Vale a pena ler o artigo abaixo, de Claudio Weber Abramo, na Folha de São Paulo de hoje. Nele Abramo fala da privatização do espaço público por intermèdio de organzações corporativas (as Ongs) que acham que podem determinar o interesse público, e com isso estão esvaziando as ações do Estado.
Cai como uma luva como crítica essencial das atuais Ongs indigenistas oportunistas.
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Voluntarismo e ação institucional
CLAUDIO WEBER ABRAMO
O problema com o voluntarismo não está na disposição de fazer o bem, mas nas circunstâncias que o acompanham
É SEMPRE um prazer ler Marcelo Coelho. Sua coluna do dia 19/9 na Ilustrada, a respeito do "Dia Mundial Sem Carro", que transcorreria no sábado seguinte, exprimiu com a nitidez irônico-cética que lhe é habitual uma certa tensão que afeta a perspectiva moderna quanto à transformação da sociedade.
Vale a pena repetir o que ele escreveu: "Sou dos que ainda manifestam mais confiança nas decisões do poder público do que na boa vontade das pessoas como eu. Minha visão do "político", por mais antiquado que isso possa parecer, tem dificuldades em dissociar-se da esfera do Estado e, se acredito na democracia e na mobilização dos indivíduos, creio que um dos seus objetivos principais é desaguar em algum tipo de legislação. Por que não fazer do Dia Sem Carro uma forma de pressão pelo aumento do rodízio, pelo pedágio urbano, por novas taxas contra a emissão de poluentes? A resposta, claro, é que muita gente prefere os idílios do escotismo a tudo o que redundar em reforço nas multas, nos impostos, na fiscalização e na burocracia. O Dia Sem Carro fica me parecendo, assim, o Dia de Ser Bom Cidadão".
A questão é que se observa a multiplicação de iniciativas baseadas no voluntarismo de grupos e, notadamente, de empresas tendo em vista transformar algum aspecto do espaço designado genericamente como "social". A disseminação desse tipo de ação (no mais das vezes, não são propriamente ações, mas mensagens publicitárias destinadas a incrementar a imagem dos mensageiros no mercado) parece acompanhar a percepção de que o Estado não está fazendo o suficiente ou, ao menos, que não está fazendo aquilo que poderia fazer.
Caberia assim aos cidadãos privados tomar a frente. É o "escotismo" a que Coelho se refere.
O problema com o voluntarismo não está na disposição íntima de cada um de fazer o bem (quem pode ser contra o bem?), mas nas circunstâncias que o acompanham. Uma delas é que não existe ação no espaço público que não implique a expressão de interesses e a conseqüente contraposição a outros interesses.
Da simples afirmação, por parte de algum grupo, de que algo é "bom" não se segue necessariamente que seja bom para todo mundo.
São exemplos os movimentos em prol da redução de impostos. Reduzir impostos pode ser bom para quem propõe, mas será que é bom para a distribuição de renda?
Na medida em que atua no espaço público, o voluntarismo organizado tende a ameaçar a primazia da resolução de conflitos por via da política e da reforma institucional.
É claro que ações voluntárias puntiformes (pintar uma escola, ministrar cursos de música a crianças carentes de um bairro etc.) têm incidência minúscula sobre o espaço público, gerando poucas tensões ou as gerando localizadamente. Tais iniciativas podem também funcionar como linha auxiliar do Estado.
Há, porém, exemplos que vão muito além disso, pretendendo apropriar para a esfera das decisões privadas assuntos que, por dizerem respeito à alocação de recursos do Estado e à resolução de conflitos, só podem ser encaminhados por via das instituições do Estado, o qual deve funcionar para todos, e não apenas para alguns.
Em certos países em que o Estado está desaparecendo, em particular na América Latina, existe uma tendência de se proporem "soluções" para os problemas institucionais conduzidas fora das instituições. Os atores são sempre organizações da sociedade civil e organismos ligados ao capital privado, aos quais se atribuem prerrogativas descabidas.
Esse tipo de anarquismo hiperliberal por vezes se alia à ingenuidade de uma certa esquerda infantil adepta da democracia privada exercida por grupos corporativos.
É exemplo eleger dirigentes de escolas ou admitir que alunos opinem sobre currículos, coisas essas que, ao lado de outras, nos legaram uma escola (pública e privada) afundada terminalmente na mediocridade.
O resultado de iniciativas que prosperam sem que sejam antes projetadas no plano da discussão política é a privatização do espaço público, o qual vai se desestruturando ao sabor de uma multiplicidade de interesses segmentados, todos trabalhando em favor do "bem" -de alguém.
CLAUDIO WEBER ABRAMO, matemático pela USP e mestre em lógica e filosofia da ciência pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), é diretor-executivo da Transparência Brasil, organização dedicada ao combate à corrupção.
quarta-feira, 3 de outubro de 2007
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