sexta-feira, 2 de maio de 2008

O Índio na História: Cap.6 - A Patronagem e a Política Indigenista Imperial

Capítulo VI

A Patronagem e a Política Indigenista Imperial


Oitenta anos de afastamento do mundo colonial permitiu aos Tenetehara do alto Pindaré reconstituir sua população e ganhar fôlego para encarar o mundo que começava a penetrar em seu território. A partir de 1840 se inicia um novo período de relacionamento interétnico entre os Tenetehara e a sociedade maranhense. Essa data é arbitrada pela presença de um tenente-coronel do exército brasileiro no baixo rio Pindaré, enviado que fora pelo coronel Luiz Alves de Lima e Silva, o futuro Duque de Caxias, para criar um “plano de civilização” para os Tenetehara. É possível que algum morador ou regatão da vila de Monção já houvesse entrado em contato com índios Tenetehara daquela região, mas teria sido pouco tempo antes e ainda de uma forma instável e cheia de resguardos. As notícias e declarações da Assembléia Legislativa do Maranhão e dos governadores da província nas três primeiras décadas do século XIX mostram que ainda era parquíssimo o conhecimento oficial sobre os Tenetehara, havendo uma certa confusão entre eles e os Amanajós, Gamelas e Timbiras (Coelho 1990: 127).


O restabelecimento estável e permanente das relações interétnicas entre Tenetehara e brasileiros, sejam eles funcionários provinciais, clérigos, pequenos lavradores, regatões, imigrantes pobres ou novos fazendeiros com capital para instalar fazendas com escravos, vai se dar em razão da expansão agrícola (arroz e algodão), que sobe os cursos dos rios Mearim e Grajaú, e da decisão oficial de garantir controle político-militar de rios até então pouco habitados por brasileiros, como o Pindaré e o Gurupi. A motivação mais imediata dessa decisão vinha da necessidade de reprimir a Rebelião da Balaiada (1838-40), que fustigava o leste maranhense e ameaçava se espalhar para outras regiões, pondo em polvorosa a elite agrária do Maranhão e exigindo da jovem nação sob o regime regencial medidas militares de repressão, bem como políticas de prevenção. A Rebelião da Cabanagem (1836-41), que acontecia com igual virulência no Pará, também era motivo de preocupação das autoridades imperiais.

A patronagem ou clientelismo social

Não sendo mais possível a escravidão individual nem a servidão coletiva, desenvolve-se um novo modo de relacionamento interétnico, a patronagem, ou relação patrão-cliente, ou patrão-freguês, ou ainda clientelismo social. Esse novo modo de relacionamento irá caracterizar a convivência entre os Tenetehara e a sociedade regional durante o século XIX e, a rigor, pelos anos seguintes até quase os nossos dias, reforçado até pela injunção das políticas indigenistas do Império e da República.

Entre os Tenetehara e os brasileiros a patronagem se funda em interesses econômicos que são mediados não mais por um sistema de servidão - baseado em direitos e deveres de origem social - mas por uma economia de troca de bens e serviços. Nela é preservada, por princípio, uma medida razoável de autonomia étnica, e sua incepção se dá de forma voluntária, em oposição aos modos forçados característicos da escravidão e da servidão. Mas o princípio de poder que rege esse novo relacionamento continua a ser o da desigualdade e consequentemente da hierarquia. Os brasileiros vão transacionar com os Tenetehara de uma posição dominante, com base em sua superioridade política e econômica. De forma recíproca e inversa, os Tenetehara se relacionam com os brasileiros de inferiores para superiores. Não exatamente como servos para amos, para nos referirmos aos termos da carta régia de 1798, mas como clientes para patrões, ou fregueses para patrões, para usar os termos mais comuns ao vocabulário corrente .

Por superioridade econômica do lado brasileiro entende-se uma relação em que os Tenetehara são mais dependentes dos bens que obtém na troca com os brasileiros que o inverso. Os bens de troca dos Tenetehara não são cruciais para os brasileiros porque podem ser obtidos por eles mesmos. Mas, na prática, devido à disponibilidade da produção indígena e seu baixo custo, os brasileiros contam com os Tenetehara para a aquisição desses bens, que se transformam em mercadorias. Por outro lado, somente os brasileiros podem abastecer os Tenetehara com os tipos de produtos manufaturados que estes necessitam e não têm condições de produzir por si mesmos.

Superioridade política é utilizada no sentido de que os brasileiros detêm um poder político - baseado na força militar, na densidade demográfica e na organização hierarquizada - através do qual podem manipular os índios e submetê-los a seus interesses. Essas manipulações podem tomar diversas formas, desde o investimento missionário para torná-los cristãos, a influência sobre a organização e localização de suas aldeias com o propósito de “civilizá-los” (mais tarde o verbo usado será “desenvolver”), ou mesmo a ameaça implícita ou explícita de destitui-los de suas terras, tirando-lhes seus meios de sustento e, em caso extremo, tirando-lhes seus filhos para serem criados e educados fora. Mas nunca de retirá-los à força de suas aldeias e submetê-los a trabalhos forçados, sob quaisquer pretextos, como o de quitar dívidas. Nesse sentido, a relação patrão-freguês que os brasileiros exercem sobre os Tenetehara é mais dominadora, mas menos estável, do que no caso de caboclos e camponeses brasileiros. É que os Tenetehara, afinal, não são parte inteiramente conformante com o sistema cultural hegemônico brasileiro. Com eles a relação é, em primeiro lugar, interétnica, portanto, de estranhos culturais, menos íntima e menos integradora. Assim, raramente toma a forma de relação de compadrio, e nas ocasiões em que isto ocorre, dá-se com um lavrador ou camponês mais humilde, talvez o dono de uma vendinha, com proximidade maior com a vida tenetehara, e raramente com um patrão fazendeiro ou comerciante urbano.

A relação de patronagem se dá entre indivíduos e por tempo determinado, não entre famílias e herdeiros. O brasileiro é o patrão que estabelece uma relação socioeconômica com seu freguês, o Tenetehara, de forma que eles se ligam um ao outro por um regime implícito de direitos, que se fazem privilégios, e deveres, ou obrigações. O patrão tem o privilégio de acesso à produção econômica de seu freguês destinada à troca, assim como, graças à superioridade econômica de sua sociedade, a prerrogativa de estipular o valor dos bens que compra e vende ao cliente. O patrão tem a obrigação de fornecer crédito a seu freguês, mesmo durante os meses em que a produção para comercialização do freguês é escassa ou nula. O freguês também tem o direito de pedir crédito ao patrão e o dever de comprar e vender exclusivamente dele e para ele. Um patrão pode ter vários fregueses, até uma aldeia inteira. O freguês só deve ter um patrão.

No trato e acerto de contas a contabilidade é sempre de indivíduo para indivíduo, não podendo - dívidas ou saldos - serem transferidos para outrem. Nesse sentido, o regime clientelista que se estabeleceu com os Tenetehara difere do sistema de barracão, cuja contabilidade é mais impessoal e transferível, bem como do sistema de servidão clássico em que herdeiros entram nas contas. A quebra do entendimento desse sistema de deveres e direitos por uma das partes resulta num estremecimento do relacionamento, que pode terminar por sua finalização ou por uma recomposição negociada. Nessa nova negociação as contas anteriores, em saldo ou em dívidas, podem até ser esquecidas e perdoadas.

Em comparação com o sistema de barracão ou ainda com o sistema de agregados em fazendas, o relacionamento patrão-freguês com os Tenetehara é um empreendimento mais arriscado e custoso. Geralmente os índios não estão às vistas do patrão para melhor desempenhar suas tarefas e muitas vezes não cumprem prazos. Para compensar, esse relacionamento tem que ser mais rentável, o que torna o sistema de cobranças mais duro e socialmente agressivo. Isto quer dizer que o nível de exploração econômica dos brasileiros sobre os Tenetehara, isto é, a relação entre o valor dos produtos trocados, torna-se o mais alto possível em favor dos brasileiros. De fato, assim é que vai acontecer, até o momento em que os Tenetehara começam a aprender o valor de mercado das mercadorias recebidas em troca dos bens que eles produzem, e com isso passam a cobrar mais por esses bens, diminuindo paulatinamente o nível de exploração econômica. Esse processo será documentado e analisado nos capítulos dedicados à economia de troca dos Tenetehara.

A patronagem surgiu em razão das novas condições demográficas, sociais e políticas desenvolvidas no fim do período colonial, quando a Coroa, a sociedade maranhense e a própria economia regional passaram a depender cada vez menos do índio. Uma das mais importantes condições advém do anterior relacionamento interétnico no Brasil. Durante mais de duzentos anos os índios foram escravizados ou postos a trabalhar na condição de servos; porém, em comparação com os negros africanos, em todo esse tempo nunca deixou de haver ressalvas e dúvidas sobre essa atitude, seja da parte dos jesuítas, seja da parte dos conselheiros do rei, seja talvez por um princípio de moral cristã na consciência das autoridades, seja ainda por um reconhecimento, indesejado embora, da legitimidade da autonomia dos índios. Assim, a decretação da liberdade dos índios pela lei de 6 de junho de 1755, levada a público dois anos depois, foi um ato não de todo inesperado nem extemporâneo, haja visto semelhantes medidas tomadas anteriormente . Por essa medida todos os índios, os que viviam nas novas vilas ou em aldeotas próximas a vilas luso-brasileiras, e os que viviam autonomamente, como selvagens, não poderiam ser escravizados ou forçados ao trabalho. Entretanto, essa liberdade durou apenas na vigência do Diretório de Pombal (1757-98), sendo relaxada pela carta régia que o aboliu, quando foi permitido o recrutamento compulsório para o trabalho de índios (vistos como vagantes e preguiçosos) tanto das aldeias domésticas quanto os selvagens; e efetivamente foi derrogada por diversas cartas régias de Dom João entre 1804 e 1808, que deram o direito a qualquer pessoa para montar uma tropa ou bandeira para prear e tomar índios como escravos, por períodos de 10 a 15 anos, que viviam nas regiões do vale do rio Doce (os chamados Botocudos), no alto Tocantins (os Canoeiros), no oeste paulista (os Coroados), e no Piauí (os Timbira, Güegües e Acroás) . Por extensão cumplicitária, diversos outros povos indígenas acabaram sendo vítimas do teor dessas cartas régias, inclusive no Maranhão (Moreira 1967: 177-9). Tal era a sorte de abusos nas primeiras décadas do século XIX que, em 1822, a junta provisória e administrativa da província do Maranhão promulgou um aviso proibindo escravizar índio sob qualquer título (Coelho 1990: 127-8), ao mesmo tempo em que estava considerando medidas militares para desinfestar as zonas de interesse econômico da presença de índios.

Uma segunda condição, esta pouco reconhecida na historiografia maranhense, parece ser uma certa diminuição do poder do estado sobre a economia e a sociedade maranhenses, a qual é inversamente proporcional ao aumento do poder da iniciativa privada. Isto vai acontecer a partir das últimas décadas do século XVIII, talvez em conseqüência da debâcle do autocratismo pombalino. Essa mudança na balança do poder pode ser percebida pela forma desordenada em que se deu a expansão econômica em novos territórios e no relacionamento mais pessoalizado que vão ter com as populações indígenas com quem se defrontam. Os agentes econômicos das frentes de expansão não tinham poder de fogo para exercer posições de autoridade e mando semelhantes às exercidas pelos representantes da Coroa em épocas anteriores. O entendimento negociado lhes pareceu mais adequado do que um mandonismo sem respaldo.

Uma terceira condição vem do lado dos próprios Tenetehara, através de sua relativamente extensa população e seu reconhecido espírito de cooperação amistosa. Em pouquíssimas ocasiões agentes das frentes de expansão ousaram exercer violência intimidadora contra esses índios. O relacionamento que criaram tinha uma base econômica significativa, a partir da qual entabularam um relacionamento social de clientelismo, que lhes permitiu, ao mesmo tempo, preservar uma certa autonomia política e cultural.

Porém, não se pode deixar de ver que a patronagem se baseia igualmente em modos e atitudes interétnicos advindos do tempo da servidão, especialmente do tipo que existia nas aldeias de repartição e que foi continuado nas vilas pombalinas e nas aldeias pós-pombalinas. Os índios continuaram a ser vistos como inferiores, inconfiáveis, indolentes e infantis, só se movendo ao trabalho a custa de uma mistura de respeito temeroso da autoridade, ou no mínimo, em alguns momentos, por um tratamento condescendente. Já que esse temor não podia ser aplicado com medidas drásticas, como aprisionamento e trabalho forçado, tinha que ser exercido com firmeza e parcimônia por uma arte de tratar subordinados que implicava saber exigir e mandar, contrabalançando esse saber com a capacidade de criar a expectativa de uma retribuição generosa .

A eficácia da patronagem é indubitavelmente excepcional, como atesta a sua duração. Só em alguns poucos momentos ela é rompido por uma das partes, com conflitos resultantes. Esse relacionamento foi exercido com os índios Tenetehara até quase os dias atuais, tomando formas diversificadas de acordo com os momentos históricos e a intensidade do fator econômico. Só nas duas últimas décadas do século XX, é que a patronagem vai dar sinais de esgotamento, sem que um novo modo de relacionamento emerja para substituí-lo. Eis a razão por que os Tenetehara e tantos outros povos indígenas em semelhantes condições de vida vivem em conflito com a sociedade brasileira atual.

A patronagem, estabelecida historicamente primeiro com os índios livres, não se resume às situações de relações interétnicas; ela é, verdadeiramente, o principal modo de relacionamento entre classes sociais brasileiras fora do sistema econômico baseado na escravidão, no passado, e em relações capitalistas, em amplos setores da sociedade brasileira da atualidade. A patronagem se estabeleceu também entre brancos e mestiços livres, nas zonas rurais e urbanas. Tal é a sua amplitude que pode-se argumentar que ela tem raízes profundas na sociedade brasileira; quiçá tenha surgido da estruturação no Brasil do próprio estado patrimonialista que prevalece no país como herança portuguesa . Como se sabe, para que haja um estado patrimonialista é necessário a existência de sua contraparte, uma sociedade clientelizada, a qual deve funcionar como estamentos sociais hierarquizados. Assim era a base do relacionamento social no sistema colonial brasileiro tanto entre os estamentos hierarquizados como no interior de cada estamento. A continuidade desse sistema é visível em todas as camadas sociais, excetuando naquelas onde vão predominar relações capitalistas. Nesse sentido, entender como funciona o relacionamento patronal para com os Tenetehara serve igualmente como exercício à compreensão mais global do fenômeno político brasileiro.

A política indigenista imperial para os Tenetehara: 1840-1892

O restabelecimento do contato entre a sociedade tenetehara e a sociedade regional maranhense se deu em território tenetehara por intermédio de um oficial do exército. Isto é, por uma autoridade imperial. Tal acontecimento fortuito vai assinalar a prepoderância da presença de autoridades do estado nesse relacionamento interétnico ao longo dos anos seguintes. Estes vão ser, por conseguinte, os principais patrões dos Tenetehara. Daí porque é de suma importância entender como o Império brasileiro, e posteriormente, a República, estabeleceram os princípios e a prática da patronagem.

Nos primeiros anos após a independência do Brasil e a incorporação do Maranhão como província do Império, pouco se legislou sobre índios, sendo mantidos os termos da velha política indigenista portuguesa: em suma, o decreto de 1798 e os termos mais agressivos das infaustas cartas régias que Dom João promulgara contra os índios Botocudos, Coroados e outros, na primeira década do século. A promulgação dessas cartas havia sido motivada, primeiramente, pela resistência que os índios Botocudos, nome genérico e depreciativo usado para as diversas tribos autônomas que viviam nas florestas do vale do Rio Doce, Mucuri, Jequitinhonha, Prado e outros, a poucos mil quilômetros da sede do governo central, exerceram contra a entrada de colonos em suas terras. Depois, foram estendidas a diversos outros povos indígenas igualmente empenhados em defender seus territórios, como os Coroados (atuais Kaingang) do Paraná e oeste paulista, os Canoeiros (atuais Avá-Canoeiro) do alto Tocantins, e os Acroás, Güegües e Timbira do Piauí e Maranhão. Essas cartas determinavam que se armassem tropas de ataques e se fizessem guerras contra esses índios, tendo os seus organizadores o direito de tomar prisioneiros e fazê-los escravos pelo período de dez a quinze anos.

Com efeito, nos anos seguintes, esses índios foram sendo atacados por tropas de guerra e seus territórios foram sendo tomados por novas levas de colonos pobres e fazendeiros de café em expansão. O intuito real dessas cartas era de abrir caminho para a expansão de novas fronteiras agrícolas. A presença de índios só seria tolerada e aceita enquanto “índios aldeados,” o que queria dizer, índios que convivessem pacificamente com a sociedade luso-brasileira, aceitando as regras de relacionamento dadas, como, nas palavras de uma dessas cartas régias, “... vassalos úteis... que estão sujeitos ao doce jugo das leis” (apud Moreira 1967: 176). A destruição dos Botocudos iria se prolongar nas décadas seguintes, apesar do esforço de algumas pessoas, como o ex-militar francês Guido Marlière , em tentar usar de métodos pacíficos para acomodar os índios diante da invasão de suas terras.

O fato é que, até a ascensão de dom Pedro II, em 1840, esses são tempos de muita disputa política. No Maranhão, a Rebelião da Balaiada vai estourar na região das grandes fazendas de algodão e arroz, cuja economia passava por um momento de baixa exportação. Ela eclode em razão também de uma crise política facilitada pela fragilidade do poder dos governadores, que não conseguem controlar os fazendeiros e regular o modo de expansão econômica naquela província, especialmente a pastoril. Em relação aos índios, o máximo que se pode dizer desse período é que a política indigenista ficou nas mãos práticas e interesseiras dos fazendeiros, que como classe iam se expandindo sobre terras de índios, e que deixaram pouquíssimas informações a respeito de suas atividades. O grande tema de discussão nos debates da Assembléia Legislativa do Maranhão se focalizava na necessidade de se controlar os índios selvagens que, de quando em vez, atacavam os povoados e fazendas que iam se estabelecendo em seus territórios. No plano nacional, discutia-se a melhor maneira de trazer os índios à civilização, e o consenso foi se formando em torno da renovação do papel de missionários. Cogitou-se inclusive na possibilidade de chamar de volta a Companhia de Jesus, reinstituída desde 1814, ou monges trapistas e frades capuchinhos, estes últimos afinal sendo os escolhidos. O lema que passa a prevalecer a partir da década de 1830 é o de “catequese e civilização” (Gomes 1988: 78).

Em lei de 27 de outubro de 1831, as cartas régias que davam direito de guerrear e escravizar os índios foram revogadas, abolindo-se definitivamente a escravidão de índios no Brasil e desonerando aqueles que viviam em regime de servidão. Porém, foi preservada a condição de órfão que a legislação de 1798 havia imposta aos índios, tendo como tutores os mesmos juizes de paz, ou, na ausência destes, os juizes de comarca . Logo em seguida, o Ato Adicional de 12 de agosto de 1834, que criou a Regência como forma de governo no Brasil, decretou que a política de catequese e civilização a ser implantada para os povos indígenas devia ser cuidada diretamente pelas províncias, através de seus governos e suas assembléias legislativas. Iniciou-se assim um período, breve porém, em que cada província atuava separadamente, do modo como achasse melhor, em relação aos povos indígenas de suas jurisdições. Afinal, a 12 de agosto de 1845 o imperador promulgou o decreto nº 426, o qual, apesar da maior abrangência de ação e controle político laico, ficou conhecido como Regimento das Missões.

O Regimento das Missões é, relativamente falando, produto de uma atitude favorável ao índio, resultado certamente das discussões e propostas que se debatiam nas assembléias legislativas de todo o país, bem como no Instituto Histórico, Geográfico e Ethnográfico do Brasil, fundado em 1838, que começava a recolher material e publicar documentos históricos e interpretações sobre os índios e o seu papel na história do Brasil. É nessa década que vai surgir o movimento indianista, instaurado naquele ano pela leitura do poema A Confederação dos Tamoios, de Domingos José Gonçalves de Magalhães. Nos anos seguintes, já com o concurso de figuras luminares como Antônio Gonçalves Dias, João Francisco Lisboa, José de Alencar e outros, esse movimento vai trazer algum conforto à causa dos índios, ou, pelo menos, vai servir para contrabalançar o discurso antiindigenista daqueles que queriam projetar o Brasil como um país à imagem e semelhança da Europa (Gomes 1991: 114-9).

O Regimento das Missões veio reiterar a liberdade dos índios e legislar sobre as formas de catequese e civilização a serem implantadas em todo o território imperial. Estabeleceu um sistema de administração chamado Diretoria dos Índios, o qual operou sem interrupções até alguns anos após a queda do regime monárquico em 1889 . O propósito do novo sistema era promover a integração dos índios à sociedade nacional, provendo-os com os meios para se tornarem civilizados. A administração central ficava no Rio de Janeiro, debaixo da proteção do Imperador e nas mãos do Ministério das Viações e Obras Públicas, que expedia ordens e diretrizes para os governos provinciais. Em cada província havia uma Diretoria Geral dos Índios, cujo diretor, que podia receber o título militar honorífico de brigadeiro, era nomeado pelo governo central. No Maranhão, a essa diretoria geral foi destinado, nos primeiros anos, um orçamento de dois mil contos de réis, que mais tarde foi reduzido para hum mil contos (Marques 1970: 206) . O diretor geral dos índios respondia diretamente ao presidente da província, para quem redigia relatórios que eram publicados com freqüência equivalente à saída, provisória ou definitiva, de cada presidente de província, o que em geral se dava a cada dois ou três anos, às vezes em intervalos de menos de um ano. O diretor geral tinha autoridade para tratar diretamente com as aldeias indígenas trazidas para sua jurisdição. Para cada uma ou mais aldeias que formavam um conjunto próximo, ele propunha a criação de uma “diretoria parcial” e a nomeação de um diretor parcial, o qual recebia o título de tenente-coronel. Um tesoureiro, um almoxarife e um cirurgião deviam ser nomeados para compor a equipe responsável pelas diretorias parciais, pelo menos as mais importantes, ao passo que as mais remotas deviam se beneficiar da presença de um missionário. Como se vê, esse sistema vai se parecer mais com a legislação pombalina do que com a antiga missionária.

As funções dos diretores parciais, como mantenedores da política imperial no nível local, eram entre outras as seguintes:

(1) proteger os direitos dos índios às suas terras;
(2) cuidar pela fundação, tranqüilidade e desenvolvimento das aldeias indígenas;
(3) propiciar instrução civil, religiosa e artística aos índios;
(4) fiscalizar e utilizar a receita das aldeias “de acordo com a política governamental” (Araripe 1958: 64-6).

Os diretores parciais também tinham a prerrogativa de nomear um chefe índio para as aldeias indígenas, que recebia o título honorífico de capitão, às vezes, coronel, costume que, como já foi dito, teve início em 1733, e até a década de 1980 funcionava em várias partes do Brasil.

Tendo sido criado em 1845, o sistema de diretorias parciais foi implantado rapidamente em várias regiões do Maranhão e, ao que parece, com alguma força de ação. Em 1850, o segundo diretor geral dos índios do Maranhão, José Maria Barreto Júnior, já há três anos no cargo, onde iria permanecer até 1862, escreveu um relatório-balanço de suas atividades ao entrante presidente da província, no qual descreveu a instalação e funcionamento de seis diretorias parciais e analisou casos de índios civilizados que pediam o socorro oficial para defender suas terras. O mais dramático era o caso descrito dos mais de 300 “índios civilizados descendentes dos Anapurus,” cujo capitão viera a São Luís pedir a nomeação de um diretor parcial para ajudá-los a expulsar os “intrusos” que estavam em suas terras sem nenhum direito para tal e sem ao menos pagar foro. Nessa ocasião, o chefe dos Anapurus, José da Cunha Brandão, mostrou ao diretor geral um documento de sesmaria de uma data de terras de três léguas (cerca de 130 km2) que lhes fora concedida em 1795 pelo governador geral do Maranhão, Fernando Antônio de Noronha. Ao fazer sua petição o chefe dos Anapurus relatara que, até a década de 1820, moravam exatamente no local que desde então se transformara na vila do Brejo, de onde haviam se retirado para estabelecer nova aldeia nas terras que lhes haviam sido consignadas. O diretor geral, após verificar com uma autoridade da validade do documento apresentado, atendeu ao pedido e nomeou um diretor parcial, constituindo com isso a 6ª diretoria parcial. Porém, ao final do relatório ponderou, entre desenganoso e fatalista, que nada fora possível fazer em prol dos direitos e interesses desses índios.

Também foram citados pelo diretor geral como índios civilizados os descendentes dos Tobajaras e Caicais que viviam na aldeia de São Miguel, próximo à desembocadura do rio Itapecuru, na baía de São José. Esses, todavia, não recebiam nenhuma assistência do sistema de diretoria dos índios.

Já os Gamela foram objeto de um intenso interesse por parte do diretor geral. Eram assistidos pela 4ª diretoria parcial, localizada em Cajari, então povoado prestes a virar vila, na região do baixo Pindaré, comarca de Viana. O diretor geral folgou em dizer que visitara pessoalmente os cerca de 80 Gamela, que eles viviam pacificamente e que quase todos já falavam português. Das demais diretorias parciais, a 1ª se situava na comarca da Chapada e servia a 703 índios Canela; a 2ª servia a quatro aldeias Guajajara das margens do alto rio Grajaú, com 677 índios; a 3ª se situava no baixo rio Grajaú, na jurisdição a comarca de Viana, e prestava assistência a seis aldeias guajajara com 518 pessoas; a 5ª compreendia sete aldeias Guajajara e duas de índios Timbira da Mata, ou Mateiros, num total de 1.269 habitantes que viviam nas matas do alto rio Mearim, no trecho situado entre os afluentes Flores, Corda e Enjeitado, comarca da Chapada. Era então seu diretor parcial ninguém menos que Manuel Rodrigues de Mello Uchoa, o velho desbravador cearense e fundador da vila de Barra do Corda.

O diretor Barreto Júnior mostrou preocupação quando descreveu a situação das aldeias do alto rio Pindaré onde, entre uma multidão de índios Guajajara, viviam desertores e escravos fugidos. Porquanto, sugeria a criação de uma diretoria parcial na região para intervir sobre essa situação. Preocupou-se também com uma quantidade inumerada de índios selvagens e errantes, entre os quais citava os Gaviões, Caracategés, Cragés (sic), Timbiras e Guajajara do alto Pindaré. No total, eram mais de 3.200 os índios assistidos, dos quais podemos estimar que um tanto mais de 2.000 eram Tenetehara. Nos anos seguintes esses números iriam ficar mais fáceis de estimar. Ao concluir o seu balanço o diretor geral declarou que fizera doações de ferramentas agrícolas, facões, machados e alguma roupa, e pedia a benevolência do Imperador para com os infelizes índios que atendia . Esse discurso haveria de continuar por todo o regime imperial.

Barreto Júnior foi diretor geral dos índios por 15 anos, servindo a vários presidentes de província, um feito digno de um homem de confiança que prestava excelentes serviços ao regime imperial e à elite maranhense. Estabeleceu, nesse período, quinze diretorias parciais e duas colônias indígenas. Foi nesse tempo que a Lei das Terras, promulgada em 18 de setembro de 1850 e regulamentada em 1854, tomou efeito em todo país, inclusive no Maranhão. Por ela é que se devia regularizar o caos da situação da propriedade de terras no país, e inclusive demarcar terras para os índios. Porém um mês depois, em 21 de outubro de 1850, pela Decisão nº 172, o governo imperial permitia às províncias recuperar para si as terras de aldeamentos indígenas que fossem considerados civilizados, ou não estivessem mais vivendo como índios, e sim confundidos com a população civilizada (Coelho 1990: 108-9). Barreto Júnior cumpriu sua mais importante tarefa de diretor geral dos índios ao não fazer nada ou mesmo tornar difícil e inviável o trabalho de reconhecimento e demarcação das terras indígenas das diretorias parciais e até daquelas que eram constituídas por doações de sesmarias, como a dos índios de Anadia, Priá, Pastos Bons, Brejo dos Anapurus, Pinheiro, Monção e São José de Ribamar do Lugar dos índios, ou eram reconhecidas como indígenas de longa data, como aquelas que haviam sido antigos aldeamentos jesuíticos, Vinhais, São Miguel de Lapa e Pias, São Simão, e Tutóia. O seu trabalho, afinal, foi de facilitar o desapoderamento das terras dos seus legítimos donos, inclusive dos Tenetehara que viviam em Monção ainda como índios e com terras doadas em sesmaria em 1820 (Coelho 1990: 112-3, 116). Apenas as terras dos índios de São José de Ribamar do Lugar dos Índios e de Pinheiro iriam ser revalidadas no tempo de vigência da Lei das Terras, para serem consideradas devolutas no final da década de 1880. Enfim, nenhuma terra de índios no Maranhão, inclusive daqueles que viviam autonomamente, longe de vilas, como os Tenetehara e os vários grupos Timbira, seriam efetivamente asseguradas aos índios durante o período imperial.

Das quatorze diretorias parciais em funcionamento por volta de 1858, sete tratavam prioritariamente dos Tenetehara (Relatório do Diretor Geral, 1858: 155). O sistema se expandiu na década de 1870 e em 1884 ainda estavam se criando novas diretorias parciais. Em 1887 (Relatório do Diretor Geral 1887: 40-47), já eram 24 as diretorias parciais, das quais 14 cuidavam de Tenetehara, número que, acrescido de mais uma a ser criado pela divisão da diretoria do Gurupi, iria permanecer até o último ano de que se tem relatório do diretório geral dos índios, 1892. Assim, pode-se dizer que o sistema, ao final, cobriu quase todos os índios não domesticados do Maranhão, criando um quadro de conhecimento das terras e dos modos de vida de todos eles.

O sistema de diretorias parciais, em termos práticos e até legais, funcionava nos moldes do relacionamento patrão-freguês. Os diretores parciais dirigiam as aldeias conforme seu alvitre e conveniência, precisamente porque é o que era esperado deles pela tradição, podemos dizer até, pombalina. Em geral, eram comerciantes ou fazendeiros com experiência de lidar com índios. O cargo de diretor, embora não remunerado, não era de todo desprezível na política interiorana, certamente porque permitia algum controle sobre uma mão-de-obra barata, sobre alguns produtos de valor comercial e, obviamente, sobre terras. Freqüentemente havia disputas pelo cargo. Porém, mais vontade de poder tinha o diretor geral, que mesmo de longe mantinha controle sobre o que se passava nas aldeias, exigindo relatórios escritos ou informes ao vivo, fazendo com que os diretores parciais viessem até a capital para o informar dos acontecimentos. Até para mudar aldeias de um lugar para outro os índios tinham que ter a permissão do diretor geral (Relatórios do Presidente da Província, 1854, 1856).

Durante o período em questão, não há indicação de que nas diretorias parciais tivesse havido qualquer educação formal, ou melhor, instrução nas letras, para os índios. Porém houve em pelo menos duas colônias indígenas a partir de meados de 1870. No relatório do diretor geral dos índios de 1890 , constava que havia cerca de dezessete índios Tenetehara alfabetizados na Colônia Dous Braços, perto de Barra do Corda, e uns poucos na Colônia Aratauhy Grande, perto de Vitória do Mearim. Isso se deveu à presença de dois ou talvez mais missionários capuchinhos que haviam sido por alguns anos diretores dessas colônias .

Economicamente, como na administração das vilas e lugares do tempo pombalino, a diretoria parcial deveria se auto-sustentar com base na produção indígena. Essa produção deveria ser levada para ser vendida em São Luís, e contabilizada pela diretoria geral, sendo o saldo, deduzidas as despesas, depositado no Tesouro provincial, de onde poderia ser retirado para comprar produtos do interesse dos índios. Muitos ofícios e correspondência entre diretores parciais e o diretor geral, bem como este e o presidente da província, constatam que tal procedimento foi efetivamente realizado pelo menos para algumas diretorias parciais e colônias indígenas . Porém, sente-se, igualmente, que isto só ocorria em grandes lotes de produção indígena, como algodão, farinha, ou óleo de copaíba. No mais das vezes era o diretor parcial que realizava a venda, deduzia despesas e usava o saldo para comprar implementos agrícolas e produtos manufaturados para os índios. Nesse sentido, o sistema funcionou como meio de exploração da mão-de-obra indígena. Com efeito, a maior parte dos diretores parciais se comportava como verdadeiros patrões dos índios, envolvidos que estavam na economia de troca local. A diretoria parcial era gerida como um negócio privado que raramente era desafiado, a não ser por pretendentes ao cargo. Em todo caso, quando havia fiscalização de uma diretoria parcial e um relato era enviado para as autoridades provinciais, acusações de aproveitamento do trabalho indígena figurava como retórica de rival, pois a exploração inelutavelmente voltaria a ocorrer, como veremos no exemplo a seguir. Ocasionalmente eram feitas doações de bens por ordem e verbas dadas pelo diretor geral.

A partir de meados do século XIX, índios Tenetehara começaram a ir espontaneamente a São Luís para reivindicar algum direito, pedir providência contra alguém que o tivesse feito mal, e ganhar presentes . Aliás, esse era um velho costume, dos tempos coloniais, quando existia a figura do procurador dos índios para atender esses casos. Um velho Tenetehara me contou, na década de 1970, fazendo graça da ingenuidade dos índios no passado, que a primeira vez que uns índios foram a São Luís trouxeram chapéus e panelas de ferro e ao se exibir perante os demais um deles pusera a panela na cabeça pensando que também era chapéu. Com efeito, segundo o presidente da província em relatório do ano de 1867, alguns índios da região do riacho Buriticupu vieram ao palácio do governo em São Luís, e foram atendidos nos seus reclamos. Com isso, o presidente considerava que havia conquistado ótimos aliados indígenas naquela região.

Paralelo ao sistema de diretoria parcial, mas funcionando como parte da política indigenista estabelecida no Regimento das Missões e regulamentada igualmente por legislação provincial , o governo provincial do Maranhão criou, ao longo desse período, várias colônias, tanto para índios como para imigrantes brasileiros. O propósito dessas colônias parecia ser mais ambicioso, como se fosse uma etapa à frente das diretorias, no processo de integração do índio à sociedade regional. As colônias pretendiam formar comunidades de índios-camponeses para povoar e colonizar uma determinada área, assim como vincular esta mesma área econômica e politicamente ao governo provincial. Para isso havia mais disposição de investimento e interesse por parte do governo. As colônias recebiam crédito orçamentário, que previa o ressarcimento das despesas de seu diretor e o pagamento de alguns artífices, como carpinteiros e marceneiros, bem como verba para fazer doações de implementos agrícolas e sementes. De início o diretor teria direito a 10% sobre a renda líquida da colônia, mas essa disposição foi revogada em 1855 para evitar o abuso comercial inerente. Nas colônias indígenas, o diretor era freqüentemente um padre missionário ou um homem mais letrado e proeminente da cidade mais próxima.

Colônia São Pedro do Pindaré

Em 1840, uma aldeia tenetehara foi organizada como a primeira colônia indígena do Maranhão, ganhando o nome de São Pedro do Pindaré. Localizava-se à margem direita do rio Pindaré, a cerca de 48 quilômetros a montante da vila de Monção, confronte a antiga fazenda Camacaoca, considerada na década de 1820 como o último local de presença de civilizados no rio Pindaré. Seu organizador foi o tenente-coronel Fernando Luiz Ferreira, enviado pelo governo provisório do coronel Luiz Alves de Lima e Silva, então chefe das tropas imperiais que combatiam a rebelião dos Balaios, cujos participantes, negros escravos e livres e caboclos e índios do leste maranhense, ameaçavam estender o campo de batalha para o rio Pindaré e adiante. O tenente-coronel fora primeiro a Viana, onde dispersara um início de levante, e depois subira o rio Pindaré para adiante da vila de Monção, onde fizera o reconhecimento da população, e após escolher um local apropriado determinara as primeiras medidas para a instalação da colônia indígena. Lá, certamente, devia haver aldeias tenetehara permanentes, porém era uma região por onde também transitavam índios Timbira autônomos. As aldeias tenetehara deviam ser pequenas e serviam de entreposto para os Tenetehara do alto Pindaré que já começavam a descer o rio para fazer negócio em Monção. A colônia começou com uma aldeia com “cento e tantos” índios (Ferreira 1842). Com o apoio do governo provincial, o tenente-coronel Ferreira efetivou a compra de duas léguas em quadra (174 Km2) das terras de um cidadão de Monção, por dois contos de réis, para legalizar a área da nova colônia (Marques 1970: 206). Terras caras para uma região onde não havia civilizados. De todo modo, o modelo de duas léguas em quadra parece ter sido o padrão que se supunha ser justo e adequado para os índios durante todo o período em questão, pois vai se repetir nas poucas vezes em que se tentou delimitar terras para os índios. Surpreendentemente esse padrão vai continuar pelo século seguinte, como veremos no capítulo que discutirá a atuação da política indigenista republicana.

No relatório que o tenente-coronel Ferreira escreveu, provavelmente ao coronel Luiz Alves de Lima e Silva, pediu a presença de um missionário para catequizar e uma escola para educar os índios. Referiu-se, e condenou, o costume local, sancionado por ato executivo da província em 1822 (Coelho 1990: 91), de particulares retirarem índios ainda crianças das aldeias para criá-los em suas casas, argumentando não ser esta a forma de ajudar uma tribo a se civilizar. Ao invés disto, propunha que alguns jovens índios fossem levados para serem educados na cidade, não especificando de que forma, e depois trazidos de volta para influenciar o restante da tribo. É de se supor que o diferencial na sua proposta devia ser o treinamento em algum tipo de ofício. A pequena descrição que Ferreira fez das “tendências culturais” dos Tenetehara demonstra uma sensibilidade e simpatia surpreendentes para um militar da época, o que indica que ele tinha contato com os intelectuais do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, como de fato veio a pertencer na década seguinte. Exprimiu ainda particular interesse pela “cooperação mútua” com que os Tenetehara conduziam suas transações econômicas. Elogiou o chefe da aldeia por ser trabalhador e servir de exemplo aos seus companheiros, lamentando a sua morte no período em que lá estivera.

São Pedro do Pindaré parece, assim, ter começado em nota alta e com bons propósitos, mas não teve o sucesso que se esperava de uma colônia indígena tenetehara. Não na visão de diversos diretores gerais dos índios e do historiador maranhense Augusto César Marques (1970: 205), os quais, desde 1850, freqüentemente a descrevem como estando em “decadência.” Aparentemente a razão para essa decadência estava na diminuição dos índios e na sua pouca produção econômica . Seu primeiro diretor foi o padre Antonio Bento da Costa Curtinhas, que parece ter agregado até 200 Tenetehara, mas foi destituído em 1842 (Coelho 1990: 146). Em 1848 a Colônia contava 174 índios Tenetehara; um ano depois esse número tinha caído para 120 índios, aí somando-se cerca de 25 índios Mateiros, de 36 que haviam sido enviados pelas forças que haviam subjugado sua aldeia localizada nas ribeiras do rio Itapecuru, cuja maioria (no total eram 111) havia sido enviada a São Luís (Coelho 1990: 146-7, 192). O hábito de agregar outras etnias a essa colônia, bem como à futura Colônia Januária, continuou nos anos seguintes, especialmente membros de grupos Timbira ainda autônomos que tinham suas terras entre os rios Grajaú e Turiaçu .

Em 1850 a população da Colônia consistia de apenas 86 Tenetehara, sendo que os Timbira Mateiros haviam fugido. Em 1853 havia subido para 130. O relatório do presidente Eduardo Olímpio Machado, em novembro de 1853, demonstra confiança no trabalho do diretor da colônia e uma certa esperança de que a colônia estivesse progredindo. Além de coletar óleo de copaíba e serrar tábuas, os índios tinham quatro grandes roças que serviam para seu auto-sustento e onde também plantavam café. Em 1861 foram contados 76 índios; em 1870 a população caíra para 44; e em 1881 havia somente 24 índios na colônia . De fato, os relatórios indicam que muitos índios morriam e outros iam sendo cooptados a viver como caboclos. É certo também que diversas famílias Tenetehara e Timbira se retiraram da colônia, fosse com o intuito de voltar a viver em suas aldeias, fosse para ficar em contato com a sociedade regional sem a supervisão oficial. A proximidade dessa colônia com a vila de Monção, que passou a crescer na década de 1860, favorecia a entrada de regatões e madeireiros, alguns dos quais entravam em conflito com os diretores, tornando-se necessária a intervenção do diretor geral (Coelho 1990: 151).

A Colônia São Pedro do Pindaré teve ao longo de seus 40 anos de existência diversos diretores, alguns religiosos, os demais fazendeiros e comerciantes de Monção. Talvez o que mais tempo tenha passado em sua direção tenha sido o missionário capuchinho Frei Peregrino de Pezzaro, que lá esteve entre os anos de 1870 e 1876, quando a fama de decadência já era corriqueira nos escritos dos presidentes de província a respeito da colônia. Frei Peregrino viera da Itália e ficou por alguns anos responsável também pela Colônia Januária. Em 1873, ele provocou a antipatia de alguns cidadãos de Monção que dele deram parte ao diretor geral dos índios e conseguiram publicar um artigo de acusações no jornal “O País”, em 1/5/1873. O diretor geral considerou infundadas tais acusações .

O relatório do diretor geral de 22 de dezembro de 1882 já não menciona a colônia São Pedro do Pindaré. Ela fora extinta de vez no começo do ano anterior, quando devia ainda haver talvez umas seis ou sete famílias de índios. Foi uma extinção por decreto. Os índios foram considerados “dispersos entre a população civilizada” e, conforme a Decisão nº 172 de 1850, suas terras foram passadas para o domínio público. Logo em seguida, essas terras foram transferidas para a Companhia Progresso Agrícola, uma empresa de capital aberto criada em São Luís para estabelecer um engenho central de fabricação de açúcar na região, contando com a expectativa de expansão do cultivo de grandes fazendas de cana-de-açúcar. Com efeito, já no início da década de 1860, havia no município de Monção uma substancial lavoura de cana-de-açúcar a qual era processada pelo braço de 1.070 escravos em cerca de 21 engenhos. A população do Pindaré, naquela década, chegava a 6.400 pessoas, das quais 4.200 eram escravos, sem contar os índios (Mattos, 1862: 74). O engenho central, um enorme edifício de alvenaria com uma grande chaminé, foi construído à beira do rio Pindaré, onde antes ficava a sede da Colônia. Com muito esforço e grandes dificuldades, inclusive de falta de capital, nos anos seguintes foi construída uma estrada de ferro com quatorze quilômetros de extensão ligando o engenho a um porto de escoamento na baía de São Marcos, augurando o desenvolvimento da região . Porém, todo esse investimento foi em vão. Pelo começo do século a estrada não mais funcionava, o cultivo de cana nunca alcançara níveis razoáveis de produtividade e o vale do Pindaré caiu na estagnação pelos anos afora (Lopes 1970: 135).

Colônia Januária

Em 1854, uma segunda colônia, que recebeu o nome de Januária, foi estabelecida para os Tenetehara que viviam no médio curso do Pindaré. A colônia foi localizada na beira do rio Caru, precisamente a alguns metros de sua desembocadura no Pindaré, num alto onde hoje se situa o povoado Novo Caru. Lá, um ano antes, e com o propósito de ampliar a atuação da colônia São Pedro do Pindaré, o diretor havia estabelecido uma aldeia, de nome Caititu, para atrair índios Tenetehara e os conectar com os seus irmão a jusante . Seu primeiro diretor foi o padre Antonio Raymundo Valle e Souza, que tomou as primeiras providências de instalação, inclusive a contratação de um intérprete, um oficial de carpina (carpinteiro) e um ferreiro. Segundo o relatório de um dos seus primeiros diretores, em 1856, o frade redentorista Carlos Winckler, foram encontrados por lá restos de diversos itens de parafernália de missão, tais como castiçais de latão, o que indica que fora sítio da primeira localização da missão do Carará, por volta de 1728, antes de ser transferida rio abaixo.

A região, portanto, era parte do território tradicional dos Tenetehara e ao seu redor vivia uma quantidade estimada em anos posteriores em cerca de 1.200 índios. O estabelecimento da colônia, naquele local, se deveu não somente à presença maciça de índios e ao bom clima que lá prevalece, quase sem mosquitos mesmo no tempo das águas (porém menos piscoso que o rio Pindaré), mas sobretudo porque lá havia se refugiado uma ponderável quantidade de brasileiros, “paraenses”, que haviam participado da Rebelião da Cabanagem (1835-41) e que não pareciam confiáveis ao governo provincial. Nesse sentido o presidente da província da época, Eduardo Olímpio Machado, seguia a recomendação do diretor geral dos índios, Barreto Júnior, exposta desde o relatório de 1850 (Barreto Júnior 1850). Aliás, durante a década de 1850, as diretorias parciais foram criadas no Maranhão motivadas parcialmente por uma questão estratégica de geopolítica, não necessariamente pela maior ou menor densidade de índios.

A sede da Colônia Januária permaneceu com uma população pequena, porém estável, entre 80 e 130 pessoas, até o fim do período monárquico. Em alguns anos sua população aumentava com a entrada de índios Timbira que, ainda arredios, eram atraídos e convocados a se arrancharem nessa colônia ou na de São Pedro. Mas logo escapuliam de volta aos matos. O Padre Winckler não demorou mais do que alguns meses em Januária, tendo se transferido no fim de 1856 para a Colônia Leopoldina, criada na mesma época para índios Timbira Krejé e Pykobye (Crenzés e Pobzés) que foram se concentrando na beira do rio Mearim, perto de um sítio que mais tarde virou a cidade de Bacabal. Seus substitutos foram os padres Joaquim Bernardino Pereira, que logo se afastou e Cazimiro Zanine, que foi acusado de maus tratos aos índios, saindo em 1859. A ele se seguiram diversos diretores, sempre por pouco tempo. Em março de 1872 chegou o frade capuchinho José Maria de Loro, que um ano mais tarde iria se estabelecer na Colônia Dous Braços, em Barra do Corda. Seu substituto foi o Frei Peregrino de Pezzaro, que olhou pela Colônia por alguns anos, junto com seu trabalho na Colônia São Pedro, dando-lhe alguma estabilidade. Nos anos seguintes novos diretores leigos vão sendo nomeados e demitidos, algumas confusões acontecem entre índios Tenetehara e os Timbira que por lá aparecem, ou os descendentes dos Mateiros enviados na década de 1850. Os diretores parecem se interessar tão somente pelos assuntos econômicos, especialmente as remessas de gêneros alimentícios, óleo de mamona e copaíba.

De todo modo, a influência dos dirigentes da Colônia Januária englobava mais do que a população da colônia, incluindo as aldeias do rio Caru e muitas vezes aquelas do médio e alto Pindaré, sobretudo as localizadas na área das diretorias parciais Ilhinha e Camacaoca, que iam, de um e outro lado do rio Pindaré, até o lugar Boa Vista. Camacaoca fora criada em 1854 para os índios Timbira, mas nunca funcionara efetivamente porque esses índios nunca se aldearam por perto; já Ilhinha fora instituída em 1873, tendo cerca de 660 Tenetehara naquela ocasião. Por esse tempo crescia o número de imigrantes brasileiros que subiam o Pindaré e se estabeleciam em moradas e povoados por lá. Boa Vista, a cerca de 30 quilômetros a montante da confluência do rio Caru, havia se tornado um pequeno povoado, pois tinha até engenho de cana. Cinqüenta quilômetros mais acima ficava Sapucaia, certamente um povoado mais denso e importante, formado tanto por imigrantes que subiam o rio Pindaré quanto pelos que vinham pelo lado sul, do cerrado grajauense.

Colônia Aratauhy Grande

Na década de 1870 três novas colônias iriam ser estabelecidas para os índios do Maranhão, todas para os Tenetehara. Aratauhy Grande, Palmeira Torta e Dous Braços foram instaladas em 1870-73, com respectivamente 150, 517 e 149 índios Tenetehara (Relatório do Presidente 1881: 109). As duas primeiras se localizavam no rio Grajaú, a terceira no alto Mearim.

A Colônia Aratauhy Grande foi criada numa aldeia tenetehara que tinha influência sobre mais três ou quatro aldeias que se localizavam na beira do rio Grajaú, a poucos quilômetros da sua foz com o rio Mearim. Descendo o rio um pouco mais se localizava o povoado de Mearim, mais tarde Vitória do Mearim, que começava a se tornar um centro de passagem de viajantes que subiam esses dois rios vindos de São Luís. Antes de ser colônia já era uma diretoria parcial, chamada “Foz do Grajaú”, cujo diretor era um membro da família Bogea, a qual iria se especializar em manter controle da mão-de-obra tenetehara pelos anos seguintes. Uma vez colônia, seu primeiro diretor foi Antônio Bogea.

Nas ocasiões em que missionários capuchinhos foram seus diretores é provável que algum esforço tenha sido feito para prover instrução catequética e o ensino de letras. Porém, nunca quando eram fazendeiros ou comerciantes da região, e o certo é que nenhum relatório menciona qualquer interesse em instruir os índios com alguma “arte da civilização”.

Os relatórios dos diretores gerais que se encontram no Arquivo Público do Maranhão, que serviram de base aos relatórios dos presidentes da província, são pouco informativos a respeito de como eram administradas essas colônias, ainda que os Tenetehara sejam sempre citados como índios com “grande disposição” para o trabalho e com modos e propenções a se tornarem civilizados . A colônia de São Pedro, por exemplo, que em 1856 era habitada por 119 Tenetehara, contava com um ferreiro e um carpinteiro (aparentemente não Tenetehara), ao lado de quem seis homens Tenetehara trabalhavam no corte e serragem de madeira para vender na cidade que estava se formando nas proximidades da colônia (Relatório do Presidente 1856). Os demais habitantes faziam roça de mandioca, arroz, milho e se engajavam na cata de mamona e produção de óleo para vender. Em outras colônias, os Tenetehara se ocupavam da coleta e venda de óleo de copaíba (relatórios de presidentes, anos 1855, 1867, 1883), no fabrico e venda de farinha de mandioca às populações locais e trabalhando na construção de estradas (Relatório do Presidente, 1856: 68).

Pode-se avaliar, através das informações claras que transparecem no Relatório do Presidente de 1866, o quão insuficientemente o governo provincial, através do diretor geral dos índios, fiscalizava a economia dessas colônias. Consta neste relatório que a Colônia Leopoldina (localizada no médio rio Mearim e que era constituída de Timbiras Crenzés e Pobzés) enviara 32 sacas de algodão, em novembro de 1865, e mais 16 sacas, em fevereiro de 1866, para o diretor geral, em São Luís. O algodão fora vendido e da renda resultante foram abatidos os gastos realizados para prover a colônia de certos bens não especificados, restando um saldo de 1:175$217, o qual fora “recolhido pelo Tesouro da província”. Nada parece ter retornado aos índios. Assim, do ponto de vista estritamente econômico, o sistema que operava nas colônias terminava se assemelhando ao sistema jesuítico da economia de servidão. Numa economia baseada na fazenda de escravos, de alguma forma sempre em expansão, como foi o caso do Maranhão até a década de 1870, esse sistema de patronagem beirando a servidão parecia anacrônico e fadado ao fracasso. Consequentemente, não é de surpreender que os índios preferissem lidar diretamente com comerciantes e pequenos fazendeiros como patrões, de quem pelo menos podiam esperar mais proximidade e alguma segurança nas transações econômicas.

Expansão demográfica e territorial

Desde o primeiro relatório feito por um diretor geral dos índios (1850), bem como os dados fornecidos pelo visitante alemão Franz Plagge (1858) fica evidente que os Tenetehara haviam se expandido para regiões muito além de seu habitat primordial no alto Pindaré. Haviam penetrado, inclusive, uma nova zona ecológica, a mata de transição. É provável que a migração tenetehara tenha começado desde as últimas décadas do século XVIII, se deslocando para várias direções. Primeiro, do alto Pindaré para o rio Gurupi, o qual ocuparam em quase todo sua extensão até o seu curso baixo, onde viviam quilombos negros. Segundo, do médio Pindaré para o leste e daí para o baixo Grajaú, como se pode inferir das informações de Lago (1872: 413, 421) e Paula Ribeiro (1841: 194), e, em seguida, subindo esse rio e passando para a bacia do rio Mearim. Terceiro, do alto Pindaré, via o riacho Buriticupu para o riacho Zutiua e daí mais para leste para o alto Grajaú.

A migração dos Tenetehara se deu primordialmente em virtude do crescimento demográfico ocasionado pelos quase 80 anos de isolamento que experimentaram desde a saída dos jesuítas. Sua expansão para outras regiões não desabitou as áreas onde já viviam. Culturalmente ela se operou por intermédio de grupos de famílias que, em números pequenos de 30 a 40 pessoas, se deslocavam para outras paragens, a oeste para lugares mais abundantes em árvores de copaíba, e a leste para perto de habitações de imigrantes brasileiros. Mesmo separados de suas matrizes, essas novas aldeias eram capazes de manter todos os traços e elementos socioculturais essenciais para a preservação do modo de vida e da cultura tenetehara (Wagley e Galvão 1949).

Talvez o principal motivador dessa migração tenha sido o desejo dos Tenetehara de estabelecer relações econômicas com brasileiros. Durante o período jesuítico os Tenetehara tinham meios de obter ferramentas, particularmente machados e facões, com os quais haviam se acostumado no uso cotidiano. No intervalo desse isolamento, esses instrumentos foram ficando cada vez mais raros e a vida mais difícil. Com a derrocada dos Timbira e Gamela do baixo Pindaré e Grajaú, cujas aldeias foram ficando cada vez menores e menos capazes de defender seus territórios, o campo ficou aberto para a aproximação dos Tenetehara aos novos colonos com o intuito de adquirir os preciosos bens de que careciam. Os Tenetehara capitalizaram esta situação de vazio demográfico em seu proveito e progressivamente iniciaram sua mudança rio Grajaú acima.

Tão rapidamente foi a migração e com tal determinado propósito ela se deu que, já década de 1840, grupos tenetehara haviam alcançado a região controlada economicamente pela nascente vila de Missão da Barra do Corda, fundada em 1839, na embocadura do rio Corda no alto rio Mearim, e da vila da Chapada, depois Grajaú, fundada na década de 1810, mas colonizada efetivamente somente após 1820, no alto rio Grajaú.

Ao mesmo tempo em que migravam na direção daquela região de fronteira agropastoril, os Tenetehara também migravam rumo oeste, no sentido do rio Gurupi e além para o Pará, uma região rica em árvores copaibeiras, cujo óleo de copaíba, retirado do seu âmago, começou a ter valor comercial a partir da década de 1850 (Dodt 1981 [1873]: 81). Essas migrações simultâneas só poderiam ser realizadas se os Tenetehara tivessem uma população razoavelmente numerosa, talvez algo como 8.000 a 10.000 pessoas vivendo no alto Pindaré por volta de 1800, e em crescimento. É possível dizer, então, que os Tenetehara haviam reabilitado as condições para seu crescimento demográfico e estavam próximos do seu número populacional original.

Populações Indígenas

É importante notar que, enquanto os Timbira e outros povos indígenas perdiam população desde o início do século XIX, os Tenetehara continuaram a crescer e se expandir. Isto se deu até a década de 1870, quando os Tenetehara somariam mais de 12.000 indivíduos. Na ocasião, segundo o engenheiro Gustavo Dodt (op. cit.: 86) havia no curso do rio Gurupi cerca de 6.000 índios Tenetehara, a quem ele designou com o nome “Timbé.” Ademais, calculava em mais 3.000 Tenetehara vivendo entre os rios Pindaré, a leste, e o rio Capim, a oeste, para uma população total de 9.000 Tenetehara. Na verdade, Dodt calcula esse número com base num índice de seis indivíduos por família, sendo o número de famílias estimado em 1.500, índice que nos parece exagerado; talvez o número de cinco indivíduos por família reflita uma situação mais aproximada. De todo modo, a validade desses números se prende à própria permanência do engenheiro na região durante seis meses, bem como, certamente, à ajuda que lhe foi prestada pelo diretor parcial da 18ª diretoria parcial dos índios, um senhor Cesário Augusto de Noronha, sobre quem Dodt tece muito elogios, mesmo reconhecendo-o como o principal regatão dos índios .

Se supormos que a população Tenetehara da região de Barra do Corda-Grajaú, se não crescera ao menos se estabilizara no nível da década de 1850, teríamos um número adicional de 1.000 índios. Somando, por fim, os cerca de 1.000 Tenetehara no rio Grajaú e mais uns 1.000 nos riachos Zutiua e Buriticupu, temos uma população de cerca de 12.000 Tenetehara. Creio que esta foi a maior população tenetehara até então – só sendo ultrapassada nos dias atuais. Estimo que essa população passaria a diminuir na década seguinte, especialmente na região do rio Gurupi, onde ela vai cair para cerca de 2.500 em 1887 e daí para números cada vez mais baixos, como veremos no capítulo seguinte. O penúltimo relatório do diretor geral dos índios (Relatório do Diretor Geral 1887: 40-47) dá um total de 25.000 para toda a população indígena do Maranhão, incluindo as várias etnias Timbira e um desconhecido número de índios autônomos, sem contato. Talvez este não fosse um número exagerado, mas os Tenetehara constituíam, sem dúvida, o contingente mais numeroso.

Essa população pode ser contrastada com a que foi estimada pelos naturalistas Spix and Martius, na segunda década do século XIX, com base em dados fornecidos pelo major Francisco de Paula Ribeiro. A estimativa desse experiente militar era de havia no Maranhão por volta de 80.000 índios “selvagens,” isto é, aqueles que não viviam sob o controle de civilizados, o que significava as tantas etnias Timbira, Acroá e Tenetehara que ele não chegara a conhecer mas supora existir. Spix and Martius adicionava sobre esse número sua própria estimativa de 9.000 índios aldeados (Spix and Martius 1938: 462 e 463). A maioria desses índios “selvagens” eram Timbira, que iriam sofrer uma grande queda populacional por guerras, assaltos e epidemias, no intervalo entre 1810 e 1890. Considerando somente o período que vai até 1870, quando Marques (1970: 194) publicou a primeira edição de seu livro, ocorreram surtos de varíola nos anos de 1836, 1840-42, 1846 e 1855 e de sarampo em 1839. Segundo o médico e escritor Antônio Henriques Leal, houve uma epidemia de gripe muito forte em São Luís, em 1849, a qual se espalhou e fez estragos por todo o Maranhão .

Territórios Indígenas

Em termos de território, os Tenetehara habitavam, a oeste, vastas áreas ao longo dos rios Gurupi, Guamá e Capim, no Pará; o centro do seu território tradicional, o alto e médio Pindaré, incluindo o rio Caru; a leste, as terras margeadas pelos rios Buriticupu e Zutiua, afluentes do Pindaré; e daí para leste e sudeste por toda a extensão do rio Grajaú e o alto Mearim. As terras banhadas pelo rio Mearim e alto Grajaú fazem parte da zona ecológica da floresta de transição, enquanto as demais se encontram nos limites da floresta amazônica. Todas essas terras estavam apenas esparsamente povoadas por brasileiros, com exceção do baixo Pindaré e trechos do alto Mearim, onde novos imigrantes iam se estabelecendo e criando povoados, uns poucos dos quais se transformavam em vilas, as quais atraíam mais imigrantes. Nesses arredores, os Tenetehara mantinham um relacionamento mais próximo com brasileiros, com quem se engajavam através das economia de troca de produtos agrícolas ou de extração. Nas regiões mais isoladas, ainda sem povoamentos de imigrantes, quase todas pertencentes à zona ecológica da floresta amazônica, a economia de troca se operava pela extração e venda do óleo de copaíba e de peles silvestres, negociados com regatões que em canoas subiam os rios e visitavam as aldeias tenetehara.

Tenetehara, índios e negros

Durante seu movimento expansionista, os Tenetehara tiveram que enfrentar e se defender da animosidade de diversos povos indígenas, acima de todos os Timbira. É claro que se as diversas etnias Timbira não houvessem sofrido os ataques de tropas de guerra defensiva e ofensiva, desde o fim do século XVIII, muito provavelmente os Tenetehara não teriam sido capazes de penetrar em seus territórios com o sucesso que tiveram. Isto por um motivo principal: as etnias Timbira se constituem em uma forma de organização social que arregimenta o comportamento agressivo contra estranhos de uma forma mais sistemática (Nimuendaju 1946; Maybury-Lewis 1974) do que na sociedade tenetehara. Os Tenetehara tradicionalmente viviam em aldeias relativamente pequenas - raramente ultrapassando 200 habitantes - e se organizavam por grupos familiares extensos, frouxamente estruturados, sem ideologia de alianças formais entre aldeias que pudessem lhes ensejar uma força de agressão tão forte como a das aldeias timbira - as quais tradicionalmente podiam chegar a mais de 1.000 habitantes.

Entretanto, em meados do século XIX, vivendo em constante estado de alerta, os Tenetehara organizaram suas aldeias de modo a poderem se defender contra possíveis ataques dos Timbira. Se o relato de um naturalista alemão, Franz Plagge (1857: 206), que visitou brevemente uma aldeia tenetehara na beira do rio Mearim, a umas duas léguas de Barra do Corda, for crível, a forma como fizeram isto parece ter sido através da organização de homens jovens e solteiros como grupo guerreiro. Plagge relata ter visto os jovens homens dormindo à noite fora de suas casas para proteger a aldeia de ataques de surpresa. É possível que uma associação de homens tenha funcionado naquela época, mas esta deixou de ser necessária após o declínio da agressão timbira, a partir do último quartel do século.

O condicionamento das relações hostis entre Tenetehara e Timbira resultou na desconfiança mútua que perdura até hoje, ainda que de forma progressivamente atenuada. De parte a parte contam-se histórias de refregas e escaramuças entre eles, onde as virtudes e sucessos estão sempre do lado dos contadores, enquanto os fracassos e demonstrações de covardia ou falta de esperteza ficam com os adversários. É provável que homens Tenetehara tenham sido usados nas últimas batalhas que os fazendeiros executaram contra os índios Gaviões e Krikati, por volta da década de 1870. O certo é que o último grande confronto entre eles se deu entre os Canela Ramkokamekra e os Tenetehara do alto Mearim, em 1901, e foi instigado por brasileiros, como veremos no capítulo VIII.

Nas regiões dos rios Pindaré e Gurupi, os Tenetehara tiveram dificuldades não apenas com as etnias Timbira e outros povos indígenas que lá viviam, como os Amanajós e Urubu-Ka’apor, mas também com os negros que fugiam da escravidão e se estabeleciam entre os rios Pindaré e Maracaçumé desde o início do século XIX. Esses ex-escravos formavam quilombos que sobreviveram durante muitos anos com o conhecimento da sociedade maranhense, trocando ouro que garimpavam dos riachos por ferramentas e panos. Porém seu principal quilombo acabou sendo destruído e a população desbaratada por uma expedição oficial, em 1853, porque constituía um marco de liberdade para os demais negros, além de controlar terras em que se suspeitava a existência de ouro (Marques 1970: 377).

Os Tenetehara chamam os negros por um termo especial pàrànà, que contrasta com o termo karaiw, utilizado para os outros brasileiros. Isto denota uma forma diferente de ver os negros, notadamente mais preconceituosa, o que não impediu casamentos mistos com negros. O termo àwà é usado como designativo para qualquer índio não Tenetehara. Todos estes termos tem conotações pejorativas, embora karaiw seja o cognato tupi de caraíba, que designava os portugueses e também significava “grande pajé”.

Na região do Gurupi, foram especialmente os índios Urubu-Ka’apor, que vinham migrando do oeste, desde a década de 1840, que arrefeceram o expansionismo tenetehara. Na década de 1870, suas aldeias estavam localizadas no território que fica entre as cabeceiras do rio Coaraci-Paraná, que desce no rio Capim, e as margens dos rios Uraim e Piriá, afluentes da margem esquerda do rio Gurupi. Suas correrias já eram notadas com alguma desconfiança, pois freqüentemente acertavam em alguém com flechas de ponta de ferro, mas ainda não eram causa para pânico generalizado, como viria a acontecer mais tarde no começo do século XX. Os Tenetehara-Tembé os iriam temer cada vez mais, na medida em que sua população começava a decair no Gurupi, enquanto os Tenetehara-Guajajara, do rio Pindaré, só iriam sofrer a força de sua agressividade quando suas aldeias já se situavam no lado maranhense do rio Gurupi. Essa agressão aos Tenetehara culminou em 1918, quando atacaram a aldeia que servia de base ao posto indígena fundado em 1913 no alto Pindaré .

Outros índios com quem os Tenetehara tinham algum contato e relacionamento agressivo eram os índios Guajá, também um povo de fala tupi que vivia em pequenos bandos nômades em ambas as margens do rio Gurupi, já se deslocando para o alto Pindaré. Os Guajá, entretanto, eram presas fáceis para os Tenetehara e outros povos indígenas da região (Brusque 1862: 17; Huxley 1956: 94; Ribeiro 1994 e dados pessoais). Os índios Amanajós, ou Amanajé, também de fala tupi muito assemelhada à língua tenetehara, moravam no rio Cajuapara, formador do rio Gurupi, em três aldeias, num total de 300 a 400 índios, segundo Dodt (1981[1873]: 86). No passado haviam sido temíveis inimigos dos Tenetehara, mas já não mais adotavam qualquer forma de comportamento agressivo para com os mais numerosos Tembé do Gurupi. Por sua vez, os destemidos Timbira do rio Gurupi, ao se relacionarem com os Tenetehara, se tornaram mais mansos. Segundo o relato de Brusque (1862: 16), em 1862 havia uma aldeia timbira cujo chefe era de fato um homem Tembé. Aparentemente, uma etnia Timbira havia chegado ao Gurupi depois dos Tembé, vinda do leste, da região do rio Turiaçu, próxima ao baixo Pindaré, onde nas primeiras décadas do século XIX chegaram a atacar fazendas e povoados da região. Ao lado dos Tembé, eram por eles patronizados. Na década de 1850, outro grupo timbira, chamado Carajés (na realidade Kreyé), aí chegara vindo da região do rio Tocantins, de onde tiveram que fugir das ameaças de um ataque iminente de brasileiros locais (Dodt 1981: 175).

Economias de troca

Muitos dos regatões que tratavam com os Tenetehara do rio Gurupi tinham suas bases residenciais na vila de Vizeu ou no pequeno povoado de Carutapera, ambos situados no delta do rio; outros se deslocavam a partir de um povoado no igarapé Cajuapara, nas cabeceiras do rio Gurupi, de onde se conectavam com a vila de Imperatriz (Dodt 1981: 95-96; Brusque 1862: 15; Marques 1970: 178). Os que atendiam aos Tenetehara do alto Pindaré viviam em Monção ou Viana (Marques 1970: 398). Já os Tenetehara do alto Mearim e alto Grajaú negociavam com brasileiros de forma mais permanente, gente que vivia próximo a eles, na medida em que estavam envolvidos no comércio de produtos agrícolas, já que naquela região eram mais raros os bosquedos de copaibeiras. A vila de Barra do Corda foi o ponto central do relacionamento dos Tenetehara com os brasileiros do alto Mearim , e a vila da Chapada centralizava a atenção dos índios do médio e alto Grajaú e dos riachos Zutiua e Buriticupu, afluentes meridionais do Pindaré. Para os Tenetehara do baixo Grajaú, a vila do Mearim constituía seu referencial de relacionamento interétnico.

Esses dois tipos de economia de troca, uma com ênfase na produção extrativa, a outra focalizada em produtos agrícolas, vão produzir matizes diferentes da relação patrão-freguês, e vão produzir conseqüências igualmente distintas. As contabilidades dessas economias de troca serão analisadas mais detalhadamente a partir do capítulo X. É importante notar que elas ainda vão exercer poderosa influência no período posterior em que o governo federal, através do Serviço de Proteção aos índios, se fará mais presente.

A análise descritiva que o engenheiro Dodt faz dos Tenetehara e de suas relações com os regatões da região é bastante esclarecedora da economia de troca extrativa e pode ser generalizada para outras regiões nesse mesmo período. Estando no rio Gurupi em 1872, ele estimava que nos dez anos anteriores a média de produção de óleo de copaíba estivera por volta de 1.000 arrobas, tendo rendido 20 contos de réis, ao preço médio de 20$000 a arroba. Apesar da exploração a que eram submetidos os índios, Dodt considerava que a vida do regatão também era dura e cheia de infortúnios. O regatão também tinha um patrão que lhe fornecia crédito em dinheiro e em mercadoria. Com 500 a 800 mil réis, e se fosse mais sortudo, com 1.000 a 1.200 mil réis, o regatão enchia suas canoas de mercadoria e farinha de mandioca e tocava para as aldeias onde podia arregimentar mão-de-obra indígena para cortar copaibeiras. Preferivelmente isso devia se dar no mês de novembro, quando suas roças já estivessem feitas. Os índios ganhavam a farinha para poderem se alimentar e se mudavam com as famílias e todas suas tralhas para um local de copaibeiras. Caso tivesse sorte de achar muitas copaibeiras e não surgissem outros problemas, o regatão distribuía o resto de suas mercadorias, como pagamento ou como fiação, e se apressava em voltar carregado para ressarcir seu débito para com o patrão. No mais das vezes, falhava, e sobre o seu saldo negativo iriam correr juros por todo o ano seguinte, quando ele recomeçava sua faina na esperança de poder se acertar com seu patrão. Segundo Dodt, freqüentemente o regatão se dava mal e não conseguia saldar suas dívidas, e assim, fugindo de compromissos irremissíveis, abandonava o lugar onde negociava e ia tentar a sorte em outro.

“Vi naquelas paragens algumas pessoas que, negociando desta maneira
há mais de doze anos, hoje não possuem mais o menor crédito,
achando-se endividados em toda parte” (Dodt, ibid.: 96).

Dodt não analisou o drama que os índios passavam, mas deu a impressão de que eles podiam a qualquer momento desistir de um regatão, ou de uma tarefa, e mudar para outro, ou deixar de fazer o que se esperava deles, sem que, com isso, recebessem uma punição.

Dodt via os Tenetehara (Timbés, na sua grafia) do mesmo modo que os diretores parciais os viam, isto é, como sendo índios com maior disposição para se civilizar do que os Amanajós e Krejé. Os Tembé foram descritos como já andando vestidos, caçando de espingarda e não podendo prescindir de machados e facões. Em suas andanças a Vizeu, como tripulantes de canoas, alguns já faziam batizar seus filhos. Ao final de sua descrição do rio Gurupi, do comércio de óleo de copaíba e dos índios, Dodt pediu a atenção do governo para que esse comércio fosse organizado com mais racionalidade, sem cortar e destruir as copaibeiras, e sugeria que fosse proibida a “invasão daquelas terras devolutas pela plebe do sertão e livrando os índios de serem desfrutados pelos regatões” (ibid.: 99).

Uma das características da organização social tenetehara é a de que rixas entre famílias extensas, e mesmo intra-família, quando estas se tornam menos coesas, se resolvem geralmente com a saída de uma das famílias rivais. Na expectativa de partilhar da vida cultural dos regionais, essas famílias podem se mudar para perto de lugarejos ou mesmo de fazendas. Quando essa atração é menor, elas se mudam para outro local mais distante, criando uma extensão da aldeia, a qual, com a vinda de novas famílias, fundam uma nova aldeia. Fora assim que se dera a expansão dos Tenetehara e agora esse padrão ganhava novas forças de impulsão.

Na inexistência de razões culturais para a aculturação e assimilação ao campesinato brasileiro, as razões econômicas já não poderiam ser tão importantes como antes. De fato, exceto pela criação de gado, não havia nada que os camponeses fizessem em suas culturas agrícolas e com as técnicas de desmatamento e queima que fosse diferente do modo usado pelos Tenetehara. Seus respectivos modos de produção e conseqüentes níveis de produtividade eram, e ainda são, diferentes, é claro, devido à diferente divisão social do trabalho e aos diferentes incentivos culturais. Os camponeses brasileiros eram e são mais produtivos e geralmente possuem mais produtos manufaturados que os Tenetehara. Os Tenetehara podem aumentar a sua produtividade apenas através de uma reestruturação de suas unidades de produção, mas isto só é possível de ser realizado em tempos de florescimento econômico dos bens que eles podem produzir.

Portanto, o desejo dos Tenetehara de possuir bens manufaturados não é satisfeito na mesma medida que a dos camponeses, o que faz com que o modo de vida do camponês seja de certa forma sedutor para um Tenetehara ansioso. Por outro lado, as condições sociais dos camponeses, como no caso do lavrador que vive nas terras do fazendeiro e reparte o fruto de seu trabalho com o patrão, ou mesmo aquele que tem um pequeno pedaço de terra, mas depende de um patrão para lhe fornecer crédito, são inferiores às dos Tenetehara, que vivem em aldeias autônomas e são donos exclusivos dos produtos de seu trabalho. Os Tenetehara têm consciência desta vantagem político-econômica, ao passo que os camponeses são mais inclinados para a ilusão de sua superioridade social, justificada na identidade com a civilização, concretizada em suas casas de taipa tão raramente pintadas e geralmente infestadas de insetos, e abençoada no seu cristianismo barroco.

A região Grajaú-Barra do Corda

Em função das duas diferentes economias de troca e dos distintos e respectivos padrões de povoamento de brasileiros, a partir do último quartel do século XIX os Tenetehara vão desenvolvendo distintas formas de relacionamento com os brasileiros. Grosso modo, essas formas se correlacionam com duas regiões de coabitação: a região que podemos chamar de Grajaú-Barra do Corda e a região compreendida pelos rios Pindaré-Gurupi. Motivados pela necessidade imprescindível de ter ferramentas, como enxadas e machados e, sempre que possível, espingardas de vareta, pólvora, chumbo, sal e vestimentas, os Tenetehara buscavam o contato com brasileiros para negociar. No Pindaré-Gurupi, essas mercadorias eram adquiridas em troca de produtos extrativos florestais de significativo valor comercial. Na região de Grajaú-Barra do Corda, entretanto, seus produtos de troca vinham da agricultura, especialmente o algodão, o arroz e a mandioca, que alcançavam algum valor comercial recompensador em certos anos. Apesar de esta ser região de criação de gado, pelo fato de estar na orla da zona de chapadas e florestas de galeria, os Tenetehara não tentaram mudar seu modo de produção para incluir a pecuária. Embora mais povoada e “civilizada”, a região de Grajaú-Barra do Corda era paradoxalmente de difícil acesso a São Luís, apresentando uma infra-estrutura ainda muito pobre para fomentar o desenvolvimento agrícola e o comércio.

Os obstáculos naturais do rio Mearim que impediam a passagem de lanchas a motor foram removidos por volta da década de 1860, mas a viagem continuou a ser muito custosa por muitos anos. Em 1897 levava-se até 15 dias para se viajar de São Luís a Barra do Corda (Arquivo da Cúria 1894/1901). Na década de 1850, fora construída, praticamente com mão-de-obra tenetehara, uma estrada que ligava Barra do Corda a Caxias, o entreposto dos negócios do algodão e gado, mas por volta de 1858 ela estava quase intransitável, precisando seriamente de conserto (Marques 1970: 106, 191). A situação de Grajaú era ainda pior, pois, se havia uma estrada que a ligava a Barra do Corda, tinha apenas trilhas de gado entre ela e outras cidades como Carolina, a oeste do rio Tocantins e outras mais ao sul.

Na verdade, de Grajaú, o meio mais fácil para chegar a São Luís era via uma estrada de boi, a falada estrada do sertão. Aberta em 1863 (Marques 1970: 180), ela partia da vila de Carolina, na beira do rio Tocantins, e seguia rumo norte, nordeste, até Monção. Fora construída passando muito ao largo de Grajaú, margeando o rio Buriticupu; mas na década seguinte foi refeita para seguir ao longo do riacho Zutiua. Quando da passagem da linha telegráfica, na década de 1910, essa estrada foi aproveitada e assim se consolidou na ligação entre as cidades de Grajaú e Pindaré-mirim. Outra via de acesso a São Luís era o próprio rio Grajaú, o qual, apesar de pouco profundo e cheio de corredeiras no verão, permitia a passagem de pequenos barcos de baixo calado, ou canoas, que eram puxadas a remo e empurradas a varas. Porém, descer e subir canoas carregadas de pessoas e mercadorias até Vitória do Mearim, alguns quilômetros a jusante do encontro desses dois rios, era sempre uma aventura de muitos custos. Provavelmente esse meio de transporte começou a ser utilizado nas duas últimas décadas do século XIX, porém só se tornou um meio de transporte rotineiro, na década de 1920, o que dá a entender que, nessa época, a região de Grajaú-Barra do Corda deveria estar experimentando um ímpeto econômico suficiente para vencer os riscos e garantir os lucros dos comerciantes e donos de canoas de Grajaú.

A região Pindaré-Gurupi

Ao longo do último quartel do século XIX, os Tenetehara do alto Pindaré e do Gurupi estavam engajados no comércio de óleo de copaíba e de outros produtos florestais de menor peso. De Monção, a ex-missão jesuítica do Acarará, o centro de comércio passou a ser a colônia de São Pedro, que foi se transformando em vila na medida em que os Tenetehara e Timbira que lá viviam iam sendo forçados a se integrar na economia regional e novos colonos lá chegavam vindos de outros estados. Após a Grande Seca de 1877-1880, como já foi mencionado, o governo provincial estabeleceu uma nova colônia - que ficou conhecida como Colônia Pimentel - para os retirantes cearenses, alguns quilômetros a montante. Em 1880, já havia bastante cana-de-açúcar plantada na área para justificar a instalação de um moderno engenho de cana movido a energia elétrica. A antiga colônia ganhou o nome de vila de Engenho Central, pelo qual ficou conhecido até muitos anos depois que passou a ser a cidade de Pindaré-mirim.

Durante este breve período de crescimento econômico, muita gente havia se mudado para Pindaré-mirim e passara a subir o rio Pindaré em busca de novas oportunidades de agricultura e de comércio com os índios Tenetehara. A Colônia Pimentel cresceu e se consolidou como o maior povoado a montante de Pindaré-mirim, e passou a ser a base dos regatões que subiam o Pindaré para negociar com os Tenetehara. Mais acima ainda, na confluência do rio Caru com o Pindaré, no local da Colônia Januária, começaram a se instalar grupos de famílias de retirantes, estabelecendo roças de subsistência e trocando bens com os índios. Porém, aparentemente, a decadência da economia regional pôs um fim à atração de novos colonos e à procura de produtos agrícolas, e o baixo preço do óleo de copaíba desmotivou a manutenção desses povoados. O povoado chamado Santa Cruz, localizada na boca do rio Caru iria se restringir a algumas poucas famílias e, por volta de 1913, se tornaria a sede de um posto indígena, desta vez criado pelo recém fundado Serviço de Proteção aos índios (SPI). Colônia Pimentel iria se manter como ponto de conecção até meados da década de 1950, quando novos povoados, como Santa Luz e Tifulândia, iriam sobrepujá-la.

Da mesma forma que o ocorrido na região de Grajaú-Barra do Corda, esse período de final de século ensejou uma profusão de relacionamentos interétnicos e conseqüentemente de mistura interracial. Os brasileiros que se mudavam para junto dos Tenetehara, desde a época que fugiam dos rescaldos das frustradas rebeliões da Balaiada e da Cabanagem, o faziam em termos amistosos porém impondo uma superioridade social ao entabular relações de compadrio e de matrimônio, ou concubinagem. Diversos dos informantes de Wagley e Galvão, em 1941-45, contavam entre seus ascendentes, pais ou avós brasileiros, muitos cearenses, que se haviam casado com mulheres Tenetehara e se tornado pessoas de importância na economia de troca local (Wagley 1942).

No rio Gurupi, os Tembé-Tenetehara, com uma população de cerca de 6.000 pessoas, em 1872, parecem ter vivido uma situação de transação econômica e miscigenação tão intensas que sua população decresceu progressivamente para 2.500 em 1890, cerca de 850 em meados da década de 1920, para menos de 300 habitantes em 1943 (SPI 1943:10, 47) e apenas 70 pessoas em 1950 . Em 1975 havia cerca de 100 Tembé-Tenetehara, quando desde então começaram a crescer, hoje chegando a mais de 200. Embora não tenhamos informações suficientemente claras para explicar esse fenômeno de depopulacionamento tenetehara, alguns fatores precisam ser mencionados como possíveis contribuintes. O primeiro é que, nas décadas finais do século XIX e iniciais do século XX, o rio Gurupi continuou a ser freqüentado por regatões em busca de óleo de copaíba, acrescidos então por garimpeiros em busca de ouro de aluvião. No início do século, uma companhia de mineração gerenciada por um dinamarquês conhecido por Guilherme Lund, intensificou esse relacionamento e exacerbou as tensões sociais e interétnicas a partir do médio rio Gurupi, onde se encontrava ouro nos afluentes do rio .

Um segundo fator é que, não existindo vilas, nem mesmo povoados ao longo do rio, e especialmente nas proximidades das aldeias tenetehara, é certo que muitos regatões se fixavam nas próprias aldeias indígenas, pelo menos durante uma boa parte do ano. Brusque (1862: 13-4) relatou que alguns desses regatões mandavam de fato em aldeias dos Tembé-Tenetehara, não sem deixar de provocar reações violentas. Por exemplo, ele descreveu um incidente em que sete homens Tembé atacaram e mataram vários regatões que haviam roubado algumas mulheres e espancado outros índios. Na vingança, os regatões atacaram a aldeia, incendiaram-na e seqüestraram sete crianças Tembé, as quais foram levadas para viver entre os brasileiros rio abaixo, em Vizeu. Dez anos depois, Dodt não chegou a registrar incidentes dessa natureza, mas também não deixou de reconhecer uma certa animosidade entre brasileiros e Tembé.

Um terceiro fator teria sido provocado pela migração para os lados do rio Gurupi e adiante dos agressivos índios Urubu-Ka’apor, com as famosas flechas com pontas de ferro, que chegavam atacando aldeias tembé e viajantes de canoa no rio Gurupi desde 1872 (Dodt 1981: 176). No limiar do século XX, os Tembé já não eram páreo para eles e esta desvantagem consequentemente acelerou o fator de aculturação por fazer com que as aldeias e famílias tembé buscassem proteção contra os Ka´apor, instalando-se nas proximidades dos povoados brasileiros no Pará.

Finalmente, há que se levar em conta o espocamento e a virulência de epidemias de varíola e sarampo, para diversas das quais não se tem informações, mas que se pode supor terem sido devastadoras para os Tenetehara, bem como para os Timbira e os Urubu-Ka’apor. Até a década de 1970, os relatórios de agentes do SPI, bem como de visitantes à área, são unânimes em apontar uma contínua queda populacional e uma degradação das condições de vida das populações indígenas da região, e, a rigor, por todo o Brasil. Em seus Diários índios (1996), Darcy Ribeiro relata a luta desesperada que travou para tentar ajudar esse povo no período de três meses que passou com eles, entre outubro de 1949 e janeiro de 1950, quando pelo menos 150 dos 750 índios Urubu-Ka’apor morreram da doença e de suas conseqüências.

O contraste maior entre as duas regiões descritas, porém, vai se estabelecer em função da Rebelião do Alto Alegre, que sucederá entre as aldeias da região Grajaú-Barra do Corda, como veremos no capítulo seguinte.

Um comentário:

Nádia Santos disse...

Estou fazendo a Árvore Genealogica da minha familia meubisavó se chamava João Francisco Ribeiro foi Diretor da Colonia Januária nomeado em 13/4/1882.Da colonia Camacaóca, no Pindaré em 18/10/1877.COmo posso pesquisar mais o tema ? Os dados que tenho são do Brazil.crl.

 
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