terça-feira, 1 de janeiro de 2008

Carlos Moreira, o grande etnohistoriador

Meu segundo amigo a recordar é Carlos de Araújo Moreira Neto, mineiro de Viçosa, jornalista, advogado e o maior etnohistoridador que o Brasil produziu. Carlos tinha amigos em muitas áreas intelectuais, era um dedicado arquivista e bibliófilo e foi o responsável pela coleta dos documentos do SPI que sobreviveram ao grande incêndio que ocorreu em 1966, quando o escritório daquele órgão indigenista foi transferido para Brasília. Abrigou toda essa documentação, que tem ajudado a muitos povos indígenas a recuperar terras perdidas ou esbulhadas, no Museu do Índio, de onde foi assessor, funcionário e diretor.

Carlos era um grande intelectual, leitor de quase tudo que foi escrito na história do Brasil sobre povos indígenas. Tinha uma noção clássica do processo de colonização brasileira e da atitude que havia sido criada em relação aos povos indígenas. Era um homem de convicções políticas fortes, membro do PC durante muitos anos, e não transigia com idéias anti-indígenas. Foi o mais fiel amigo de Darcy desde que o conheceu em 1955, quando Darcy criou o primeiro curso de pós-graduação em Antropologia, no Museu do Índio, e atraiu diversas pessoas para participar. Entre eles estavam Roberto Las Casas e Roberto Cardoso de Oliveira. Este último fez sua primeira pesquisa junto com Charles Wagley, um grande antropólogo americano que vinha ao Brasil desde 1939 e que o levou para aprender a ser antropólogo junto aos Tapirapé, em 1957 ou 1958. Roberto Cardoso, durante a ditadura militar, foi substituir Eduardo Galvão no departamento de Antropologia da UnB, e fez carreira por lá. Eduardo Galvão foi perseguido pela ditadura. O Museu Nacional, de onde ele tinha vindo, não o quis receber após sua demissão da UnB, para vergonha dos antropólogos amigos dele. Por tudo isso, nem Darcy nem Carlos Moreira tinham qualquer estima pelos antropólogos que tomaram o Museu Nacional, especialmente Luís Castro Faria, o principal mentor da atitude anti-rondoniana que foi estabelecida naquela instituição, nem por Cardoso de Oliveira.

Tornei-me amigo de Carlos Moreira em 1975, quando vim ao Brasil, da Universidade da Florida, onde era aluno de Charles Wagley, para fazer pesquisas entre os índios Tenetehara. Carlos tinha defendido sua grande tese de doutorado sobre a política indigenista do Império, dois grossos volumes de documentos e análises cortantes sobre o processo de destruição dos povos indígenas naquele século. Essa tese ficou anos e anos passando de mão em mão por muitos pesquisadores, muitos dos quais nem se davam ao trabalho de dar-lhe crédito. Essa tese só veio a ser publicada em 2005, pela Funai, na minha gestão de presidente, com o título “Os Índios e a Ordem Imperial”. No nosso blog há uma entrevista de Carlos Moreira sobre no dia do lançamento do seu livro.

Além desse grande livro, Carlos escreveu “Índios da Amazônia: de maioria a minoria”, publicado pela Vozes. Este é o grande livro de aplicação da visão de Carlos sobre o processo de destruição de povos indígenas na Amazônia. Carlos demonstra que, após a expulsão dos jesuítas, as vilas formadas dos ex-aldeamentos foram se transformando em vilas luso-brasileiras às custas da assimilação forçada dos índios. Demonstra o quanto de violento foi a Cabanagem, a grande rebelião amazônida que angariou o apoio militantes dos índios dos ex-aldeamentos. Livro essencial para o conhecimento da Amazônia.

Carlos fez pesquisa de campo com os índios Kayapó da região do Pará entre 1955 e 1957. Deixou muitos amigos e permaneceu amigos deles até sua morte. Entre os sobreviventes com quem conviveu muito está o líder Kanhok, cuja foto apareceu em minhas fotos sobre os Kayapó, na seção de “Visitas a Terras Indígenas”. Escreveu um artigo seminal, “Os Kayapó do Pau D´Arco”, sobre a extinção do grupo Iram-iraire, que foi dizimado no aldeamento criado para eles pelos frades dominicanos em Conceição do Araguaia entre 1890 e 1950. Aliás, uma das últimas sobreviventes vive hoje na Terra Indígena Las Casas, antigo posto do SPI, que eu visitei em fevereiro de 2007 como parte do processo de demarcação dessa terra indígena.

Quando os Kayapó dessa região atacaram a Fazenda Espadilha, localizada nas margens de sua terra, ainda não demarcada, em 1983, Carlos foi convidado pela Funai para ir conversar com eles e arrefecer o espírito de violência e revanchismo que estava para estourar em ambas as partes.

Carlos era um ácido crítico do papel da Igreja Católica na história brasileira, inclusive dos jesuítas, mas estabeleceu e manteve um bom relacionamento com a Igreja mais consciente e com o CIMI, desde sua fundação. Acreditava que eles ajudavam quando o Estado estava fraco na defesa dos índios, ou como um contraponto à crescente influência das Ongs no panorama indigenista, sobretudo durante o governo FHC. Era amigo em especial dos primeiros missionários do CIMI. Entretanto, reconhecia a importância do Marechal Rondon no estabelecimento de uma visão generosa da sociedade brasileira em prol dos índios, embora estivesse ciente de todas suas falhas. Conheceu quase todos os grandes antropólogos desde 1950 para cá, e era amigo e respeitava muitos dos indigenistas.

Carlos era uma pessoa extremamente generosa com seu conhecimento. Quem se achegasse a ele bebia de sua inesgotável sabedoria. Muitos indigenistas da geração de 1970 devem a ele o apoio e a amizade em todos os momentos de dificuldades durante o período militar. Eles o recebiam para ouvir suas histórias e a difusão de seu conhecimento profundo sobre a história brasileira. Carlos era alegre e extrovertido, capaz de contar piadas sem parar e soltar farpas irônicas aos adversários de um modo muito divertido.

Quando presidente da Funai, convidei Carlos para ser conselheiro do Conselho Indigenista da Funai, cargo que ele exerceu com muita alegria e dedicação. Carlos morreu em junho de 2007.

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