Quando estava na presidência da FUNAI pedi ao grande etnohistoriador brasileiro, Carlos de Araújo Moreira Neto, que escrevesse um artigo sobre a relação dos povos indígenas com as fronteiras nacionais.
Eis o seu artigo, que merece ser lido por todos interessados, inclusive os militares e os ministros do STF.
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ÍNDIOS E FRONTEIRAS
Carlos Moreira de Araújo Neto
As preocupações que vinculam índios e fronteiras remontam ao período colonial, desde as medidas pombalinas gestadas para a Amazônia, ou às sugestões de José Bonifácio de aldear índios junto a contingentes militares, ou às idéias de Couto de Magalhães de “civilizar” os índios através do aprendizado da língua portuguesa com intérpretes militares.
Na história da formação das fronteiras do Brasil, a presença indígena é uma constante, não só pelo fato de que os índios, pressionados pelo avanço da colonização, se refugiavam nas áreas mais ermas e desertas, como pelo fato de que os índios são freqüentemente mencionados, a exemplo de textos do século XVIII, como os “guardiões da fronteira”. O coronel Manoel da Gama Lobo d’Almada, ideólogo da colonização do Rio Branco, pensava a ocupação da região mediante o estabelecimento de aldeamentos indígenas na fronteira, articulados à construção de fortalezas. Joaquim de Mello e Povoas, em 1759, referia-se aos índios como “Tam bons como os bons soldados”.
Um dos exemplos mais expressivos da participação de grupos indígenas na fixação e consolidação das fronteiras coloniais é o caso dos índios Kadiwéu-Guaicuru, referido por Alexandre Rodrigues Ferreira, para o Mato Grosso. Esses índios, tradicionalmente hostis aos colonizadores espanhóis e portugueses da área do rio Paraguai, desde os primeiros anos do século XVI, transferiram-se ao Brasil em seguida a um tratado formal de aliança celebrado com a Coroa portuguesa durante o século XVIII, graças ao qual se definiu a posse portuguesa sobre os vastos territórios do oeste até então de domínio espanhol.
“Perante o capitão general, no palácio da sua residência e autoridades de prol, compareceram João Queima de Albuquerque e Paulo Joaquim José Ferreira, nomes que tomaram dos chefes acatados dos Guaicurus acompanhados de dezessete súditos e da preta Vitória, ‘crioula portuguesa, sua cativa, que serve de língua’, decididos a firmar convênio de paz com o delegado de S.M. Fidelíssima, consoante registrou o termo lavrado a 1 de agosto de 1791. Com toda a solenidade, o secretário do governo, Joaquim José Cavalcante de Albuquerque Lins, redigiu o documento respectivo que recebeu a assinatura de João de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, autoridade suprema, do tenente coronel Antônio Felipe da Cunha Ponte, seu ajudante de ordens e Dr. Alexandre Rodrigues Ferreira, ‘naturalista, encarregado da expedição filosófica por S.M. nesta capitania’, em nome dos dois maiorais, do Dr. Antônio Soares Calheiros Gomes de Abreu, ‘provedor da fazenda real e intendente do ouro’, pelos outros indígenas, do sargento-mor Ricardo Franco de Almeida Serra, por parte da intérprete. Desde esse ato, silenciaram as crônicas regionais a respeito de hostilidades dos guaicurus, que se tornaram aliados dos luso-brasileiros de Mato Grosso. Rejubilou-se Ferreira ao deixar pacificada a grande nação guaicurus, que lhe conquistara a estima.”
O tratado de limites com a Guiana Francesa, cuja equipe brasileira foi coordenada pelo Barão do Rio Branco, que organizou, anotou e publicou os vários volumes da peça brasileira para arbitragem, marca o período mais produtivo das disputas e vitórias do Brasil nas questões da fixação das fronteiras.
Mesmo a incorporação do território do Acre aos limites brasileiros teve como aliada, além das negociações diplomáticas e da determinação de Plácido de Castro, a presença de populações tradicionais que trabalhavam nos seringais da região e na extração de produtos da floresta.
No caso da questão de limites com a Guiana Inglesa, o destino final foi inverso. Mais uma vez, nesse caso os povos indígenas constituíram-se em elemento pivô na argumentação das partes litigantes em defesa de suas pretensões territoriais. A Inglaterra, avocando-se herdeira dos títulos holandeses, antigos ocupantes da Guiana, prendeu-se firmemente ao argumento de que seu território se estendia até onde iam as alianças que os holandeses, por meio de um sistema regular de trocas, haviam estabelecido com os índios dois séculos antes. Por sua parte, a defesa brasileira – fazendo intencionalmente tabula rasa do esforço dispendido pelos portugueses para a aproximação com os índios no Rio Branco, e ainda de todo o debate que percorre o período colonial acerca da soberania dos povos indígenas – contra-argumentaria que apenas a presença constante dos colonizadores era título suficiente de domínio. Nesse sentido, o contrabando holandês com os índios jamais poderia ser evocado para justificar a soberania inglesa sobre o território disputado.
Assim, a despeito da existência de abundante documentação probatória da prioridade da presença portuguesa entre os índios da região, a exposição final do ministro plenipotenciário Joaquim Nabuco nega-se a utilizar tais títulos sob a visão preconceituosa de que os direitos sobre a terra não se estendiam aos índios: “Portugal não fundamenta seu direito com base em relações com chefes indígenas, aos quais não é reconhecida soberania política. Esse direito não existe. Por isso, não alegamos nenhum título derivado do direito indígena. De acordo com o direito português, uma vez com a posse do território, tudo que estiver sobre ele pertence à Coroa portuguesa. Assim, os índios não podem transmitir um título que eles nunca tiveram.”
Esses episódios serviram para apontar a vulnerabilidade das fronteiras e um possível risco para a soberania nacional. Nesse contexto são formulados os projetos de comissões de linhas telegráficas e construção de estradas de ferro, tornando mais eficientes os meios de comunicação, com intervenção direta na política de povoamento.
A criação de Comissão de Linhas Telegráficas e Estratégicas do Mato Grosso ao Amazonas, em 1907, é mais uma vertente da relação existente entre a presença indígena e a fixação das fronteiras internas e externas do País. Salta aos olhos o caráter estratégico das linhas telegráficas não só como fator de desenvolvimento, mas também como motor para a ocupação da região, incentivando a migração, e para a garantia da defesa das fronteiras brasileiras, “nacionalizando” os povos indígenas. “Descobrindo”, “amansando” e “fecundando” o interior do País, as linhas telegráficas deveriam fixar, ao longo de sua extensão e em torno de cada estação telegráfica, núcleos de povoamento para “localizar” a população nacional e atrair os índios, “conquistando-os para a civilização”. Nesse sentido, os povos indígenas são elemento decisivo na construção da nacionalidade na medida que desempenham um papel de “avalistas” do domínio brasileiro em territórios tidos como “regiões vazias”.
Em relatório do ministro de Estado da Indústria, Viação e Obras Pública, Miguel Calmon du Prin e Almeida, apresentado ao Presidente da República, em 1907, evidencia-se essa visão:
“No intuito de unir todos os Estados da República pelo Telégrafo Nacional, e, ao mesmo tempo, dotar o território do Acre dos meios mais fáceis de comunicação com o resto do país e com os estrangeiros, autorizou V.Ex. a construção, mediante o concurso de tropas federais, de uma linha telegráfica que partindo de Cuiabá se dirija a Santo Antonio do Madeira, ponto inicial de E.F. Madeira ao Mamoré e daí se bifurque por um ramo, em demanda das sedes das prefeituras do Alto Purus e Alto Juruá, e, por outro, Manaus. A Comissão incumbida de construí-la, deverá estudar ramais para pontos convenientes da Fronteira e, bem assim, proceder ao reconhecimento geral da zona, sob o ponto de vista estratégico, geográfico e econômico, promovendo, ao longo da linha, a formação de colônias de índios convizinhas das estações.”
Nesse contexto alcança grande destaque no cenário político do país e na formulação de uma política indigenista de inspiração humanitária o general (mais tarde marechal) Cândido Mariano da Silva Rondon, que criou, em 1910, o Serviço de Proteção aos Índios. Após a Revolução de 1930, afastado da função pública por sua postura legalista, Rondon recolheu-se ao Conselho Nacional de Proteção aos Índios e, depois, foi levado à Inspetoria de Fronteiras (1927-1934), onde teve desempenho singular em várias questões de limites das nações vizinhas, a exemplo do tratado que dirimiu as fronteiras entre Colômbia e Peru, quando foi delegado do Brasil junto à Comissão Mista Internacional.
Em setembro 1927 o gal. Rondon subiu o rio Tacutu, afluente da margem esquerda do rio Branco. Nessa ocasião ele registra o seguinte comentário sobre as relações entre brancos e índios naquela região:
“Que diferença entre os ingleses da Guiana e os brasileiros da fronteira ! Aqueles procuram chamar para o seu território todos os índios da região; estes escorraçam os seus patrícios das suas próprias terras, obrigando-os a expatriarem-se !
Cousa interessante. Esses índios são ladrões no Brasil; expulsos como maus vizinhos dos fazendeiros, passam para a Guiana, onde são bem recebidos pelos ingleses, que os consideram homens de bem.”
Essa relação torna-se ainda mais explícita quando o SPI passa a ser um departamento da Inspetoria de Fronteiras do Ministério da Guerra. Em relatório do coronel chefe do SPI, Vicente de Paula Teixeira Vasconcelos, ao Ministro da Agricultura e ao CNPI, em dezembro de 1939, registra:
“O regime que preconizamos, de evolução mental natural, sem nenhuma pressão sistemática sobre sua alma dará ao Índio a capacidade de melhor aproveitar os dotes naturais da raça no que diz respeito às suas qualidades primordiais de caráter.
Em conseqüência, melhores elementos para bem servir à Pátria no que ela mais precisa: guarda de suas fronteiras e respectiva defesa, ali o encontraria o Exército.”
Em conferência no Ministério das Relações Exteriores (Palácio do Itamaraty) em 3 de agosto de 1938, rememorando as ações desenvolvidas junto aos índios, Rondon apela “em favor da paz dentro da própria Pátria” e “reclama para os aborígenes os mesmos privilégios de que gozam os outros brasileiros e os estrangeiros vindos da Europa, da Ásia e da África, isto é: respeito à propriedade, o direito de inviolabilidade do lar, o uso e gozo do pátrio poder, a garantia de sua liberdade, inclusive a liberdade de consciência.”
Observa-se, portanto, que, historicamente, os povos indígenas têm se constituído em “guardiões” das fronteiras, contrariando concepções equivocadas que acreditavam que a presença indígena nas áreas de limites representava um risco de formação de enclaves territoriais pouco povoados e dissociador da comunidade nacional.
O Serviço de Proteção aos Índios e em sucessão a Fundação Nacional do Índio procederam demarcações em faixas de fronteiras norteador pelo respeito e garantia aos territórios tradicionais dos povos indígenas e pela certeza de que a presença indígena não representa, em hipótese alguma, um risco à soberania brasileira.
Com base na análise da situação das terras indígenas hoje, constata-se que 191, ou seja, 31% das terras indígenas demarcadas, se encontram em faixa de fronteira, perfazendo 52.680.737 ha, o que equivale a 49% da superfície total. Nessas áreas vivem 43% da população indígena brasileira, isto é, 174.000 pessoas que controlam e mantêm a vigilância de 5.788 km de fronteira, uma vez que essas populações estão diretamente interessadas na manutenção e preservação de seus territórios.
A FUNAI é um órgão da administração pública direta. Não há porque esperar ou supor a existência de oposição ou conflito a outros órgãos do poder público na Amazônia ou outras regiões dentro ou fora das Terras Indígenas, a exemplo das guarnições de fronteira, do SIVAM, para só referir agências militares. Pelo contrário, a presença nessas áreas de representantes do poder público armado só pode reforçar a segurança e a tranqüilidade das populações indígenas, desde que essa presença tenha um caráter esclarecido e benigno.
Brasília, fevereiro de 2004
quinta-feira, 6 de novembro de 2008
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Um comentário:
Belo texto!
Posso reproduzi-lo em meu blog?
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