O voto de Ayres Britto sobre Raposa Serra do Sol
Na tarde de hoje, após as falas dos advogados da União, dos povos indígenas, do estado de Roraima e dos arrozeiros, incluindo um emocionante apelo da advogada indígena Joênia Wapixana, o ministro Carlos Ayres Britto proferiu um longo e brilhante discurso sobre as questões envolvidas na disputa da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
Em seu discurso Ayres Britto ponderou sobre aquilo que chamou de “coordenadas constitucionais”, isto é, a hermenêutica do conjunto de artigos e ítens que constam na Constituição brasileira sobre a questão indígena, seja diretamente, seja diagonalmente. Suas coordenadas constitucionais foram sempre favoráveis aos índios. Para Ayres Britto, a Constituição brasileira e o Estatuto do Índio tratam os índios como brasileiros em condições especialíssimas, algo que nós sempre temos insistido. É generosa e grandiosa e não deve nada a nenhum documento internacional, seja a Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas (a qual ele de certa forma condenou por determinar de fora a autodeterminação dos povos indígenas), seja outro qualquer (como a Convenção 169, da OIT). Ao mesmo tempo, a Constituição permite, pela interferência necessária do Estado e pelo relacionamento harmônico entre índios e não índios no país, o processo de aculturação e integração dos povos indígenas, sem prejuízo da manutenção de suas culturas, usos e costumes. Com isso varreu de lado aqueles que acham que existe uma incompatibilidade entre preservação de cultura e integração dos índios à nação brasileira. A Constituição de 1988 foi, portanto, exaltada, mas não mistificada, como fazem as Ongs indigenistas anti-rondonianos.
Ao tecer suas coordenadas constitucionais e rebater uma por uma as objeções criadas pelos contrários à homologação contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, o ministro Ayres Britto fez as seguintes considerações:
1. Não há incompatibilidade entre terras indígenas e faixas de fronteira
2. Os povos indígenas não constituem um perigo à soberania nacional
3. As terras indígenas de uma etnia devem ser reconhecidas de forma contínua
4. Os espaços vazios entre terras indígenas de etnias diversas podem ser incorporadas ao estoque de terras públicas não indígenas
5. Diferentes etnias podem conviver na mesma terra indígena quando há compatibilidade e harmonia (esta foi uma discussão um tanto bizantina em que o ministro-relator quis se pronunciar sobre a concepção de que um território indígena é sempre de uma etnia)
6. As culturas indígenas se aculturam e se integram sem necessariamente perder suas características próprias, apenas adicionando novas configurações
7. A ocupação permanente de terras indígenas é definida como tendo um caráter de convivência e uso
8. A constituição de 1988 é o corte temporário anterior à qual se pode reconhecer uma terra indígena como tendo ocupação permanente. Após esse ano, a chegada de índios a uma terra não constitui ocupação tradicional
9. Roraima tem terras suficientes para sua população, mesmo não tendo controle sobre as terras da União (indígenas e de reservas ambientais), comparativamente com estados com Rio de Janeiro, Espírito Santo e Alagoas, juntos.
10. Se há vazio do Estado em faixas de fronteira, a culpa é do próprio estado, não dos índios
11. Portanto, o Estado deve fortalecer o Exército e a Polícia Federal nas regiões de fronteira (em nenhum momento mencionou a Funai ou um órgão indigenista, como se ele não existisse)
12. Os índios não podem se opor à presença do Estado, nem interromper estradas ou próprios públicos, pois eles são cidadãos e dependem do Estado para educação, saúde, desenvolvimento econômico.
13. Os estrangeiros devem ficar fora de terras indígenas, em função de sua cobiça por minerais e pela ambição pela Amazônia.
14. No território brasileiro quem manda é o Brasil, não a ONU ou Ongs estrangeiras
15. Tanto os laudos antropológicos feitos pela Funai quanto a comissão do estado de Roraima têm legitimidade para se opor a decisões e apresentar seus argumentos em cortes.
16. Não acredita ter havido uma proliferação de malocas com o fito de dar a impressão de presença indígena em todas as áreas.
17. Toda a área delimitada pela Funai é terra indígena legítima, habitada pelas etnias Makuxi, Taurepang, Ingarikó, Patamona e Wapixana, que vivem misturadas em convívio harmonioso.
18. As posses e fazendas de arrozeiros são ilegítimas por terem sido obtidas por esbulho dos índios.
19. A extensão de Raposa Serra do Sol é compatível com as coordenadas constitucionais concernentes aos povos que lá habitam
20. Demarcar terras indígenas não se orienta por critérios matemáticos. Não deve prevalecer a contabilidade espúria de calcular o tamanha da terra em relação ao número de habitantes indígenas.
21. A extrusão de não indígenas da Raposa Serra do Sol deve ser feita pacificamente e garantindo terras alternativas para os intrusos
22. As vilas existentes em Raposa Serra do Sol foram formadas por garimpeiros que saíram da T.I. Yanomami, portanto, não têm legitimidade
23. São nulas as titulações conferidas pelo Incra e inválida a ocupação da Fazenda Guanabara, Depósito e outras.
24. As terras vendidas pelo estado de Roraima são ilegítimas
25. Só os ocupantes de boa-fé podem receber idenizações
26. Os rizicultores que passaram a usar a terra a partir de 1992 não têm direito, mesmo em terras compradas de títulos antigos porque vieram de esbulho dos índios.
27. As fazendas de arrozeiros degradam o meio ambiente e impedem os índios de passarem por lá e usarem do rio Surumu.
Em conseqüência dessas considerações argumentadas com estilo literário superior, o ministro Ayres Britto proferiu seu voto em alto e bom som: pela improcedência da Ação Popular que motivou esse julgamento, pela permanência da homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e pela retirada imediata dos não indígenas daquela terra indígena.
Grandíssissimo voto. Porém, pairou no ar a falta de diretrizes para a demarcação de novas terras indígenas, algo que parecia ter sido prometido pelo ministro-relator e por Gilmar Mendes, em diversas entrevistas anteriores. Por sua vez. na primeira intervenção de um ministro do STF, o ministro Carlos Alberto Menezes Direito, foi pedido vista do processo. Com isso o presidente Gilmar Mendes deu por encerrada a sessão.
Nova espera, novas angústias. Os arrozeiros vão continuar na terra e vão dar prosseguimento á sua atuação maléfica e perversa. Paulo César Quartiero, com sua arrogância e desprezo aos poderes públicos, saiu ironizando o voto de ministro. Os advogados contrários, com sorrisos amarelos, prometeram uma reação na busca de convencimento dos votos dos demais ministros.
Enfim, com alguma alívio e ainda apreensão, a luta continua!
Vamos esperar pelo voto do ministro Eros Grau sobre a Terra Indígena Caramuru-Paraguaçu, que será debatida dia 3 de setembro próximo. Talvez aí possamos ter esperanças.
quarta-feira, 27 de agosto de 2008
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