terça-feira, 27 de maio de 2008

Mangabeira Unger: uma nova voz no Planalto brasileiro


Para quem se incomoda com sotaque americano, ainda mais falado por um brasileiro, o Prof. Mangabeira Unger surge como uma figura esdrúxula, fora da realidade. Para quem se desarvora com queixo empinado, a figura do ministro de Assuntos Estratégicos assoma antipática e irritante. Para quem não deseja ouvir mais do que cantinelas e platitudes, as falas do baiano-carioca-americano ecoam desajustadas, embaraçosas e fora de sintonia.

Pois é, Mangabeira Unger assim se apresenta no cenário político brasileiro da atualidade. Tem sotaque americano e queixo empinado. Não obstante as reservas que se lhe façam, sua voz sincopada e metalizada está sendo cada vez mais ouvida pelos corredores do Palácio do Planalto, pela Esplanada dos Ministérios, pelas comissões do Congresso Nacional, nos gabinetes dos governadores dos amazônidas, nas reuniões organizadas para discutir um projeto nacional sobre a Amazônia e, não por último, por jornalistas do Brasil e dos Estados Unidos.

A curiosidade deu vez ao interesse. A gozação deu lugar à observação. Agora os ouvidos são postos para ouvir suas inauditas, mas agudas idéias. Depois, quando não se as varre no ímpeto da rejeição, quer saber detalhes, desdobramentos, comparações, pertinência e operacionalidade.

Caetano Veloso, um dos poetas do Brasil, já havia sacado Mangabeira há alguns anos e não cansa de chamar a atenção para suas idéias. Darcy Ribeiro conversava com ele em momentos de delírio mútuo. Brizola o ouvia, coisa rara, e o ensinava sobre o Brasil. Em outros tempos políticos, Ulysses Guimarães e Severo Gomes absorveram algumas idéias de Mangabeira sobre a passagem da ditadura para a democracia. Fernando Henrique Cardoso, narcisista empedernido, sentiu ciúmes e o rejeitou na gozação. Nos Estados Unidos e na Europa ele é ouvido como um dos mais criativos filósofos do Direito, e também como um pragmático que valoriza o indivíduo acima do social. Talvez Mangabeira seja uma espécie de John Stuart Mill da pós-modernidade, alguém que vai contra a voga de descrença sobre o homem, mas que acredita que, acima de todas os vetores sociais de controle, o indivíduo impera pela vontade e pela paixão. Não é um individualismo materialista, que nasce da circunstância da identificação do indivíduo com a propriedade privada, como proclama Locke. É um individualismo do espírito e da consciência. Um individualismo sartreano, que liga o indivíduo à sua necessidade de ser e atuar no mundo. Por isso é que Mangabeira não pode ser rotulado tão facilmente, como bem sabem seus colegas filósofos americanos, como Richard Rorty, que não sabia em que esquema do pragmatismo melhor o configurava.

Por acreditar na capacidade do indivíduo de transcender o social e, inclusive, a si mesmo, Mangabeira é um homem dotado de destemor e ousadia. Ele considera que tem coisas a dizer ao mundo e não teme dizê-las, mesmo sendo mal entendido. Não se constrange pela gozação ao seu sotaque, nem pela irritação ao seu comportamento soberbo. Quem quiser dialogar com Mangabeira tem que ter a virtude da coragem, pelo menos, da auto-confiança e do sentimento de pertencer ao mundo e atuar sobre ele.

Lula entendeu Mangabeira, apesar de suas diferenças essenciais de vida, porque Lula não teme mais nada, nem simplicidade, nem soberba, só o imponderável que lhe reserva seu destino. Mangabeira é um imponderável político, sim, pode criar rusgas para seu governo. Mas é controlável. Se for o caso, basta demiti-lo para tirá-lo da linha de tiro. Mangabeira dá a Lula o sentido de um ordenamento social e político superior, não o ordenamento que está na nossa bandeira, mas a Ordem que só se legitima pelo seu sentido de avançar para um fim. Lula pode até não saber, mas a nossa Ordem só faz sentido se tiver por base o Amor, como dizia Comte, na sua hora mais inspirada, para poder ter por fim o Progresso. Para Mangabeira, o Amor é a força do indivíduo auto-consciente que se coloca no meio da humanidade, tendo um destino a ser conscientizado e projetado como alcançável.

O indivíduo pode, eu posso, nós podemos. É preciso ter inteligência, não se perder nas fórmulas fáceis e simplistas, saber definir o problema com clareza, sopesar os elementos que compõem o sistema, e aí agir.

Mangabeira está no mundo para pensar e agir. Mangabeira toma o Brasil como sua tarefa maior. Disse uma vez que se não conseguir salvar o Brasil, pelo menos se salva a si próprio. Eis o seu karma, e nele está escondido sua moira.

O Prof. Mangabeira Unger, em menos de um ano, virou o ministro Mangabeira. Não é feito comum, para qualquer um. Fez-se assim por inteligência e determinação, porque segue seus próprios ensinamentos, porque é fiel a si mesmo. Nos seus debates surge o argumento perfeitamente delineado, em português impecável, com vírgulas e pontos e vírgulas, parágrafos e travessões. Lógica e conteúdo se somam. Ironia sutil para os inteligentes, malícia para os incautos. Capaz de desmontar sentimentos raivosos com um simples gesto de nobre humildade. Quem quiser debater com Mangabeira que tenha seus argumentos bem delineados e saiba para onde quer ir. Ele entende onde o outro pretende chegar muito antes que o outro saiba para onde vai, e abre-lhe o caminho com pedras, pedrinhas, pedregulhos, lama ou areia batida.

Entrementes, Mangabeira fala, fala e fala. Quer dizer, fala mesmo quando não sabe o suficiente. Isto porque o saber sobre algo não depende exclusivamente no conhecimento vivido ou lido. Muita gente sabe das coisas a partir de um pouco que viveu ou leu sobre determinado assunto. Sabe porque a inteligência é capaz de fazer conexões que se desdobram e se ligam ao quê já é sabido. Admito que a inteligência humana é capaz de criar sabedoria com o material acumulado na mente. Saber 80% de um assunto legitima o comum dos mortais a falar como um catedrático sobre tal assunto. Saber 20% sobre um assunto não envergonha quase ninguém a falar do púlpito sobre o assunto. Brasileiro ainda mais, que não deixa a peteca da retórica cair. Quantas vezes não tive de ouvir leigos discorrer com a maior segurança sobre um assunto como a questão indígena brasileira, por exemplo, como se tivesse vivido anos em aldeias indígenas, conhecesse a história do Brasil indígena e até tivesse dirigido órgãos indigenistas! O índio é assim, assim, assado, diziam na minha cara, e eu ouvindo compungido.

Pois Mangabeira também fala como um leigo sobre assuntos que ele mal conhece, mas que os assimila por outras fontes. Ele mesmo, qual Sócrates, se apresenta como um aluno a aprender. Pratica a maiêutica socrática com quem se apresenta como sabedor do assunto. E vai aprendendo e fazendo o outro de bobo. Está sendo assim na questão crucial que é para o Brasil de hoje, a relação entre meio ambiente, Amazônia, soberania nacional e opinião mundial. Na verdade, Mangabeira está criando um novo pólo de debates sobre esse tema. Está conseguindo varrer aos poucos os argumentos maniqueístas criados pelos ambientalistas, por um lado, e os desmatadores da Amazônia, por outro. Nem Greenpeace, nem Blairo Maggi, a questão é bem mais profunda, diz o ministro Mangabeira.

Sobre esse tema, Mangabeira já soltou alguns conceitos chaves dos seus argumentos. O principal é a ênfase no fato de que a Amazônia tem 25 milhões de habitantes, não é só um parque ecológico. Se essa gente não tiver o quê fazer no panorama da nova civilização brasileira, eles vão continuar a fazer no paradigma da velha civilização de destruição de meio ambiente do qual o Brasil atua é herdeiro legítimo de tantas gerações passadas. O segundo é que o desenvolvimento sustentável é ainda um projeto, um desejo, um objetivo a ser alcançado, não uma realidade construída. Só os brasileiros, por nossa própria criatividade, é que poderemos encontrar o caminho novo do desenvolvimento sustentável para a Amazônia e para o país. Podemos até estar abertos à ajuda de quaisquer outros de boa fé e coração cheio de amor, mas a responsabilidade será exclusivamente nossa. O terceiro, e por conseqüência, é que a Amazônia é a nova fronteira conceitual e espiritual do Brasil em sua trajetória rumo à consolidação de uma nova civilização. Se o Brasil salvar a Amazônia, salvar no sentido de encontrar o seu lugar no mundo, ele se salva, se encontra consigo mesmo.

Mangabeira é uma espécie de novo Darcy, um pouco menos moreno, mesmo sem o querer. Um dos profetas do Brasil futuro da humanidade. Está no panteão da brasilidade utópica junto com Antônio Vieira, José Bonifácio, Gonçalves Dias, Cândido Rondon, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Stefan Zweig, Darcy Ribeiro, Vilém Flusser e Luiz Sérgio Coelho de Sampaio. E Caetano Veloso e outros mais ainda desconhecidos que acreditam no destino do Brasil.

Por esses motivos é que Mangabeira agora anda falando de índios e política indigenista. Se ele não sabe conscientemente, sente intuitivamente que o Brasil não será nada importante sem antes redimir-se de seu passado tenebroso em relação aos índios e os "reabilitar", para usar a velha expressão de Gonçalves Dias. Trazê-los à centralidade de nosso sentimento de nacionalidade, diria eu. Mangabeira aceita e concorda que o Brasil tem sido generoso, ao menos no último século, na sua relação com o índio ao demarcar 13% do seu território como terras indígenas. Mas considera que os povos indígenas estão abandonados á sua própria sorte e carecem de meios para desenvolver suas vocações econômicas, políticas e culturais. Seguindo sua visão pragmática-individualista, acha que os povos indígenas devem ser assistidos para alcançar essas possibilidades de desenvolvimento e de auto-superação. Mesmo constrangidos por suas culturas, os índios, enquanto indivíduos, querem transcender suas culturas, querem ser o que são e querem ao mesmo tempo estar no mundo, e este mundo é o que vivemos, com todas suas cargas positivias e negativas e em toda sua variedade. Mas não é exatamente isso que intuía e pensava Rondon, que tentou fazer desde 1910? Não é isso o que chamamos de indigenismo rondoniano?

O ministro Mangabeira tem muitas idéias a compartilhar com os brasileiros. Tem uma luta política terrível a batalhar e a vencer. Conseguir seu espaço na política brasileira e mantê-lo não é fácil para um homem individualista. Sua luta maior, entretanto, é para conseguir inserir na mente brasileira a idéia de que podemos fazer mais do que pensamos, é só nos abrirmos despudoramente para a imaginação e a criatividade. E será por isso que o Brasil poderá ser capaz de vencer as dificuldades de compor a existência humana (na Amazônia, mas também no resto do país) ultrapassando os horrores que a ânsia pelo consumo e o conseqüente desenvolvimento desenfreado vêm causando a toda a humanidade.

Nenhum comentário:

 
Share