Antropologia Hiperdialética, Cozida à Brasileira
Mércio Pereira Gomes
Antropologia é uma palavra iluminante de origem grega que pode significar tanto “estudo do homem”, quanto “lógica do homem”. Do ponto de vista da disciplina científica Antropologia, a primeira acepção é a que prevalece. Do ponto de vista da Filosofia, a segunda conotação se apresenta mais adequada. “Estudo” implica o uso de um ou mais métodos de analisar o homem identificado como ser da natureza e produtor de cultura, que se apresenta em modos diversos de existir. “Lógica” quer dizer o modo próprio de ser do homem pelo pensamento, aquilo que o distingue dos outros seres da natureza e o confirma em sua unicidade essencial.
Seguindo essa dicotomia, antropólogos e filósofos parecem estar em permanente desacordo, batendo cabeça uns contra os outros. Se um extra-terreno quisesse saber o que é o ser humano e o que ele pensa de si mesmo pelas leituras desses dois tipos de intelectuais ficaria mais confuso ainda. Assim, a primeira tarefa para se buscar compor (uma vez mais) uma visão integradora sobre o homem tem que partir da construção de uma ponte entre a margem da Antropologia e a margem da Filosofia, que ladeiam o homem. Qual seria essa ponte? A proposta que quero apresentar advém da proposição filosófica de Luiz Sérgio Coelho de Sampaio sobre lógica , em especial sobre a lógica hiperdialética. Resumindo e aplicando a análise lógica para uma compreensibilidade filosófica-antropológica, o ser humano ou o evento cultural se apresentaria pelas seguintes características.
I
A integralidade do homem, tal como ele é como indivíduo-ser da cultura, se compõe de cinco dimensões, que por sua vez podem ser definidas como cinco formas de ser-pensar, como lógicas:
1. O homem é um ser-em-si. Ele é o que é, tal como auto-refletidamente se apresenta no mundo. Ele é auto-determinado. Em sua unicidade, só ele se explica em si mesmo. Só ele sabe de si.
2. O homem é um ser-com os outros. O seu primeiro “outro” é o seu inconsciente, esse estoque de energia intuitiva e desaguadouro de imemoriabilidade. O segundo outro é o “próximo” com quem realiza sua sociabilidade para viver, e com quem se limita na sua atuação.
3. O homem é um ser-para-si, inserido no tempo. Ele se faz consciente pelas suas ações sobre seu ambiente (social e natural). Ele é histórico.
4. O homem é um ser-do-todo (do sistema). Ele está inserido na sua sociabilidade e na natureza, com as quais se limita e das quais depende.
5. O homem é, acima de tudo, um ser-para-além do todo que o envolve, capaz de sair de si e de suas circunstâncias e almejar o Absoluto.
O Gráfico abaixo resume essas características.
II
A essas cinco dimensões constitutivas do ser humano, presentes em cada um de nós, em qualquer cultura que vivenciamos, correspondem cinco formas de pensar. Essas formas de pensar, correspondentes a formas de ser, são chamadas de lógicas por Sampaio, seguindo a primeira grande intuição dessa correspondência formulada há 26 séculos atrás por Parmênides quando enunciou que “ser e pensar são o mesmo”. Eis a cinco lógicas:
1. Lógica da Identidade (abreviadamente Lógica I) é a lógica que permite entender que cada ser é o que é, e não poderia ser o que não é. É a lógica da consciência, da auto-reflexão, da identidade e da auto-determinação. É a lógica cartesiana do cogito, bem como do ser transcendental kantiano. Por isso é também conhecida por Lógica Transcendental, que define o princípio da identidade, excluindo a contradição. Nesta lógica a verdade é uma só, contrária ao falso. O filósofo eleata Parmênides pode ser creditado como o primeiro a pensar por essa lógica. Descartes, Kant e Husserl são os filósofos da Modernidade que desenvolveram seus sistemas de pensamento a partir da Lógica da Identidade.
Através desta lógica se compreende a argumentação fundamental dos fundadores modernos da Antropologia, como disciplina científica, especialmente Franz Boas (particularismo cultural) e Bronislaw Malinowski (funcionalismo). Essa Antropologia, que podemos cognominar de “particularista cultural” postula que cada cultura é o que é, tem características únicas, singulares e incomparáveis, estabelece sua própria dinâmica, rumos e condições de relacionamento com as demais culturas. Nada, nenhum fator, nenhuma condição, unilateral ou especificamente, responde por ela – nem economia, nem religião, nem o meio ambiente, nem mesmo sua história de formação. Qualquer desses fatores poderia ou não responder pela atuação de uma determinada cultura, mas não há como se prever ou determinar uma influência a priori. Cada e qualquer cultura só faz sentido para si e só ela responde por sua constituição e padronização (pattern).
2. Lógica da Diferença (abreviadamente Lógica D) é a lógica que se refere ao “outro”, o não-conhecido e o não-identificável. Por falar do ponto de vista do “outro”, ela se indaga sobre a validade do “mesmo”. Isto é, a Lógica da Diferença confronta e desafia a Lógica da Identidade, bagunça as suas certezas imanentes e transcendentais. As possibilidades de verdade dessa lógica são: ou verdadeiro ou falso; ou ainda, não-verdadeiro, mas também não-falso, i.e., indeterminado; ou ainda, tanto verdadeiro, quanto falso, i.e., paradoxal. A Lógica da Diferença é a lógica própria do inconsciente, da dúvida, conseqüentemente da indagação, e também do coletivo, do corpo, do descontínuo, enfim, da res extensa. Heráclito, ao dizer que “O ser não é mais que o não-ser; nem é menos; ou ser e nada são o mesmo”, e também que “O ser é tão pouco como o não-ser; o devir é e também não é”, e ainda ao concluir que “Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos”, torna-se o filósofo que inaugura o pensar da diferença e dá-lhe um estatuto lógico. Na Grécia Clássica, os sofistas basearam suas argumentações na Lógica da Diferença, tanto ao porem em dúvida o estabelecido, i.e., a Lógica da Identidade, como verdadeiro ou não, como ao apregoarem que a argumentação para ser válida pode ser circunstancial, aceitável, e não necessariamente verdadeira. Em tempos modernos, Pascal, Kierkegaard, Nietzsche e Heidegger são os filósofos que se baseiam na Lógica da Diferença. O psicanalista Lacan fundamenta sua teoria do inconsciente e da sexualidade humana na Lógica da Diferença. Pode-se igualmente contar entre os usuários desta Lógica os pragmáticos atuais, na medida em que põem em suspensão a verdade e a aceitam somente pelas suas conseqüências ou efeitos de atuação, sempre cambiantes, de acordo com convenção.
Na Antropologia, Durkheim e seus seguidores, incluindo Claude Levy-Bruhl, foram quem mais claramente se posicionaram com argumentos da Lógica da Diferença ao proporem que a cultura (ou a sociedade) depende de, se explica por algo que não está imediatamente apresentável, o (in)consciente coletivo. Essa entidade não é imediatamente apreensível, não é empírica e auto-identificável. Não está em nenhum sujeito em si, mas estendida no coletivo. Por sua vez, o coletivo não tem a capacidade de auto-reflexão, portanto, não pode ser regido pela Lógica da Identidade. O consciente coletivo só é detectável por análise dos seus efeitos, inclusive sobre o indivíduo. O mesmo raciocínio lógico vai prevalecer nas análises pioneiras dos Durkheimianos sobre a constituição e o sentido dos rituais, dos ritos de passagem, da troca e do parentesco, e de temas como o significado social da mão esquerda. A explicação desses eventos se encontra fora da realidade imediatamente vivenciada, fora da empiria perceptível, e sim numa estrutura funcional apenas acessível pelo intelecto. Para os Durkheimianos é esta estrutura que dá forma e sentido a esses eventos, não os eventos tais como eles se apresentam.
A prática argumentativa baseada na Lógica da Diferença é a base igualmente dos antropólogos que hoje em dia são cognominados de pós-modernos. Neste caso, a influência vem de duas fontes que convergiram no final dos anos 1970: os filósofos franceses que surgiram na década de 1960, desafiantes da dialética marxista totalizante, e inspirados em Nietzsche e Heidegger, como Michel Foucault, Jacques Derrida, Gilles Deleuse e Jean-François Lyotard; e as conceituações lingüísticas advindas tanto da lingüística estrutural quanto do pragmatismo americano, especialmente dos filósofos Charles Sanders Peirce e W. V. Quine. A conseqüência desse modo de pensar, da Lógica da Diferença, é que só há culturas, não cultura; portanto, o mundo é uma diversidade em potencial ilimitada de culturas.
3. Lógica Dialética (abreviadamente Lógica I/D) é a lógica da temporalidade, sendo constituída como uma lógica derivada da síntese das lógicas da Identidade e da Diferença, que necessariamente a precedem. É a lógica da síntese dos opostos, do diálogo entre o um e o outro, entre o um e o múltiplo, entre o fenomenológico e noumenológico. É a lógica da totalidade que engloba todos os elementos que lhe podem ser constitutivos pelo processo de sintetização dos opostos. Em conseqüência a Dialética só admite o real se for captável por ela. Fora dela só há o Nada. Assim, nesta Lógica a verdade é o todo que se forma pela integração dos contrários ou dos diversos, sendo estes apenas instâncias em busca de devir. Platão, com sua concepção da Idéia, que é o conceito em si, é talvez o primeiro a usar dessa lógica com clareza. A verdade não está nem na aparência multifária do ser, nem na sua unicidade percebida, mas na síntese lógica dessas duas instâncias, numa forma ideária só apreensível pelo intelecto. Modernamente, são dialéticos Spinoza, com sua teoria da relação entre corpo e alma, depois Hegel, que foi seguido por Marx, que terminou dando à Dialética o caráter político mais evidente. Em Hegel e seus seguidores, o ser se explica pelo seu sentido histórico, sua transformação condicionada ou sua auto-transformação, movidas pelo processo dialético de superação de diferenças e contradições. O ser é um devir. Para Hegel, Heráclito, ao dizer que só existe movimento, teria sido o primeiro a usar da Dialética como lógica do tempo. Entretanto, seguimos aqui as explicações mais abrangentes de Nietzsche e Heidegger sobre esse assunto, que sugerem Heráclito e seu Logos como fundador da Lógica da Diferença. A teoria da evolução (Darwin e Spencer) se baseia na Lógica Dialética, onde o movimento se dá pela necessidade de superação, como adaptação, diante da contrariedade externa. Mas é na concepção hegeliana da história que a Dialética se apresenta com suas virtudes mais consistentes. O homem (o evento cultural) é um ser do seu tempo, produto de seu passado e de suas ações conscientes e inconscientes no presente, projetando-se para o futuro. O ser forma uma totalidade integradora, movido por um transcendentalismo, um Espírito, que não admite o diferente ou mesmo o próximo que esteja fora de si. Para Hegel, e depois para Marx e Engels, a Lógica Dialética é o máximo do pensar humano, sua condição privilegiada de pensar o ser e o Absoluto. De fato, ela dá conta da gênese e da mudança, sempre em devir; mas não dá conta da horizontalidade, da contingência (como bem criticou Kierkegaard), da diversidade, da res extensa. Por isso ela não pode ser a lógica própria para a ciência, o que se tornou pateticamente evidente no Dialética da Natureza, de Engels, e nas pretensões cientificistas do stalinismo.
Já na Antropologia, a Lógica Dialética deu base para os grandes e totalizadores estudos dos primeiros antropólogos do século XIX que, à moda dos tempos, hierarquizou as culturas num eixo temporal e projetou as transformações lógicas que delas poderiam advir de dentro de suas próprias constituições. Lewis Henry Morgan, com seu livro Sociedade Antiga, e Edward Tylor, em Cultura, são os principais antropólogos do Século XIX a usar dessa lógica. A forte contestação feita contra a Lógica Dialética pelos Boasianos, baseados na Lógica da Identidade, especialmente pelo uso de argumentos empiristas, desmoronou o edifício construído pelos evolucionistas sociais e deixou a Lógica Dialética ao abandono teórico. Só mais tarde e timidamente, sob forte patrulhada de críticas, é que, seguindo as evidências materialistas dos arqueólogos para explicar as culturas e civilizações arcaicas que foram sobrepassadas no tempo, e contrariando o relativismo cultural dos Boasianos, os antropólogos americanos Leslie White, Julian Steward e seus seguidores desenvolveram suas variações teóricas de Evolução Unilinear e Multilinear baseadas na Lógica Dialética. Já nas décadas de 1960 para 1970, desta vez influenciados por um misto de categorias marxistas com um espírito do estruturalismo, os franceses Maurice Godelier, Emmanuel Terray e Claude Meillassoux tentaram reavivar os estudos antropológicos tendo a Lógica Dialética como seu fulcro teórico. Esses e outros tinham como maior desafio explicar a história em sociedades que estariam estacionadas no tempo, que não seriam caracterizadas pela mudança, muito menos pela evolução. Que historicidade haveria nesses povos? Se a dialética não fosse capaz de dar conta da historicidade bem como da diversidade etnológica, cair-se-ia então na posição de que haveria dois tipos de ser humano, de culturas, o histórico e o ahistórico? Onde estaria a lâmina deste corte ontológico, no fator econômico, no religioso, no social, ou no lógico? Esse problema, também tocado e retocado por outras escolas, foi deixado de lado e é uma das aporias da Antropologia contemporânea que só poderá ser resolvida pelo uso da Lógica Hiperdialética, a ser vista adiante.
4. Lógica Clássica ou Formal (abreviadamente Lógica D/D), lógica da sistematicidade do ser, dos conjuntos auto-suficientes, da funcionalidade e da estrutura. Esta lógica foi primeiramente elaborada por Aristóteles, que admitiu as lógicas anteriores de Parmênides (Lógica da Identidade), Heráclito (Lógica da Diferença) e Platão (Lógica Dialética), subsumiu-as e deu-lhes um sentido de conjunto e sistematicidade dentro dessa nova lógica. Entre profissionais da Lógica, a Lógica Clássica também é conhecida como lógica do terceiro excluso. Isto quer dizer que a lógica que abarca todos os componentes de um sistema por categorização de identidade, contrariedade, síntese, proximidade, deixa de fora apenas aquilo que não faz parte de modo algum do sistema, um terceiro qualquer, até que possa ser incluído por novo processo de totalização. Essa nova totalização é feita por incorporação de similitude, não por síntese. É a lógica que permitiu a classificação da natureza em classes, categorias, ordens, grupos, subgrupos, etc. É a lógica por excelência da ciência, da medição e do cálculo. Sampaio prefere chamar essa lógica da “dupla diferença”, daí a abreviação D/D. Explicando esse argumento, no caso dos seres humanos, a Lógica da Dupla Diferença designa que o homem, que se apresenta como um ser auto-determinado (Lógica I), movido por uma diferença interna, seu inconsciente (Lógica D), com o qual se relaciona para constituir seu ser histórico (Lógica I/D), é envolvido por uma nova diferença, constituída por um outro externo, a sociedade, o coletivo, donde se forma como ser sistêmico (Lógica D/D).
Toda a ciência moderna, desde Galileo, se baseia na Lógica Clássica ou Formal (Lógica D/D). Por conseguinte, todos os antropólogos e todas as correntes ou escolas antropológicas que almejam um discurso e uma prática científicos usam como base fundamental a Lógica Clássica, com maior ou menor consciência de suas ações. Por outro lado, essa lógica, por ser sistêmica, como uma máquina, carece de um operador que a faça funcionar. Eis porque em toda teoria antropológica contemporânea, a Lógica Clássica se faz presente tendo como operador uma das lógicas que a compõem. Assim, pode-se dizer que os marxistas usam a Lógica Clássica operada pela Lógica Dialética, que enfatiza a sintetização, o processo e a história. Os estruturalistas a partir de Lévi-Strauss usam como operador a própria Lógica Formal, identificando como fundamental mais uma diferença para explicar o evento cultural. Essa diferença estaria numa estrutura mais profunda que se encontraria em um nível abaixo da estrutura mais visível, já identificada por Durkheim. Essa estrutura agregaria por redução as demais estruturais que já constituem a base do fenomênico evento cultural. É por isso que Lévi-Strauss pode se dar ao gosto, sem parecer para-científico, de afirmar que os mitos, de onde quer que venham (embora sejam eventos empiricamente criados por culturas específicas) “conversam” entre si, trocam-se temas e elementos estruturais, e como isso se complementam ou se desassociam. Subentende-se aqui que as estruturas mais profundas dos mitos é que subjazem e se reduzem a outras estruturas ainda mais profundas, num processo de regressão que terminaria talvez apenas no processo mental mais elementar.
Já os pós-modernistas, entre os quais podemos incluir, ao menos como um dos seus inspiradores, Clifford Geertz, usam como operador a Lógica da Diferença, i.e., que a estrutura que se apresenta é indefinida, no limite, incognoscível. Toda interpretação tende a se estender ad infinitum e nunca se resolve pela síntese ou pela identidade, ou mesmo dentro da estrutura. Por sua vez, antropólogos como Marshall Sahlins e outros que se identificam com a tradição particularista cultural americana, usam como operador a Lógica da Identidade para dar sentido à sistematicidade do ser humano. Mesmo quando parecem estar falando sobre a história (Dialética), na verdade o fazem no sentido particularista da tradição Boasiana, a história quase que como explicação do ser em si (divino).
5. Lógica Hiperdialética (abreviada como Lógica I/D/2) é a lógica que subsume todas as demais num conjunto integrado com um novo fautor: a intersubjetividade e a intencionalidade do ser a superar a sua condição de prisioneiro da estrutura e da sistematicidade. Entenda-se bem: não é um novo operador exógeno que faz o sistema funcionar, mas é ele próprio um fautor de ação. Este fautor está inserido como parte constitutiva da nova lógica, que se move por si mesma. A Lógica Hiperdialética corresponde ao sentido integral do ser humano, seu modo próprio superior de ser-pensar. Todo e cada ser humano pensa ou pode pensar hiperdialeticamente. Entretanto, como modo consciente e formal de aplicar o pensamento a si mesmo e ao outro, só a partir da formulação pioneira da Lógica Hiperdialética realizada pelo filósofo Luiz Sérgio Coelho de Sampaio é que essa lógica se apresenta em sua axiomatização fundamental. De todo modo, podemos reconhecer precedentes formulados em muitos dos grandes filósofos e sobretudo em poetas que vislumbraram no homem e no evento cultural algo mais do que a sua sistematicidade e sua manipulação por forças fora de si, por operadores. Entre os diálogos de Platão, o Teeteto e o Sofista apresentam laivos de uma compreensão hiperdialética do homem. O mesmo se pode dizer de Aristóteles, Kant e Husserl quando falam da intencionalidade do ser, do seu movimento para fora do sistema.
O que seria uma Antropologia baseada na Lógica Hiperdialética? O modelo comparativo mais evidente que podemos dar para que se possa vislumbrar sua significância superior é o lingüístico. Compreendemos a língua como um atributo próprio do ser humano, que tem as seguintes características: fala ou enuncia-se como tal (i.e., ela é sua própria meta-linguagem -- Lógica da Identidade) sobre algo fora de si (o mundo e o que seja -- Lógica da Diferença), numa temporalidade processual (que a transforma -- Lógica Dialética), por regras constritivas (a gramática -- Lógica Formal), cujo sentido transcendental se dá para além dessas injunções e por uma ilimitada capacidade (metafórica) de significado (Lógica Hiperdialética).
Convém repetir uma vez mais: o homem como ser individual, independente de sua cultura, tem todas essas características. Porém a objetivação coletiva do homem, a cultura, ainda não alcançou a altura própria do ser individual. Nenhuma cultura humana, a não ser algumas em poucos momentos transcendentais, chegou a estar à altura do potencial inerente do ser humano. Dos caçadores/coletores que primeiro se tornaram seres humanos há cerca de 180.000 anos, sendo eles individualmente seres possuidores da Lógica Hiperdialética, passando pelos horticultores prístinos que terminaram construindo os impérios teocráticos, pelas culturas judaica, grega, cristã trinitária e finalmente pela cultura moderna, de cunho cientificista, nenhuma delas alcançou os píncaros do potencial humano. A modernidade que vivemos, sendo caracterizada pelo controle da ciência e da técnica (ou do capital que tudo compra e tudo vende, se quisermos), baseia-se na Lógica Formal, Cientificista, para a qual lhe falta o atributo da intersubjetividade, que lhe daria alma e sentido. Como diz Sampaio, a modernidade almeja tão-somente o gozo, que, insaciável, pede a imortalidade. Como já disse Nietzsche, é um tempo “do eterno retorno do mesmo”. Heidegger é o paradigma crítico da Modernidade, vista como desalmada e sem sentido, levando o homem para alienação de si.
Uma cultura hiperdialética seria capaz de passar do gozo para o amor, que lhe daria sentido e propósito intersubjetivo. Onde surgirá tal cultura, não nos é dado saber. Podemos, seguindo os antropólogos utópicos que já pensaram o Brasil, como Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro, Vilém Flusser e o próprio Sampaio, postular que poderá vir do Brasil. Que o povão brasileiro, vivenciando uma cultura que poucos se deram conta de seu valor transcendental, não teria até agora entrado de corpo e alma na cultura moderna porque estaria se resguardando para criar um atalho para constituir a cultura hiperdialética do futuro. Para tanto, essa cultura teria que tomar consciência de si para poder agir nesse sentido. Caso não venha a ser pelo Brasil, a nova cultura viria de culturas que, por viverem marginalmente ao domínio da cultura moderna, estariam também se preservando, como a indiana, talvez a russa, ou alguma na África.
IV
Criada a ponte entre Antropologia e Filosofia, o que poderá vir a ser esta Antropologia Hiperdialética?
Em primeiro lugar, significa entender e aplicar o princípio de que todo evento cultural, humano, deve ser visado através da Lógica Hiperdialética que é capaz de abarcar as cinco dimensões do ser. Mesmo que as culturas não sejam logicamente hiperdialéticas, a compreensibilidade de qualquer delas só se fará consistente pela Lógica Hiperdialética. Isto quer dizer que as demais escolas de Antropologia que correspondem às lógicas inerentes na Lógica Hiperdialética são incorporadas, não rejeitadas, por suas contribuições paradigmáticas. Afinal, todas elas partem do princípio da Lógica Formal, utilizando-se de operadores para fazê-la tomar a característica mais enfatizada. Assim seria com o particularismo histórico de Boas, que representa uma forma de antropologia que enfatiza a Lógica da Identidade; o funcionalismo-estrutural de Durkheim, que se inclina pela Lógica da Diferença; o evolucionismo e o marxismo antropológico, que têm como eixo a Lógica Dialética; e o estruturalismo de Lévi-Strauss, que se baseia na Lógica Formal ou Cientificista.
O Gráfico abaixo dá uma idéia da interrelação dessas escolas e da sua composição em relação à Antropologia Hiperdialética.
Segundo, que o método hiperdialético a ser aplicado também reconhece e se utiliza das metodologias aplicadas na Antropologia, com ênfase às vezes maior em uma outra escola. Ademais, a Antropologia Hiperdialética agrega esses métodos, tais como a redução fenomenológica (epoché), a observação participante, a entrevista aberta, com diálogo direcionado com informantes, a entrevista fechada ou direcionada e o uso de estatísticas, como um conjunto que se subordina ao método do “diálogo intersubjetivo que visa ao reconhecimento mútuo do sujeito com o objeto”. Isto quer dizer um engajamento do sujeito do conhecimento, individual ou transcendentalmente, com o outro sujeito, momentaneamente transformado em objeto, o que implica um comprometimento ético de ambas as partes. Na análise do objeto, a interpretação-tradução deve estar junto com a explicação e a avaliação-cálculo da Lógica Formal, o que implica inclusive o exercício da previsibilidade pela imaginação construtiva, apesar dos riscos inerentes desse ato. O Gráfico abaixo mostra a integração desses métodos.
Terceiro, que, ao cabo, a finalidade de fazer ciência do homem não é tão-somente conhecer para controlar, mas sim, exercer-se como homem em sua integralidade, o que implica, acima de tudo, a identificação de co-pertinência a ser mediado por um sentimento superior, o amor. Portanto, fazer Antropologia Hiperdialética é algo que vai exigir mais do que qualquer outra escola jamais exigiu do pesquisador. Construir um tal ambiente é tarefa incomensurável e todavia inimaginável, só possível de ser realizada em uma cultura que seja capaz de almejar além da existência atual.
quinta-feira, 26 de junho de 2008
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