Retomando a publicação do meu livro
O Índio na História: a saga do povo Tenetehara em busca da Liberdade, eis o Capítulo XI, que trata do sistema econômico daquela sociedade indígena, em termos gerais.
Os capítulos precedentes estão publicados nesse Blog e constam num bloco ao lado.
Aproveitem a leitura!
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Capítulo XI
Sistema Econômico dos Tenetehara:
Uma Visão Geral
“O econômico não é um em-si ou mesmo um para-si, mas
fundamentalmente algo para outro, vale dizer, mediação”
Luiz Sérgio Sampaio, Lógica e Economia, p. 18.
Nos capítulos precedentes, a história dos Tenetehara foi analisada como
um processo que se desenvolve pelo relacionamento desse povo com a sociedade
maranhense em formação. A análise conceituou os tipos de relações que se
constituíram entre estas duas sociedades ao longo dos séculos como resultado
das condições econômicas e sociais prevalecentes e da reação dos Tenetehara
tanto em termos de aceitação e adaptação como de resistência e conflito. É
fácil perceber que essas relações têm como base as estruturas socioeconômicas
de cada sociedade e que essas estruturas estão em um constante processo de
mudança devido a causas internas e externas.
A distinção entre atividade
"social" e atividade "econômica" de uma sociedade como a
tenetehara é necessariamente analítica e não empírica. Ela surge do conceito
básico da sociedade como uma entidade que precisa reproduzir a
si mesma (daí o social) e produzir seus meios de subsistência (o
econômico). Em cada uma dessas funções básicas da sociedade pode‑se perceber
estruturas de ajustamento dos mecanismos que as constituem. Os componentes de
cada uma das estruturas podem ser o mesmo para ambas, mas pode haver
componentes em uma que não funcionam na outra. Em conseqüência, pode ser
vantajoso para a compreensão da história tenetehara analisá‑los separadamente.
Levando em consideração,
portanto, a distinção entre o econômico e o social, este capítulo e os dois
seguintes dizem respeito às relações que se operam na sociedade tenetehara,
como também aquelas que se realizam entre os Tenetehara e a sociedade luso‑maranhense,
que são mais propriamente referentes à produção, distribuição e consumo dos
bens e serviços que lastreiam a manutenção material da sociedade tenetehara. No
nível empírico, as relações econômicas se referem ao comportamento entre duas
pessoas ou categorias de pessoas que visa a produção, distribuição e consumo de
bens e serviços. No nível analítico, a totalidade integrada das relações
econômicas forma o sistema econômico, ou o sistema que é referente ao
aprovisionamento material da sociedade.
O sistema econômico tenetehara é
formado por dois subsistemas que estão em relação dialética um com o outro. O
primeiro é a economia interna tenetehara ou o conjunto de relações econômicas
que se operam apenas entre os Tenetehara. O segundo é a economia de troca, ou o
conjunto de relações econômicas que resultaram do contato entre Tenetehara e
brasileiros. Pode‑se, com objetivos analíticos, descrever cada subsistema como
uma entidade separada da outra, mas na realidade empírica eles formam uma única
totalidade, e na consciência dos Tenetehara constituem uma realidade única e
inseparável. Além disso, as categorias estruturais do sistema econômico, isto
é, produção, distribuição e consumo (de bens e serviços), variam e mudam de
acordo com as mudanças nos dois subsistemas econômicos. Embora estas duas
economias estejam em relação dialética uma com a outra, sendo que a economia de
troca se apoia na economia interna, é a economia de troca que garante o papel
mais importante na determinação dos mecanismos da economia interna e,
consequentemente, no sistema econômico tenetehara como um todo.
As categorias de produção,
distribuição e consumo estão interligadas umas com as outras como fases de um
processo único. Teoricamente, na economia interna dos Tenetehara, as categorias
de produção e consumo são uma e a mesma, já que cada unidade de produção é
potencialmente auto‑suficiente, e portanto, consumidora de seus produtos. Isto,
entretanto, não exclui a troca de bens entre unidades de produção, apesar da
redundância teórica de tal ação. Bens são trocados entre as unidades de
produção, ou a categoria de distribuição entra em funcionamento, por causa de
outros fatores de ordem social que não são necessariamente econômicos. Estes
fatores sociais, tais como a etiqueta da reciprocidade, o parentesco e a
manutenção de alianças políticas têm a ver com o processo de integração das
unidades autônomas de produção em um corpo social, uma sociedade, impedindo‑as
de dispersarem‑se, como uma conclusão lógica da auto‑suficiência. (Mauss 1974:
37‑183; Sahlins 1972: Cap. II e III).
Assim, na análise da economia
interna tenetehara, as categorias de produção (e consumo) e distribuição serão
analisadas como estruturas de um sistema que será chamado de "modo de
produção." Sendo então coerente com a terminologia marxista, o que foi
chamado até aqui de "produção" e "distribuição" são
equivalentes às forças de produção e relações de produção em Marx. Esses
últimos conceitos, mais gerais e abrangentes, serão usados nesta análise.
Produção ou forças produtivas abrangem os seguintes fatores: 1) recursos naturais; 2) unidades
de produção; 3) normas técnicas;
4) nível de produtividade.
No mesmo sentido, as relações
de produção formam uma estrutura composta dos seguintes fatores: 1) divisão cultural do trabalho; 2) divisão social do trabalho; 3) mecanismos de distribuição; 4) alienação do trabalho; 5) sistema político‑econômico.
Antes de descrevermos e
iniciarmos a análise do sistema econômico tenetehara, precisamos definir
minimamente os fatores enumerados acima em termos dos seus elementos
constitutivos.
Forças Produtivas
1) Recursos naturais
São aqueles recursos de produção culturalmente definidos e utilizados
pela sociedade. Subentendem fatores ecológicos de diversas ordens, tais como,
fertilidade do solo, fauna, clima, etc., mas também a própria disponibilidade
de terras. É necessário acrescentar que a disponibilidade da terra se tornou,
nos tempos modernos, um elemento com aspectos problemáticos, com a questão da
intensificação da luta pela terra.
2) Unidades de Produção
São os modos e instituições que agregam a força de trabalho para as
diversas tarefas de produção. A primeira dela é:
a) família nuclear:
formada por um homem, sua esposa, ou esposas, filhos solteiros, um pai ou mãe
viúva (tanto do homem como de sua esposa), e um ou vários parentes solteiros
que a ela se agregam. A unidade
mínima, nuclear, é formada por um homem, uma esposa e seus filhos
solteiros, porém a existência dos outros três componentes, que poderiam
resultar nos tipos familiares poligínico, geracional e composto, não necessita
a distinção conceitual, para nossos propósitos, pois que, na sociedade
tenetehara, estas variantes agem como uma única unidade produtiva.
b) Família extensa:
formada por duas ou mais famílias nucleares que produzem juntas sob a liderança
do chefe de uma das famílias nucleares. A produção agregada não tem que incluir
todas as atividades econômicas das famílias nucleares, mas precisa incluir a
produção de roças e o uso de seus produtos e/ou a produção de bens destinados à
economia de troca.
c) Produção comunal: esta
é a maior unidade produtiva da sociedade tenetehara e concerne o trabalho
coletivo e comunitário de homens e mulheres de uma aldeia. Este tipo
organizacional de produção se operacionaliza em atividades tais como pescaria
com timbó, caçada para fins cerimoniais e, atualmente, na demarcação das terras
tenetehara, sendo essas duas atividades exclusivamente masculinas.
3) Normas técnicas:
Compreendem não apenas a abrangência do conhecimento sobre os recursos
naturais utilizados, mas também técnicas e instrumentos pelos quais estes são
transformados em bens de consumo.
a) Conhecimento do meio ambiente:
solos, clima, flora e fauna.
b) Instrumentos de trabalho:
machados de pedra (abandonados desde o século XVIII), ferramentas (machados,
facões, foices, enxadas, etc.); arco e flecha; armas de fogo; cestaria;
cerâmica; novos utensílios de louça, ferro e alumínio.
c) Técnicas: roças de queimada;
formas de processamento de alimentos; caçada de arco e flecha, ou de
espingarda, em tocaia, de espera, dirigindo a caça para ilhas secas; pescaria
com timbó, com anzol e linha; coleta de frutos, resinas e óleos vegetais;
tecelagem, cestaria, cerâmica.
4) Nível de produtividade
Diz respeito à capacidade das unidades de produção poderem ou não
obter, poupar e manipular um excedente econômico além das necessidades internas
da sociedade. Este é um fator cujo sentido amplo só se realiza em comparação
com outros casos ou na passagem de uma fase de produção para outra. Sua
conceituação é apresentada na análise econômica das várias fases históricas por
que passa a economia tenetehara. O nível básico de produtividade é entendido
como a quantidade de bens produzidos para manter a economia interna. O conceito
de excedente econômico é analisado em função do aumento de produção da economia
interna em relação à demanda da economia de troca. Por si só, o aumento de
produção da economia interna, ocorra ele acidentalmente ou intencionalmente,
não é quantificável, portanto, é considerado inexistente nesta análise na
medida em que não existirem mecanismos sociais para capitalizá‑lo (Pearson
1957; Dalton 1962).
Relações de Produção
1) Divisão cultural do trabalho
Compreende a distribuição de tarefas dentro das unidades produtivas, o
que, no caso dos Tenetehara (até recentemente), se dá pelas diferenciação de
gênero e de faixas etárias.
a) Na unidade da família nuclear,
a divisão do trabalho é determinada pelo gênero: os homens caçam, derrubam,
encoivaram, queimam, plantam as roças, fazem a colheita e constróem casas. As
mulheres plantam e colhem vários dos produtos, processam os alimentos, fazem
cestaria simples e os objetos de cozinha, assim como a tecelagem de redes,
tipóias e costuras. Pescaria e coleta são feitos por ambos os sexos. Atualmente
esta divisão tende a ser menos demarcada particularmente na produção de bens
para a economia de troca, como
será visto.
b) Na unidade de família extensa
entram em jogo fatores como prestígio político, às vezes associado à idade. Ser
chefe de uma unidade como esta, em geral dirigida à economia de troca, exige
capacidade de organização, liderança e prestígio para com quem se negocia os
bens, seja patrões ou chefes de posto. Nesta função o chefe freqüentemente
dispõe do produto do trabalho dos demais membros da unidade como ele achar
melhor. Quando esta produção é voltada exclusivamente para a economia de troca,
então pode‑se falar de alienação do produto do trabalho dos produtores pelo
chefe da produção, embora isto não seja algo que aconteça como necessidade
e naturalidade.
c) Na produção comunal a divisão
do trabalho se dá pelo gênero, como na unidade da família nuclear. Em muitas
atividades específicas a divisão também se opera em linhas etárias.
2) Divisão social do trabalho
Este fator surge dos novos modos e tarefas de trabalho exigidos pelas
novas funções das unidades de produção nas economias de troca. Estas novas
exigências se tornam eficazes socialmente quando determinam possibilidades de
condições de surgimento de estratificação social. Até recentemente, apenas o
pajé desempenhava um tipo especial de função do trabalho. Este fator foi
identificado como a base econômica da estratificação social. A presença de
pajés e de chefes de unidades de produção de família extensa, bem como de
líderes guerreiros, como especialistas, entretanto, não é condição básica para
o surgimento da estratificação. Estes são cargos e funções que não se
transmitem através de linhas de sucessão, mas são adquiridos pelos homens, e
por mulheres em menor extensão, por méritos pessoais. O cargo de chefe de
aldeia ‑ capitão ‑ não é um traço
aborígene dos Tenetehara, pelo menos não com as funções que se espera dele, e
sim o resultado de uma imposição do relacionamento com a sociedade brasileira,
especialmente da economia de troca. Freqüentemente a liderança ou chefia de
aldeias é passada de pai para filho, ou de tio materno para sobrinho, isto é,
são transmitidas dentro de uma família extensa, mas isto não consolida, por
diversos motivos político-culturais, como veremos adiante, uma característica
de estamento.
A intensificação da economia de
troca em algumas regiões tem aumentado a influência econômica dos chefes de
família extensa, às vezes dando a forte impressão de que esteja se
desenvolvendo bases muito firmes para a estratificação social. Entretanto, as
flutuações dessa, com os seus ciclos de alta e baixa de demanda, juntamente com
os mecanismos internos de nivelamento econômico, impedem a cristalização da
formação de diferenças econômicas por muito tempo. O aparecimento mais recente
do trabalho assalariado estável, como funcionários federais da FUNAI, seja como
monitores de educação bilingüe, auxiliares de enfermagem, trabalhadores braçais
ou chefes de posto, pode consolidar diferenças econômicas mais permanentes que
resultem em diferenças de classe. Porém são ainda muito fortes os mecanismo de
nivelamento social para que tal venha a acontecer.
3) Distribuição
São as formas e modos de mediação econômica entre as unidades de
produção. Elas se dão através de regras de etiqueta cultural e formas de
reciprocidade (generalizada e equilibrada), de redistribuição e de troca
(reciprocidade negativa) (Sahlins 1972: cap. V; Polanyi, 1957). Identificamos
este fator como o conjunto de mecanismos sociais que realiza a circulação de
bens e produtos tanto interna como externamente no sistema econômico
tenetehara. Na economia interna, os bens circulam tradicionalmente pelo
mecanismo da reciprocidade generalizada, onde as unidades produtivas se fazem
presentes e dádivas de bens ou produtos, sem exigir retorno imediato, baseando‑se
apenas no sentimento de que, em algum tempo futuro, haverá uma retribuição de
um bem doado. Também pode‑se reconhecer o mecanismo da reciprocidade
equilibrada, onde um bem é trocado por outro equivalente, embora este mecanismo
só começa a funcionar e ganhar um sentido em função da economia de troca e da
introdução de um referencial ou padrão monetário.
No seio das unidades de produção
da família extensa, a redistribuição é o mecanismo interno normativo, onde os
bens são produzidos coletivamente e redistribuídos entre todos. Mas aí surgem
momentos de reciprocidade negativa quando há expropriação indevida do produto
de trabalho de outrem pelo chefe de produção, que o utiliza para a venda na
economia de troca, com retorno exclusivamente próprio ou estritamente familiar.
Já no seio da família nuclear, a distribuição de bens é feita tanto através da
reciprocidade positiva como através da redistribuição, mas a distinção entre
estas duas formas não tem muita importância aqui.
Na relação entre a economia
interna e a economia de troca, a reciprocidade negativa foi historicamente a
primeira forma a surgir. O apresamento da força de trabalho, o saque, o roubo,
a escravidão, a exploração servil e outras formas de coerção econômica por
parte dos atores dominantes da economia de troca constituíram a norma inicial.
À medida em que os Tenetehara foram se tornando conscientes dos mecanismos do
mercado e da competição entre patrões brasileiros, a reciprocidade equilibrada
começou a surgir, primeiro na forma de relações econômicas de patrão‑freguês,
depois através da troca comercial (compra e venda) entre indivíduos tenetehara
e brasileiros, sem constituir outros vínculos sociais.
Do ponto de vista do valor do
trabalho dos Tenetehara, certamente as relações patrão‑freguês e de troca
comercial são formas de expropriação ou exploração indébita do seu trabalho.
Por causa da estrutura de classes subjacente aos mecanismos de mercado da
sociedade brasileira, o trabalho dos índios e camponeses é desvalorizado e sub‑pago.
Relações de patrão-freguês e de troca comercial são encaradas aqui como formas
de reciprocidade equilibrada somente pela perspectiva das relações econômicas
necessárias que existem na sociedade de classes brasileira. Ao entender essas
relações em um sentido crítico elas serão consideradas negativas,
particularmente do ponto de vista dos Tenetehara. No decorrer do relacionamento
interétnico a reciprocidade negativa vai perdendo a sua dominância absoluta e
dando espaço para a reciprocidade equilibrada.
4) Alienação do trabalho
Compreende alguma forma de restrição ao usufruto do trabalho por parte
do produtor. É o fator de alienação do trabalho de um indivíduo per se, ou da
unidade de produção, sem a recompensa apropriada ao valor desse trabalho. Ela
vai surgir pela diferença entre produção e consumo na medida em que as unidades
de consumo começam a se diferenciar, em certos aspectos, das unidades de
produção, especialmente em função do estabelecimento da economia de troca. A
alienação do trabalho de alguém pode ocorrer mesmo dentro da unidade da família
nuclear quando, por exemplo, uma mulher faz uma rede que é vendida por seu
marido para comprar uma arma. Mas este tipo de alienação não é suficientemente
carregado de conseqüências sociais além da unidade produtiva, porque a arma
será usada para caçar em benefício da família. Porém pode ocorrer que ele gaste
o dinheiro à toa e não o reverta para a família. Mesmo assim, as conseqüências
se resumem ao interior da família ou se explicam no contexto dos rituais de
desigualdade sexual da cultura tenetehara.
O que se considera aqui como
alienação econômica é quando há uma expropriação do produto do trabalho de um
membro de uma família nuclear da unidade da família extensa pelo chefe desta
unidade. Isto ocorreu em várias fases de alta produtividade da economia de
troca. Uma das conseqüências sociais dessa alienação é a eventual ruptura da
família extensa. É precisamente neste contexto que se pode falar da contradição
da família nuclear versus a familiar extensa dentro da economia de troca.
Mais óbvio e importante como
alienação econômica é a expropriação do trabalho tenetehara como um todo pelo
setor dominante, brasileiro, da economia de troca, como vimos anteriormente.
5) Sistema político‑econômico
É o conjunto das relações formadas entre as unidades políticas,
operacionalizadas pelas famílias extensas, no nível das aldeias, ou pelas
próprias aldeias, no nível do relacionamento interétnico. Neste último caso, a
operacionalização do sistema se dá, muitas vezes, por aldeias individualizadas;
em outros casos, se dá pela aliança entre aldeias de uma mesma região. As
aldeias tenetehara podem se diferenciar entre si em função de fatores
econômicos, tais como a variabilidade dos recursos naturais acessíveis, criando
assim diferentes economias de troca e causando, em conseqüência, formas de
relacionamento diferenciadas dessas aldeias entre si e delas com brasileiros. A
maior unidade produtiva dos Tenetehara é a aldeia, que é, com mínimas exceções,
auto‑suficiente na sua economia interna. Relações econômicas entre aldeias se
operam através das unidades de família extensa ou nuclear, raramente pela
produção comunal. Devido a circunstâncias de variabilidade de recursos e/ou sua
inserção em uma economia de troca, certas aldeias adquirem uma posição
econômica superior em relação a outras. Neste caso, o potencial de
diferenciação econômica pode provocar o surgimento de um escalonamento
(ranking) entre aldeias. Porém, assim como acontece no caso da estratificação
social, sempre surgem elementos desagregadores desse potencial, de modo que o
ranking de uma aldeia raramente se mantém por um período longo. Sem dúvida,
algumas aldeias existem em certas localidades estratégicas na economia de troca
há muitos anos, como a aldeia Januária, no baixo Pindaré, ou a de Colônia, em
Barra do Corda. Mas os seus períodos de apogeu não duram muito tempo, advindo
sempre algumas dificuldades que as sombreiam e diminuem sua potência de
agregação.
É também pela características do
sistema político‑econômico que o território de uma aldeia se constitui em
relação ao de outra próxima. Certamente são determinantes para isto o tamanho
da população e a sua densidade comparativa, conforme vimos nos capítulos
históricos precedentes. De uma forma global, sendo poucas as diferenças
significativas, as relações econômicas entre aldeias estão subordinadas às
relações sociais e se operam com freqüência através de cerimônias sociais.
Resumindo essa estrutura teórica,
a Figura 4 mostra como as categorias, conceitos e fatores estão inter‑relacionados
como estruturas em níveis hierárquicos.
Figura 4
Níveis
Hierárquicos da Análise Econômica
Sistema
Econômico
Relações Econômicas
Economia Interna <
_________________________ >
Economia de Troca
Modo de Produção
Forças Produtivas Relações de Produção
1 ‑ Recursos
1 ‑ Divisão do Trabalho
2 ‑ Unidades de Produção
2 ‑ Divisão social do trabalho
3 ‑ Normas Técnicas
3 - Distribuição {reciprocidade
{redistribuição
{troca
4 ‑ Produtividade
4 ‑ Alienação do trabalho
5
- Sistema político‑econômico
Economia de troca
O conceito de economia de troca foi definido no Capítulo III como o
mediador fundamental, tanto econômico quanto social, através do qual se
realizam as relações entre os Tenetehara e a sociedade brasileira. Ao longo da
história essas relações econômicas foram descritas como tendo sido do tipo
escravista (1613 ‑ 1652), de servidão (1653 ‑ 1759) e de patrão-freguês (1840 ‑
1975 ‑ até o presente), com o interregno de 80 anos (1760‑1840) de liberdade
econômica e autonomia cultural. Nos dois primeiros modos a característica
predominante era o uso do trabalho dos Tenetehara como trabalho alienado dos
mecanismos da economia interna, que se torna ancilar à economia de troca.
Dominada pela economia de troca, à qual fornece sua força de trabalho ao custo
de pôr em perigo sua viabilidade, a economia interna nunca deixou de se realizar
e de ser imprescindível ao sistema, pois lastreia as relações sociais e
culturais dos Tenetehara, assegurando o mínimo de viabilidade da sociedade
tenetehara.
Com o surgimento das relações
patrão-freguês, o trabalho tenetehara foi, em sentido relativo, tornado livre.
Assim, a economia interna se tornou predominante e a economia de troca ancilar
a ela. A força de trabalho tenetehara usada nesta nova economia de troca deriva
agora do excedente da economia interna. Neste sentido, as condições de trabalho
não livre versus trabalho livre tornam exatamente opostas as relações entre
aquelas economias e a economia de troca patrão-freguês.
Na formação histórica do
relacionamento patrão-freguês, definidas no Capítulo VI, podemos reconhecer
dois tipos dessa economia entre os Tenetehara: um é aquele onde predomina a
produção de bens agrícolas, e o outro é quando ocorre um predomínio da produção
de bens extrativos da floresta. Embora sempre tenha havido uma mistura de
produtos nesses dois tipos de economia, é possível, entretanto, distinguir duas
regiões distintas no Maranhão onde há predomínio indiscutível de um ou de outro
tipo de produto para troca. Relembremos que a economia de troca agrícola é
encontrada em áreas próximas a cidades ou povoados estáveis brasileiros, tais
como no baixo Pindaré, perto de Pindaré‑mirim e Santa Inês, e no alto Mearim,
perto de Barra do Corda e Grajaú. As economias extrativas de troca se
desenvolvem nos altos cursos dos rios Pindaré e seus afluentes, o Zutiua e o
Buriticupu, bem como no rio Gurupi e no lado paraense, até a década de 1970.
As características que distinguem
as relações de produção destes dois tipos de economia de troca foram descritas
como sendo de natureza predominantemente social. Na economia do tipo agrícola
os agentes brasileiros impõem obrigações de troca exclusiva sem, contudo,
chegar a afetar os agentes tenetehara em sua própria sociedade, exigindo deles
somente a intensificação de seu trabalho corriqueiro na economia interna. Além
disso, a relativa abundância de patrões nas cidades e povoados dão aos
Tenetehara alguma margem de manobra na escolha de patrões.
Já a economia extrativa
geralmente tende a afetar os mecanismos e o ritmo do trabalho corriqueiro
porque impõe demandas sobre a força de trabalho e produtos tenetehara que
desviam sua atenção da órbita da economia interna. Uma unidade de produção
tenetehara que entra na floresta à cata de óleo de copaíba, resinas, coco
babaçu ou peles silvestres, não pode ao mesmo tempo, ou com a mesma eficiência,
fazer roças para manter a economia interna. Esse processo, reconhecido nos
estudos sobre economias extrativistas de seringueiros brasileiros e indígenas,
foi analisado por Murphy (1960: 18‑23) para os Munduruku que se envolveram na
produção de borracha. Para os Tenetehara do Gurupi e do Pindaré a economia
extrativa não foi menos destrutiva, ao final de contas, embora a demanda
externa pelos produtos extrativistas encontrados em suas áreas não tenha tido o
vigor que a demanda pela borracha e castanha em outras regiões amazônicas.
Ao longo deste e dos seguintes
capítulos apresentarei dados econômicos coletados no campo que ilustrarão os
mecanismos da economia de troca extrativa, demonstrando tanto as diferenças que
há entre esta economia e a agrícola, quanto a integração progressiva da
economia interna tenetehara na economia de troca através do seu crescente
aprendizado dos mecanismos de produção e troca aplicados no mercado. Este
aprendizado pode ser conceituado aqui como sendo a elaboração do conhecimento
da distinção entre uma economia que produz bens exclusivamente de valor de uso
e outra que produz bens primordialmente como valores de troca. Ou, ainda, o
conhecimento de novos mecanismos de circulação (distribuição) de bens como
capital (mercadoria) em oposição à circulação simples de bens.
É evidente que a economia
tenetehara se rege pela circulação do tipo simples onde os bens produzidos
carregam valor de uso e são trocados por produtos similares com valor de uso.
Historicamente esta troca é efetuada através da reciprocidade generalizada e só
depois, com o surgimento da economia de troca, é que surge o mecanismo da
reciprocidade negativa e equilibrada, que, por sua vez, chegam a penetrar e
influir no comportamento da economia interna. Para dar um exemplo, um homem mata
um porco que cria em seu quintal e decide vender partes dele a dinheiro. O
porco, portanto, ganha valor de troca, o qual, através do dinheiro, é usado
para obter outro bem equivalente, uma mercadoria com valor de uso, digamos, uma
arma. Os Tenetehara entendem que deixaram de usar o porco como valor de uso,
comendo‑o ou distribuindo‑o na economia interna, para transformá‑lo em valor de
troca, que vai lhes produzir um outro valor de uso. Entendem que o ciclo pára
aí. Este novo valor de uso não é compreendido como tendo imbutido em si um
valor de troca, bastando que entre novamente na circulação, ou como um
investimento para a produção de novos bens.
Porém, na produção de bens que em
si contêm pouco ou nenhum valor de uso para a economia interna, como óleo de copaíba,
madeira, peles e artesanato, pode‑se dizer que aí está‑se iniciando um ciclo de
circulação de mercadorias com exclusivo valor de troca. Tal economia, de fundo
capitalista, pode ser encontrada entre os Tenetehara em diversos momentos
históricos, especialmente na economia extrativa, de uma forma embriônica, mas
com toda a crueza possível. Aí está o potencial para a acumulação de capital e
o surgimento da estratificação social. Discutiremos essa temática tão rica e
surpreendente na última seção do Capítulo XIII, quando a economia tenetehara
será comparada com a economia dos camponeses do Maranhão.
A fim de entender as mudanças que
ocorreram na economia tenetehara precisamos apresentar um modelo da economia
tradicional, pré‑cabralina, dos Tenetehara. Este modelo será descrito como um
modo putativo de produção. As mudanças históricas neste modelo serão analisadas
em termos de mudança no seu modo de produção, particularmente nos fatores de
unidades de produção, tecnologia e produtividade; distribuição, formas de
trabalho (escravo, servil, livre, patronalizado e assalariado), inserção em
economias de troca, aprendizado de mecanismos de mercado, tais como oferta e
procura, dinheiro e preço. O efeito fundamental dessas mudanças será, sem
dúvida, a transformação da organização social e da cultura tenetehara em geral.
Economia tenetehara pré‑cabralina
Não há notícias históricas da economia tenetehara pré‑cabralina e as
poucas informações passadas por cronistas jesuítas e administradores coloniais
são de pouquíssima valia para se criar um modelo dessa economia. As únicas
bases científicas com as quais podemos tentar construir esse modelo são a
analogia e a inferência. As duas sociedades tribais cujos sistemas econômicos
podem servir como modelos analógicos seriam os Tupinambá dos séculos XVI e XVII
e os Urubu-Ka’apor atuais. Pode-se grosseiramente dizer que a economia
tenetehara se situa entre essas duas economias indígenas. Por outro lado, dados
recentes coletados por mim e por outros autores desde o século passado, indicam
aspectos importantes do que seria o caráter da uma economia interna tenetehara
pré-cabralina e podem servir de base de inferência na confecção desse modelo.
No Capítulo III a sociedade
tupinambá foi brevemente revista e contrastada com os Tenetehara. A conclusão
que chegamos foi de que estas duas sociedades, não obstante falarem línguas tão
semelhantes, eram significativamente diferentes e se reconheciam como etnias
distintas, particularmente por causa da alta densidade populacional dos Tupinambá
e de seu complexo ritualístico de guerra intestina e a antropofagia.
Com os dados que temos podemos
concluir que os modos de produção das duas sociedades também teriam diferenças
significativas. Contudo, as seguintes importantes características dos Tupinambá
são encontradas entre os Tenetehara: unidade de produção da família extensa e
comunal; distribuição de bens por reciprocidade generalizada; e uma divisão do
trabalho similar. Por outro lado, o alto nível de produtividade e de densidade
populacional permitiram o aumento de trocas econômicas entre aldeias tupinambá.
Em 1615, Abbéville (1975: 188) relata ter observado que as aldeias tupinambá de
diferentes distritos comerciavam umas com as outras usando pimenta como meio de
troca. O mesmo diz, 50 anos antes, Jean de Léry, em relação aos Tupinambá da
Baía da Guanabara que comerciavam com aqueles do vale do Paraíba (Léry 1941). O
quanto isto pode ser considerado como um fato econômico corriqueiro e não
cerimonial, é difícil concluir. Mas quanto aos Tenetehara certamente é
improvável que tenha existido qualquer tipo de moeda.
O modelo econômico tenetehara
pode ser complementado por analogia com o dos Urubu-Ka’apor. Aqui encontramos
os mesmos recursos naturais, normas técnicas, nível de produtividade e um sistema
político‑econômico similar que envolve pequena competição por recursos mas
também pouca cooperação e rivalidade entre aldeias. No tocante à divisão social
do trabalho e à alienação econômica do trabalho, são inexistentes entre os
Urubu-Ka’apor, como devem ter sido entre os Tenetehara. Estes dois fatores de
um modo de produção só se encontram presentes em situações de alta densidade
demográfica, onde a circulação de bens vai além da unidade produtiva da aldeia
e onde são produzidos certos bens estratégicos em algumas áreas, mas não em
outras, provocando rivalidades econômicas palpáveis.
Entre os Urubu-Ka’apor e
provavelmente os Tenetehara pré‑cabralinos, as aldeias eram relativamente
pequenas, provavelmente raramente excedendo o número de 200 a 300 pessoas. Os
Tenetehara viviam em uma zona ecológica bastante uniforme de floresta
amazônica, utilizando os recursos naturais pela agricultura de derrubada e
queimada, da pesca e caça comunal e individual com arco e flecha e da coleta de
produtos vegetais. O principal instrumento de corte era o machado de pedra,
igual para os Tupinambá. O processo de derrubada da floresta para roças com
machado de pedra é bastante demorado, como bem demonstrou Salisbury (1962) para
os Siane da Nova Guinéia. No caso dos Tupinambá, nenhum cronista chegou a medir
o tempo que levavam, mas relatam que cada aldeia fazia uma grande roça numa
única e contínua parcela de terra, mas o plantio e a colheita eram executados
pelas unidade de família extensa (Fernandes 1963: 139). Velhos Tenetehara na
atualidade, relembrando as histórias de seus avós de tempos antigos, confirmam
que entre eles também era assim que se processava. Neste tipo de organização de
produção agrícola idealmente cada família teria acesso a uma quadra de terra
para plantar e colher o suficiente para a sua sobrevivência. Pode‑se daí
afirmar que havia igualdade econômica entre as unidades de produção, sendo a
distribuição de bens efetuada por reciprocidade generalizada, que favorecia a
coesão social.
As relações entre aldeias
tenetehara, pequenas como deviam ser, devem ter sido essencialmente de natureza
social, ligadas umas às outras pelos laços e mecanismos do sistema de
parentesco. Tudo indica que não havia diferenças de produção econômica entre
aldeias, a não ser por uma exceção possível, o machado de pedra. Cada aldeia
produzia tudo que era usado para alimentação bem como todos os artefatos e
instrumentos de trabalho, tais como cestaria, tecelagem, arcos e flechas e
adornos de penas. A produção de machados de pedra, entretanto, coloca um
problema interessante. Não é em toda parte do baixo Pindaré que se encontra
pedras apropriadas para o corte. Embora não haja menção em fontes históricas
sobre o comércio de machados de pedra, nem sobre visitas de Tenetehara de uma
área a outra para confeccionar este instrumento, é possível, entretanto, que
tenha havido alguma vantagem em viver em aldeias mais próximas dessas fontes.
Não é de todo especulativo que o
fato de haver mais pedras na Serra do Tiracambu, no alto Pindaré, banhado pelo
seu afluente o rio Caru e a oeste em direção ao rio Gurupi, tenha sido um bom
motivo para lá se concentrarem as aldeias tenetehara durante todo o período
colonial, e talvez até antes. Esta suposição apoia‑se também no fato de que no
alto rio Pindaré viviam os índios Amanajós, também um grupo tupi de filiação
lingüística próxima aos Tenetehara, mas seus inimigos fidalgais, que deviam
usar igualmente a Serra do Tiracambu como sua fonte de machados de pedra. Os
Amanajós são descritos na crônica colonial como um povo forte e destemido que
era muito procurado pelas expedições e entradas de caçadores de escravos. É
possível que a rivalidade pelo acesso a pedras para machado tenha sido um
motivo objetivo dessa inimizade. As aldeias tenetehara de fácil acesso às
pedras estavam mais próximas às dos Amanajós e assim precisavam de reforço
guerreiro de outras aldeias, para o que seria necessário a consolidação de
alianças. Nisso talvez houvesse um comércio de machados de pedra.
Resumindo, a vantagem econômica
de melhor acesso a pedras se contrabalançava com a desvantagem política de
estar mais perto do inimigo feroz. De modo que, no final, não despontava uma
predominância estratégica de uma aldeia sobre outras, nem a possibilidade real
de formação de áreas políticas com conotações de dominação e superioridade. Daí
não terem surgido nem incipientemente sinais de cacicato, como no caso dos
Tupinambá, nem bases estáveis para a troca de mercadorias como alavancagem
econômica. As trocas econômicas interaldeias aconteciam meramente como uma
extensão das trocas entre unidades de produção através da reciprocidade
generalizada.
Mudanças gerais no sistema
econômico tenetehara
Já foi visto que durante as fases da escravidão e da servidão a
economia interna tenetehara e sua economia de troca (i.e., as relações
econômicas de servidão e escravidão) já formavam dois sistemas virtualmente
desconectados um do outro. Esta separação é mais clara nas relações de
escravidão pois nesta o trabalho tenetehara é completamente separado da sociedade
tenetehara, tanto econômica quanto espacialmente. Ao lado do trabalho escravo a
economia tenetehara continuou existindo exclusivamente como uma economia
interna separada e autônoma do processo colonial.
Em menor extensão, a distinção
entre a economia interna e a de troca ocorre também durante a fase de servidão,
embora não em termos espaciais. Aqui, a força de trabalho tenetehara foi
expropriada da economia interna, das aldeias que estavam sob o controle da
missão jesuítica, para produzir exclusivamente para os controladores da
economia de troca. Embora os jesuítas fornecessem alguma compensação econômica
pelo trabalho indígena, obviamente era de um valor bastante inferior ao que
efetivamente o produto desse trabalho obtinha no mercado de São Luís. Embora
não existam dados disponíveis dos preços de gado e açúcar vendidos pelas
missões em São Luís, o fato de que essas aldeias tenetehara não tenham se
realçado como produtores independentes economicamente é evidência suficiente
para validar esta afirmação.
É certo que os jesuítas não
considerariam sua relação com o trabalho tenetehara como parte de uma economia
de troca, e sim, do seu ponto de vista, como trabalho arregimentado pela
missão, o qual era bem recompensado por sua condição de protetores dos índios e
pela instrução que lhes davam de doutrina cristã e as chamadas "artes da
civilização". Neste sentido esta pretendida compensação poderia resultar
não só na desintegração da sociedade tenetehara como na assimilação individual
à sociedade regional, o que caracteriza uma expropriação tanto econômica quanto
cultural.
Esta formulação focaliza uma
importante faceta econômica no contínuo desenvolvimento dos Tenetehara como
etnia frente à sociedade brasileira. Para sobreviver a sociedade tenetehara
necessita manter um inter‑relacionamento próximo entre sua economia interna e a
economia de troca através da qual ela se relaciona com a sociedade brasileira.
Além disso, este inter‑relacionamento precisa ser de tal forma que a economia
interna predomine sobre a de troca, fazendo da última uma função da primeira.
Esta função seria expressa na categoria econômica de excedente da força de
trabalho. Em outras palavras, a produção de bens para a economia de troca
deveria ser proveniente do excedente da economia interna. A história dos
Tenetehara indica que para que este inter‑relacionamento ocorra com
positividade a categoria econômica básica do trabalho necessita ser livre do
controle direto da sociedade brasileira. Socialmente, esta liberdade é expressa
pela falta de regulamentos externos impostos à organização social dos
Tenetehara e, economicamente, na predominância de sua economia interna. Nenhum
desses componentes existiram durante o tempo da servidão, como foi visto no
Capítulo IV.
No Capítulo IV chegamos à conclusão
de que a fase de servidão trouxe muito poucas conseqüências permanentes sobre a
sociedade tenetehara. Isto porque, fora a influência desintegradora da missão
de Maracu sobre os Tenetehara que aí viviam, a maior parte deles continuou
vivendo fora do controle imediato da missão, com uma liberdade quase total, não
fora pelas incursões e ameaças de incursões de escravagistas. Foi a maioria dos
Tenetehara que, sem contato com seus patrícios de Viana‑Maracu, que se
expandiram e continuaram reproduzindo a sociedade tenetehara. De todo modo, é
de se considerar que, dado o tempo da fase de servidão missioneira, mais de um
século, houve alguma influência permanente sobre a sociedade tenetehara. Ao
analisarmos alguns dos fatores do modo de produção predominante do sistema
missionário poderemos determinar esta influência.
Já vimos que a economia de troca
sob o regime de servidão e sua respectiva economia interna não estavam
integrados entre si, a não ser através do trabalho. Os produtos desse trabalho
eram em grande parte expropriados para a economia de troca, e o restante era
consumido na economia interna. Além disso, recordemos uma vez mais o Capítulo
IV, parte da mão-de-obra usada na economia interna era também expropriada pela
missão. Esperava‑se que os Tenetehara fornecessem aos jesuítas grande parte de
sua alimentação básica, como peixe, caça e possivelmente produtos agrícolas. A
partir desta constatação, podemos tentar especular sobre as mudanças na
economia interna dos Tenetehara que resultaram do sistema missioneiro.
Não é improvável supor que a economia interna
dos Tenetehara tenha sofrido mudanças consideráveis em suas normas técnicas com
a introdução de ferramentas pelos jesuítas. Estes instrumentos, principalmente
enxadas, machados e facões, incrementaram o potencial de produtividade na
unidade básica de produção, a família extensa. Mas a forma pela qual os
jesuítas distribuíram estes implementos a indivíduos, como gratificação por
favores particulares, tais como provisão de peixe e de caça, e como reforço
para os que seguiam o regulamento dos missionários, e não aos chefes de família
extensa, provavelmente foi uma das causas do surgimento da família nuclear como
unidade de produção da economia interna.
A ascensão da unidade de produção da família
nuclear pela introdução de ferramentas mais eficientes e a influência ou
coerção religiosa dos jesuítas provocaram o desmantelamento da função mais
importante da unidade produção comunal: a derrubada da mata e a preparação do
solo para o plantio; bem como o declínio da função social mais importante da
família extensa: a execução de cerimônias sociais. Desde então, estas funções
ficaram sob a responsabilidade da família nuclear, embora desempenhadas com a
ajuda da família extensa e outros parentes.
Como a forma de distribuição
dessas unidades amplas era a reciprocidade generalizada, pode‑se perguntar se a
predominância da unidade de produção da família nuclear fez surgir ou não
relações de reciprocidade equilibrada. A resposta será negativa por uma razão
estrutural envolvida na presença da reciprocidade equilibrada: para existir a
reciprocidade equilibrada é necessário que a troca de bens tome a forma de
circulação de valores de troca, os quais requerem a mediação de um valor
referencial, uma moeda. Durante a fase de servidão a moeda, mesmo na economia
regional, teve circulação muito restrita, praticamente ao comércio de
exportação em São Luís. Mesmo em áreas de produção para exportação, como no
vale do Itapecuru, o meio de troca mais comum eram rolos de algodão, um bem que
não existia na economia da missão. É muito provável que na economia de troca do
sistema missioneiro não se usasse dar preços aos produtos. Assim, parece
improvável que a economia interna dos Tenetehara desenvolvesse um mecanismo de
valor sem influência externa. Com efeito, como será analisado no Capítulos XII,
a base da reciprocidade equilibrada da economia interna dos Tenetehara depende
totalmente do sistema de preços do mercado externo, sem nenhum mecanismo
interno para determinar o valor do trabalho e de mercadorias.
Estas foram essencialmente as
principais mudanças da economia interna dos Tenetehara produzidas pelo sistema
de servidão. Com a abolição deste sistema, e após o interregno de autonomia
cultural e espacial por que passaram os Tenetehara, as relações interétnicas
são retomadas através de um novo tipo de relacionamento, a patronagem social ou
o relacionamento patrão-freguês. Essas mudanças se consolidam formando o modo
básico de produção dos Tenetehara, que subsiste através dos séculos XIX e XX.
Do ponto de vista da continuidade
histórica, bem como de uma análise estrutural, pode‑se chegar ao entendimento
de que o tipo de relacionamento patrão-freguês não passa de uma extensão da
servidão. Continua a prevalecer a posição hierárquica de um patrão ou senhor
que domina as relações econômicas da sociedade tenetehara através de um
contrato em que o valor simbólico da dominação política é seu principal fiador.
Por outro lado, a separação territorial, a autonomia cultural, e a prevalência
da economia de troca dão um sentimento de liberdade e autonomia política que
permite aos Tenetehara uma maior margem de manobra na economia de troca baseada
no clientelismo.
A ascensão da família nuclear
como unidade de produção predominante não elimina as demais unidades de
produção. Antes, ela opera em conjunção com a família extensa, alternando em
predominância de acordo com o tipo e intensidade das economias de troca. As
demandas exercidas pela economia de troca provocam a necessidade de aumento de
produtividade da economia interna que seleciona a unidade de produção mais
apropriada para alcançar as metas exigidas. Na maioria dos casos, a família
extensa é a mais produtiva, mas na produção do coco babaçu, a família nuclear
tem melhor rendimento. Ao longo do tempo a produtividade da economia interna
vai sendo incrementada não apenas pela introdução de novas técnicas,
ferramentas e pelo aprendizado dos mecanismo do mercado, mas também pelo
surgimento de novos produtos comerciáveis, tais como o óleo de copaíba, resinas,
peles de animais e madeira. Todas essas inovações advêm da economia de troca,
sendo imperativo uma descrição completa dessas economias, junto com os tipos de
relações que elas envolvem. Este será o assunto do próximo capítulo.
As duas macro-regiões de
povoamento tenetehara
Durante a maior parte do século passado, os resultados dos processos
sociais, econômicos e demográficos que ocorreram em relação aos Tenetehara, em
seus diversos territórios de povoamento, demonstram que eles faziam parte de um
único sistema de relacionamento interétnico, apesar de, no Gurupi, eles serem
conhecidos como Tembé, e nas demais regiões como Guajajara. Porém, a partir
talvez da década de 1870 começavam a se configurar duas variantes de povoamento
tenetehara e consequentemente de
relacionamento interétnico. Uma se situava na mais antiga e tradicional região
de povoamento, as franjas da floresta amazônica, que ia do rio Pindaré e seus
afluentes para oeste, incluindo a expansão para o rio Gurupi e adiante, e para
leste, incluindo o baixo e médio rio Grajaú. A segunda variante se localizava
no alto Grajaú e Mearim, mais tarde incluindo os altos cursos dos riachos
Zutiua e Buriticupu, afluentes do Pindaré, resultado da expansão demográfica e
política no rumo sudeste.
Cada variante pode ser
reconhecida pelas respectivas conseqüências dos diferentes processos sociais e
econômicos que lá ocorreram. Numa, deu-se um substancial declínio populacional
e desvigoramento étnico (a região Pindaré-Gurupi e o baixo e médio Grajaú), e
na outra, operou-se um crescimento populacional e ampliação de espaço
territorial. Essa diferença vai se acentuar ainda na qualidade das relações
interétnicas respectivas resultantes dos tipos de economia de troca que
predominaram em cada região. Igualmente determinante nessa diferenciação foi,
claro, o episódio da Rebelião do Alto Alegre, na região Grajaú-Barra do Corda.
Além disso, deve-se registrar o sentimento entre os Tenetehara de serem de uma
ou da outra região. É certo que esse sentimento se realiza pelo contato direto
e corriqueiro, pelas relações de parentesco, pelo conhecimento pessoal entre os
indivíduos, enfim, pela convivência próxima, mas também se opera no tipo de
relação que cada região mantém em si e com os brasileiros. Esta distinção
também foi, e é, de vários modos, reconhecido pela ação indigenista oficial,
conforme indica a história da criação dos postos indígenas que servem aos
Tenetehara.
Os Tenetehara de cada região se
relacionam uns com os outros, tanto por força das relações de parentesco e
afinidade, quanto porque afinal não estão tão distantes e freqüentemente se
encontram nas cidades brasileiras. Quase todos os Tenetehara da região
Grajaú-Barra do Corda visitam as cidades de Barra do Corda, Grajaú e Amarante
diversas vezes ao ano por razões econômicas e sociais, e os da região do
Pindaré visitam Santa Inês, e, até a década de 1970, Pindaré-mirim ou Colônia
Pimentel, por razões semelhantes. Os Tembé do rio Gurupi visitavam Viseu até a
década de 1970, quando passaram a se relacionar com seus irmãos do rio Guamá e
se aproximaram mais das cidades de Capitão Poço, no Pará. Em 1975, um
Tenetehara de qualquer uma das 35 aldeias da região Grajaú-Barra do Corda era
capaz de identificar um Tenetehara (através de seu próprio conhecimento ou por
ouvir falar, ou pelo parentesco) de outra aldeia da mesma região, mesmo as mais
longínquas. O mesmo era verdade para os Tenetehara do Pindaré, com suas quatro
ou cinco aldeias na T.I. Pindaré e a aldeia da T.I. Caru, no alto curso do rio.
No último quartel do século XX esse conhecimento só fez se intensificar devido
à maior participação social dos índios na sociedade brasileira. Entretanto, já
então, e provavelmente desde a década de 1940, poucos sabiam da vida dos Tembé
do Gurupi, a não ser um ou outro que vivia entre eles. Wagley e Galvão (1949:
15) relata que em 1942, quando havia cerca de dez aldeias na região e um milhar
de pessoas, os Tenetehara do Pindaré se conheciam pessoalmente ou por ouvir
dizer. Porém, é bem mais difícil para um Tenetehara da região Grajaú-Barra do
Corda identificar um Tenetehara do Pindaré-Gurupi, a menos que ele tenha
nascido ou vivido naquela região ou tenha parentes próximos vivendo nela ou
visitando-a.
A distinção entre as regiões do
Pindaré e de Grajaú, entretanto, não caracteriza de nenhuma forma, seja social,
cultural ou política, cada região como uma unidade cultural ou étnica mesmo que
discreta. O comportamento social e os símbolos culturais que identificam os
Tenetehara como um povo e como um grupo étnico estão presentes nas duas
regiões, com variações insignificantes. Para colocar nos termos de Wagley e
Galvão (1949: 15), os Tenetehara de qualquer parte se reconhecem como um povo,
e são, por seu lado, indubitavelmente vistos como tal pelos brasileiros. Isto
serve igualmente para os Tembé que vivem no rio Gurupi e além, no estado Pará.
É certo que os Tembé que vivem na beira do rio Gurupi e na T.I. Alto Guamá, no
Pará, se descolaram politicamente dos Guajajara do Maranhão, e com isso
passaram a viver outra dinâmica política e interétnica. No entanto, não
constituem uma etnia separada, embora isto possa um dia vir a acontecer.
É importante apreciar que os
Tenetehara da região Grajaú-Barra do Corda situaram suas aldeias em duas zonas
ecológicas diferentes: a floresta úmida da Amazônia tropical, que se estende
pelo vale do rio Pindaré, ao longo dos seus afluentes Buriticupu e Zutiua, e
adiante pelo médio rio Grajaú; e a mata de transição, que começa onde termina a
floresta tropical e se estende para o sul e sudeste pelo alto Grajaú e ao longo
do médio e alto rio Mearim. Na primeira zona ecológica vivem não somente os
Tenetehara do Pindaré mas também os que pertencem à região do Grajaú e que
estão na T.I. Araribóia, que se localiza entre os riachos Buriticupu e Zutiua.
Na segunda zona estão localizadas as terras indígenas de Bacurizinho,
Guajajara-Canabrava, Lagoa Comprida e Urucu-Juruá. Essa zona ecológica, que só
veio a ser povoada a partir da quarta década do século XIX, comporta a maior
concentração atual de Tenetehara, mais de 8.000 deles.
Fica claro, portanto, que os
Tenetehara foram capazes de se adaptar a ambientes ecológicos diferentes. Se a
cultura tenetehara da mata de transição não se tornou diferente daquela da
floresta úmida tropical, isto se deve ao fato do novo ambiente não ser
suficientemente diferente para exigir alterações culturais significativas. As
mudanças que ocorreram se restringem a técnicas de produção, que nem por isso
afetaram os padrões básicos das unidades de produção tenetehara e portanto seu
modo de produção.
Tanto o ambiente de floresta
tropical como o da mata de transição possuem, com variações sem importância
maior, o mesmo ciclo de estações, o mesmo tipo de fauna, provavelmente em
densidade comparável, e, em termos gerais, os mesmos tipos de flora e de solos
agricultáveis que são utilizados pelos Tenetehara. A precipitação de chuva e a
população de peixes são mais densas na floresta tropical. É possível que, para
o modo de produção tenetehara, a qualidade do solo seja mais produtiva no
ambiente de floresta tropical. Consequentemente, existem mais recursos
potencialmente disponíveis na floresta do que na mata de transição. Esta melhor
qualidade do solo na floresta permite mais tempo de uso para a agricultura e um
período menor de descanso do solo - em média oito anos, enquanto na mata de
transição é preferível deixar chegar a doze anos[i]. Entretanto, essa variação não chega a influir na diferenciação do
tempo de permanência de aldeias num mesmo local.
Na medida em que mudaram para o
ambiente da mata de transição, os Tenetehara tiveram que descobrir fontes
complementares de proteína e mais terras para fazer roças - caso contrário
teriam que controlar sua taxa de crescimento demográfico. O fato de sua
população haver crescido num grau mais elevado que o da floresta tropical prova
que eles encontraram formas de compensar esta menor quantidade de recursos
potenciais.
Os Tenetehara da mata de
transição preferem fazer roças em áreas baixas, os baixões, que são mais
férteis que as terras de tabuleiro existentes nessa zona ecológica. Os baixões
retêm umidade durante a estação seca - essencial para o cultivo de mandioca,
que é feito durante o ano todo - porque o nível da água permanece relativamente
alto. Já na floresta úmida, os Tenetehara preferem fazer roça acima do nível
das cheias e em áreas de boa drenagem. Consideradas essas diferenças, no
entanto, tudo indica que a produtividade do trabalho tenetehara se eqüivale nas
duas zonas devido ao uso de técnicas específicas de utilização da terra.
Segundo Wagley e Galvão (1949: 44-45) o tamanho das roças produzidas no Pindaré
era de cerca de duas a cinco linhas (6.050 m2 a 15.125 m2), conforme o tamanho
e a força de trabalho da família e o incentivo econômico dado pela economia de
troca. Isto corresponde ao tamanho das roças encontradas na região Grajaú-Barra
do Corda para a década de 1970.
Em substituição à utilização dos
abundantes recursos em peixes do Pindaré, os Tenetehara da mata de transição,
exceto aquelas aldeias localizadas na beira dos rios Grajaú e Mearim, buscam
complementar suas necessidades protéicas através da caça. Para isso criaram ou
adaptaram da população rural um método bastante eficiente de abater animais
selvagens, a técnica da espera ou tocaia noturna. Em uma espera, o caçador
amarra, à tardinha, sua rede nos galhos de uma árvore, às vezes até à altura de
quatro metros, ao lado de uma que esteja em florada ou com frutos maduros, e lá
fica esperando que veados, porcos queixadas e caititus, antas e cotias venham
comer das frutas e flores caídas no chão; ou, por outra, escolhe uma aguada
onde esses animais vêm beber na estação seca. Ao escurecer os animais são
surpreendidos pelo foco de uma lanterna, ou, como há muitos anos atrás, pelo
clarão de um facho de resina acendido na hora, e são abatidos por tiro de
espingarda ou, antigamente, por flechada. Desta forma, os Tenetehara garantem
uma suprimento maior de caça na estação seca (junho a novembro). Esta carne
seria mais ou menos equivalente em termos nutricionais à quantidade de peixes
que os Tenetehara da floresta pescam na mesma estação[ii].
Na estação das chuvas, que
corresponde aos meses de janeiro a maio, os Tenetehara da mata de transição
fazem suas caçadas utilizando a técnica de rastrear os animais de dia, o que
vai depender da sorte, sendo portanto menos produtiva que a técnica de caçar
nas áreas altas, não alagadas, chamadas ilhas, que é utilizada pelos Tenetehara
da floresta (Wagley e Galvão 1949: 57). Entretanto, nessa estação os Tenetehara
da mata de transição caçam jacus e jacutingas que migram em direção sul da
floresta. Quando chega abril, ainda um mês de chuvas, se inicia a estação da
colheita e abundância de produtos agrícolas.
Assim, o modo de produção básico
dos Tenetehara, particularmente o modo como as unidades de produção são organizadas,
não mudou com a sua expansão para a zona da mata de transição. A produção feita
pela família nuclear e por grupos familiares mais extensos se acha presente em
ambos as zonas ecológicas. A predominância de uma ou de outra ocorre nas
circunstâncias definidas pela economia de troca, como veremos mais adiante.
Sendo o modo de produção
equivalente em ambas as áreas, a organização social dos Tenetehara permaneceu
também igual, tanto no ambiente da floresta quanto no da mata de transição. Os
principais itens necessários para a cultura material e simbólica dos
Tenetehara, como farinha de mandioca, caça, mel, algodão, tabaco, etc., podem
ser obtidos nos dois ambientes. A diferença que existe tanto entre os
Tenetehara das terras indígenas do Bacurizinho e Guajajara-Canabrava, da mata
de transição, como entre estes e os das terras do Araribóia, Pindaré e Gurupi,
da floresta tropical, pode ser explicada em termos da história interétnica
tenetehara, isto é, dos diferentes padrões de interação com a sociedade
brasileira, e não pela adaptação ecológica[iii].
1. Não existe aqui um estudo comparativo
de fertilidade do solo ou densidade de fauna, sendo essas afirmações baseadas
puramente em observações não controladas.
Para uma análise da zona ecológica da floresta tropical na região entre
o Pindaré e Gurupi, ver o estudo de Balée (1994) sobre os Ka’apor.
2. Uma vez
mais, esta é uma estimativa sem controle científico.
3. Essa
proposição não pretende excluir de todo a importância da ecologia na explicação
sobre as formas de adaptação e desenvolvimento de culturas, mas realça com mais
vigor o relacionamento social e a economia como fatores principais de adaptação
de culturas a mudanças em sua história.