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quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

A batalha de Humaitá

Em Humaitá a situação continua tensa. A população exige que o desaparecimento de três pessoas seja esclarecido. O Exército perambula pelas aldeias dos Tenharim e não consegue pista do que aconteceu. Dizem que acharam um carro queimado que pode vir a ser o carro prendido pelos índios. Mas não há prazo para se esclarecer isso. Por seu lado, os índios estão encurralados, recebendo o apoio do Exército em forma de proteção e alimentos. Nenhum índio permanece na cidade de Humaitá com medo de ser linchado. A Funai não sabe bem o quê fazer, todos os seus funcionários graduados saíram para Porto Velho ou Manaus.
A pedido de uma jornalista, escrevi as seguintes considerações sobre o assunto.

1. Em muitas partes do Brasil há situações semelhantes à de Humaitá. Há alguns anos os índios passaram a conviver nas cidades, a criar uma vida urbana, e isso resulta em tensões, seja de ordem econômica, seja de ordem cultural. Entretanto, em geral, as tensões são dissipadas pelo conhecimento mútuo e pela confiança que se estabelece entre as partes. Muitas cidades brasileiras convivem perfeitamente bem com os índios que lá habitam ou que a frequentam. Outras não. Em geral, as tensões estão mais presentes em cidades novas, recém-formadas ou recém frequentadas pelos índios. Nelas há uma incompreensão por parte dos cidadãos não indígenas sobre quem são os índios e como eles devem se relacionar com o mundo dos "brancos". Já os índios buscam um caminho de bom relacionamento, ao seu modo, mas as coisas nem sempre ocorrem como os cidadãos brancos querem.

2. Em diversas partes do Brasil, onde passam rodovias, os índios se deram conta de que as rodovias produzem impactos em suas vidas. Eles sentem que muitos se valem dessas rodovias e por elas são beneficiados. Mas não eles, os índios. Daí começaram a cobrar pela passagem de automóveis nessas rodovias. Por exemplo, os índios Pareci permitiram que se fizesse um atalho em uma rodovia, que passou por suas terras, diminuindo a distância, mas sob a condição de pagarem pedágio. Isso vem ocorrendo há uma dezena de anos, e, apesar das reclamações, tornou-se uma realidade regional. Já os índios Kayapó cobram um pedágio pela passagem de carros em balsa sobre o rio Xingu. Os caminhoneiros reclamam, o governo do Mato Grosso quer acabar com isso, mas os índios mostram força para manter o pedágio. Há legalidade sobre isso? Provavelmente não, mas são fatos reais que precisam ser considerados para algum foram de legalização. Pedágio, hoje em dia, é cobrado nas principais rodovias brasileiras, supostamente em troco de sua manutenção, o que nem sempre é real.

3. O caso da Terra Indígena Tenharim-Marmelos é típico de outras situações em que há uma pressão extra, bem maior e contundente, por parte de madeireiros que invadem a terra indígena e dela fazem uso indiscriminado. Em algumas delas, faz-se vista grosso em troca de algum pagamento; em outras, há uma maior supervisão, e os índios recebem uma porcentagem maior. Há legalidade nisso? Provavelmente não, mas é um fato real, e precisa ser levado em conta.

4. A retirada de madeira em terras indígenas é ilegal. Mas está acontecendo sob as vistas do Ibama e da Funai, e pouco se consegue fazer, ainda mais quando alguns índios estão envolvidos. Isso também tem que ser levado em consideração.

5. Evidentemente, os índios não gostam de ver suas florestas serem devastadas. A maioria não permite que isso aconteça.

6. Portanto, falta uma política social e econômica para que aqueles índios que, em determinadas circunstâncias, não permitam que se retire madeira de suas terras. Quem haverá de fazer essa política? O governo, claro. Mas, não consegue. A retirada e expulsão de madeireiros se dá sempre em surtos, com polícia, Ibama, Funai, todos juntos. Mas, em geral, desafortunadamente, dura só enquanto há a presença da polícia.

7. Falta, portanto, uma política mais consistente na questão da proteção ambiental brasileira. Quem há de fazer isso?

8. No caso recente ocorrido na região abrangida pela cidade de Humaitá, deu-se uma incontida explosão de desentendimentos, com os resultados que estamos acompanhando pela mídia. As mortes ocorridas, de parte a parte, têm que ser contabilizadas e julgadas. Isto é essencial para que se volte à situação anterior e se estabeleça um modus vivendi razoável para ambas as partes. Eventualmente, as tensões poderão ser dissipadas. Para isso, é preciso que se fortaleça a mediação da Funai para dirimir possíveis conflitos. Quem deve fazer isso? O governo, é óbvio.

9. É fundamental que o caso Humaitá seja resolvido. Se não, a cidade ficará impregnada de tensões, outras cidades brasileiras também poderão pagar seu próprio preço, e os índios continuarão a sofrer pela discriminação e pela falta de um caminho benéfico à sua ascensão no panorama brasileiro.

terça-feira, 4 de junho de 2013

Por que o SPI foi extinto e como se desenvolveu a FUNAI

Nesses tempos de liminaridade, de confusão sobre a questão indígena brasileira, com a Funai sendo criticada pelo poder econômico, desprezada há tantos anos pelas ONGs, e relegada pelo governo federal a minguar, vale a pena ler trechos do meu livro O ÍNDIO NA HISTÓRIA: A Saga do povo Tenetehara em busca da Liberdade, publicado em 2002 pela Editora Vozes.

Nesses trechos, correspondentes ao final do Capítulo VIII e começo do Capítulo IX, procuro fazer um balanço da ação do SPI e seus resultados em relação ao povo Tenetehara (Guajajara do Maranhão e Tembé do Pará), bem como das razões de sua extinção e substituição pela Funai.

Procuro ser objetivo, baseado no que pesquisei da realidade histórica, através de materiais de arquivos, entrevista com velhos indigenistas e chefes de posto, e acima de todos com os índios Tenetehara.

Ao longo do livro, de mais de 600 páginas, relato a história desse povo indígena desde seu primeiro contato com os franceses que fundaram a cidade de São Luis, do Maranhão, em 1612, e de todos os períodos históricos pelos quais passaram os Tenetehara.

Em alguns trechos há críticas fortes, em outros uma aquilatamento dos resultados, em outros mais uma visão positiva do papel do Estado em relação a esse povo indígena e à questão indígena brasileira em geral.

Pode servir, nesse momento, de base histórica e analítica para a reflexão do momento atual. E para uma possível e necessária transformação do órgão indigenista.

Boa leitura a todos
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SPI: uma avaliação parcial
O Serviço de Proteção aos Índios foi extinto em 5 de dezembro de 1967 e substituído pela Fundação Nacional do índio através do decreto‑lei 6.001. Nos prévios três anos havia estourado uma série de escândalos em que supostamente alguns dos seus servidores foram considerados até como assassinos, ou cúmplices de assassinatos, de índios; outros foram considerados corruptos, venais e despreparados. O escândalo maior foi a descoberta pela imprensa de um massacre de uma aldeia inteira de índios Cintas‑Largas, em Mato Grosso, na altura do paralelo 11, entre cujos assassinos, a mando de um grande especulador de terras, estava um ex‑funcionário do SPI. Um procurador da república, Jardes Figueiredo, abriu um inquérito, que teve larga repercussão na imprensa, no qual, ao final, ninguém parecia ter ficado sem nódoas. Até o trabalho de pessoas como Noel Nutels, o sanitarista que criara o serviço de combate à tuberculose, e último diretor do SPI no governo João Goulart, os sertanistas Francisco Meirelles, pacificador dos Xavante, e os irmãos Villas Boas, diretores do Parque Nacional do Xingu, de alguma forma foi posto em questão. Com certeza uma ala do regime militar da época queria dar um fim ao órgão indigenista, na expectativa de dar fim também aos índios[i]. Integrar os índios à sociedade nacional, através do trabalho, da educação e da aculturação, era um mote que estava presente em parte da elite política brasileira, e uma linha de militares queria ver isto cumprido. A imagem que se queria projetar de um Brasil grande e em desenvolvimento, com espírito moderno, também não parecia se coadunar com o jeitão do velho SPI. Foi nesse espírito, e sob um fundo de combate à imoralidade e a incúria, que o SPI foi extinto para surgir a FUNAI.

Encarando objetivamente a história do SPI, não podemos fugir à obrigação de pesar os prós e os contras dos seus 57 anos de atividades. Desde a sua extinção, muitos antropólogos já fizeram tais avaliações, quase todas reprobatórias. Afinal, nesse período, muitas etnias foram extintas e quase todos os povos sobreviventes perderam grandes contingentes populacionais. Poucos tiveram suas terras demarcadas e garantidas, e pouquíssimos adquiriram os meios econômicos e educacionais para fortalecer suas culturas e suas conceituações perante a sociedade brasileira. Do lado positivo, pode‑se dizer que foi o SPI que estabeleceu uma visão humanística e uma atitude prática de dedicação e auto‑sacrifício poucas vezes vistas em associações de caráter estatal e laico. Foi o SPI que projetou o índio à categoria de brasileiro ante quod altre e forneceu os argumentos para a sua inserção especial nas constituições brasileiras desde 1934. Por fim, pode‑se dizer que foi na última década de sua existência que a maioria das etnias indígenas brasileiras, tendo descido aos seus nadires populacionais, começaram, imperceptivelmente, a crescer, revertendo a tendência de 450 anos de declínio demográfico, que parecia a todos inexorável[ii].
            
Em relação aos Tenetehara, espero que a análise descritiva ora apresentada possa nos ajudar a aquilatar o grau de relevância da atuação do SPI. No baixo e médio rio Grajaú, o resultado é absolutamente negativo, pois os índios ficaram à mercê dos fazendeiros e coronéis locais e, apesar de sua resistência até a década de 1960, perderam suas terras. No alto e médio Pindaré e em todo o Gurupi, sua ação foi deficiente ao ponto de abandono, pois os índios sofreram baixas de quase 90% de suas populações e seus territórios teriam sido perdidos não fosse por eventos inesperadas, como a chegada de imigrantes Tenetehara vindos do baixo Grajaú, e a atuação da FUNAI. Nas demais áreas, porém, por circunstâncias favoráveis do relacionamento interétnico, o SPI foi capaz de solidarizar‑se, talvez apesar de suas intenções assimiladoras, com o propósito dos Tenetehara de manter sua identidade étnica, e ensejar condições que ajudaram à sobrevivência desse povo, inclusive com a pré‑garantia da posse das suas terras. Porém, no balanço final, não restam dúvidas de que o mérito dessa sobrevivência deve ficar com os próprios Tenetehara, que não concebiam outra opção honrosa senão lutar para serem eles mesmos. Nesse sentido, a ação positiva do SPI foi obra das circunstâncias históricas por que passou o Brasil, em que o Estado e parte da sociedade foi ganhando uma compreensão mais progressista da realidade indígena, compreensão esta que em alguns casos foi realizada positivamente. No mais, o que vinha acontecendo era o surgimento dos índios como fautores de um novo destino que eles começavam a traçar para si próprios.



[i]. Durante a história do SPI houve diversas ocasiões em que o órgão indigenista foi posto em questão e ameaçado de extinção. Por exemplo, no relatório anual de 1954 consta um artigo de Darcy Ribeiro em que rebate um anteprojeto de lei de um deputado que propunha a extinção do órgão indigenista e sua substituição por missões religiosas.
[ii]. Ver o capítulo final de meu livro Os índios e o Brasil, para uma explicação mais detalhada sobre o crescimento populacional das etnias indígenas brasileiras.


Capítulo IX
A FUNAI e os Tenetehara

Razões de ser
A Fundação Nacional do Índio ‑ FUNAI ‑ surgiu da vontade do regime militar de criar suas próprias instituições e descartar aquelas que lembrassem de algo que ele era contra[i]. Nos três anos após o golpe de 1º de abril de 1964, a desmoralização do SPI crescera e se difundira na mídia, e sua filosofia indigenista parecia ao novo regime muito condescendente, assistencialista e sem prumo. A geração dos companheiros de Rondon e seus discípulos imediatos não existia mais, e a dos antropólogos, indigenistas e sertanistas que havia participado e contribuído para a reorganização do órgão no pós‑guerra fora deslocada ou estava sendo acusada de subversão política ou malversação de fundos, tendo alguns se exilado, e não se fazia renovação dos quadros. Francisco Meireles, o pacificador dos Xavante, de inclinações esquerdistas, foi processado e preso, enquanto os irmãos Villas Boas, assentados no Parque Nacional do Xingu, se aquietaram por lá, um pouco sob a cobertura da Força Aérea Brasileira, que há anos mantinha um serviço aéreo que dependia do campo de pouso do Parque. O último diretor do SPI do governo João Goulart, o médico sanitarista Noel Nutels, foi exonerado do cargo, processado diversas vezes e aposentado.

Durante o ano de 1964 o SPI ficou desorientado, estando à sua frente um burocrata do ministério da Agricultura, Aristides Procópio de Assis. Uma de suas medidas imediatas, naturalmente, foi a substituição de grande parte dos inspetores regionais por militares ou por gente ligada ao movimento golpista. Em 1965 foi nomeado o tenente-coronel Luiz Vinhas Neves, que ficou até abril de 1966, quando foi substituído pelo major-aviador Hamilton de Oliveira Castro. Este se fez conhecido pela idéia de doar as terras dos Canela para o INCRA, achando que podia deixá-los a viver permanentemente entre os Tenetehara[ii]. Nesse período que vai até dezembro de 1967 é que alguns antigos burocratas do SPI, como Luís Lacombe, junto com juristas como Temístocles Cavalcanti, planejaram a extinção do SPI e a criação de um novo órgão. A idéia de uma fundação implicava maior autonomia financeira e administrativa, bem como possibilidades de obter e manejar mais recursos. Seus mentores planejavam, inclusive, incrementar as atividades econômicas dos índios e gerir a renda de suas riquezas naturais, principalmente a madeira, os produtos extrativos e o gado, onde fosse possível, para ajudar com as despesas de custeio[iii].

Assim, a FUNAI, instituída pelo decreto-lei nº 5.371, de 5 dezembro de 1967, veio para resolver o que o regime militar concebia como a questão indígena brasileira, qual seja, a presença de grupos étnicos populacionalmente e culturalmente diferenciados, os quais, embora de pouca conseqüência para a nação, controlavam vastos territórios, ao mesmo tempo em que estiolavam na pobreza e na impossibilidade de se desenvolver. Por ambos os motivos, chamavam a atenção da mídia para si, quase sempre negativamente para a imagem que o regime militar queria projetar do país. A resolução desse problema só poderia vir com a integração dessas populações à maioria nacional, o que significaria a dissolução das etnias indígenas que haviam sobrevivido até então. Essa visão ‑ contrária à do SPI, que pretendia mudar o índio para que ele servisse de sustentáculo rural à nação ‑ implicava duas ações, que mais tarde provaram ser incompatíveis entre si: a aceleração do processo de integração econômica e social, inclusive via emancipação da tutela do estado, por um lado, e a garantia de suas terras, em tamanho aceitável para eles e para a nação, por outro.

Sob tantos aspectos o novo órgão indigenista não iria diferir muito do velho. Passou do ministério da Agricultura para o do Interior, centrando todas as suas atividades de planejamento na sede, que foi transferida do Rio de Janeiro para Brasília. O Conselho Nacional de Proteção ao Índio, criado pelo General Rondon em 1939, foi mantido porém cada vez menos consultado até ser desativado em 1985. Vivendo um período de grande crescimento econômico, a FUNAI surgiu com orçamentos mais generosas do que os do SPI, os quais foram usadas para criar a infra-estrutura administrativa e operacional que iria durar pelos anos seguintes. A partir da década de 1980 os orçamentos foram diminuindo, o que coincide tanto com o fim do ciclo de crescimento econômico, quanto com a desaceleração do ímpeto de resolução projetada da questão indígena.

Como em outros órgãos estatais da época, a FUNAI era fiscalizada internamente por um setor de controle de informações, cujos cargos foram sempre ocupados por agentes do Serviço Nacional de Informações, ou oriundos do Exército, que informavam, espionavam e vetavam atos e pessoas considerados subversivos ou ameaças à segurança nacional.

Nos primeiros dois anos a implantação do novo órgão se deu lentamente, tanto mais porque esses anos vivenciaram um período em que graves questões políticas arrebatavam o país, que resultaram na Constituição de 1967, no famigerado Ato Institucional nº 5 e na Constituição outorgada através do Ato Institucional nº 10, em 1969. A questão indígena se fez presente nessas constituições não somente seguindo os moldes dos artigos a ela consagrados nas constituições de 1934, 1937 e 1946, mas adicionadas por medidas que favoreceram a ação estatal na demarcação das terras indígenas. Completando juridicamente a criação do novo órgão, em 19 de dezembro de 1973 foi promulgado a Lei nº 6.001 criando o Estatuto do Índio, o qual iria servir de guia normativo para o relacionamento entre índios e o Estado brasileiro até recentemente.

Por volta de 1970 as inspetorias regionais do SPI passaram a ser chamadas de delegacias, mais ao gosto militar, como aliás militares foram muitos dos delegados. As delegacias mantiveram a incumbência de coordenar as atividades‑fins dos postos indígenas e de dar solução aos problemas mais prementes dos índios. Passaram a contar com um corpo médico‑odontológico que, anualmente, ou de acordo com as necessidades, visitariam os postos e aldeias indígenas. Teriam também um setor jurídico para acompanhar as causas do órgão e representar os índios em juízo. Para abrigar os índios visitantes, deveriam possuir ou alugar hospedarias, que ficaram conhecidas como Casas dos índios.

Na ponta do organograma estavam os postos indígenas, cada qual com equipe própria formada por um chefe, um auxiliar de enfermagem, com uma boa farmácia, um técnico agrícola, um professor, preferencialmente indígena, com uma escola até o nível da 4ª série, e um ou mais serviçais, ou trabalhadores braçais, para cuidar dos bens do posto e fazer roças para o sustento da equipe. Fisicamente o posto deveria ter sede própria, casa de maquinário, viatura ou barco, canoas, ferramentas, se possível, luz elétrica e poço semi‑artesiano. Na implantação dos postos foram utilizados os já existentes, criados pelo SPI, alguns com mudança de sede, e muitos mais foram criados a partir de meados da década de 1970. Quase todos mudaram de cognome, perdendo os nomes dos heróis e luminares do SPI, e passando a ter cognomes dos pontos geográficos ou das aldeias em que se situavam.

Em suma, a FUNAI foi instituída para ser um SPI menos carregado de história e ideologia, mais eficiente e impessoal na administração e que cumprisse o propósito indigenista fundamental do Estado brasileiro que era de fazer o índio virar um brasileiro como outro qualquer[iv]. A partir de 1971 a FUNAI criou um curso de formação de indigenistas, o qual foi ministrado por professores e antropólogos de confiança do órgão, especialmente da Universidade de Brasília. Até 1985 sete tais cursos haviam sido dados formando mais de duas centenas de indigenistas, muitos dos quais chegaram a galgar posições políticas de relevo dentro do órgão. No início os indigenistas se distinguiam como uma geração nova dos velhos sertanistas do SPI, mas, com o passar dos anos, eles mesmos, tendo experiência com povos indígenas autônomos de recém-contato, foram sendo promovidos aos cargos de sertanistas. 

Sob muitos aspectos, sobretudo os mais objetivos, tais como a demarcação das terras indígenas e o crescimento demográfico, pode‑se dizer que a FUNAI melhorou, substancialmente, o legado do SPI. Por outro lado, suas deficiências inatas, especialmente a deformação do uso do poder, a subordinação a uma política desenvolvimentista e essencialmente antiindígena, a corrupção em vários níveis e a incúria administrativa provocaram, a contragosto, a reação cada vez mais política dos povos indígenas. Finalmente, há que se entender que os tempos eram outros, com a presença ativa da mídia nacional e internacional cobrando a defesa dos interesses dos índios, o florescimento dos movimentos democrático, indígena, ambientalista e de minorias em geral, bem como os desdobramentos econômicos e sociais da expansão agropastoril e extrativa que atingiram diversas regiões indígenas e que as conectaram às cidades e aos meios de comunicação.

O destino dos índios foi aos poucos se revertendo positivamente em função de novos fatores sociais que estavam ocorrendo na sociedade brasileira e no mundo indígena. Na sociedade brasileira cresceu o interesse e a simpatia pela causa indígena, abrindo com isso um flanco de crítica ao governo federal que antes só era acessível aos especialistas. No decorrer da década de 1980 iriam surgir novas lideranças indígenas que traziam um discurso mais contundente e afinado com os tempos e agiam com mais determinação política. Mais importante ainda, as populações da maioria dos povos indígenas estavam experimentando algo surpreendente até para os antropólogos que os conheciam: um crescimento demográfico incomparável, o que revertia a curva demográfica negativa de quase cinco séculos. Assim, o controle do destino dos índios foi ficando um pouco mais em suas próprias mãos, embora não se possa dizer que sua vulnerabilidade tenha sido controlada de todo.

Esses novos fatores se exerceram independentemente da ação da FUNAI, mas não se pode dizer que à sua revelia. Houve momentos em que o órgão indigenista teve ímpetos ativistas que marcaram uma presença positiva, tais como entre 1975 e 1979, e no biênio da transição democrática, entre 1984 e 1985. Porém, quase sempre sua direção foi exercida por militares sem vínculo com a ideologia rondoniana, sem nenhuma visão integradora da relação entre os índios e o Brasil. Os civis que os substituíram após 1985 tampouco compreenderam as possibilidades socioculturais dessa relação, considerando sua tarefa apenas como administração de conflitos interétnicos, ou, mais recentemente no governo Cardoso, como adaptadores da ideologia neoliberal ao órgão indigenista. Desde 1986 a FUNAI vem perdendo importância para ajudar os povos indígenas em relação aos novos obstáculos que os perseguem, e pouco faz para justificar sua existência. Seus objetivos precípuos não foram atingidos, já que nem todas as terras indígenas foram demarcadas e garantidas. Porém, para sorte dos índios, a emancipação da tutela do Estado, que havia sido proposta no final do governo Geisel como solução final para resolver a questão indígena no Brasil, não se tornou uma realidade. Os povos indígenas dão todos os sinais de querer continuar a ser índios, de continuar lutando pela sobrevivência e pela ampliação de seus direitos como etnias e como cidadãos brasileiros, participando de sua vida social, política e econômica. Ser índio e ser brasileiro não lhes parece condições incompatíveis. Embora desde a redemocratização do país estejamos vivendo um período de indefinição e desleixo da parte do Estado em relação aos índios, algo terá que ser feito, pois, do contrário, a inércia só servirá aos inimigos dos índios, que se agrupam com mais intensidade nos seus interesses de exploração das riquezas que há nos territórios indígenas[v].



 1. Por motivos semelhantes o governo militar extinguiu a Superintendência da Reforma Agrária (SUPRA) e criou o Instituto Nacional de Crédito e Reforma Agrária (INCRA).
2. Após o ataque de 7 de julho de 1963 à aldeia do Ponto, em que cinco índios foram mortos e quatorze ficaram feridos, os Canela foram removidos para a terra indígena Guajajara-Canabrava, onde permaneceram por três anos. Lá diversos morreram de uma epidemia de tifo e de problemas pulmonares. Seu retorno às suas terras na chapada se deu quando um dos líderes, Pedro Gregório Kakroré, que também era servidor do SPI desde 1940, tomou a iniciativa de fazer sua roça nas terras do seu povo, a partir de setembro de 1966. Quanto aos mais de 120 atacantes, só em 16 de dezembro 1978 é que o seu líder Miguel Veríssimo foi julgado por júri comum em Barra do Corda, tendo sido absorvido por seis votos contra um.
[iii]. Um dos pré‑projetos de organização da FUNAI previa até a complementação dos salários dos funcionários com recursos da renda indígena, mas isto foi abandonado no texto final. É de se recordar que essa concepção havia sido utilizada pelo sistema de Diretoria Geral dos Índios, do tempo do Império, que por sua vez a copiara de uma das cláusulas do Diretório de Pombal, de 1757.
[iv]. A respeito da urgência em assimilar o índio, o presidente Ernesto Geisel (1974‑1979), em cujo governo se tentou fazer a emancipação jurídica dos índios, costumava argumentar que, se ele, que era brasileiro apenas de segunda geração, chegara a ser presidente da república, por que os índios, que eram nativos do país, deveriam demorar tanto para virarem brasileiros? Recordemos, ao contrário, que um dos propósitos do SPI, nas palavras de um dos seus primeiros diretores, Horta Barboza, era “fazer do índio, um índio melhor”, isto é mais adaptado para viver como cidadão brasileiro.
5. Para uma visão mais abrangente e detalhada da questão indígena no Brasil ver meu livro Os Índios e o Brasil, 1991 (2012).

sábado, 1 de setembro de 2012

Pressionado, Ministro da Justiça escreve de próprio punho pedido de suspensão do Decreto 303

A pressão dos índios que bloquearam as rodovias no Mato Grosso sobre o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, na reunião de sexta-feira, o levou a escrever e assinar de próprio punho, "na condição de Ministro" uma Declaração em que se compromete a pedir ao chefe da AGU a suspender o Decreto 303 pelo tempo necessário ao STF decidir sobre os embargos declaratórios sobre o Acórdão de 19/03/2009.

O documento me lembra outros documentos recentes em que um certo presidente da Funai prometia aos índios que iria pedir ao presidente Lula para refazer as suas administrações regionais, e depois, depois ... nada.

No caso do ministro esse documento tem igual validade. Será que o ministro da AGU vai publicar um novo decreto dizendo que a suspensão vale até o tempo indeterminado em que o STF vai decidir sobre os embargos declaratórios? Parece conversa de botequim.

Entretanto, acho que esse Decreto 303 é tão absurdo, tão irreal e tão ilegal, (e o governo sabe disso), que foi publicado como se coloca um bode numa sala, como um disfarce para se fazer outras coisas, ou como um experimento para ver no que dá.

Só que o movimento criado pelos índios do Mato Grosso pesou na economia do estado e o governo federal sentiu.

O perigo é esfumaçar a questão com a criação de uma comissão para discutir os termos do Decreto 303.  Discutir? Mas, não é para revogar não?

Agora, com esse declaração, sabemos ao menos como é a caligrafia do ministro José Eduardo Cardozo.
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sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Índios do Mato Grosso conseguem pequena vitória no MJ

Hoje pela manhã 14 lideranças, que comandaram o bloqueio de quatro dias de duas grandes rodovias federais, as BR 174 e 364, interrompendo o fluxo de veículos que iam a Cuiabá, se reuniram com o Ministro da Justiça e representantes do Ministério Público e da AGU, para discutir os termos da revogação do Decreto 303. Os índios ficaram pasmos com a ausência da presidente da Funai a essa reunião. Onde ela estaria que não se dignou a conversar com eles?

A ida dessas lideranças se deveu ao compromisso do governo pelo desbloqueio daquelas rodovias ontem à tardinha.

Pois bem. O ministro da Justiça e a AGU se comprometeram a emitir um decreto novo suspendo os termos do Decreto 303  -- até que todas as pendências que estão no Acórdão do STF sobre a confirmação da homologação da TI Raposa Serra do Sol sejam resolvidas. Essas pendências se devem a embargos de declaração que foram impetrados por advogados do CIMI e que precisam ser respondidas para que, ao final, a questão tenha sido de todo "transitada em julgado". Isto é, finita, acabada.

Bem, não se sabe quando o STF vai decidir sobre esses embargos de declaração. A maioria deles diz respeito à busca de esclarecimentos sobre alguns trechos do Acórdão. Isto significa que o próprio Acórdão possa ser mudado. Porém, em geral, esses embargos só suscitam esclarecimentos pro forma, com algum ou outro detalhamento. Raramente mudam qualquer teor do julgamento acordado.

Enfim. Ficou adiada sine die a validade dos termos do malfadado Decreto 303. Talvez lá para o próximo ano algo seja visto sobre o assunto.

Enquanto isto não acontecer, pode-se concluir com algum dissabor que os índios que valentemente fecharam as rodovias obtiveram uma pequena vitória. Sim, o governo deu o braço a torcer e os pediu para abrir as rodovias e os escutou no MJ e prometeu-os que iriam suspender o Decreto 303 até outro assunto acontecer.

Uma pequena vitória, sem dúvida, mas talvez uma vitória de Pirro. Venceu mas não levou. Isto porque, para o governo, agora o Decreto 303 não será mais motivo de protestos por parte dos índios. Agora os membros da CNPI, por exemplo, podem alegremente se reunir com os membros do governo e fazer suas reuniões sobre o que não será decidido, sem sentir que estão traindo os interesses da comunidade indígena em geral.

O que faltou também na discussão hoje de manhã foi o tema da reestruturação da Funai. O governo não se comprometeu com nada dessa questão, deixando-a como está. Isto quer dizer que a danação da Funai continua. As coordenações estão esvaziadas de poder, os postos indígenas inexistentes, e correndo solta a farço das comissões paritárias, que servem para enganar e não resolver nada.

E o orçamento da Funai, que mal foi aberto, já acabou?

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Índios emparedam ministros da Justiça e da AGU

Mais de 60 índios, entre Kayapó, Xavante, Fulniô, Terena e representantes das associações indígenas, indigenistas da FUNAI e missionários do CIMI estiveram no Auditório do Ministério da justiça, onde foram recebidos pelo Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e o Advogado Geral da União, Luís Inácio Adams.

Os índios falaram e falaram bem. O grande líder Raoni Metuktire falou na própria língua, com tradução do seu sobrinho Megaron Txukarramãe. A fala de Raoni é simples e objetiva. Ele quer a revogação do Decreto 303, emitido pela AGU, à revelia da FUNAI, dos indigenistas e dos próprios índios. Esse Decreto restringe direitos indígenas já consagrados, leis estabelecidas e práticas de convivência entre índios e o Brasil. É um acinte aos índios, um retrocesso político e pré-rondoniano, e, segundo Dalmo Dallari, inconstitucional.

O advogado-geral da União, Sr. Luís Inácio Adams fez um discurso que beirou o patético. Disse que estava simplesmente regulamentando a súmula exarada pelo STF por ocasião da confirmação da homologação da TI Raposa Serra do Sol. Estaria estabelecendo um "marco legal" para que as terras indígenas e as novas demarcações tivessem segurança jurídica. Ninguém comprou seu peixe, e quase foi vaiado. Seu constrangimento se manifestava em cores, em seu passo lento e em seu rosto assustado.

Adams teve que admitir, quase digo "confessar", que fez esse decreto sem consultar ninguém do governo, nem MJ nem Funai, muito menos os índios. Também essa ninguém acreditou. Alguém está por trás disso, e ele não teria publicado algo de que se falava há muitos meses, e especialmente nos últimos dias, sem os retoques do MJ, da Funai e da Secretaria Geral do Governo. Porém, sua fala desculposa foi corroborada pelo ministro Cardozo que na frente de todos disse que nem estava sabendo do que estava acontecendo. Opa, mais um pateta no circo. A tônica de "toda culpa para a AGU" saiu da fala do ministro Cardozo, e foi repercutida até pela presidente da FUNAI. Estava evidentemente combinado que todo o governo empurrou a AGU de bode expiatório em relação à concepção desse decreto e sua ousada e intempestiva publicação. Luís Inácio Adams teve naturalmente que entubar. Dificilmente, com tal nível de passividade, vai ter peso político para ser indicado ao STF, como sói acontecer com advogados-gerais.

Os índios ligados às associações indígenas, sob o guarda-chuva da APIB, também falaram com uma só voz. São uníssonos porque seu discurso é aprendido nas falas do CIMI e de outras ONGs. Não têm as sutilezas étnicas das lideranças de raiz, que falam o que aprenderam a partir de sua vivências, errando na concordância aqui e acolá, mas vocalizando um destemor natural. Muito diferente da fala dos índios Kayapó e Xavante, por exemplo. No seu discurso são violentamente, inapelavelmente, irredutivelmente contra o Decreto 303. Declararam que só aceitariam voltar a participar do CNPI quando o decreto fosse revogado. Ora, lembro aqui, no ano passado, quando receberam um bolo do então presidente, disseram que só voltariam ao CNPI se fossem recebidos pela presidente Dilma Rousseff. Não o foram, mas voltaram ao CNPI esse ano, a pedido e sob o comando da presidente Marta Azevedo. O CNPI, aliás, já é visto como um corroborador do que o governo quer fazer, como a reestruturação da Funai, por exemplo, ou a criação de um grupo de controle de terras indígenas, o tal PNGATI.

Tomo a liberdade de criticar o discurso dos índios de associações porque eles precisam se libertar da tutela das ONGs e do CIMI. Eles deixaram de apoiar seus confrades em 2010 por ocasião dos protestos contra o Decreto 7056, a horrível desestruturação da Funai, porque estavam videntemente presos na gaiola ideológica das ONGs, que eram a favor da desestruturação da FUNAI.

Que aproveitem essa ocasião de agora, radical em muitos aspectos e crucial para a sobrevivência da FUNAI como órgão de assistência aos índios, para se libertar dessa tutela. É uma tutela aparentemente fiel, determinada, radical, mas que tem sua própria agenda e desígnios. Elaboram um discurso inflamado contra o governo, enquanto, nos bastidores, já estão negociando a revogação do Decreto em conversas com gente da Secretaria de Governo e da própria AGU. Tenebrosas transações...

A recepção dada pelos referidos ministros foi uma concessão ao movimento indígena lato sensu. Índios de raiz, índios de associações, indigenistas da Funai e missionários do CIMI tiveram uma vitória certa. Ao final, o advogado-geral sinalizou que iria pensar sobre a revogação do Decreto 303. Falou suave e manso, e aproveitou a ocasião para dizer que tinha ficado sensibilizado com a fala de Raoni. Todo mundo quer tirar uma casquinha com Raoni!

Pode ser que o Governo esteja ganhando tempo, enrolando todo mundo, enquanto prepara outro bode para botar na sala. Porém, o Governo sentiu a força desse movimento indigenista. Recebeu a todos porque não lhes restava alternativa. O caldo contrário estava engrossando em demasia.

Revogar ou inventar outro bode, outra ação para enfurecer a todos nós e continuar mandando e desmandando doidivanamente na questão indígena?

Acho que vai revogar e negociar o bode da reestruturação. Com isso divide o movimento indigenista atual, já que o CIMI nem liga para a reestruturação da FUNAI, pois nisso está junto com as ONGs que conceberam esse projeto. Acabar ou fazer esquecer a história do SPI e da FUNAI é um dos grandes propósitos dos que praticam um indigenismo anti-rondoniano na atualidade. Aí há mais gente nesse fronte do que os que estão na luta neste momento. Nisso estão de acordo com os fazendeiros.

Aí é que está. A luta pela autonomia do movimento indígena, pela ascensão de índios na Funai e no panorama político-cultural brasileiro vai continuar. A vitória de hoje, no Auditório do MJ, é só uma batalha.

PS
Vejam esse video em que Sonia Guajajara, vice-presidente da Coiab, rasga o Decreto 303 em frente aos ministros e a presidente da Funai.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Xavante em conflito

Gostaria de apresentar essa matéria jornalística do site Olhar Direto, de Cuiabá, com a expressão: Não me tirem do sério!

É que ela mostra que está ocorrendo um conflito extremamente sério na Terra Indígena Maraiwatsede devido à resistência dos posseiros e fazendeiros lá instalados, que se recusam a obedecer a ordem judicial para se retirar de lá. Porém, tanto pior porque o conflito está exacerbado devido às desavenças internas e a resultante desunião dos Xavante quanto à legitimidade de sua posse sobre essa terra indígena, que foi reconhecida como indígena em 1992, demarcada em 1995 e homologada em 1998, parte da qual os Xavante só conseguiram recuperar em 2004. Um grupo de tantos Xavante, não sei dizer ao certo, não sei se posso acreditar que sejam 150 deles, estão junto com os posseiros, tendo vindo de diversas outras terras indígenas xavante!

Quem poderá suportar uma coisa dessas! Qual o indigenista, qual o antropólogo, qual o funcionário da FUNAI que aguenta saber de uma coisa dessas!?

Só pode ser invencionice de algum modo. Ou exagero.

Sinto-me estranho diante dessa acontecimento e da desunião dos Xavante. Quando entrei na presidência da Funai a terra estava homologada mas não havia nenhum Xavante dentro dela. Por anos eles tentavam entrar e retomar sua soberania sobre o que havia sido demarcado, mas eram sempre dissuadidos por fazendeiros locais. A entrada dos Xavante em parte dessa terra se deu a partir de uma comunicação que eles me fizeram em outubro de 2003, com pedido de apoio à sua luta.

Pois bem, dei-lhes total apoio, de muitas maneiras. Com frequência os recebia em Brasília, os advogados da Funai conseguiam audiências com ministros do STJ e do STF, para onde os acompanhava, e enviei uma equipe das mais dedicadas da Funai, liderada por Edson Beiriz, administrador de AER Goiânia, com a ajuda prestimosa de Cláudio Romero e outros indigenistas.

Em certo momento enfrentei políticos e fazendeiros em Cuiabá, em conturbada reunião convocada pelo governador Blairo Maggi, e com a presença do vice-presidente, atuando como presidente, o falecido José de Alencar, todos pressionando para que eu aceitasse transferir os Xavante para uma pequena gleba de terras a 130 km de distância de sua terra já homologada. Lembro-me que, ao dizer que não faria isso ao presidente em exercício levantou-se um burburinho de que eu estaria desobedecendo ao presidente da República e que, portanto, seria demitido incontinenti. Não fui demitido, evidentemente, não sei por quê ou por obra e graça de quem.

O certo é que os Xavante persistiram e depois de passarem sete meses acampados na beira de uma estrada poeirenta, a BR-158,  ameaçados pelos posseiros e os capangas dos fazendeiros, tendo-lhes morrido duas crianças, conseguimos uma decisão do STF que os permitia finalmente penetrar na área e assentar aldeia. E isso foi feito para sua honra e para a glória da FUNAI.

Agora os Xavante estão desunidos e alguns dizem que essa não é terra deles?!

Tem algo de errado nisso, e precisa ser esclarecido. De todo modo, eis a matéria jornalística, escrita com parcimônia e objetividade. Creiam os que queiram!

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Xavantes se dividem e quatro caciques se aliam a posseiros em bloqueio da BR-158 (veja fotos)


Da Redação - Renê Dióz
Foto: Aprosum/Olhar Direto
À esquerda, bloqueio realizado por posseiros contrários à demarcação da Funai; à direita, lideranças xavantes aliadas ao cacique Damião durante a Rio+20
À esquerda, bloqueio realizado por posseiros contrários à demarcação da Funai; à direita, lideranças xavantes aliadas ao cacique Damião durante a Rio+20
Trezentos posseiros e 150 índios xavantes, liderados por quatro caciques, participam do bloqueio na rodovia federal BR-158, na região do Araguaia, desde a noite de sábado (23).

O ato é uma forma de protesto contra a decisão judicial federal que determina a desintrusão da área remanescente da antiga fazenda Suiá Missú, cujo território foi usado na demarcação da Terra Indígena Maraiwatsede pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Também foram anunciados bloqueios nas rodovias federais 080 e 242, mas a inda não há confirmação de que tenham se concretizado.

Os posseiros se opõem à medida judicial alegando que a demarcação da Funai foi fraudulenta, pois a área de ocupação tradicional indígena, segundo eles, não fica na região de Suiá Missú.

O mesmo argumento é utilizado pelos líderes indígenas aliados aos posseiros; eles não reconhecem a liderança do cacique Damião Paridzané, principal figura indígena a reivindicar as terras de Maraiwatsede tais como foram demarcadas pela Funai.

O cacique Damião, que participou da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20), ainda deve chegar do Rio de Janeiro, onde proferiu discurso inflamado cobrando do governo federal, da Funai e do Ministério Público Federal (MPF) celeridade na elaboração do plano de desintrusão que deverá promover o retorno dos xavantes liderados por ele a Maraiwatsede.

As informações são da TV Record Norte Araguaia, baseada em Confresa, segundo a qual apenas pouco mais de 120 índios ficaram dentro de uma das aldeias da região. Desses, apenas pouco mais de 20 insistem em permanecer nas terras.

Caciques

Ao lado dos posseiros no bloqueio da BR-158 estão os caciques Cristóvão, da aldeia xavante de Barra do Garças, José Luis, da aldeia de Campinápolis, Paulo César, de Nova Xavantina, e Nicolas, que veio de Canarana. O líder dos caciques é o ancião Policato, de 89 anos, tio de Damião Paridzané, nascido no Norte Araguaia e que declara nunca ter vivido nas terras de Suiá Missú. Além do tio Policato, um irmão de Damião, Rufino, participa de protestos contra a demarcação no Posto da Mata, informou a TV Record Norte Araguaia.

Contra a demarcação da terra indígena da maneira como a Funai procedeu, o ancião Policato argumenta com o próprio significado de Maraiwatsede: “mata misteriosa”. Segundo ele, por temor da mata fechada, os xavantes tradicionalmente sempre evitaram ocupar áreas do tipo, preferindo regiões de cerrado.

A verdadeira terra indígena que deveria ser demarcada seria a área de cerrado entre os municípios de Novo Santo Antônio e Serra Nova Dourada, mas o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) já realizou assentamentos ali. Do outro lado, a Funai não volta atrás da demarcação de Maraiwatsede, considerada equivocada e fraudulenta por parte dos xavantes liderados pelo ancião e também por parte dos posseiros.

Além disso, o grupo de Policato aponta que a Justiça Federal, temerosa de uma repercussão negativa, desconsiderou os referidos argumentos ao proferir decisão pró-Maraiwatsede devido à iminência da Rio+20, evento durante o qual a questão seria inevitavelmente exposta à comunidade internacional – tal como foi durante a Eco-92, vinte anos antes, também com destaque para a figura do cacique Damião.
 
Permuta


Por isso, os caciques do grupo aceitam o proposto pelo governo do Estado por meio de projeto de lei aprovado em junho do ano passado para resolver o impasse sobre as terras de Suiá MIssú: o Estado propôs transferir os xavantes que reivindicam permanecer na região para uma outra área, o Parque Estadual do Araguaia. A lei que autoriza a permuta com a União, de número 9.564, foi apontada como inconstitucional pelo MPF.

Funai

A assessoria de imprensa da Funai em Brasília informou que o órgão já foi notificado da decisão, proferida pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), que determina a desintrusão da área de Maraiwatsede. Os técnicos estão trabalhando no projeto de retirada dos não-índios e têm prazo de 20 dias para concluí-lo.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

VITÓRIA DOS ÍNDIOS PATAXÓ-HÃHÃHÃE

O mInistro Ayres Britto, presidente do Supremo Tribunal Federal, acabou de encerrar a sessão (inesperada, pois estava agendada para a próxima semana, daí a ausência de índios e seus adversários na plateia) que tratou da Ação Civil Originária 312, impetrada pela FUNAI, em 1982, pedindo a nulidade de títulos conferidos pelo governo da Bahia a fazendeiros dos municípios de Camacuã, Pau Brasil e Itaju do Colônia.

O ministro proclamou o resultado pela nulidade de todos os títulos desses fazendeiros que insidem sobre a Terra Indígena Caramuru-Catarina Paraguaçu, demarcada pelo SPI e governo da Bahia desde 1937.

Esta é a maior vitória dos índios brasileiros e do indigenismo praticado pela FUNAI desde a homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em abril de 2005.

Para mim, que acompanho essa causa não só como antropólogo, mas também como brasileiro comum, esta vitória é um feito extraordinário e merecedor de todos os encômios que se queira dirigir ao STF, apesar de ter demorado tanto a decidir pelo assunto.

Eis que está proclamado pelo STF que a Terra Indígena Caramuru-Catarina Paraguaçu, com 54.000 hectares, localizada na zona cacaueira do sul da Bahia, pertence única e exclusivamente aos índios PATAXÓ HÃHÃHÃE!!!

Confesso minha completa emoção e alívio com esse veredicto. Assisti a boa parte da votação, alertado por um amigo índio via Facebook. Ouvi a ministra Carmen Lúcia proferir seu voto como relatora, seguindo os termos e a qualidade cristalina já apresentada pelo voto do antigo relator, ministro Eros Grau, o qual vale na contagem.

Não ouvi os votos dos ministros Cezar Peluso, Joaquim Barbosa e Rosa Weber, nem o voto contrário do ministro Marco Aurélio, porém ouvi as considerações finais do ministro Celso de Melo, que votou positivo, e os considerandos finais sobre a proclamação do resultado apresentados pelos ministros Fucs, Britto, Peluso e o próprio Ayres Britto. Este último fez questão de proferir e comentar seu voto, o que deu um resultado final de 7 votos positivos contra 1. Não votaram os ministros Ricardo Lewandoski, por ausência do país, Dias Tofolli e Gilmar Mendes, por impedimento,  já que ambos defenderam essa causa como procuradores da União, antes de serem ministros do STF, e Luiz Fux, porque é quem substituiu o ex-ministro Grau, cujo voto foi computado anteriormente.

Enfim, por 7 votos a 1 o STF declara que a Terra Indígena Caramuru-Catarina Paraguaçu pertence por direito constitucional aos índios PATAXÓ HÃHÃHÃE. Dá para se fazer uma súmula sobre esse assunto, o qual foi analisado e relatado em termos jurídicos por diversos dos ministros citados.

A Terra Indígena Caramuru-Paraguaçu não pode ser mais revogada, nem posta em dúvida. Os Pataxó foram redimidos de todo seu sofrimento passado, desde o primeiro contato a que foram submetidos, em 1923, por todas as perseguições anteriores e posteriores, pelo esbulho de suas terras, pelos enganadores e malfeitores que os exploraram, por alguns funcionários do SPI, que inescrupulosamente arrendaram terras a colonos que chegavam àquela região, até a morte de Galdino Jesus dos Santos, há 15 anos, pela maldade de playboys de Brasília, e até todos seus mortos recentes.

Estão de parabéns os índios PATAXÓ, em primeiro lugar. Mas também muita gente que esteve ao lado dos Pataxó.

A FUNAI merece todo nosso respeito, por nunca ter vacilado sobre esse tema. Diversos indigenistas e advogados de antanho e da atual era da FUNAI. Menciono aqui Porfírio Carvalho e Odenir Oliveira como indigenistas que ajudaram os Pataxó a voltar às suas terras, e Moacyr Lira e Ricardo Coutinho como advogados da FUNAI.

Presto minha homenagem ao CIMI -- Conselho Indigenista Missionário -- por sua persistente defesa e comprometimento com os Pataxó, em todas as instâncias, desde assistência jurídica até solidariedade e atuação indigenista.

Presto uma saudosa homenagem ao antropólogo Carlos Moreira, que reavivou a etnohistória indigenista, renovando o Museu do Índio, nos anos 1980s, e criando o Setor de Documentação do Museu, e que tanto serviço tem prestado à recuperação de direitos e de terras indígenas. Ele sonhou com a redenção dos Pataxó.

Homenageio a antropóloga Maria Hilda Barqueiro, por seu belo trabalho etnohistórico de resgate da história de todos os povos indígenas do sul da Bahia, aqueles índios que um dia foram chamados de Aymoré, os variados povos indígenas de cultura Botocudo, Baenan, Mongoió e tantos outros de quem sabemos em pitorescas gravuras de pintores do início do século XIX. Quando presidente da FUNAI acolhi o livro da Hilda para publicação, e deve ser publicado pela FUNAI.

Meus cumprimentos calorosos aos líderes Pataxó da atualidade, que tanto e incansavelmente lutaram por seus direitos, quase sempre sob perigo de morte, e com sacrifício para muitos de seus parentes. Entre eles, e esquecendo nomes importantes, cito, por conhecimento pessoal, Nailton Muniz Pataxó, Gerson Pataxó, Adilson e Luiz Titiá .

Agora caberá ao governo Dilma acionar os poderes de sua administração, da segurança pública e da Polícia Federal, e do desenvolvimento econômico, para que tudo se resolva na calma,e que os fazendeiros que ocuparam por tanto tempo essa terra indígena se retirem sem causar mais dores e sofrimentos aos índios.

Que seja pela paz e pela boa vontade. Seja como for, não poderá haver recuos!


quinta-feira, 17 de junho de 2010

Ministro da Justiça dá (mal) prosseguimento a acordo com AIR

O ministro da justiça, Luiz Paulo Barreto, deu cumprimento ao seu acordo com os índios do Acampamento Indígena Revolucionário ao enviar o Memorando 1375 à presidência da Funai ordenando que seja criada uma unidade gestora como Coordenação Regional na cidade de São Luís e que sejam movidas as coordenações regionais de Maceió para Garanhuns e de Chapecó para Curitiba.

A coisa complicou. Acho que o ministro fez isso em acordo tácito com as possibilidades da atual direção da Funai, que não quer mexer muitos pauzinhos para criar três novas coordenações regionais. Três novas coordenações regionais precisarão de 3 DAS3, 3 DAS2 e 9 DAS1. Compromentimentos políticos em Brasília dificultariam essas disponibilizações, daí porque a atual direção da Funai vem tentando convencer as lideranças indígenas a esperar a criação de novos DAS por medida provisória do presidente Lula. É claro que as lideranças indígenas não aceitam isso porque é, mais uma vez, enrolação.

Pior: problema ainda mais evidente é que nem os índios de Alagoas vão aceitar isso, nem tampouco os de Chapecó!

Que enrascada!

Aló, alô, Ministro Luiz Paulo, fala sério! O acordo foi outro e esse emenda é pior do que o soneto!

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quarta-feira, 12 de maio de 2010

Índios obtêm vitória no Senado Federal

Hoje deu-se uma importante audiência no Senado Federal para discutir o decreto de reestruturação da Funai. É a segunda realizada no Congresso Nacional, pois há quinze dias foi realizada uma igualmente contundente na Câmara Federal. Mais de 200 índios estavam presentes, muitos nem puderam entrar na sala da Comissão de Direitos Humanos. A matéria abaixo, feita pela Agência Senado, trata de relatar alguns dos pontos discutidos e do seu teor. Porém, há ressalvas a essa matéria, que será melhor explicada abaixo.

A questão do decreto presidencial que reestruturou a Funai vem sendo objeto de questionamento e protestos por grande parte dos índios e da maioria dos indigenistas da Funai desde que foi publicado, em 24 dezembro de 2009.

Desde janeiro deste ano que grandes hostes de guerreiros indígenas, homens, mulheres e filhos, vêm aparecendo em Brasília para protestar contra esse decreto. Durante duas semanas tomaram a Funai, num feito único e extraordinário, constituíram uma assembleia para discutir suas ações e decidiram permanecer até a revogação do decreto. A tomada da Funai será lembrada como um grande feito na história do movimento indígena brasileiro. Porém, como em todos os movimentos, há as traições. Duas defecções foram fundamentais para enfraquecer a grande assembleia. 150 índios Potiguara se retiraram num só dia. Depois mais um grande grupo de Pankararu. Daí os que restaram foram obrigados a dissolver a assembleia e se retirar a contragosto, por sentença judicial. A Funai foi retomada pelas forças oficiais. Em seguida, a direção atual da Funai e o Ministério da Justiça puseram uma tropa da Guarda Nacional na porta da Funai para vigiar a entrada de índios e pessoas não identificadas como funcionários, algo também inédito.

Porém, quando a atual direção da Funai achava que tinha dominado tudo, depois de reuniões as mais estranhas com grupos variados de índios, reuniões em que tudo e quase tudo foi negociado a torto e a direito, com promessas as mais incabidas, eis que um pequeno grupo de índios fez fincapé e resolveu armar acampamento em frente ao Ministério da Justiça, na esperança de que o novo ministro desse uma solução à questão.

Entretanto, tudo indica que a Casa Civil, por razões óbvias e conhecidas, entre elas o licenciamento pretensioso e ilegítimo da Usina Belo Monte, bem como, aparentemente, o próprio presidente da República, resolveram que o protesto dos índios não podia ser considerado legítimo e não valia a pena dar-lhe crédito e respeito. Nem o decreto de reestruturação foi revogado, nem a direção atual da Funai foi exonerada. A situação foi se mantendo até agora, sem saída.

O Acampamento Indígena Revolucionário é uma ação excepcional no movimento indígena brasileiro. Apoiado por pequenos grupos de ajuda na cidade de Brasília e pelos esforços e recursos dos próprios índios, o Acampamento permanece em frente ao Ministério da Justiça há oito semanas. Firme e forte, com novos grupos indígenas indo e vindo, como numa vigília em prol dos índios e da renovação da Funai.

Por que Lula e o ministro da Justiça não vêem que algo diferente está acontecendo entre os índios, em relação à Funai, e esse esdrúxulo decreto e a sua direção atual? Mais estranho ainda: como o movimento indígena brasileiro não se dá conta do potencial político que esse Acampamento traz em si? E a tal da Comissão Nacional de Política Indígena e seus membros indígenas -- como eles não se solidarizam com o Acampamento e suas bandeiras?

Que está acontecendo, afinal, com o movimento indígena brasileiro? Tem autonomia ou depende de verbas como a UNE? Como deixam seus patrícios ao sacríficio à luta insana, sem apoiamento direto? O líder Kayapó, Megaron Txukarramãe, em luta pela revogação do licenciamento da Usina Belo Monte e contra a atual direção da Funai, cobrou à Coiab, a principal associação de índios da Amazônia, que se posicionasse. Até agora, nada.

Os líderes do Acampamento Indígena Revolucionário vão prosseguir em sua batalha. Algo diferente no movimento indígena está para acontecer. Seria bom que Lula fosse o presidente a fazer história e colocasse um índios na presidência da Funai. Por que, se não, será o próximo presidente que o fará.

Aos índios que estão se sacrificando pelo futuro, meus mais profundos sentimentos de respeito e honra.

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Representantes dos indígenas pedem revogação do decreto que reformula Funai

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O decreto presidencial que reformulou a estrutura da Fundação Nacional do Índio (Funai) e extinguiu administrações regionais da entidade (decreto 7.056/09) é ilegal e inconstitucional e deve ser revogado. Essa é a opinião dos representantes indígenas e de servidores da Funai que participaram de audiência pública que discutiu na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) os problemas gerados ao indígenas a partir de edição do decreto.
Eles informaram que será criada comissão representativa de indígenas de todo o país para consolidar as propostas relativas ao decreto. O presidente da CDH, senador Cristovam Buarque (PDT-DF) se comprometeu a intermediar suas reivindicações com o presidente da Funai, Márcio Meira, o ministro da Justiça, Luiz Paulo Barreto, e com o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Cezar Peluso.
[Foto:]
Ao editar o decreto sem consultar os povos indígenas, argumentou o vereador de Campinápolis (MT), Jeremias Pinita'Awe, o presidente da República desrespeitou a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Tal documento exige observância dos interesses dos povos envolvidos quando decisões legislativas ou administrativas possam afetá-los diretamente. Ele disse que os povos indígenas esperavam desde 2003 que o governo promovesse uma discussão "aberta e séria" com eles sobre implementação de políticas indigenistas, bem como relativa a reformulação da Funai, o que não aconteceu.
Alem de desrespeitar a convenção da OIT, afirmou o vereador, o decreto alterou a finalidade da Funai, o que deve ser feito apenas por Emenda Constitucional. Em sua avaliação, há violação dos direitos humanos dos indígenas, que ficaram numa situação de vulnerabilidade após a edição do decreto.
- Não podemos interferir na conveniência e oportunidade da administração pública ao editar normas, mas o aparato estatal não pode ser usado contra uma população em situação de vulnerabilidade - disse Jeremias Pinita'Awe.
Também o representante da população indígena do Maranhão, cacique Raimundo Guajajara, observou ser inconstitucional o decreto por violar os direitos humanos desses brasileiros. Ele criticou o Parlamento por permitir que a Carta Magna seja desrespeitada.
- Estão pisando na Constituição, se eu fosse parlamentar eu me envergonharia. Verifiquem melhor a nossa lei. A Funai deve dar assistência aos índios, não aos interesses políticos. O decreto é cruelmente criminoso - ressaltou o cacique.
Na avaliação do líder indigenista, Carlos Pankararu, o decreto "é mal intencionado", uma vez que foi editado no último dia do ano passado, quando o Congresso Nacional estava em recesso e sem consultar a população indígena. Segundo ele, o presidente da Funai teria afirmado que o decreto sairia mesmo se os indígenas fossem ouvidos.
- Isso é ditadura. Se há democracia nesse país, que se coloque em prática - disse Pankararu, ao afirmar que os bandeirantes mataram os índios com armas e hoje eles são mortos com a caneta, referindo-se à edição do decreto presidencial.
Governo
O responsável pela Procuradoria da Funai, Antonio Marcos Guerreiro Salmeirão, representando o presidente da Funai, afirmou que a entidade precisava ser reformulada, pois a Constituição de 1988 passou a tratar os indígenas como capazes. Antes da promulgação da Carta atual, o índio era considerado incapaz e necessitava da tutela do Estado. Esse antigo modo de ver as populações indígenas, observou Guerreiro, ainda se encontra entre alguns servidores da Funai, que não assimilaram o novo conceito.
Antônio Guerreiro disse que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva editou o decreto para melhor distribuir servidores nas coordenações regionais e nas unidades. As medidas, destacou o representante da Funai, vão aprimorar o atendimento aos indígenas, bem como melhor alocar os recursos públicos.
O secretário de Controle Externo do Tribunal de Contas da União (TCU), Rafael Lopes Torres, informou que o tribunal realizou auditorias na Funai nos anos de 2002 e 2003 e encontrou problemas, especialmente ligados à estrutura do órgão. Entre os problemas apontados, explicou, estão a falta de condições para desenvolvimento dos projetos, a carência de instalações e equipamentos adequados e falta de critérios definidos para definir o que seja posto indígena e núcleo de apoio. Tais observações, destacou o representante do TCU, podem não estar mais presentes na atualidade.
Ele também fez questão de informar que o TCU não apresentou nenhuma recomendação no sentido de extinguir unidades, atribuição, conforme lembrou, que cabe ao Poder Executivo. O tribunal, em seu parecer, destacou a importância do trabalho realizado nos postos em benefício das populações indígenas, apesar dos problemas estruturais que enfrentavam. O TCU também sugeriu a qualificação da Funai como agência Executiva e não mais uma fundação.
O senador José Nery (PSOL-PA) lamentou a ausência do presidente da Funai à audiência, que justificou já ter compromisso previamente agendado em Manaus. O senador defende a observação das demandas indígenas para realizar reformulação do decreto.
Já o senador Eduardo Suplicy (PT-SP) disse ser indispensável que o presidente da Funai explique ao Parlamento, aos servidores da Funai e à população indígena a motivação do decreto. O senador também sugeriu a criação de uma comissão de servidores para acompanhar as discussões entre os indígenas e a presidência da Funai.
Denúncias
O indigenista e geógrafo especialista em Gestão e Ordenamento Territorial, da Universidade de Brasília, Wagner Tramm, pediu que sejam investigadas denúncias de nepotismo na Funai, bem como as relacionadas a fraude nos processos de licenciamento ambiental. Ele também afirmou que os servidores estão sofrendo assédio moral. Coordenadores competentes são afastados de suas funções e substituídos sem nenhum critério técnico.
- A Funai está entregue às baratas, o patrimônio está abandonado, os servidores estão impedidos de atuarem e o pior é presenciar o Estado, que tem a função de estabilizar conflitos, fomentar conflitos. O decreto vai estimular a guerra inter-étnica, entre garimpeiros e indígenas - disse Tramm.
Iara Farias Borges / Agência Senado


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Índios querem comissão para discutir reformulação da Funai

Lisiane Wandscheer
Repórter da Agência Brasil


Brasília - Índios de diversas etnias do país reunidos hoje (12) em audiência pública da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal propuseram a revisão do Decreto 7.056/2009 e a criação de uma comissão para discutir a reformulação da Fundação Nacional do Índio (Funai). O presidente da fundação, Márcio Meira, mais uma vez não compareceu à audiência.

O clima foi tenso durante toda a reunião. No final da audiência, por volta das 14h, os índios permaneceram na sala para definir os integrantes da comissão. As sugestões de revisão do decreto e da criação de uma comissão serão encaminhadas ao presidente da Funai pelo senador Cristovam Buarque, presidente da Comissão de Direitos Humanos.

A reunião de hoje (12) foi marcada na última quarta-feira (5), durante audiência para comemorar os 100 anos da política indigenista no país e que acabou sendo cancelada a pedido dos indígenas.

Um dos principais pontos criticados pelos mais de 200 índios presentes à reunião de hoje (12) foi a falta de participação da população indígena na reformulação da Funai. “Pedimos a extinção do Decreto 7.056. Queremos uma nova estruturação da Funai, mas, desta vez, com ampla discussão com os povos indígenas e a criação de uma comissão que nos represente”, disse o vereador de Campinópolis (MT) Jeremias Pnita'Awe.
Segundo os indígenas, o decreto viola o Artigo 6º da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), criada na Conferência de Genebra, em 1989 e adotada pelo Brasil desde 2002. De acordo com o texto da convenção, povos indígenas e tribais devem sempre ser consultados em assuntos de seu interesse.

Para o procurador-geral da Funai, Antônio Salmeirão, falta esclarecimento sobre o decreto. “Desde a Constituição de 1988 havia necessidade de se reestruturar a fundação. A Funai prestava tutela aos índios. O decreto fala em participação social, em gestão compartilhada junto com os indígenas”, destacou.
O secretário de Controle Externo do Tribunal de Contas da União, Rafael Lopes Torres, disse que em 2004 foi enviado um documento à Funai que enumerava problemas observados pelo tribunal. Entre eles, a falta de condições operacionais para o desenvolvimento dos projetos e a inexistência de critérios para definir as ações para os povos indígenas. Como recomendações, o documento sugeria reformulações na infraestrutura e a realização de estudos sobre a reestruturação.
Torres disse que o TCU pode contribuir no debate entre indígenas e Funai. Segundo ele, o tribunal pode verificar a legalidade do Decreto 7.056 e se houve descumprimento da Convenção 169 da OIT. O tribunal também pode checar se as modificações propostas são positivas para as comunidades indígenas.


Edição: Lílian Beraldo
 
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