Aculturação e Integração na Constituição brasileira
Por Mércio P. Gomes
O brilhante e festejado voto do ministro Carlos Ayres Britto que declarou-se pela manutenção dos termos da homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, tal como assinada pelo presidente da República em abril de 2005, levantou alguns pontos muito interessantes que extravasam o caso em pauta e certamente terão repercussão mais ampla na questão indígena brasileira da atualidade.
Um deles trata da relação entre a capacidade de preservação da identidade indígena e de suas características culturais diante da pressão por mudanças provocada pela interação entre índios e não índios e pela conseqüente incorporação de costumes, hábitos ou práticas culturais exógenos: aquilo que há muito os antropólogos chamam de "aculturação", noção, aliás, que virou matéria corrente do conhecimento público. Outro ponto diz respeito ao debate sobre se a Constituição brasileira dispõe, propõe, ou se exime sobre a integração dos índios ao Brasil. Em ambos os casos o ministro Ayres Britto trouxe aportes pertinentes e inesperados, feitos com bases antropológicas e ponderados em altíssimo espírito jurídico e constitucional.
O ministro Ayres Britto considera que o processo aculturativo é benfazejo e não prejudica a integridade e identidade das culturas indígenas. Ao contrário de achar que a absorção de traços culturais exógenos a uma cultura a levaria a abandonar suas características originais, Ayres Britto pondera que os novos traços (hábitos, costumes, práticas econômicas, visões cosmogônicas, etc.) viram acréscimos, adições. Assim, em relação à aculturação dos povos indígenas, Ayres Britto versou nos seguintes termos, na seção 77, I e II, do seu voto:
I - perseverar no domínio de sua identidade, sem perder o status de brasileiros. Identidade que deriva de um fato complexo ou geminado, que é o orgulho de se ver como índio e etnia aborígene, é verdade, mas índio e etnia genuinamente brasileiros. Não uma coisa ou outra, alternativamente, mas uma coisa e outra, conjugadamente. O vínculo de territorialidade com o Brasil a comparecer como elemento identitário individual e étnico; II – poder inteirar-se do modus vivendi ou do estilo de vida dos brasileiros não-índios, para, então, a esse estilo se adaptar por vontade livre e consciente. É o que se chama de aculturação, compreendida como um longo processo de adaptação social de um indivíduo ou de um grupo, mas sem a necessária perda da identidade pessoal e étnica. Equivale a dizer: assim como os não-índios conservam a sua identidade pessoal e étnica no convívio com os índios, os índios também conservam a sua identidade étnica e pessoal no convívio com os não-índios, pois a aculturação não é um necessário processo de substituição de mundividências (a originária a ser absorvida pela adquirida), mas a possibilidade de experimento de mais de uma delas. É um somatório, e não uma permuta, menos ainda uma subtração;
Talvez os antropólogos não concordem com Ayres Britto a respeito do processo aculturativo. Certamente somos menos otimistas do que o ministro em relação à absorção, sem a perda de elementos endógenos. Mas as ponderações do ministro precisam ser levadas em consideração como potencial de discussão teórica. Elas são acréscimos muito interessantes sobre o que se entende em geral por aculturação, e elas dão uma base para se entender melhor o que poderia ser integração sem se confundir com assimilação. As propostas de Ayres Britto vão ao encontro do que escrevi no livro Os Índios e o Brasil (Vozes, 1988, 1991) sobre a mudança do chamado "paradigma aculturativo" para o "paradigma da multiplicidade cultural". Neste último conjunto de idéias e expectativas, a permanência da diversidade e da multiplicidade indígenas é a base natural onde os processos de mudança se dão, a integração social pode ocorrer, sem que o processo descambe para a assimilação cultural.
O segundo ponto levantado no voto do ministro Ayres Britto diz respeito à interpretação da Constituição brasileira em relação à questão da integração do índio na sociedade brasileira. Muitos antropólogos, diríamos quase a maioria atual daqueles que escrevem sobre o assunto, acreditam que a Constituição de 1988 mudou a atitude jurídica brasileira em relação ao lugar que caberia ao índio na sociedade como um todo. Dizem esses antropólogos, no que são evocados por advogados, especialmente da extração do Ministério Público, que essa Constituição, ao reconhecer os costumes dos índios, os desobriga, por assim dizer, de se integrar à nação. Argumentam que o artigo 231, caput, ao reconhecer aos índios “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam” desfaz aquilo que o Estatuto do Índio dispõe em seu primeiro artigo, qual seja, que o propósito da política indígena em relação à situação jurídica dos índios é “preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional”.
Ayres Britto encara essa questão, no item 78, do seguinte modo:
Fácil entender, assim, que, por um lado, a Magna Carta brasileira busca integrar os nossos índios para agregar valor à subjetividade deles (fenômeno da aculturação, conforme explicado). Para que eles sejam ainda mais do que originariamente eram, beneficiando-se de um estilo civilizado de vida que é tido como de superior qualidade em saúde, educação, lazer, ciência, tecnologia, profissionalização e direitos políticos de votar e de ser votado, marcadamente.
Ayres Britto não somente diz que a Constituição brasileira busca integrar os índios, mas que essa integração se faz aos moldes do processo aculturativo, e, mais ainda, de agregar novos valores à sua subjetividade, isto é, à sua cultura. E o prova citando políticas públicas nas diversas áreas existentes, como vem acontecendo há muito tempo e vem sendo intensificadas no governo atual.
Ademais, Ayres Britto acha que essa integração é positiva para os índios pois aumenta-lhes a capacidade de serem “mais do que originariamente eram.” Essa frase lembra uma mais antiga, escrita por um dos próceres do indigenismo rondoniano, Luiz Bueno Horta Barbosa, em seu livro de 1923, que dizia que o propósito da política indigenista republicana era “fazer do índio, um índio melhor, mais consciente e com mais condições de se realizar como índio”. Frase esta que é condenada pelos anti-rondonianos como paternalista e integracionista…!
Não se pode concordar com todas as nuances presentes nas passagens antropológicas do voto do ínclito ministro do STF, mas suas considerações sobre o espírito e a intenção da Constituição estão claras e certamente haverão de repercutir nas decisões das próximas ações a serem desanuviadas pela Suprema Corte.
Em apenas um momento de seu voto o ministro Ayres Britto cita o Estatuto do Índio e sem maior significado. Ele deve tê-lo lido, sem dúvida, mas não o coteja com a Constituição. O preconceito atual contra esse Estatuto o fez deixá-lo de lado e sem comentários. Se o tivesse lido com o coração aberto e na intensidade que lê a Carta Magna, nos aspectos relacionados aos índios, e conhece os documentos internacionais que tratam da mesma questão, teria visto que a política indigenista brasileira, que vem da tradição de Rondon, e especificamente aquele Estatuto do Índio, é que inspirou documentos que hoje são voz corrente no indigenismo internacional. A própria Convenção 169, da OIT, que virou lei brasileira pela aprovação do Congresso Nacional e sancionamento presidencial, em abril de 2004, é bastantemente inspirada no Estatuto do Índio. Diria que é uma versão prosaica da síntese mais poética que me parece ser o Estatuto. Acresce ela, sem dúvida, uma terminologia mais atualizada, declarando que as sociedades indígenas constituem “povos”, e esclarece a necessidade do Estado de ouvir os índios e o direito dos povos indígenas de serem consultados previamente sobre quaisquer eventos que possam conduzir a mudanças sociais e econômicos que os venham a afetar. Nisso o nosso Estatuto está em aparente falta, mas sobre em aspectos fundamentais de obrigação do Estado para com os povos indígenas.
Se a Constituição brasileira propõe que os povos indígenas sejam integrados à Nação, resta saber que tipo de integração. Certamente que não seria por via de uma assimilação em que perderiam suas características culturais. Ao contrário, o respeito aos seus costumes está claro. Provavelmente seria nos moldes propostos pelo ministro Ayres Britto, isto é, como acréscimos às suas subjetividades através de políticas de saúde, educação, desenvolvimento econômico, etc. Portanto, erram por mistificação aqueles que interpretam a Constituição como sendo um divisor de águas entre um passado que visa a integração dos índios à Nação e um presente que projeta não um isolamento, diriam eles, mas um atitude de não mudança e de não pariticipação integrativa das culturas indígenas à Nação brasileira. Para amenizar esse equívoco intelectual, diria que esses exegetas tomam para si que o termo integração inclui o desrespeito às culturas indígenas, sua assimilação à cultura brasileira dominante e, consequentemente, o fim das culturas indígenas e dos povos que as praticam.
Considerando que a definição antropológica dos conceitos de aculturação, integração e assimilação foi dada ainda na década de 1960 por análises feitas por vários antropólogos, como Darcy Ribeiro e Roberto Cardoso de Melo, onde integração significa tão-somente a criação de laços de relacionamento permanente entre a sociedade brasileira e as sociedades indígenas, e não sua assimilação, dá para ver então que o motivo principal dos exegetas da Constituição é muito mais descaracterizar o valor da política indigenista brasileira, à moda rondoniana, do que esclarecer o valor específico da nossa Constituição. O que interessa a eles é impor ao público brasileiro a idéia de que a tradição indigenista brasileira era perversa até o surgimento da Constituição de 1988, é jogar na lata do lixo histórico toda a tradição rondoniana, é proclamarem-se os autores de uma nova ordem no indigenismo nacional.
Após as considerações interpretativas do ministro Ayres Britto sobre esse tema, creio que podemos rcfazer o discurso sobre o lugar do índio na Nação brasileira. Com efeito, o lugar político e cultural dos povos indígenas na Nação brasileira deve ser equacionado pela Constituição brasileira com a tradição indigenista rondoniana. Este espaço se caracteriza a partir de uma atitude de relacionamento aberto e paritário, de respeito as tradições de cada segmento e objetiva a produção de políticas sociais, econômicas e culturais que focalizem as vantagens mútuas desse relacionamento.
Nesse sentido, os povos indígenas fazem parte da Nação brasileira por anterioridade e por direitos originários, e a política indigenista brasileira lato senso deve respeitar a diversidade cultural indígena, demarcar, proteger e garantir as terras indígenas de quaisquer esbulhos e ações malfazejas, assistir as comunidades indígenas nos aspectos de saúde, educação e condições de sobrevivência, promover seu desenvolvimento étnico e, como resultado de tudo isso, integrá-los social, cultural e politicamente à Nação brasileira.
quinta-feira, 11 de setembro de 2008
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Um comentário:
Onde estaria o arquivo com o voto completo do Ministro?
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