição indígena dessa população poderia ter sido abandonada, dado o alto índice de mestiçagem, não fosse a insistência da velha Balbina, que periodicamente ia a Barra do Corda lembrar ao SPI e depois à FUNAI de que eram índios. Afinal, no bojo das demarcações das demais áreas indígenas, a FUNAI tomou as providências para demarcar uma área de cerca de 12.000 hectares, abrangendo as duas margens do rio Grajaú, a qual tomou o nome de Geralda/Toco Preto.

Enquanto isso, a aldeia Oratório foi diminuindo de tamanho, dividindo seus habitantes com a aldeia do Catingueiro, na margem esquerda do rio, que se tornou ponto de parada do serviço de canoas do rio Grajaú, e as novas aldeotas de Urucu e Juruá, estas situadas fora da margem direita do mesmo rio Grajaú. Em 1942, certamente por recomendação do inspetor Malcher, o relatório geral do SPI consigna para os Tenetehara das aldeias Catingueiro, Oratório, Juruá e Urucu uma área não especificada em limites de 121.968 hectares. Tal área, que provavelmente incluiria as terras dos Timbira Krepumkateye, do posto Araribóia, bem que poderia ter sido demarcada; entretanto, nos anos seguintes essa proposta foi abandonada de todo.

A aldeia Oratório se extingüiu algum tempo depois, mas Catingueiro e Curupati, na margem esquerda do rio Grajaú, continuaram a existir até meados da década de 1960, sendo pontos de passagem de Tenetehara que demandavam, da cidade de Grajaú, as aldeias do riacho Zutiua. A partir de 1948 ou pouco antes, o rio Grajaú foi abandonado como meio de transporte entre as cidades de Grajaú e Vitória do Mearim. Assim, perdeu-se um atrativo, perigoso embora, para a permanência dessas aldeias e seus moradores foram procurar novas paragens. Muitos se mudaram para as aldeias que surgiam ou cresciam no riacho Zutiua, outros se passaram para as aldeias Urucu e Juruá e de lá para as aldeias próximas à T.I. Guajajara-Canabrava, como Leite, Lagoa Comprida e Coquinho, que eram atendidas pelo posto indígena Ten. Manuel Rabelo. Em 1959 Xerez, seguindo o plano de demarcar terras próprias para as aldeias Lagoa Comprida e Leite, planejou também demarcar uma pequena área de 5.800 hectares para as aldeias Urucu e Juruá. Deu notícia aos índios, provavelmente fez uma escolha de limites, porém nada foi demarcado nem se tornou oficial. Em novembro de 1964, em ofício ao procurador da República, o inspetor José Fernando da Cruz, possivelmente sob conselho dos funcionários da 3ª Inspetoria que conheciam os planos de Xerez, solicitou a demarcação de uma área de 10 km por 10 km para as aldeias Urucu, Juruá, Lagoa Compria e Leite, sem dar os limites propostos. Tal proposta parecia um tanto estabanada, pois juntava dois conjuntos de aldeias bastante separados um do outro.

Na delimitação da T.I. Guajajara-Canabrava, em 1977, essas quatro aldeias ficaram de fora. Lagoa Comprida e Leite ganharam sua área, e, apesar da insistência para que Urucu e Juruá se transferissem para dentro dessa área, seus habitantes, cerca de 100 naqueles anos, permaneceram onde estavam.

Desse modo criou-se mais um impasse, para cuja resolução não havia outro meio senão procurar demarcar uma área que compreendesse pelo menos uma parte das terras que eram utilizadas pelos Tenetehara dessas aldeias. Para alcançar esse objetivo, haveria que resolver o problema de uma quantidade razoável de lavradores que, por aqueles anos, moravam e viviam de roças dentro da área pretendida. Dois povoados, Pau Ferrado e Sumaúma, somavam umas cento e poucas famílias, algumas lá vivendo há mais de 30 anos. Muitos moradores fizeram finca-pé para não saírem. Contavam com a permanência do povoado São Pedro dos Cacetes dentro da área indígena Guajajara-Canabrava, a alguns 20 quilômetros de distância, para não perderem o direito de permanecer nas terras pretendidas pelos Tenetehara. Porém, os índios não desistiram e fizeram com que a chefia da Ajudância de Barra do Corda pressionasse a FUNAI, em São Luís e em Brasília, para instalar um posto indígena na área, reafirmando assim o direito indígena sobre aquelas terras, criando condições políticas para a saída dos posseiros e, por fim, conseguindo recursos financeiros para indenizá-los.

Entre 1977 e 1980, com o processo de demarcação de outras terras indígenas correndo a todo vapor, tudo isso foi possível. Assim, por um processo administrativo, a T.I. Urucu-Juruá foi delimitada com uma área calculada em cerca de 7.800 hectares. Um pequeno trecho ficou margeando o rio Grajaú, o último ponto de convivência dos Tenetehara com aquele rio. No entanto, a demarcação só foi ser realizada efetivamente em 1983, tendo sido aumentada para uma área de 12.697 hectares, com a retirada dos povoados existentes. Em 1999 os Tenetehara dessa terra indígena somavam cerca de 420 pessoas, por ter agregado moradores dispersos da aldeia Coquinho, e andavam num ritmo de crescimento bastante razoável.

Terra Indígena Bacurizinho

Essa terra indígena, localizada no município de Grajaú, foi situada pelos Tenetehara ainda em meados do século XIX. Numa viagem de levantamento feito pelo engenheiro Saint Amand, em 1856, da qual resultou um mapa manuscrito do Maranhão , consta a existência de duas aldeias, uma delas na beira do rio Mearim, outra mais para dentro na mata entre este rio e seu afluente o riacho Enjeitado. Ambas as aldeias estão localizadas muito a montante da aldeia do Catueté, que ficava a três léguas de Barra do Corda (provavelmente o atual lugar Cateté de Cima). São as aldeias tenetehara mais setentrionais de todas, nas franjas finais das matas secas, abeirando as terras de carrascos e cerrados. Podemos presumir que essas duas aldeias tenham se formado pela expansão dos Tenetehara ao longo do rio Mearim, tendo já assentado aldeias próximas a Barra do Corda. Entretanto, os velhos Tenetehara falam que seus antepassados ali chegaram vindo diretamente do Gurupi, como se tivessem realizado uma migração proposital, atravessando o cerrado grajauense de uma só jornada.

O mapa de Saint Amand apresenta alguns nomes para os riachos que descem no rio Mearim, na altura das referidas aldeias; entretanto, exceto pelo chamado Ribeirão dos Ovos, não coincidem com os nomes encontrados nos mapas atuais. Já o Ribeirão dos Ovos é rabiscado no mapa de Saint Amand como entrando no Mearim um pouco acima de onde está localizada a aldeia ribeirinha tenetehara, coincidindo com os mapas modernos, que dão a foz do referido ribeirão acima da Fazenda Nazaré. Assim, fica confirmada a validade histórica da narrativa tenetehara que se segue sobre sua precedência naquela região.

Os Tenetehara me relataram em 1975 que a aldeia na beira do Mearim daqueles primeiros anos tinha o nome de Coati; a outra localizada mais no centro da mata ficou conhecida como Lagoa do Caboclo.

Algum tempo pelos finais do século XIX, um cearense de nome Salomão Barros montou uma fazenda, que deu o nome de Nazaré, perto da aldeia Coati. Pediu aos Tenetehara para se mudarem um pouco mais abaixo. Os Tenetehara acataram seu pedido e fundaram a aldeia da Gameleira. Lá ficaram durante as confusões da Rebelião do Alto Alegre. Alguns anos depois Salomão, uma vez mais, pediu para eles se deslocarem dali, onde erigiu a Fazenda Santa Maria. Os Tenetehara descerem o rio um pouco mais, situando a aldeia do Coxo; mais tarde fizeram a aldeia do Lajeado. Lá, Salomão Barros, por volta de 1920, erigiu um marco como limite de suas terras. Os Tenetehara uma vez mais se mudaram mais abaixo e fundaram a aldeia Cocalinho, depois Égua, Morro Branco e Canto do Rio, sempre descendo o rio Mearim. Nas décadas de de 1920 a 1930 estavam morando na aldeia do Talhado, de onde passaram para um outro local chamado Cocal ou Cocal Grande, por volta de 1940. Nos anos seguintes, esses três locais, além de Campestre e Mangueira, iriam constituir aldeamentos, às vezes maiores, às vezes simples moradas ou tekohaw, que os funcionários do SPI registrariam ao seu bel entender. Entretanto, os Tenetehara continuaram a fazer usufruto das terras interiores da antiga aldeia do Lajeado, onde iam caçar nas temporadas de verão, respeitando as terras a montante, cedidas por trato de cavalheiros a Salomão Barros.

Ao longo dos anos os Tenetehara dessas subsequentes aldeias ribeirinhas se relacionavam com aqueles que haviam fundado a aldeia Lagoa do Caboclo, no centro da mata, a qual também se mudava com alguma freqüência, até se localizar, por volta do início do século XX, perto de uma lagoa que ficou conhecida como Pedra. Por sua vez, esses índios transacionavam com os índios da aldeia Bananal, na beira do Enjeitado.

Quando o SPI tomou pé da situação dos Tenetehara do município do Grajaú, na década de 1920, deu-se conta de que as aldeias do Bananal, Pedra e Talhado formavam uma comunidade de relacionamento, e, por proximidade, um território comum. Em 1929, Marcelino Miranda tentou argumentar com a direção da 2ª Inspetoria de que esses índios deveriam ser eventualmente transferidos para a reserva decretada em 1923. Mencionou inclusive que havia uma pretensão por parte do fazendeiro Pedro Rodrigues Lopes sobre uma gleba de terras naquela região, mas não mencionou nenhuma alegação por parte de Salomão Barros.

Em 1941, o inspetor Malcher tomou conhecimento da existência dessas aldeias tenetehara e projetou a demarcação de uma área compreendida entre o rio Mearim e o riacho Enjeitado. Embora não constem os limites precisos no relatório geral do SPI para o ano de 1942, tal área foi estimada em 85.282 hectares. Estariam incluídas apenas as aldeias Pedra e Morro do Cocal. A aldeia Bananal, que ficava na beira do Enjeitado, e a aldeia Morro, do capitão Eusébio ou Tatukwerimàn, seria incluída dentro de uma faixa de terra a ser adicionada à T.I. Guajajara-Canabrava, a qual ficaria com o tamanho de 172.593 hectares. Essa proposta não foi levada adiante, mas deixou uma marca na memória dos Tenetehara e nos desenvolvimentos posteriores. Em 1949, aparentemente por consideração de Xerez, as terras para as aldeias dessa região foram consideradas para demarcação em uma área bem menor, de cerca de 10.000 metros por 10.000 metros.

Entretanto os acontecimentos se precipitaram de outra forma, afinal, e ironicamente, bem mais positivo para os Tenetehara. Em 1953, uma descendente de Salomão Barros, Dária Wíncola de Barros, alegou direitos de propriedade sobre as terras das aldeias Talhado, Mangueira e Bacurizinho, as aldeias então existentes na beira do Mearim, e pediu ao SPI para fazer os Tenetehara se retirarem de lá. Xerez, em consulta com Raimundo Vianna, e ouvindo os velhos líderes Tenetehara, decidiu pelo contrário, que os Tenetehara tinham razão. Passados alguns anos, em 1959, as duas partes chegaram a um acordo pelo qual o SPI indenizaria a Dária Wíncola de Barros pelas terras dessas aldeias pela quantia de Cr$ 100.000,00, a serem pagos em duas prestações. O negócio foi registrado em cartório e aos 24 de agosto de 1959, Dária Wíncola de Barros assinou um primeiro recibo no valor de Cr$ 50.000,00 pela venda de três lotes de terras para fazer parte do patrimônio das aldeias Bacurizinho, Mangueira, Pedra, Olho d´Água, Ipu e Cocal Grande. Era claramente uma maneira de pagar tributo a um interesse econômico de conotação política na região que estava sendo contrariado. Não parece ter havido qualquer viés de falcatrua ou corrupção nesse ato, mas também não há recibo sobre o restante.

Do outro lado, na beira do rio Enjeitado, o fazendeiro Silvério dos Reis Rodrigues, talvez descendente ou parente colateral de Pedro Rodrigues Lopes, apresentou-se ao SPI como proprietário da Fazenda Belo Sonho, que constituía uma gleba de terras no Baixão do Papagaio, herança de seu avô, que a havia montado ainda no século passado. De fato, o sobrenome Rodrigues aparece nos documentos da Diretório Geral dos Índios como sendo o chefe da diretoria parcial do Bananal, ainda em 1875. Porém, já antes, desde pelo menos 1856, estava a aldeia Bananal e os índios Tenetehara, a quem a diretoria parcial servia. Assim, os índios tinham como justificar a sua precedência. Raimundo Vianna tentou ajeitar os interesses de Silvério Rodrigues com os dos Tenetehara locais argumentando que estes deviam aceitar a exclusão do Baixão do Papagaio, que ia da Lagoa do Caboclo até a Lagoa Inchu, restringindo as terras imediatas da aldeia Bananal. Porém não houve acordo a esse respeito em 1959, e essas terras não foram demarcadas.

Nos últimos anos do SPI os Tenetehara dessa região ficaram à margem da atuação do órgão, mais preocupado então com a situação interétnica em Barra do Corda e no baixo Pindaré. Na passagem do sertanista João Américo Peret, em abril de 1964, numa mapa do Maranhão sobre o qual esboçou as áreas indígenas a serem demarcadas, consta para essa região duas pequenas glebas de terras em formato retangular, uma na margem direita do rio Mearim, a outra na margem esquerda do riacho Enjeitado, sem estarem conectadas um com a outra. Era um projeto completamente diferente do planejado por Xerez e Raimundo Vianna em 1959, sendo mais parecido com a proposta de Xerez de 1949, o que surpreende. Raimundo Vianna havia saído do serviço alguns anos antes, mas continuara a se relacionar com os Tenetehara, especialmente como patrão. Em outubro de 1964 ele iria amargar um enorme prejuízo, quando o primeiro inspetor nomeado pelo novo regime, José Fernando da Cruz, que ficou conhecido entre os índios e os funcionários do órgão pelo alopramento de seu comportamento, confiscou uma carga de produtos silvestres que Vianna já havia pago adiantado aos índios. Por essas e por outras, Vianna sofria acusações de corrupção semelhantes às que eram jogadas contra outros ex-funcionários do SPI, inclusive seu mentor, Dr. Sebastião Xerez.

Por esse tempo, essa região passou a ser conhecida como Bacurizinho, pela influência dos líderes daquela aldeia. Os Tenetehara estavam começando a experimentar um crescimento em sua população e a consolidar sua convivência mais respeitosa com a sociedade grajauense. Os primeiros fundadores e líderes das duas principais aldeias à beira do rio Mearim, Bacurizinho e Ipu, os dois irmãos Lopes, Raimundinho e Chico, haviam morrido em 1957, mas seus filhos amadureciam e começavam a serem reconhecidos na sociedade regional.

Em abril de 1964, dias da mudança para o regime militar, havia cinco aldeias nesta área indígena. Na rivalidade com Bacurizinho, Ipu saíra na frente, pois lá se instalara uma escola indígena desde 1954. Quem quisesse aprender a ler e escrever tinha que mandar seus filhos para viver com algum parente no Ipu, ou fazê-los caminhar todos os dias três quilômetros de ida e três de volta. Bacurizinho não tinha ainda atrativos assistencialistas, mas ficava mais próxima da velha e decadente aldeia da Pedra, agregara os moradores das aldeias da Mangueira e Talhado, e tinha influência sobre a renovada aldeia do Cocal, liderada pelo visionário José Altino. Com isso ganhava em número e em liderança, com o hábil Pedro Marizê, que substituíra o falecido cacique, o empreendedor Virgolino, e agora com o charmoso sanfoneiro Alderico, filho de Raimundinho Lopes, que despontava como nova liderança, com novo estilo de negociação, menos humilde, desafiando Pedro Marizê e Virgolino. Bem mais distante, na beira do riacho Enjeitado, se encontrava a já centenária aldeia do Bananal, com líderes respeitáveis na velha tradição, mas a quem faltava a nova tarimba política para lidar com os karaiw, os novos tempos de tensão interétnica, e especialmente as novas autoridades indigenistas que estavam aparecendo.

No interregno de cinco anos (1968-73), do início da FUNAI até a fundação de um posto indígena nessa área, os Tenetehara foram se inteirando das mudanças burocráticas que iam acontecendo no novo órgão. A agência do Grajaú foi desativada e os Tenetehara passaram a depender de Dona Maria Dolores Maia, a ex-professora dos postos Gonçalves Dias e Araribóia, e da aldeia Ipu, cuja casa em Grajaú virara um ponto de encontro e até de hospedagem para os mais amigos. A equipe de saúde da 6ª Delegacia Regional passou a fazer excursões de São Luís para as áreas indígenas e aldeias centrais, onde faziam consultas, vacinavam, distribuíam remédios e arrancavam dentes. Os Tenetehara do Bacurizinho eram atendidos nas aldeias Ipu e Bacurizinho. Quando, afinal, chegou a decisão de instalar um posto indígena na área, o local escolhido foi ao lado da aldeia Ipu. Porém a área ganhou o nome de Bacurizinho.

Nesse ano de 1973, a população da área foi contada pelo novo chefe de posto, Ismael Souza, em cerca de 650 pessoas, nas aldeias Ipu, Bacurizinho, Cocal, Talhado e Bananal. A aldeia da Pedra existia por tradição, mas não passava de um tekohaw onde algumas famílias mantinham velhas roças, porém com casas na aldeia do Bacurizinho. Morando permanentemente na aldeia da Pedra, e atendida por parentes que tinham casa no Bacurizinho, estava a velha Romana, então com mais de oitenta anos de idade, pois fora mocinha durante a Rebelião do Alto Alegre, e que se recusava a sair para qualquer outra aldeia, mesmo por questões de saúde. Em 1974 Ismael deixou a chefia do posto, sendo assumida pelo atendente de enfermagem Raimundo Mourão, que se firmou no cargo por credenciamento em abril de 1975, após a conclusão de um curso de indigenismo em Brasília, como haveria de fazer a FUNAI pelos anos seguintes. Mourão iria chefiar o P.I. Bacurizinho pelo período em que se desencadeou e se concluiu o processo de demarcação dessa terra indígena. Sua atuação, embora intencionada a ajudar na realização desse objetivo, não foi marcante, pois se enfraquecia com as pressões de fora. Por outro lado, uma pressão bem maior e contundente vinha dos próprios Tenetehara, que freqüentemente duvidavam da eficácia de seu chefe de posto e suspeitavam de sua honestidade, o que iria colocá-lo em alguns momentos em posição de insegurança no trabalho e com a família. Por diversas vezes líderes tenetehara ameaçaram expulsar Mourão da chefia, mas ele matreiramente aprendeu a usar de meios para contornar as situações difíceis com os recursos do posto ou próprios. O radicalismo dos Tenetehara pela demarcação de suas terras não permitiu qualquer manobra de conciliação com invasores ou pretendentes fazendeiros, e barrou algumas tentativas que surgiram da 6ª Delegacia, baseadas nos termos negociados por Xerez e Viana, em 1959.

O auge da tensão interétnica da demarcação dessas terras se deu entre 1975 e 1977, em virtude de dois atritos com interesses locais. Um foi precisamente com a mesma senhora da família Barros e seu marido nipo-brasileiro Akashi, que haviam sido ressarcidos em 1959. Eles agora alegavam que não haviam recebido uma parte do dinheiro acordado pelo SPI naquela ocasião. Só que essa negociação estava registrada em cartório de Grajaú. Mesmo assim, Dona Dária Wíncola de Barros insistiu e procurou recursos jurídicos e políticos para embargar a demarcação, inutilmente. O outro atrito se deu com o velho e simples morador da beira do riacho Enjeitado, Silvério Rodrigues, que trazia à tona a negociação feita com Vianna pela qual suas terras, situadas no Baixão do Papagaio, haviam sido respeitadas e não incorporadas à área indígena. Os Tenetehara da aldeia Bananal, perto da qual ficava a Fazenda Belo Sonho, não concordavam com esses termos, retorquindo que lá estavam muito antes do avô de Silvério ter chegado e situado sua fazenda, e que não haviam concordado com as propostas feitas por Vianna. A pressão dos Tenetehara foi de tal monta que conseguiram o que queriam e a T.I. Bacurizinho foi demarcada em 1978 e homologada em 1980, com 82.432 hectares, uma área um tanto maior do que aquela estimada no croquis traçado em 1959, e próxima daquela proposta em 1942.

O sucesso da demarcação da T.I. Bacurizinho empolgou os Tenetehara. A nova maneira de lidar com a FUNAI e com os karaiw em geral parecia que dera certo. A idéia era pressionar o máximo possível e de todas as maneiras, sem nenhuma forma de diplomacia. A primeira vantagem que ganharam foi a criação de mais um posto indígena na área, localizado na aldeia Bananal. Por esse tempo a FUNAI estava com falta de indigenistas para chefiar os muitos postos que estavam sendo criado pelo país a fora, e assim foram sendo aproveitados aqueles funcionários que tinham traquejo em lidar com os índios, tais como, atendentes de enfermagem, técnicos agrícolas e até motoristas das viaturas do órgão. Assim, o primeiro chefe do P.I. Bananal foi o técnico agrícola Válber Ribeiro, um rapaz esperto que havia ganho esse emprego em razão do casamento com uma moça tenetehara e das boas relações que mantinha com os jovens líderes da área. Alguns meses depois, o Tenetehara João Madrugada, que estava no Bananal como monitor bilingüe, não viu porque ele mesmo não viesse a ser o chefe do posto e forçou a saída de Válber. Mas ainda não havia chegado a sua hora. Com efeito, o primeiro Tenetehara a vir a ser chefe de posto foi mesmo Alderico Lopes, em 1982. O chefe de posto que substituíra Raimundo Mourão não dava conta da pressão cada vez maior dos Tenetehara e desistira. Depois de alguns meses em que o posto ficara vazio ou preenchido temporariamente por atendentes de enfermagem, Alderico foi nomeado substituto e foi ficando até ser efetivado, apesar de nunca ter feito curso de indigenismo, o que era requisito ao cargo.

O P. I. Bacurizinho está nas mãos de Alderico desde então. Nos primeiros meses de sua administração ele ainda morou na sede, a alguns metros da aldeia Ipu, a três quilômetros de sua casa na aldeia Bacurizinho. Mas logo resolveu ficar em casa até que uma nova sede do P.I. Bacurizinho viesse a ser construída na sua aldeia. Em 1987, foi criado o P.I. Ipu e para ele foi nomeado o Tenetehara José Lopes, primo carnal, ou paralelo, de Alderico, a quem chama de irmão, por ser filho do falecido Chico Lopes, irmão de Raimundinho Lopes, pai de Alderico. A rivalidade desses primeiros irmãos continuava na rivalidade dos primos.

Os dois postos indígenas servem praticamente às suas respectivas aldeias e às aldeias menores que foram se formando tanto pelo vertiginoso aumento populacional desde a década de 1970, quanto em razão das disputas internas por poder e influência engendradas pelos jovens com propensão a liderança. Tal é o caso, por exemplo, de Gentil, morador da aldeia Ipu, Tenetehara extremamente trabalhador, que fora aprendiz de pajé quando da minha primeira estada na área, em 1975. Sem alarde, Gentil foi se firmando como líder, não em oposição, mas diagonalmente às lideranças de José Lopes e seu irmão Chico Lino, que dominavam o Ipu. Em 1983 Gentil já tinha força bastante para se mudar para o interior da área, no lugar São José, e levar consigo uma centena de pessoas da aldeia Ipu. Durante o período de vacas gordas da FUNAI, Gentil conseguiu recursos para fazer uma casa de farinha, comprar ferramentas, utensílios e bois de carga e assim ampliar a produção agrícola das roças da nova aldeia. Em alguns anos ele tentou e obteve empréstimos agrícolas do Banco do Brasil, com intenção de financiar suas roças e de mais alguns Tenetehara de sua aldeia. Em 1995, quando o governo estadual do Maranhão obteve financiamento do Banco Mundial, como parte de um programa de auxílio a pequenos agricultores, Gentil estava no palanque de inauguração do programa, em Grajaú, como um dos seus agraciados. Nesse sentido Gentil é uma das poucas exceções entre líderes Tenetehara recentes por ter crescido em liderança sem ter emprego público, isto é, sem uma fonte permanente e estável de renda, ao contrário, dependendo unicamente de sua iniciativa agrícola.

Os Tenetehara da T.I. Bacurizinho somam hoje mais de 2.300 pessoas, com um índice de crescimento demográfico bastante elevado. Não há problemas de invasores, nem possibilidades aparentes de invasão, pois a fama agressiva dos Tenetehara é bastante difundida na região centro-sul do Maranhão. Não havendo mais madeira, nem outros produtos da floresta, nem minérios, os Tenetehara tocam sua vida pela agricultura, procurando produzir algum excedente para vender. Alguns mais empreendedores mantêm com dificuldade uma pequena pecuária.

Terra Indígena Morro Branco

O Morro Branco é uma gleba de 49 hectares de terra situado nos arrabaldes da cidade de Grajaú. Fica próximo à entrada sudeste da cidade, a 200 ou 300 metros da estrada que vem de Barra do Corda. Constitui um morrote que pouco se destaca na paisagem local, mas nele brota uma mina d’água permanente e até pouco tempo havia lenha bastante para fazer fogo. Desde o início do século XX os Tenetehara que vinham das aldeias da Gameleira, depois Cocalinho, Talhado e da aldeia da Pedra para trabalhar no serviço de canoas costumavam se arranchar com suas famílias nesse morro. As mulheres e filhos ficavam esperando a volta dos maridos, que às vezes demoravam até quatro semanas descendo e subindo o rio Grajaú até Vitória do Mearim. O salário era baixíssimo, não mais de 30$000 réis por jornada, o que mal dava para comprar uma muda de roupa para si e para a mulher, mas a compulsão social para se arriscar nesse trabalho extremamente árduo era grande. Lembremos aqui que nos séculos XVII e XVIII o salário de um índio livre por dois meses de trabalho era de duas varas de pano, valor não muito inferior ao do serviço de canoas entre 1900 e 1950. Deixando suas famílias para se virarem como pudessem no Morro Branco, os homens tenetehara corriam o sério risco de verem suas jovens esposas sendo cortejadas pelos rapazes da cidade, e alguns casos resultaram em gravidezes. Com efeito, em 1975 havia na aldeia Bacurizinho duas pessoas nascidas desses relacionamentos, por quem os cujos pais biológicos pouco haviam se importado, embora tivessem sido bem criadas pelos pais sociais.

Terminada a correria de canoas, diminuiu a permanência de famílias tenetehara no Morro Branco, mas nunca parou de ter gente pernoitando ou passando alguns dias nos ranchos improvisados. Na década de 1970, com o surgimento da demanda por artesanato indígena, e também por maconha, algumas famílias passaram a ficar por lá durante os meses de mais movimento de transeúntes, e construíram casas mais bem feitas e permanentes. Pelo fim da década já havia mais de dez famílias praticamente vivendo no Morro Branco. Os filhos já haviam cursado a escola indígena por três, quatro, cinco anos, e os pais queriam que eles continuassem os estudos. Daí para convencer a FUNAI de que esta área deveria ser considerada indígena foi um passo até natural. O fato de ser uma gleba urbana lhe conferia uma característica inusitada, mas inusitada também era toda a pressão que os Tenetehara faziam, e o certo é que eles haviam adquirido um legítimo direito de posse.

A negociação para a demarcação dessa área foi feita com a prefeitura da cidade, que não impôs dificuldades maiores para aceitar a argumentação de direito de posse sobre uma terra para a qual não havia nenhuma outra alegação clara e legítima de direito de propriedade. Ao contrário da cidade de Barra do Corda, em Grajaú o desprezo contra os Tenetehara não se dá tão à flor da pele, nem vem carregado do ódio rancoroso herdado da Rebelião do Alto Alegre.

Na década de 1980, o Morro Branco cresceu em população e chegou a ser uma verdadeira aldeia tenetehara com cerca de 140 pessoas. A própria 6ª Delegacia Regional da FUNAI fora convencida a ajudar os estudantes tenetehara com bolsas de estudos, o que contribuía para compensar o sacrifício dos pais de terem que manter casa distante de suas roças. Iam e vinham do Bacurizinho para o Morro Branco, traziam os produtos da roça e procuravam ganhar um extra vendendo um pouco de artesanato e trabalhando no facão e na enxada para quem precisasse de serviço braçal. As mulheres não se submetiam, nem eram requisitadas para o serviço doméstico na cidade. Uns poucos transacionavam maconha em pequenas quantidades com compradores amadores, correndo o risco de serem pegos pela polícia federal. Aliás, cabe dizer aqui que pelo menos dois deles, Celestino Guajajara e Djalma Marizê, haviam sido presos e interrogados violentamente por agentes federais em 1977. Nessa ocasião, a Ajudância de Barra do Corda, através de seu chefe, José Porfírio de Carvalho, entrara com um protesto oficial veemente, incluindo um pedido de compensação pelos maus tratos causados a Celestino (Henman 1979). O tráfego de maconha iria se intensificar na década de 1990, tornando-se uma das principais fontes de renda dos Tenetehara das diversas terras indígenas da região Grajaú-Barra do Corda. Já a Polícia Federal, sempre reprimindo com violência inaceitável para os Tenetehara, haveria de sofrer uma vingança dos Tenetehara, em 1993, quando estes prenderam e amarraram dois policiais federais que haviam entrado brutalmente na aldeia Coquinho a procura de traficantes indígenas.

Em 1999 a aldeia da T.I. Morro Branco havia diminuído para cerca de 80 Tenetehara. Tem uma pequena escola para os meninos mais novos, dirigida por um monitor bilingüe, enquanto os mais adiantados estudam em escolas regulares na própria cidade de Grajaú. Quase todos os moradores são originários de aldeias da T.I. Bacurizinho, embora o Morro Branco esteja aberta para qualquer Tenetehara. Sua continuidade como terra indígena dependerá da disposição dos Tenetehara para morar numa cidade e arriscar um meio de vida pelo trabalho braçal ou competir com os civilizados por algum tipo de emprego urbano. Os Tenetehara que têm remuneração melhor, como chefes de posto ou monitores bilingües, em geral possuem casas na cidade e vivem um pouco à parte de seus patrícios, porém sem perder o relacionamento social e econômico, já que eles mesmos mantêm casas na T.I. Bacurizinho

Terra Indígena Araribóia

Na passagem do inspetor Malcher pela Estrada do Sertão, margeando o riacho Zutiua, em fevereiro-março de 1941, ele notou a grande extensão de terras entre os rios Pindaré e Grajaú, na altura do médio Zutiua para cima (isto é, para o sul) onde havia um vazio de moradores civilizados e a presença soberana de índios Tenetehara. Determinou a criação de um posto na aldeia Tauari Queimado, mas seu ajudante José Olímpio acabou estabelecendo o novo posto Araribóia malfadadamente na beira do rio Grajaú. Em 1949 esse posto foi transferido para a aldeia Funil, que ficava não muito longe do ponto em que os riachos Zutiua e Buriticupu nascem, partindo em direções opostas um do outro, depois descendo paralelamente até desembocarem no rio Pindaré. Malcher deve ter entretido a idéia de, em algum momento, consignar como área indígena toda a extensão entre os rios Pindaré e Grajaú, ou ao menos entre o Zutiua e o Pindaré, como de fato surgiu a primeira proposta de demarcação dessas terras transcrita no relatório anual do SPI de 1942.

Entretanto, só com a instalação do novo posto Araribóia, sob o comando do Dr. Xerez, é que as primeiras providências iriam ser tomadas. No mesmo ofício de 1949 em que solicita a designação de agrimensores ao governador do estado do Maranhão para ajudar na demarcação de terras indígenas, Xerez traça os limites da área indígena do posto Araribóia, englobando terras para os Tenetehara bem como para os Krikati e Gaviões. Os limites são vagos: Pela frente com a linha telegráfica, isto é, mais ou menos ao longo do riacho Zutiua; pelos fundos com a margem direita do rio Pindaré; pelo lado de baixo, isto é, pelo norte, com terras devolutas; pelo lado de cima, isto é, ao sul, com a margem direita do Riachão. Toda essa área era estimada em um quadrilátero de 30 km de frente por igual extensão de fundo, medida muitíssimamente subestimada. É possível que Xerez, em sua comunicação com as autoridades, tivesse como estratégia minimizar os tamanhos das áreas que queria que o governo estadual acatasse como indígenas. De qualquer modo, se essa área fosse também para os Krikati, estes teriam que ser atraídos das terras onde viviam, nos riachos formadores do rio Pindaré, um processo que jamais foi tentado nos anos seguintes.

Em 1959, o Dr. Xerez, Raimundo Vianna e o chefe do posto Araribóia, Benevenuto Riedel, conseguiram delimitar no papel uma área de cerca de 430.000 hectares englobando todas as aldeias tenetehara da região do posto Araribóia. A área foi demarcada in loco com marcos fincados em pontos estratégicos, após acordos com antigos sitiantes das vizinhanças, especialmente aqueles que viviam próximo a algumas aldeias à beira do Zutiua, tais como Presídio e Vargem Limpa, e com a participação de muitos índios Tenetehara. O novo limite oeste era o riacho Buriticupu até sua desembocadura do rio Pindaré. Todavia, apesar da facilidade com que essa demarcação foi realizada, com poucas e contornáveis contestações, a área terminou não sendo oficializada nos anos seguintes. Só com a FUNAI, em 1978, é que seria finalmente demarcada, após uma árdua disputa com um exagerado número de mais de 2.000 novos invasores e alguns poucos antigos sitiantes.

Moldada em um quadrilátero, cujos lados sul, leste e oeste são delineados pelos cursos dos rios Zutiua e Buriticupu, e a divisa norte por uma linha seca que liga os dois rios, a partir da desembocadura do riacho Serozal no riacho Buriticupu, a Terra Indígena Araribóia constitui 413.288 hectares da orla oriental da floresta amazônica, com umas pequenas manchas do cerrado grajaúense, sem dúvida nenhuma um patrimônio fabuloso dos Tenetehara.

Em 1970, sendo chefe do P.I. Araribóia (Funil) o sertanista italo-brasileiro Fiorello Parise, iniciou-se o processo de reconhecimento daqueles limites pela FUNAI. A população tenetehara estava em crescimento lento desde a década de 1950 e chegava a 1.400 pessoas em quatorze aldeias. Já então começavam a aparecer imigrantes em busca de terras livres, especialmente do lado oriental da área projetada. Na quina nordeste, na beira da velha Estrada do Sertão, porém considerada fora dos limites da área, onde existira a aldeia Tauari Queimado até fins da década de 1940, agora se formava o povoado Arame, nome emprestado de uma cerca de arame farpado, item então raro na região, que seu primeiro morador não indígena, um missionário protestante, que lá vivia em 1941, quando da passagem do inspetor Malcher, fizera ao redor de sua casa. Os lavradores sem terra demandavam a região seguindo a Estrada do Sertão tanto do norte para o sul, como do sul para o norte. Ao norte, haviam fundado o povoado, logo depois cidade de Santa Luzia, em terras da velha aldeia tenetehara do Anajá. Agora essa estrada se alargava para se tornar uma estrada de rodagem ligando Grajaú a Santa Luzia e daí a Santa Inês. A partir de 1973 a construção do trecho entre Arame e Grajaú ficara a cargo da empreiteira cearense EIT que, aproveitando as subvenções e subsídios da época, investia também em terras da margem oriental da área indígena.

Em 1974 já havia tanta gente com disposição a conseguir um pedaço de terra que parte delas se instalou de vez na margem ocidental da estrada, dentro da área, pagando para ver se alguém os iria retirar. Um povoado, com o nome de Marajá, onde houvera uma aldeia tenetehara nos anos 1940, cresceu rapidamente e logo contava com uma população avaliada, exageradamente, em 2.000 pessoas. A tensão foi aumentando no ano de 1975 . Em maio, o chefe do P.I. Angico Torto, criado um ano antes para enfrentar essas novas dificuldades, Mário Daltrozo, deu o prazo até setembro para os posseiros invasores se retirarem. Vencido o tempo, ao chegar num barraco de um deles com alguns acompanhantes Tenetehara para cobrar a sua saída, foi recebido com um tiro. Os Tenetehara reagiram e mataram o atacante a pauladas e feriram mais dois. Daltrozo foi levada às pressas para São Luís, com um pulmão perfurado. Depois de sarado, por motivo de segurança, ele foi afastado do posto e transferido para outra região do país.

Com esse incidente e um herói à mão, ficou bem mais fácil para a FUNAI obter o apoio da polícia federal e forçar a saída dos invasores. O substituto de Daltrozo, Luís Jatobá, encontrou meio caminho andado, e em 1976 os posseiros do lado do rio Zutiua foram retirados. A demarcação foi realizada em etapas, devido ao tamanho do perímetro, e por causa de algumas dificuldades com velhos moradores, em particular aqueles que viviam nas proximidades da aldeia Presídio, que não queriam deixar suas posses de longa data, bem como alguns novos invasores com capital já aplicado. Particularmente difícil foi a expulsão de um fazendeiro no lado noroeste da área. O chefe do P.I. Canudal, criado dois anos antes para apoiar os Tenetehara que tinham migrado para aquela sub-área, Jorge Muniz, mostrou destemor e liderança, junto com diversos Tenetehara, para enfrentar essa resistência. Quanto aos antigos compadres civilizados que perderam seus direitos a terras ocupadas de longa data, os Tenetehara não sentiram mais do que uma pequena e passageira compaixão. Prejudicados também se sentiram Raimundo Vianna e seu cunhado Tenetehara, Pedro Marizê, que alegavam que umas áreas de terras próximas à aldeia Borges, que haviam ficado dentro da terra indígena na demarcação final, mas fora na primeira demarcação, eram suas propriedades particulares, não dos Tenetehara.

Incidentalmente, na esteira da demarcação da T.I. Araribóia, foi demarcada a terra indígena dos índios Gaviões, situada alguns quilômetros ao sul, com 41.000 hectares de cerrado e floresta de galeria. Ambas as terras indígenas se situam majoritariamente no município do Amarante, embora partes do Araribóia estejam nos municípios de Grajaú e do atual Arame. Já o território dos Krikati ficou a mercê de muita disputa e só em 1997 é que foi dada uma solução de demarcação, ficando com uma área de cerca de 146.000 hectares, parte da qual está tomada por posseiros e fazendeiros.

Nos anos seguintes, não havia quem não sentisse satisfação em ver tamanho território demarcado, uma floresta pujante e terras boas para agricultura, caça e coleta de produtos silvestres, tais como castanha de cumaru, cipós e resinas, e especialmente a folha de jaborandi, cuja coleta era incentivada por representantes do laboratório Merck, que tinha uma agência de compra em Teresina, Piauí. Parecia que desta área só viriam benefícios para os Tenetehara que mantivessem o padrão tradicional de cultivo da terra com uma economia de troca de produtos silvestres. Entre os rios Zutiua e Buriticupu ficava uma mata imensa que podia ser explorada racionalmente por muitos anos, sem debastá-la, nem gastá-la.

Em 1985 a população do Araribóia chegava a 3.000 habitantes, um crescimento acima da média - já bastante alta - do crescimento tenetehara. Quando os recursos do convênio de reparação da CVRD/FUNAI foram estendidos para essa área, a 6ª Delegacia Regional, sob a chefia do Tenetehara Pedro Marizê e a liderança efetiva do sertanista José Porfirio Carvalho, avaliou a situação das aldeias e determinou em quais se podia investir na criação de gado, e com quem se podia emprestar a fundo perdido para a plantação de roças de arroz. Os Tenetehara se entusiasmaram com esses recursos e planejaram derrubar áreas cada vez maiores para roças e para pasto. Poucos tiveram que investir tudo nas empreitadas e gastaram muito em bens de consumo. Menos ainda tiveram a oportunidade de auferir lucros com as colheitas. Os mais espertos passaram a contratar mão-de-obra externa para as grandes derrubadas de mata, acertando o aproveitamento da madeira de lei, cujos troncos deviam ser retirados antes da queimada.

Quando o convênio parou de enviar recursos, em 1989, já havia um meio de continuar a se ganhar dinheiro com os produtos da terra indígena: a venda de madeira de lei. Disso se aproveitariam principalmente os Tenetehara que tinham convivência com comerciantes das cidades do Amarante e Grajaú e sabiam negociar. À frente estavam Antenor Bone e Belita Madrugada, ambos oriundos de outras áreas indígenas mas que viviam no Araribóia. Entre 1990 e 1995, cerca de trinta madeireiras se instalaram em Amarante somente para cortar e transportar a madeira da T.I. Araribóia. No começo, entraram na área pela estrada que liga a cidade ao P.I. Funil, e daí penetraram pelo interior da mata até bem fundo. Esgotado esse veio, partiram pelo lado da estrada que vai até o P.I. Canudal, cuja área também foi devastada. Por fim, passaram para o lado leste e nordeste, pela estrada Grajaú-Arame, penetrando pelos postos indígenas Angico Torto e Presídio e por um posto de vigilância criado precisamente para coibir a entrada de pessoas do Arame. Ao final de quatro a cinco anos, grande parte da floresta de madeira de lei havia sido abatida.

Os Tenetehara que souberam negociar suas porcentagens de ganho passaram a viver uma vida de abastança, compraram casas e carros em Amarante e Imperatriz, esbanjaram uma riqueza nunca dantes vista na região, especialmente entre índios Tenetehara. Porém, a madeira de lei foi se esgotando, as madeireiras maiores mudaram-se para outras regiões, só ficando as menores, e o dinheiro encurtou para todos. Hoje em dia poucos Tenetehara mantêm algo do nível de consumo que tinham alguns anos atrás. Pouco restou de poupança, a não ser uma experiência que certamente não jogará luz prudente no futuro. A volta a um padrão modesto de existência é o que salvará os Tenetehara de um descompasso com sua condição étnica que poderia levá-los inclusive à perda de controle desse belo território.

Em 1999 os Tenetehara da T.I. Araribóia somavam mais de 4.500 pessoas.

Terra Indígena Pindaré

Na primeira consideração do SPI, através do relatório de Luiz Riedel, de 1914, sobre os Tenetehara que viviam no rio Pindaré e na Estrada do Sertão, não há nenhuma menção sobre terras. Eram extensíssimas, os índios estavam espalhados e os povoamentos de civilizados raros, em convivência pacífica com os índios. O mesmo se dá no relatório geral do SPI de 1918 que fornece o primeiro levantamento dos índios nos municípios maranhenses. Aqui se explicita a não preocupação com a demarcação de terras nessa região, em contraste com o objetivo de garantir terras para os índios da região de Grajaú-Barra do Corda. Só com a vinda de Malcher ao posto Gonçalves Dias, em fevereiro de 1941, acompanhado pelo ímpeto de demarcação de terras indígenas no Maranhão, é que surge o primeiro esboço de delimitação de uma área indígena na região.

Com efeito, o relatório geral da 3ª Inspetoria de 1942, além das áreas já mencionadas anteriormente, propõe a criação de uma área para englobar as terras de usufruto das aldeias Januária (no posto Gonçalves Dias), Ilhinha, Pinoatiua, Requahau Piarru, Grota, Marcelino, Caruzinho e Joaquim Grande, todas na beira do rio Pindaré, bem como Contra Erva, Lagoa Comprida, Pau Santo, Jacaré, Zutiua, Limão, Cigana e Tauari Queimado, na Estrada do Sertão abeirando o riacho Zutiua. Tal área foi calculada em 353.889 hectares. É difícil visualizar o formato dessa área, já que o riacho Zutiua e a Estrada do Sertão se desviam da margem do rio Pindaré a partir do lago Tarupau, ou da aldeia Lagoa Comprida. Para abarcar esses dois rumos, especialmente ambas as margens do rio Pindaré, o tamanho dessa área teria que ser muito maior.

Em 1949, o Dr. Xerez, seguindo as recomendações de Malcher, vislumbrou criar duas áreas para os Tenetehara do vale do Pindaré. Uma, que Xerez diz já ter sido delimitada em mapa pelo agrimensor Jair Guimarães em 1940 (provavelmente a que consta no relatório de 1942), tinha como frente a margem esquerda do rio Pindaré até seu afluente o rio Caru, que seria o limite sul pela sua margem esquerda até os contrafortes da Serra de Piracambu (Tiracambu); o limite norte (justante) seria o igarapé Caraaçu que desce no rio Pindaré um pouco abaixo do posto Gonçalves Dias; e o limite oeste, ou de fundos, seria uma linha que vinha dos contrafortes da Serra de Tiracambu. Em 26 de julho de 1958, em ofício ao diretor do Departamento de Terras, Geografia e Colonização do Maranhão, Xerez solicitou que fosse inscrita a ocupação dessas terras pelos índios Tenetehara, aparentemente um primeiro passo para a sua demarcação oficial. Entretanto, nada foi feito para tornar essa proposta uma realidade, mesmo porque em julho de 1961 o presidente Jânio Quadros assinou um decreto criando a Reserva Florestal do Gurupi, a qual consistia em um polígono de aproximadamente 1.600.000 hectares situado entre os rios Gurupi e Pindaré, abrangendo inclusive as terras propostas por Xerez, e anteriormente por Malcher.

A outra área seria formada por um primeiro limite que sairia da embocadura do riacho Zutiua, margeando pelo lado esquerdo até uma certa altura, englobando as aldeias da Estrada do Sertão. Pela metade da década de 1950 essa segunda proposta estava descartada, já que a entrada maciça de imigrantes a inviabilizara e as aldeias tenetehara foram se acabando, até sua última, Anajá, que sucumbiu em fins de 1964.

Nos anos finais da década de 1950, vendo a impossibilidade do SPI demarcar toda a extensão de terras da margem esquerda do rio Pindaré, entre o rio Caru e o Igarapé da Água Preta, e certamente esperando que providências maiores seriam tomadas pelo governo federal, bem como as terras da margem direita do mesmo rio, ao longo do riacho Zutiua, o Dr. Xerez se concentrou na demarcação das terras imediatamente ao redor do posto Gonçalves Dias, no então município de Pindaré-mirim. As terras perdidas estavam sendo tomadas por imigrantes nordestinos que abriam roças e fundavam povoados. As aldeias que ainda permaneciam por aí - Ilhinha, Lagoa Comprida, Contra Erva e Anajá - foram abandonadas e seus habitantes convidados a virem fazer morada perto do posto. Xerez ainda tentou que o governo do estado o ajudasse, mas tudo parecia ir contra os Tenetehara da região. A única possibilidade era a delimitação das terras ao redor do posto indígena, o que dava uma área de cerca de 16.000 hectares. Mesmo assim com muito custo, pois a grande leva de imigrantes pobres lavradores sem terra que se dirigiam para o alto Pindaré também atravessaram o rio Pindaré na altura da cidade de Santa Inês e já estavam derrubando a mata, fazendo roças e abrindo pastos para seu gado.

Os arquivos do posto Gonçalves Dias demonstram o quanto havia de nervosismo na região. Entre 1960 e 1968 não se passa um mês sem que haja algum telegrama à 3ª Inspetoria comunicando algum distúrbio causado por um posseiro, um madeireiro ou por algum índio revoltado com a tomada de suas terras e o roubo de madeira. Em 1962, o inspetor Xerez chegou a ressarcir um posseiro mais antigo reclamante para se retirar das terras dos índios. Nessa ocasião era chefe do posto o sertanista Júlio Alves Tavares, cujo relatório arrola a presença de 240 Tenetehara e 28 Timbira Kre-jê na área Pindaré. Em abril de 1964, conforme se pode apreender do relatório do indigenista José Américo Peret, que passava pela área para avaliar a situação das terras indígenas do Maranhão, a confusão estava instalada nessa região, não só pela drástica mudança de governo, como também pelo burburinho de atividades causado pela construção da estrada de rodagem que iria ligar São Luís a Belém do Pará. Em seu relatório, Peret menciona ainda que havia um posseiro que se recusava com toda a veemência a aceitar os limites da área indígena.

Nos anos seguintes, a confusão só iria aumentar, deixando os índios extremamente inseguros de seu futuro. Sua população iria crescer muito lentamente, pois em 1975 chegava a apenas 270 Tenetehara e 40 Timbira, sendo esta última composta de jovens mestiços. Enquanto isso a população brasileira se multiplicava em toda a região do baixo Pindaré, e várias partes da área indígena foram sendo tomadas por invasores. Muitos posseiros usavam da terra indígena sob o beneplácito dos incumbentes chefes de posto, outros sob o patrocínio de alguns Tenetehara. Em ambos os casos, o modo de fixação se dava pelo arrendamento de lotes de terra, seja para a agricultura, seja para a coleta de coco babaçu. Situada a apenas seis quilômetros da crescente cidade de Santa Inês, a área indígena fora cortada ao meio pela BR-316, cuja construção levara quase dez anos para ser concluída. A estrada abriu uma veia de passagem para os lados do Pará, que atrairia gentes de todo o Maranhão e estados do nordeste, lavradores pobres que foram se instalando por conta própria ou assentados por um projeto de colonização da SUDENE, o qual atraía igualmente pequenos comerciantes e profissionais de classe média que foram se instalando e conquistando os melhores nichos da sociedade local. Um povoado brotou na beira da estrada a apenas três quilômetros dos limites da área, e logo virou cidade e sede de município, com o nome de Bom Jardim. Ela abrangeria as terras da margem esquerda do Pindaré, que anteriormente pertenciam a Pindaré-mirim. Assim, a futura T.I. Pindaré ficou integrada a este novo município, sofrendo sua pressão política e econômica, bem como a da pujante Santa Inês.

No início dos anos 1970, a FUNAI considerava essa área quase impossível de ser demarcada e mantida, tão próxima de duas cidades, na beira de uma estrada federal, e invadida por mais de 200 famílias de posseiros. O delegado e coronel da polícia Armando Perfetti, junto com seu auxiliar o sertanista João Fernandes Moreira, tentaram por diversas vezes convencer os índios a se mudar para o alto Pindaré ou para o Araribóia. Eles persistiram e insistiram. Em 1975, a tensão alcançou níveis de pré-confrontamento, sobretudo porque os Tenetehara do Pindaré foram emulados pelos seus compatriotas da região de Barra do Corda ao mesmo propósito de defender suas terras. Embora alguns Tenetehara mais velhos auferissem alguma vantagem com a renda da quebra de coco babaçu e da colheita de roças de arroz e mandioca, uma nova geração estava disposta ao confronto armado para retirar os invasores. Os posseiros se apoiavam nos novos políticos de Bom Jardim, uma terra de aventureiros onde alguns faziam fortuna rapidamente montando fazendas e agregando terras já desmatadas. Afinal, a FUNAI não teve escolha e tomou a decisão de forçar a saída dos posseiros, ameaçando-os com a presença da polícia federal. Em fins de 1975, o chefe de posto, Domingos Faria, junto com um turma de jovens Tenetehara, arrolaram e expulsaram 117 famílias localizadas na parte norte da área. No ano seguinte foram retiradas mais 70 e poucas famílias da parte sul, ficando somente as quase cem casas localizadas na beira da estrada, num povoado chamado Tirirical, já se aproximando de Bom Jardim. Na negociação final, o povoado e seus arredores ficaram de fora da terra indígena. Ainda hoje os Tenetehara comentam que isto se deu por um acordo entre o delegado da FUNAI da época e o prefeito, que tinha uma gleba de terras naqueles lados. Os Tenetehara se apossaram das áreas onde havia roças, pomares e pasto para gado, bem como dos pontos estratégicos onde houvera concentração de invasores. Fundaram aldeotas e moradas.

Nos anos seguintes, na onda de sua recém descoberta força política, os Tenetehara passaram a reivindicar maior participação na condução do P.I. Pindaré. Expulsaram o velho vaqueiro do tempo do SPI e tomaram de conta do rebanho de mais de 200 cabeças de gado, o qual foi distribuído entre todas as famílias tenetehara. Aos poucos, o gado minguou e apenas alguns iriam manter umas poucas cabeças nos anos seguintes. Entre 1977 e 1985, os Tenetehara do Pindaré iriam contar com a presença de um excepcional chefe de posto, José Benvindo, que estabeleceu no posto uma cantina para comprar produtos tenetehara, principalmente coco babaçu, e vender bens de consumo a preços de custo. A FUNAI apoiou essa atividade por alguns anos, e, após 1983, a cantina iria se expandir pois contava com mais recursos de investimento a fundo perdido vindos do Convênio CVRD/FUNAI. Porém, quando essa fonte secou, em 1988, a cantina começou a cambalear, os Tenetehara se aborreceram com a falta de mantimentos baratos e empréstimos irressarcíveis, e pressionaram pela saída de Benvindo, que, esperando se tornar delegado da 6ª Delegacia Regional, desistiu do cargo e foi para São Luís. Desde então o P.I. Pindaré perdeu a força de presença que tivera e passou a uma fase de indefinição, apenas preenchida pela liderança de alguns Tenetehara.

Desde 1978, a presença exógena mais forte entre os Tenetehara do Pindaré é a do Padre Carlo Ubbiali, do Cimi - Conselho Indigenista Missionário - órgão do Conselho de Bispos do Brasil, que vive em Bom Jardim. O Padre Ubbiali tem se dedicado ao trabalho de evangelização, trazendo as boas novas, a esperança, como gosta de dizer, entre os índios do Maranhão, especialmente os Tenetehara do Pindaré e do Caru, bem como os Guajá. Sua ação tem sido de apoio às reivindicações dos índios, de orientação, quando lhe pedem, em alguns posicionamentos, e de presença política discreta, mas inabalável, em favor dos índios e dos pobres lavradores, em todo o município de Bom Jardim, onde duas vezes ao ano faz desobriga.

Os Tenetehara do Pindaré estão mais seguros de si, conscientes e determinados do que o eram antes de 1975, o ano de sua virada. Hoje somam mais de 600 pessoas e mantêm contato com seus patrícios de outras regiões, inclusive os Tembé, do Pará, participando em reuniões nacionais de associações de defesa à causa indígena. Nos últimos dez anos alguns se mudaram para a terra indígena Caru, onde a terra é boa para a agricultura, mas também onde há perigo de coletores de coco, caçadores e lavradores dos povoados da outra margem do rio, bem como madeireiros, ousarem tomá-la por invasão em massa. Um filho do velho Manuel Viana, que viria a falecer em 1991, e que se tornara inclusive crente, pelos ensinamentos do missionário Bendor-Samuel, na década de 60, passou a ser o líder mais importante dos Tenetehara do Pindaré, e nos últimos cinco anos, também daqueles do Caru. Seu irmão mais novo é o atual chefe do P.I. Caru.

Terra Indígena Caru

Em fins da década de 1950, o alto Pindaré se esvaziara da presença de índios Tenetehara. Com o fim do comércio de óleo de copaíba, Camiranga, o grande entrepreneur dos Tenetehara da década anterior, mudara-se para as terras do posto Gonçalves Dias, fundando a aldeia Faveira, onde lá morreria, em 1958. Com ele desceriam quase todos os sobreviventes das fortes e contínuas epidemias que assolaram os Tenetehara nesse período. A região parecia sem gente, seja índios ou civilizados, já que os espaçados grupos de índios Guajá que lá viviam tocavam sua vida de modo tão discreto que mal se percebia a sua existência. No médio Pindaré e na Estrada do Sertão, as aldeias tenetehara haviam sofrido igual destino, até mais abruptamente, pois foram tragadas pela chegada maciça de nordestinos que demandavam as paragens do rio e o caminho do sertão, fundando centros de roças e povoados. Alguns deles iriam se tornar bastante importantes nos anos seguintes, como Alto Alegre, na beira do Pindaré, e a cidade de Santa Luzia, na estrada do sertão.

Raimundinho Guajajara, o contínuo da delegacia da FUNAI, em São Luís, referido no Capítulo II, é um exemplo da derrocada dos Tenetehara dessa região. Nasceu em 1942 na velha aldeia Lagoa Comprida, fundada por volta de 1870, ao lado do lago Tarupau, que cai no rio Pindaré próximo da Colônia Pimentel, não muito distante da T.I. Pindaré. Alguns anos depois sua família mudou-se para a aldeia Anajá, na estrada do Sertão, atraída pela chegada de imigrantes que pagavam algum dinheiro para mão-de-obra na abertura de roças. Aos poucos seus pais e seus seis irmãos foram morrendo de sarampo e gripes fortes. Seu padrinho, um civilizado, o levou para Santa Inês, onde viveu alguns anos fazendo trabalhos manuais. Depois ele resolveu voltar para seu povo e foi viver na aldeia do posto Gonçalves Dias. Tendo aprendido a ler e escrever, e com uma disposição de humildade em servir, mudou-se para São Luís em 1966 onde conseguiu o emprego de contínuo na delegacia. Ao se aposentar, em 1996, voltou para o P.I. Pindaré, mas terminou se fixando em Santa Inês, em um complicado casamento com uma brasileira.

O alto Pindaré iria ser repovoado por Tenetehara a partir de 1966, quando o cacique Marcelino, oriundo da aldeia Tira Couro, a última do baixo rio Grajaú, a região que nunca fora assistida pelo SPI, subiu o rio Pindaré e assentou uma aldeia na beira do rio, alguns quilômetros abaixo da embocadura do rio Caru. O chefe do posto Gonçalves Dias prestou algum auxílio nessa empreitada e o posto continuou assistindo àqueles que vinham de Tira Couro à procura de terras livres. Naqueles anos muitos brasileiros também estavam subindo o Pindaré em busca de terras livres, “libertas”, eles diriam (Santos 1988). Dois anos depois, já cercado por muita gente, Marcelino, dois cunhados e mais uns 25 Tenetehara, incluindo alguns civilizados casados com Tenetehara, mudaram-se para a outra margem do rio e fundaram uma aldeia com o nome de União.

Em 1970, a aldeia União tinha 40 pessoas, e mais Tenetehara estavam a caminho. Marcelino comandou a aldeia até sua morte, em 1974, sendo substituído por seu primo-irmão Marciano. Nesse ano a FUNAI estabeleceu o P.I. Caru para dar assistência a esses Tenetehara e firmar bases para demarcar essa área. O primeiro chefe do P.I. Caru foi um auxiliar de enfermagem do órgão, Lúpercio Santos, cuja presença iria ajudar a dar legitimidade federal à pretensão de demarcação. A contínua chegada de imigrantes, que iam fundando e habitando novos povoados ao longo dos rio Pindaré e Caru, tais como Mineirinho, Impueira, Boa Vista, no Pindaré, e Novo Caru, Escada e São João do Caru, no rio Caru, não augurava boas novas e sim mais pressão sobre as terras que os Tenetehara queriam manter como suas. A forte presença dos líderes Tenetehara e do posto indígena os impedia de atravessar os rios e invadir essas terras entre o Pindaré e o Caru.

Em 1972 a FUNAI já tinha traçado planos de demarcar terras para os índios Urubu-Ka’apor, Tembé e Guajá que viviam entre os vales do Pindaré e a margem direita do rio Gurupi. A idéia era aproveitar um artigo do decreto presidencial de 1961, que instituíra a Reserva Florestal do Gurupi, o qual declarava que as terras de uso indígena deveriam ser geridas pelo órgão indigenista. Assim, se as divisas originais norte e leste da reserva, formadas por uma linha seca que ia do povoado Itamaracá, no rio Gurupi, até a altura do antigo povoado Colônia Pimentel, fossem consideradas como terra indígena, as terras dos Tenetehara da margem esquerda do médio Pindaré, cuja demarcação havia sido projetada desde 1941, iriam ficar dentro dessa reserva. Porém, naquela altura uma boa parte dessas terras estava tomada por uma multidão de lavradores, e inclusive por um projeto de colonização da SUDENE. Assim, a FUNAI abriu mão das terras da margem esquerda do Pindaré e do Caru, desde a antiga Colônia Pimentel até o igarapé Turizinho, mas procurou delimitar uma única área contínua, com cerca de 780.000 hectares, abrangendo a margem direita do Gurupi, de Itamaracá até o igarapé do Milho, o vale do médio e alto Turiaçu, a serra Azul e o Maciço do Tiracambu, e as terras situadas entre o rio Caru e o Pindaré, sendo que a divisa sul seria formada do rio Pindaré ao Gurupi, a partir da altura do igarapé da Água Branca, afluente do Pindaré, passando pelas cabeceiras do Caru e daí até tocar no igarapé do Milho, que desemboca no rio Gurupi.

Era um plano ambicioso, mas ainda possível de ser realizado, pois no perímetro projetado não havia invasores, e a parte deixada de fora é a que já fora tomada. Entretanto, em 1977, o departamento de terras da FUNAI, nesse tempo dirigido pelo Coronel Solon, achou por bem criar duas áreas separadas, abrindo um largo corredor de 30 km entre elas. Havia pressão política para abrir mais terras da reserva florestal para o estabelecimento de fazendas, e estas eram terras de ninguém, pois já não mais dos índios e ainda não formalizadas pelo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal - IBDF -, atualmente IBAMA, o órgão encarregado da proteção de florestas e reservas florestais da União, que deveria cuidar do restante das terras da Reserva Florestal do Gurupi. Assim, foram criadas duas áreas indígenas distintas, e os grupos Guajá que tinham seus territórios nesse corredor ficaram perdidos no meio dos invasores, pequenos posseiros e novos fazendeiros. Muitos foram contatados por acaso, tratados como animais e acabaram morrendo ou fugindo mais para dentro da mata.

A área maior, compreendendo o vale do Turiaçu, foi denominada Terra Indígena Alto Turiaçu, com 515.000 hectares, a qual absorveu quase todas as aldeias urubu-ka’apor, as terras do lado maranhense do velho posto indígena Pedro Dantas, agora cognominado Canindé, que serve aos Urubu-Ka’apor, Tembé e remanescentes Timbira, bem como o território de vários grupos Guajá que estavam sendo contatados no alto rio Turiaçu. Em 1973, um posto indígena havia sido criado para os Urubu-Ka’apor (P.I. Alto Turiaçu), enquanto os Guajá recém-contatados eram assistidos por um posto de atração, que alguns anos depois virou um posto indígena comum (P.I. Guajá), ambos nas margens do rio Turiaçu. Atualmente vivem nessa terra indígena cerca de 600 Urubu-Ka’apor, dois grupos Guajá, com 54 pessoas, pouco mais de uma centena de índios Tembé e duas dezenas de descendentes dos Timbira Kre-jê.

A outra parte da Reserva Florestal do Gurupi a ser delimitada para os índios foi cognominada Terra Indígena Caru, compreendendo uma área de 172.667 hectares, cuja demarcação foi concluída em 1978, com a ajuda dos índios Tenetehara do P.I. Caru. Os limites dessa terra ficaram sendo o curso do rio Caru, a oeste e norte, o curso do Pindaré, a leste, e o igarapé da Água Branca e os 70 quilômetros de linha seca até as cabeceiras do próprio Caru, ao sul. Embora não compreendendo todo o chamado alto Pindaré, que para tanto teria que incluir terras da margem direita desse rio, essa terra indígena representa o que sobrou do berço da formação étnica dos Tenetehara e o ponto de partida de suas migrações para oeste e sudeste. Foram a grande coincidência de fatos, a determinação de líderes Tenetehara, a presença misteriosa até então de índios Guajá e a firmeza de alguns funcionários da FUNAI que possibilitaram a demarcação dessa terra indígena.

Entre 1983 e 1988, diante da intensidade dos desdobramentos econômicos e sociais que estavam vindo com a construção da Estrada de Ferro Carajás, que passava ao lado da Terra Indígena Caru, a Companhia Vale do Rio Doce estabeleceu um convênio de reparação com a FUNAI. O convênio visava a demarcação das terras indígenas ainda não demarcadas, a proteção dos seus limites, a assistência à saúde dos índios, e o fortalecimento das economias indígenas. Os recursos postos à disposição da FUNAI eram de tal monta que atrairiam novos imigrantes tenetehara interessados em usufruir dessas benesses. Com isso, a T.I. Caru iria passar por um período de alvoroços, que pareciam apontar para novas mudanças. Sua população aumentaria para mais de 100, com a vinda de diversas famílias tenetehara de outras áreas indígenas. Novas aldeotas iriam se formar na beira do rio, e cada uma queria equipar-se de toda a infra-estrutura possível. Cinco postos de vigilância foram criados e acabaram sendo entregues, por pressão política, a líderes Tenetehara, filhos e amigos, não da região do Caru, mas do Bacurizinho. O Tenetehara João Madrugada, monitor bilingüe da aldeia Bananal, no Bacurizinho, dono de uma retórica de exigência bastante forte, se tornou a figura mais importante desse período. Em primeiro lugar, fez-se chefe do P.I. Caru, aliando-se aos Tenetehara que se tornaram chefes dos postos de vigilância e membros da Frente de Atração aos índios Guajá, criada naqueles anos. Entre estes estavam alguns dos principais líderes que haviam batalhado com grande empenho pessoal na demarcação das terras da região de Grajaú-Barra do Corda, como Adriano Carvalho e José Potiguara. Aliado a esses Tenetehara, por conveniência, estava o então chefe do P.I. Caru, Raimundo Mourão, que conseguiu ser deslocado para a chefia do P.I. Awá, o posto que servia de base à Frente de Atração aos Guajá daquela região.

Até o fim do desembolso dos recursos do Convênio CVRD-FUNAI, por volta de 1989, os cabeças da administração da T.I. Caru viveram com bastante dinheiro vivo, tanto de seus salários quanto dos empréstimos a fundo perdido que recebiam para financiar lavouras de arroz e a criação de gado bovino. Muito desse dinheiro era gasto na cidade de Santa Inês, onde diversos deles ficaram conhecidos por algumas extravagâncias e esbanjamentos. João Madrugada chegou a ter, em pouco tempo, mais de 100 cabeças de gado e roças de arroz de mais de 40 hectares. A mão de obra para atender a essa atividades era contratada de alguns índios locais e dos lavradores civilizados que viviam pauperrimamente do outro lado do rio. O povoado Impueira ou Auzilândia, confronte ao P.I. Caru, aumentava sua renda pelos gastos desses Tenetehara, que naturalmente eram odiados e respeitados na mesma medida.

Assim, por vias inesperadas, o Caru despontou como um lugar da nova força política do povo tenetehara. João Madrugada fez o possível para ampliar seu prestígio político e se tornar delegado da 6ª DR, em São Luís. Faltava-lhe, porém, diplomacia política para negociar e aceitar divergência. (Essa qualidade estaria presente no filho homônimo de Pedro Marizê, antigo cacique do Bacurizinho, que se tornou delegado da 6ª Delegacia Regional, entre 1985 e 1988. Entre 1994 e 1997, José Arão, filho do chefe do posto do P.I. Bacurizinho, Alderico Lopes, também se tornaria delegado, consagrando a ambição do pai, o orgulho dos parentes, e a inevitável suspeita dos demais. Porém, nessa ocasião a delegacia já não tinha o poder dos anos anteriores, estando restrita sua jurisdição a apenas os postos indígenas do rio Pindaré e da própria T.I. Bacurizinho.)

Com o fim dos recursos de fora, os Tenetehara do P.I. Caru tiveram de cair a um ritmo de vida mais modesto e menos agitado. Os índios da região de Grajaú-Barra do Corda retornaram às suas terras e a área ficou sem liderança de peso. O velho cacique Clementino, sobrinho do fundador Marcelino, não conseguia segurar as exigências dos homens de meia idade e terminou permitindo a entrada de moradores do outro lado do rio para quebrar coco babaçu em troca de um pagamento de renda. Enquanto pode eles pressionaram a FUNAI e a CVRD por investimentos, e inclusive chegaram a armar uma espécie de seqüestro ao forçar uma parada do trem de carga da companhia para exigir o desembolso de novos recursos. Nos anos 90 alguns Tenetehara mais afoitos chegaram a franquear a terra indígena para arrendamento a lavradores e quebradores de coco babaçu, e até para madeireiros da região, uma prática que viam sendo usada pelos Tenetehara de outras áreas indígenas.

Diante disso, outros Tenetehara se posicionaram contra e passaram a instar a 6ª Delegacia a tomar providências para expulsar quem já estava dentro da terra indígena pelo terceiro ou quarto ano, ao mesmo tempo em que tentavam convencer os Tenetehara arrendadores a não usar desse meio para ganhar a vida. A polícia federal foi convocada pela FUNAI e chegou a ir à área duas vezes, ameaçando os infratores. Em 1995 alguns Tenetehara do P.I. Pindaré, movidos pelo receio de perder essas terras e pelo desejo de ampliar sua órbita de força política, resolveram tomar a iniciativa de se mudar para o Caru, tomar de conta do posto indígena, expulsar os invasores e estabelecer um novo modus vivendi com os povoados do outro lado do rio. É o que vêem tentando fazer. Seja como vier a ser no futuro, o que isto representa é uma tentativa de juntar as duas áreas, de compreender o rio Pindaré, ou ao menos os dois trechos que são do controle dos índios, como uma unidade, algo que havia sido abandonado nos últimos cinqüenta anos.

Um balanço dos territórios tenetehara.

Apesar dos esforços de alguns inspetores do SPI, especialmente José Maria da Gama Malcher, que realizou o primeiro plano completo de demarcar as áreas indígenas no Maranhão entre 1941 e 1942, e que, como dirigente do SPI (1946-50, como chefe da SOA; 1950-56, como diretor) acompanharia os trabalhos dos inspetores subsequentes, especialmente Sebastião Xerez (1948-62), a definição e demarcação conclusiva e oficial dos territórios indígenas do Maranhão não se deu nesse período. De certa forma dá para sentir nas atitudes de conciliação de Xerez, a partir de meados da década de 1950, quando o Maranhão começa a receber um influxo intenso e caótico tanto de imigrantes pobres em busca de terras livres de donos quanto de fazendeiros com capital para comprar as velhas fazendas regionais, que ele perdia as esperanças de realizar essas demarcações nos tamanhos projetados em 1942. Pode-se julgar que Xerez não se mantivera fiel a si mesmo e aos desígnios projetados pelo melhor que havia no SPI, mas, na verdade, poucos - seja indigenistas, antropólogos, políticos regionais ou nacionais - acreditavam então que fosse possível demarcar tantos razoavelmente extensos territórios indígenas. Só os próprios índios mantinha fé.

Duas conseqüências ocorreram desse posicionamento. O primeiro foi a perda das terras indígenas do médio Pindaré e do baixo Zutiua, inclusive das últimas aldeias da Estrada do Sertão, na medida em que novos imigrantes ocuparam as terras usadas pelos Tenetehara e os forçaram a abandonar suas aldeias. A maioria deles foi juntar-se aos Tenetehara do baixo Pindaré, outros se incorporaram aos lavradores brasileiros e assim perderam as bases de preservação de sua identidade étnica. Este foi, sem dúvida, um dos principais motivos da queda de população tenetehara na região do Pindaré, conforme previsto por Wagley e Galvão quinze anos antes.

A segunda conseqüência foi, por sorte, mais salutar. A criação, no papel embora, da Reserva Floresta do Gurupi, ajudou a preservar uma vasta área de floresta tropical amazônica por alguns anos, dando tempo para permitir a demarcação das atuais terras indígenas do Alto Turiaçu, com 513.000 hectares, onde vivem índios Urubu-Ka’apor, Guajá, Tembé e Kre-jê, e a Caru, com 172.000 hectares, onde vivem Guajá e Tenetehara do alto Pindaré e Caru. Por vias tortas e inesperadas, portanto, diversos territórios dos Tenetehara terminaram sendo demarcados e garantidos. Outros ficaram perdidos e constituem hoje terras de fazendeiros, mas do que de pobres lavradores.

A década de 1970 foi terrivelmente difícil tanto na vida política quanto na vida rural brasileira. A Amazônia foi aberta pelo regime militar para a entrada de grandes investimentos agropecuários, minerais e hidrelétricos, bem como para o assentamento de lavradores pobres e sem terra. Sendo o Maranhão o estado mais oriental da Amazônia, foi para aí que se dirigiram as primeiras levas de lavradores nordestinos sem terra e de especuladores com capital para comprar patrimônio. Muitos dos novos imigrantes chegavam e demoravam não mais que alguns anos na terra, a qual desbravavam de suas matas e abriam o caminho para a entrada dos grileiros e pecuaristas de médio porte. Desse modo, grande parte da Amazônia oriental foi devastada em menos de três décadas.

O desenrolar desse processo parecia augurar tempos muito ruins para os índios que habitavam essas terras. Os exemplos históricos de outras frentes de expansão, onde os índios eram sempre perdedores, não deixavam margens para expectativas positivas. Dada a intensidade desse novo surto expansionista, era de se supor que o resultado viesse a ser a perda das terras indígenas e o aniquilamento de muitas de suas sociedades e culturas. Porém, afortunadamente, a resistência que os Tenetehara e outros povos indígenas levantaram contra esse vendaval socioeconômico esteve suficientemente à altura para que não fossem derrotados, envolvidos, subordinados e dizimados.

Ao final, os Tenetehara lograram manter uma porção bastante substantiva dos territórios que efetivamente ocupavam por volta de meados deste século. Defenderam e conseguiram garantir essas terras graças também à ação do estado brasileiro, representado pelo SPI e pela FUNAI.

Há que se entender que a luta consciente e determinada do povo Tenetehara nasceu de sua vontade cultural de manter sua identidade étnica, de ser um povo autônomo com uma visão própria do mundo. Essa vontade se afirmou acima de uma outra, também bastante forte, que é a de fazer parte da sociedade brasileira mais ampla. Esse sentimento de auto-afirmação se concretizou na consciência de que a posse e o controle de suas terras constituem a base imprescindível sobre a qual podem exercer sua autonomia étnica. Isto não quer dizer que os Tenetehara, em outros tempos, não tivessem uma consciência de sua identidade étnica e do valor de suas terras. Com efeito, há muitos anos eles vinham defendendo de várias formas suas terras da invasão de fazendeiros e posseiros. Porém, até a década de 1950, tinham uma atitude mais concessiva. Freqüentemente, por exemplo, permitiam a lavradores pobres o acesso a um pedaço de suas terras para viver e criar suas famílias. Em muitas ocasiões, na verdade, esses lavradores terminavam se incorporando ao mundo tenetehara por via do casamento de seus filhos. Nesse espírito concessivo, os Tenetehara podiam até ser persuadidos, pela pressão da patronagem social ou pela ameaça da violência, a se mudarem de um lugar para outro, deixando as terras que usavam para o domínio de um novo senhor. Foi assim que perderam controle sobre as terras que tinham no baixo rio Grajaú, ainda na década de cinqüenta, terras que habitavam desde pelo menos 1830. Nos anos setenta, no entanto, nenhum argumento ou pressão os desviou de sua determinação de não abrir mão de nenhuma nesga das terras que consideravam suas.

Um outro motivador básico da demarcação das terras tenetehara foi o desencadeamento de ações políticas e administrativas por parte da FUNAI, especialmente levadas a cabo por muitos indigenistas que trabalharam com esses índios na década de 1970. Esse desencadeamento foi propiciado por um motivo superior que se desenvolveu no seio da sociedade brasileira: a simpatia por parte substancial e influente da sociedade civil pela sorte dos índios brasileiros. Por sua vez, essa simpatia tem origem em vários motivos, desde históricos quanto atuais, desde nacionalistas a internacionalistas. A simpatia da sociedade civil se traduziu no apoio dado por jornalistas, advogados, médicos, a opinião pública em geral, e por que não reconhecer, por antropólogos militantes e missionários católicos ligados à Teologia da Libertação. A imprensa acompanhou muitas das ações que os Tenetehara desencadearam com o fim de expulsar posseiros e invasores de suas terras, deu espaço a suas reivindicações e reclamações contra a inércia e incúria de funcionários do órgão indigenista, e ajudou a fustigar os altos escalões do regime militar que abraçavam a idéia de que as terras indígenas poderiam ser mais produtivas se entregues às mãos de agropecuriaristas ou de lavradores sem terra.

Não parece temerário dizer que naqueles anos índios e brasileiros, ou uma parte substancial de brasileiros, se uniram em torno do objetivo da demarcação das terras indígenas. Não só os Tenetehara, mas muitas outras etnias se beneficiaram dessa união e conseguiram a demarcação de suas terras. Tal união foi aos poucos diminuindo de vigor e boa parte das terras indígenas que não foram demarcadas entre 1975 e 1985 ficaram sob suspensão durante as administrações seguintes da FUNAI. É uma infeliz ironia da história que o processo de redemocratização do Brasil, a partir de 1985, fez diminuir a simpatia da sociedade civil brasileira pela sorte dos índios. O que não quer dizer que tenha terminado, e que não volte no futuro.

De todo modo, não se pode afirmar com absoluta certeza que as terras demarcadas dos Tenetehara, que lhes dão suporte étnico e sustento econômico, estejam definitivamente garantidas para eles. A história não corre por linhas certas, nem obedece aos desejos nobres dos homens. Desde a constituição de 1934, as terras indígenas são de jure da União e estão sob a jurisdição do órgão indigenista. Os índios, portanto, não têm a propriedade plena sobre elas, apenas seu usufruto exclusivo. Eles não têm o direito de vender ou arrendar porções dela. Isto pode ser considerado como uma vantagem para a preservação da integridade dessas terras, já que a tentação de obter dinheiro pela venda ou pelo arrendamento pode ser muito grande. Basta lembrarmos que foi com o direito de vender terras, concedido pelo governo americano, que os índios americanos terminaram perdendo um terço de seus territórios entre 1877 e 1923, quando tal direito foi revogado.

O estado continua com bastante espaço para interferir nos desígnios dos povos indígenas, e especialmente de suas terras. Durante os tempos do SPI e até a meados da década de 1970, a FUNAI podia tomar a iniciativa de arrendar parte das terras indígenas ou explorar certos recursos naturais sem pedir permissão aos índios. Embora essa prática tenha se tornado pouco usada desde então, há sempre o receio de que o estado considere sua prerrogativa subtrair dos índios terras que considere imprescindíveis, tais como aquelas na faixa da fronteira. Mesmo a constituição de 1988 manteve, no artigo 232, uma cláusula que permite a remoção de populações indígenas em caso de calamidade pública, ressalvado o posterior retorno dos removidos. Além do mais, a regulamentação da demarcação de terras indígenas não é assunto constitucional nem legislativo, mas mera determinação do poder executivo. Está sob a mercê de decretos administrativos do governo federal, que pode, em tese, reabrir um processo de demarcação que não tenha sido concluído até o seu ponto final, que é o registro da terra indígena no Serviço de Patrimônio da União. Embora as terras indígenas dos Tenetehara já tenham passado por todas as etapas de legalização, ninguém pode descartar o poder discricionário de autoridades antiindígenas. Basta lembrarmos que há diversos projetos de lei no Congresso Nacional que ameaçam terras indígenas já totalmente legalizadas, como as terras dos Yanomami e dos Kayapó. Lembremos também, como já citado neste livro, que a FUNAI, em 1978, transferiu para a SUDENE e um seu projeto de assentamento, uma parte das terras dos Urubu-Ka’apor.

No entanto, a ameaça mais perturbadora à preservação da integridade das terras tenetehara vem da possibilidade muito real do desenvolvimento econômico gerado no meio rural maranhense. Seguindo os moldes atuais, tal desenvolvimento poderá trazer não somente um incremento na densidade demográfica e na pressão fundiária, como novas mentalidades e atitudes que poderão diminuir o sentido de responsabilidade do estado brasileiro em relação aos índios. Os brasileiros vizinhos às terras indígenas em nenhum momento deixaram de ver essas extensões de florestas e matas de transição com um agudo desejo de se apoderar delas. Nas regiões mais distantes dos olhos dos índios eles se aproveitam para caçar e coletar produtos da floresta; em outras, onde a densidade indígena é pequena, já chegaram ao ponto de fazer invasões programadas. De fato, duas invasões em massa já ocorreram na T.I. Alto Turiaçu, uma em 1990 e outra em 1993, ambas comandadas por grileiros de terras oriundos das cidades de Imperatriz e Bom Jardim. A expulsão desses invasores requereu os esforços dos próprios índios Urubu-Ka’apor, Guajá, Tenetehara-Tembé e Timbira, bem como dos chefes dos postos indígenas daquela área, e da polícia federal. Um invasor foi morto e muitos saíram feridos, e o fato pode voltar a se repetir. A T.I. Caru, cercada de povoados na beira dos rios Caru e Pindaré, é extremamente vulnerável. Se os Tenetehara que lá vivem seguirem o ardiloso caminho de arrendar terras para roçados, a ameaça de invasão em massa poderá um dia se concretizar. Nesse caso, que condições políticas estariam prevalecendo para que houvesse um espírito de responsabilidade por parte do estado e dos seus servidores na defesa dessas terras?

Por sua vez, a presença hegemônica da cultura brasileira constitui, também, uma ameaça até mais insidiosa à integridade étnica do povo tenetehara. A cada dia surgem novas formas de encantamento e talvez de ludibrio que podem levar os índios a abrir a guarda. A expectativa de melhores condições de vida e do consumo de bens industrializados seduz os índios para a vida civilizada, com todas as artimanhas nela envolvidas. A própria educação de seus filhos em cidades e a provável falta de empregos para eles pode causar frustrações só resolvíveis com mais integração e menos afirmação étnica. O exemplo da venda indiscriminada de madeira que os Tenetehara das terras indígenas de Grajaú e Barra do Corda, inclusive da grande e impoluta área de floresta tropical do Araribóia, com conseqüências devastadoras para o seu bem estar, leva a crer que a inviolabilidade dessas terras pode ser quebrada pelos próprios Tenetehara. E se for descoberto ouro ou outro metal de garimpo nessas terras? E se aos poucos os Tenetehara começarem a arrendar lotes de terras para lavradores plantarem roças ou fazerem pasto para gado? Tal, na verdade, já vem acontecendo no Pindaré e no Caru, e poderá vir a acontecer em outras áreas. Eis porque, de uma forma irônica, a garantia das terras tenetehara pode ser prejudicada pelas novas contradições desenvolvidas no seio da sociedade tenetehara em sua busca de autonomia e liberdade.

No total, as terras indígenas dos Tenetehara que habitam o estado do Maranhão somam, incluindo aquelas compartilhadas com os Guajá, mas excluindo a T.I. Alto Turiaçu, pela maior presença dos Urubu-Ka’apor, aproximadamente, 846.000 hectares. No amplo processo de demarcação, que vai de 1920 a 1980, perderam-se boa parte das terras do médio e alto Pindaré, as do baixo Zutiua e as do rio Grajaú, áreas habitadas por Tenetehara nas primeiras décadas do século. É de lamentar que ao menos algumas dessas terras não tenham sido incorporadas ao patrimônio indígena pela falta de empenho do SPI/FUNAI nas décadas de 1960 e 1970. No entanto, reconhecendo a intensa e caótica movimentação de imigrantes a partir de meados da década de 1950 na região do Pindaré e da década de 1960 na região Barra do Corda-Grajaú, junto com a pouca disponibilidade de recursos e a mentalidade aculturativa do órgão indigenista, e adicionando-se a isso a incúria e o desleixo de tantos funcionários do órgão, é notável constatar que essas terras indígenas tenetehara foram afinal demarcadas, e que elas constituem um quinhão razoável da herança histórica desse povo indígena.

6 comentários:

Anônimo disse...

Prezado Mércio


Grato por socializar teu conhecimento Tenetehara. Para mim, leitura totalmente obrigatória.
Estou aqui "an passant", mas guardei teu endereço para degustar teus textos com mais vagar e ruminá-los em lentidão.

Colho do teu texto:

"É uma infeliz ironia da história que o processo de redemocratização do Brasil, a partir de 1985, fez diminuir a simpatia da sociedade civil brasileira pela sorte dos índios. O que não quer dizer que tenha terminado, e que não volte no futuro."


Para comentar:

O indigenismo foi ferramenta da esquerda com ampla repercussão internacional. A meu ver foi apenas um processo de desmoralização da ditadura, atacando-a num dos flancos vulneráveis, o indigenismo; um dos poucos movimentos sociais não totalmente "manietados" naquele momento.


"Saludos",


Elomar Gerhardt

Unknown disse...

oi mércio, parabéns pelo blog! sou professora de ensino à distância de licenciatura em história e estou orientando monografias de fim de curso no Maranhão, entre eles uma sobre o vale do pindaré e sobre a rebelião do alto alegre. Como os aluno-professores moram em lugares distantes vou indicar capítulos do seu livro. o único problema, é que você não incluiu a bibliografia...
seria possível fazê-lo?
Um abraço da Silvana.

Anônimo disse...

Mércio, sou filha de Jair Guimarães, falecido há 4 anos. Fiquei muito feliz em conhecer um pouco do seu trabalho (de ambos). Após ser demitido, meu pai ingressou na magistratura do estado do Pará. Obrigado! Suzi.

MMartins disse...

Caro Mércio, congratulações pelo excelente informativo!
Estou participando de um curso sobre fiscalização ambiental e um dos professores, que parece não ter a menor simpatia pela questão indígena, afirmou que a etnia Gavião "é muito rica" por conta de royalties da Eletronorte, e uma das primeiras aeronaves Cessna Citation que chegaram ao Brasil foi adquirida por eles. Achei meio estapafúrdia essa informação e não consegui resgatar nada sobre isso no Google. Mas...não gostaria de deixar isso sem uma resposta adequada, pedindo que seja feita uma retratação na aula ou que seja apontada a fonte. Antes, porém, peço sua gentileza em me dizer se de fato há algum fundamento na história.

Abraço,

Mauro Martins
bitmartins@gmail.com

marcia gardenia almeida disse...

obrigado por repassar todo o seu conhecimento sobre a construção do interior, são pedro dos cacetes, pois sou filha de são pedro dos cacetes,no entanto tinha uma outra visão, de como se deu a sua construção. gostaria muito que voce me relatasse com precissao o acontecimento pois estou pensando em fazer a minha dissertação sobre a construção de são pedro dos cacetes, gostaria de contar com seus textos.Sou estudante de ciencias humanas.Obrigadooo!!!!

Unknown disse...

Olá mercio quais eram as etnias indígenas que viviam ao redor de pedra branca no ceara minha bisavó era dela e minha tia conta para nos que ela era filha de Índia vc tem como me informa isso aguardarei resposta email:andersonsaad507324@gmail.com

 
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