Cotas Raciais III
A História mudou e mudará
Mércio P. Gomes
Antropólogo, professor da UFF
A instituição de uma lei e a aplicação de uma política de cotas raciais nas universidades públicas são o resultado político-administrativo de um modo de pensar que tomou conta de um importante segmento do movimento negro e em parte da intelectualidade e da classe política brasileira nos últimos dez anos. Este modo de pensar avalia que todos os esforços político-educacionais feitos até agora para combater o racismo e diminuir as diferenças socio-raciais que enfermam o Brasil não resultaram em nenhuma melhoria porque o problema vinha sendo tratado erroneamente, como se a cultura brasileira fosse uma só, em que todos estariam participando na sua construção. Ao contrário, seria preciso considerar a desigualdade social e racial pelo ângulo da constituição autônoma de suas partes, como grupos sociais específicos. Quase que como grupos culturais próprios. Daí que a ação política para superar a desigualdade entre os grupos sociais teria que partir do reconhecimento de suas especificidades e na ação por sua valorização. A política adequada a esse novo modo de pensar seria aquela que, ao reconhecer a desigualdade, trata os desiguais (diferentes) de modo desigual (diferente). Tal preceito filosófico, arriscado como parece a todos, seria imprescindível para justificar uma política de compensação aos grupos oprimidos pela desigualdade real, historicamente enraizada e culturalmente vivenciada.
Importa pouco que o modelo de cotas raciais tenha sido emulado dos Estados Unidos; pouco importa sua estranheza conceitual em relação ao modo como se dão as relações interraciais no Brasil; importa que ele prevê o atendimento da reivindicação de maior participação na sociedade brasileira por parte do substancial segmento de “afro-descendentes” que desde sempre foi colocado à sua margem.
A aplicação dessa política no sistema de universidades estaduais do Rio de Janeiro vem trazendo suas primeiras conseqüências: um elevado número de alunos negros e pardos substituiu um igual número de alunos brancos que tiraram notas melhores; protestos e contestações por parte desses que foram excluídos levaram o judiciário a obrigar a universidade a aceitá-los; ações jurídicas são impetradas nos tribunais argüindo pela inconstitucionalidade dessa política por não manter o princípio de direitos iguais para todos, independente de raça, cor, credo e posição social. Outros argumentos contestatórios e previsões negativas sobre os desdobramentos dessa política estão em ebulição, prometendo um clima de controvérsias no futuro próximo.
Diante dessa nova realidade, que provavelmente se estenderá para outras áreas do poder público, e quiçá do privado, duas perguntas se colocam: 1. o que acontecerá com a cultura brasileira ao vivenciar conscientemente um caráter divisionista, segregacionista, através de uma política de privilegiamento de grupos oprimidos? 2. você é contra ou a favor de cotas raciais?
É de supor que já já farão pesquisas de opinião a respeito dessa política na suposição de que o país já tem bases para discernir sobre essa questão, que uma estatística de prós e contras seria suficiente para orientar o governo a se posicionar melhor.
Não é muito difícil imaginar que, na melhor das hipóteses, o Brasil está confuso a respeito de cotas raciais. Portando-se hipocritamente ou não, o fato é que poucos brasileiros são contra a entrada de negros, pardos, mamelucos – e pobres em geral – nas universidades. A idéia de que todos devem ter oportunidades iguais é uma realidade ideológica brasileira irrefutável. Mas também é irrefutável que a educação pública brasileira está em crise há pelo menos 30 anos. É mais ainda irrefutável que os negros e pardos constituem a maioria (64%) dos pobres, e sua situação não vem melhorando há muito tempo.
Entretanto, fica evidente que só entre aqueles que partilham do novo modo de pensar a cultura brasileira transparece com firmeza a idéia de cotas raciais. Pode ser que os defensores sejam maioria; pode ser que não. Entretanto, para os que acreditam que a cultura brasileira vem num caminho de ascensão desde a República e a Semana de Arte Moderna, embora tenha empacado nos últimos anos, acenando para um processo civilizatório próprio, a idéia de cotas raciais acusa um desvio perigoso: a reafirmação de um divisionamento que, ao contrário, precisa ser superado. Além do mais parece violar dois processos políticos de valor que não são ainda bem instituídos na ética brasileira, mas que devem ser: o direito a oportunidades iguais e o mérito como critério de escolha entre semelhantes. Sempre se pode dizer que nunca houve oportunidades iguais no Brasil, e que sempre a elite foi privilegiada. Mas agora compensar esse erro de privilegiamento concedendo-o aos grupos oprimidos parece ser uma visão de que tudo pode ser feito à revelia da racionalidade da vida social. Prevaleceria o dito irônico: “se for para alguns se locupletarem, que nos locupletemos todos”. Acossado dessa forma, o cidadão fica num impasse duro de sair porque negar o argumento favorável a cotas raciais pode levar o desafiante a ser tachado de racista, elitista e perpetuador do status quo; talvez até reacionário.
De todo modo, a política de cotas raciais existe e nos desafia. Veio para chacoalhar a cultura brasileira do estupor em que se encontra. Com efeito, e aqui nos reportamos à epígrafe de Hegel. A realidade tal que está na atualidade é o racional da história. Somente aos saudosistas importa que a tendência brasileira tivesse sido de que o progresso da cultura brasileira se dava como um todo em que suas partes participavam de acordo com as oportunidades que surgiam ou que eram possíveis de serem obtidas. Acontece que esta tendência histórica perdeu e está sendo substituída pela nova, pela visão multiculturalista do mundo, pela capitulação do Brasil à ideologia da pós-modernidade. Há que se conformar com o que aconteceu nos últimos anos. Não interessa se foi para o bem ou para o mal, há que se aceitar a inclinação da cultura brasileira para ser pensada nos moldes americanos. Vale para a história apenas aquilo que de fato aconteceu, é portanto real e racional. Por outro lado, e confirmando sua vitória, negam os vitoriosos inclusive que o Brasil estivesse vivendo um processo de formação cultural em que despontava como algo singular no mundo, tal qual pensavam intelectuais como Gilberto Freire, Stefan Zweig e Darcy Ribeiro. De todo modo, essa visão teria perdido sua razão de ser. Portanto, não tem mais força de racionalidade no processo histórico.
Entrementes, dando continuidade ao pensamento de Hegel, é compreensível que todo processo histórico se move por contradições. Cada momento engendra contradições que o desafiam. Talvez estejamos num momento em que o presente racional está sendo desafiado no próprio momento em que ele vence e vira uma síntese histórica. Talvez as dúvidas que sobrecarregam o povo em relação a cotas produzam um despertar para o reconhecimento de sua formação e desenvolvimento cultural próprio que permita pensar uma solução e atuar politicamente e culturalmente contra o tipo de racismo de que padecemos.
Não adianta simplesmente ser contra as cotas raciais sem ter uma alternativa que preencha as carências do processo cultural brasileiro. Se na economia nada há a fazer, pelo menos nos moldes em que o presente governo se coloca, culturalmente teremos que nos adiantar sobre o que aí está. Se é para criar uma política de inclusão de negros e pardos, que seja estendida para os mamelucos, caboclos e curibocas, o povão, e que esta inclusão seja feita com a dignidade que todos merecem. Se é difícil fazer escolas de qualidade ou expandir o alunado nas universidades federais, mais difícil e mais custoso a médio prazo será instituir uma ética parcial dentro de uma cultura que, embora eivada de desigualdades, rejeita esse princípio e desconfia, sem saber exatamente de onde, que tal imitação trará mais problema do que solução.
A sociedade brasileira tem que despertar para retomar seu caminho civilizacional. Talvez não mais o mesmo caminho, nas mesmas trilhas, já que a histórica nos impôs novos condicionantes, mas um em que se respeite seu passado e se tenha certeza sobre seu rumo.
sábado, 2 de agosto de 2008
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Um comentário:
Prezado Professor,
Me parece que o Estado Brasileiro, na atual linha de governo, peca por soluções que sejam efetivas, mas atende aos interesses temporários, sem medir as consequencias.
Minha sugestão para as cotas seria obrigar a todos os egressos das universidades federais públicas, eventualmente as estaduais também, que os mesmos prestassem de 1 a 2 anos de serviço obrigatório, remunerado, onde o Estado Brasileiro desejasse.
Desta forma, estaríamos propiciando a todos uma visão clara do Brasil, teríamos os profissionais nas áreas que faltam incentivos e principalmente haveria um incentivo para aqueles que necessitam poderem atender às universidades.
Eduardo Weiser
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