quinta-feira, 19 de março de 2009

Raposa Serra do Sol -- 10 X 1 -- Arrozeiros


O dilatado placar em favor da legitimidade da homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, dado neste dia de São José, 19 de março de 2009, consagra o respeito que o povo brasileiro sente pelos povos indígenas do Brasil. Não foi um ato espúrio, mas o resultado simbólico de toda a história do indigenismo brasileiro, que vem de José Bonifácio e Rondon, e que conta com o apoio do sentimento nacional mais profundo. Já o disse isso por ocasião do ato de homologação do presidente Lula, aos 15 de abril de 2005, conforme o artigo abaixo.

Saúdo e parabenizo os índios Makuxi, Wapixana, Ingarikó, Taurepang e Patamona por esse evento tão bom e tão auspicioso!

Não poderia estar mais emocionado por isso. Quero homenagear toda a luta que ocorreu para que esse feito acontecesse. A luta dos índios daquela região que, após dois séculos de domínio absoluto dos brancos, estavam tomando pé, de suas vidas, ressurgindo para a história. Agora a história se desenlaça com sua vitória.

Caíram por terra todos os argumentos contrários ao respeito ao ato de homologação do presidente Lula.

Caiu por terra o medo da ameaça à soberania nacional pela terra indígena estar localizada na fronteira com dois países da América do Sul.

Caiu por terra o medo da presença de Ongs e da Igreja Católica e sua influência sobre os índios.

Caiu por terra o argumento de que são poucos os índios para o tamanho da terra.

Caiu por terra o argumento de que os índios não se manteriam isolados pela ausência de arrozeiros em suas terras.

Caiu por terra o argumento de que o Estudo de Identificação feito pela Funai estava viciado em erros formais e substantivos.

Caiu por terra o argumento de que o estado de Roraima iria perder receitas e desenvolvimento econômico.

Caiu por terra o argumento de que os arrozeiros são os modernos bandeirantes que podem tudo e fazem o que querem.

Caiu por terra toda a pressão feita por políticos e ideólogos anti-indigenistas contra a homologação dessa terra indígena.

Os índios do lavrado de Roraima devem se orgulhar de sua história de resistência, muitas vezes calada, nos tempos de dominação, e agora de recuperação e reafirmação de sua dignidade. Reconquistaram sua autonomia pelos seus méritos, mas também pelo ato iniciatório da demarcação feito no governo Fernando Henrique Cardoso, pelo ato homologatório assinado pelo presidente Lula e agora por esse gesto magnânimo do STF, mesmo que após tantas indecisões, idas e voltas, e tantos aperreios por parte dos índios. Mesmo com tantas restrições específicas ao domínio pleno dessa terra indígena, as quais, entretanto, afetarão mais contundentemente outros povos indígenas no presente e no futuro. (Sobre isso escreverei em outra ocasião!)

A vitória dos índios de Raposa Serra do Sol é a vitória dos índios brasileiros, do indigenismo nascido do republicanismo rondoniano, e teve o apoio de muita gente ao longo de mais de 30 anos de lutas. Em sua primeira festa de comemoração, em outubro de 2005, esses nomes foram lembrados.

Agora é preciso muita sabedoria para que a Terra Indígena Raposa Serra do Sol seja a mãe de todos os índios, mesmo daqueles que foram contrários à sua condição de terra exclusiva para os índios.

Os arrozeiros vão se retirados ou serão retirados à força. Não pode haver mais vacilações. O estado de Roraima vai buscar suas próprias fontes de desenvolvimento, mas não mais às custas dos índios. Os políticos vão baixar a crista e aceitar a decisão do STF.

Um novo começo desponta para os índios de Raposa Serra do Sol.

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A consagração do indigenismo brasileiro

MÉRCIO P. GOMES em Folha de São Paulo, 15 de maio de 2005

"Os índios foram o instrumento de quanto aqui se praticou de útil e grandioso; são o princípio de todas as nossas coisas; são os que deram a base para o nosso caráter nacional, ainda mal desenvolvido, e será a coroa de nossa prosperidade o dia de sua inteira reabilitação."
Gonçalves Dias, 1849


A homologação da terra indígena Raposa/Serra do Sol representa a consagração do indigenismo brasileiro. O ato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva fortalece a mais alta tradição de respeito ao índio, que vem desde que Gonçalves Dias reconheceu o índio como parte constitutiva da nação e desde a fundação da República, que instituiu o índio no panorama democrático brasileiro. O indigenismo brasileiro se enaltece também pelo fato de que os povos indígenas que sobreviveram ao processo colonialista (que ainda perdura entre nós) e que pareciam estar fadados ao extermínio somam, hoje, 440 mil pessoas -8% do que eram em 1500, porém quatro vezes mais do que a população de 1955, quando Darcy Ribeiro escreveu seu famoso relatório à Unesco sobre populações indígenas.

A terra indígena Raposa/ Serra do Sol representa a consagração da idéia de territorialidade indígena

A homologação é o ato presidencial que reconhece aquela terra como território de cinco povos -Makuxi, Wapixana, Ingarikó, Taurepang e Patamona-, que lá vivem tradicionalmente há centenas de anos. Parte desse território estava invadido por pessoas que não reconheciam a legitimidade histórica da posse imemorial desses povos ou que, levianamente, achavam que podiam dele se apossar. O ato do presidente Lula é um ato reparador de uma injustiça. É um ato de resgate da dívida histórica do povo brasileiro para com os povos indígenas, ato este que ele já realizou 54 outras vezes desde a sua posse e que certamente o fará mais tantas vezes até que se conclua o processo de demarcação das terras indígenas no Brasil.

A terra indígena Raposa/Serra do Sol, com 1, 743 milhão de hectares de dimensão, não está entre as dez maiores terras indígenas do Brasil. O que ela representa no cenário indígena brasileiro é a consagração da idéia de territorialidade indígena, isto é, de que uma terra indígena não é tão-somente o espaço de sua sobrevivência física imediata, mas um espaço culturalizado por gerações anteriores, destinado à presença permanente de um povo e de gerações subseqüentes, bem como para o futuro do país. Essa idéia foi iniciada no Brasil graças à tríade patriarcal do indigenismo, formada pelo marechal Rondon, Orlando Villas-Boas e Darcy Ribeiro, quando eles convenceram o presidente Getúlio Vargas da importância da criação do Parque Nacional do Xingu, projetado para ter 4,5 milhões de hectares.

A Raposa/Serra do Sol é a consolidação dessa idéia genial e pioneira -que, aliás, nenhum outro país do mundo tem para suas populações de origem.

Sem deixar de reconhecer grandes dificuldades que os povos indígenas ainda enfrentam no seu dia-a-dia, não se podem negar os avanços que o Brasil já fez e vem fazendo.

Ao vermos um mapa do Brasil com a plotagem das terras indígenas reconhecidas, damo-nos conta do quão grandiosa é a resposta que o país está dando para os anseios dos índios. As terras indígenas compõem um conjunto de cerca de 600 terras, mais de 1 milhão de quilômetros quadrados -uma França e uma Alemanha juntas. Só o Canadá tem mais áreas de terras consignadas aos seus povos indígenas, mas isso ao contarmos a calota polar que nominalmente pertence aos Esquimó-Inuit.

É preciso que o brasileiro se dê conta dessa realidade para conhecer melhor sua nação, para saber o quanto já foi feito em prol dos índios neste país, e disso se orgulhar.

A homologação da terra indígena Raposa/Serra do Sol foi um ato perfeito da nação brasileira. Contou, ao longo de mais de 25 anos, com a torcida do povo brasileiro, e não só da Funai e das organizações indígenas. Teve o apoio do Poder Judiciário, do Ministério Público, do Poder Legislativo mais alto e do Poder Executivo -através da portaria declaratória de demarcação do ministro da Justiça e do ato final do presidente da República. E, desde sempre, dos próprios povos indígenas que nunca abriram mão desse sonho.

Mércio Pereira Gomes, 53, professor de antropologia na (UFF) Universidade Federal Fluminense, é o presidente da Funai (Fundação Nacional do Índio).
 
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