sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Linguista traduz a Bíblia para a língua dos Guajajara

O jornal Valor Econômico, que de vez em quando traz matérias fora da sua especialidade, vem hoje com uma dupla matéria sobre a tradução da Bíblia para línguas indígenas. Desta vez é a tradução feita pelo linguista Carl Harrison para a língua guajajara-tenetehara.

A matéria tem uma parte com as opiniões de diversos especialistas em lingüística, como Denny Moore e Yonne Leite, e com o indigenista Carvalho. A segunda parte é uma longa entrevista com o próprio Carl Harrison.

O indigenista Carvalho acha que os Guajajara aceitam a presença do cristianismo e/ou dos seus variados sacerdotes enquanto lhes convém. Depois descartam-nos e prosseguem a sua vida cultural do modo que acham correto. Os linguistas acham que traduzir a Bíblia já é uma tentativa de impor uma nova visão do mundo que vai contra a cultura dos índios. Minha visão sobre tudo isto está no meu livro O Índio na História.

O debate está lançado. O que vocês acham?

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Especialistas criticam tradução

Lingüistas, antropólogos e indigenistas costumam ser críticos ferozes da atividade dos missionários em território indígena. Ainda mais quando esses missionários se dedicam a traduzir textos bíblicos.

"Ensinar a língua indígena a um povo é o único meio que temos de perpetuá-la e perpetuar o manancial de conhecimento expresso nessa língua", diz Yonne Leite, doutora em lingüística e professora aposentada do Museu Nacional do Rio de Janeiro.

O problema, continua a especialista, é que os missionários usam o ensino da língua indígena como um mecanismo para que textos bíblicos sejam introduzidos na cultura de um povo, substituindo seus mitos, sua vida cerimonial, seus costumes.

De acordo com Yonne, os missionários não criam nos índios o interesse em pesquisar e registrar sua cultural tradicional. "E uma língua sem uma cultura por trás fica no ar. A língua escrita acaba ficando circunscrita à linguagem religiosa."

Outro especialista, o lingüista indígena Dennis Albert Moore, pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi, vê como um risco a penetração missionária, por causa da substituição do universo religioso por uma religião alheia. "Quando uma religião indígena é perdida, perdem-se também a arte, as cerimônias, as músicas. E esses elementos viram tabu."

Moore rebate a idéia defendida pelos missionários de que o que eles fazem é apenas oferecer uma opção positiva aos índios. "A opção aqui é considerar a cultura tradicional um erro, um pecado."

No entanto, Portírio de Carvalho, veterano sertanista aposentado da Funai, que conhece os guajajaras desde os anos 1970, não acredita que os missionários consigam de fato introduzir novos valores nesse povo. "Eu os considero uma sociedade anárquica. Aceitam os missionários, mas continuam a fazer feitiçarias nas barbas deles ou então rompem de uma vez quando julgam que a relação com eles não lhes interessa mais."

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Com a palavra, o tradutor

O tradutor da Bíblia guajajara, o americano Carl Harrison, Ph.D. em Linguística pela Universidade da Pensilvânia e membro do Summer Institute of Linguistic (SIL), viveu durante anos em uma casinha de barro na aldeia Zutíwa aprendendo a língua e traduzindo o Novo Testamento. O trabalho começou em 1969 e terminou em 1985. Em janeiro de 1996, deu início à tradução do Antigo Testamento. O texto chegou à editora em novembro de 2006. Desde jovem, Harrison pensava em fazer uma tradução da Bíblia para um povo ágrafo. A tradução da obra em guajajara é mais literal e menos aproximativa. Alguns termos sem paralelo foram traduzidos com a ajuda de um recurso tradicional dos guajajaras: o uso da expressão "parecido com" associada à palavra. É o caso de camelo, que virou "parecido-com-cavalo". Embora se diga primordialmente um homem da ciência, as respostas desse tradutor têm um tom de pastor um tanto intransigente. Ao 73 anos, Harrison, que sofre de hipertensão, diabete e já teve um derrame, preferiu não vir ao Brasil. Ele é casado com Carole Harrison, com quem vive em Waxhaw, na Carolina do Norte. Tem cinco filhos e 14 netos.

A seguir, leia os principais trechos de uma entrevista que ele concedeu por e-mail ao Valor.

Valor: Por que o sr. decidiu fazer uma versão integral da Bíblia em língua guajajara?

Carl Harrison: O Novo Testamento foi lançado em 1985. Teve boa aceitação e a tiragem esgotou-se em meados dos anos 1990. Missionários ligados ao grupo e líderes indígenas leigos associados à crescente igreja evangélica guajajara pediram que fizesse o Velho Testamento. A motivação principal era a mesma do Novo Testamento. Acreditamos que cada pessoa tem o direito de ter à sua disposição a palavra de Deus na língua que mais fala ao coração. Já que pediram, achei bom tentar fazer.

Valor: Muitos guajajaras estão procurando se afastar das rezas dos pajés e da "muquiada", por exemplo, preferindo orações a Deus ou cultos. O sr. acredita que essa substituição tende a se intensificar ao longo dos próximos anos com a introdução da Bíblia?

Harrison: Para muitos, sim. O máximo que a reza dos pajés oferece, além do sentido de "indigenidade" é, às vezes, um alívio de algum sofrimento. Deus oferece amor e vida eterna.

Valor: Se isso acontecer, como o sr. vê as aldeias guajajaras nos próximos anos ou nas próximas gerações? Elementos como o pajé, o caruara, a festa do milho e do mel e a "muquiada" vão desaparecer? Ou esses elementos vão ser transformados?

Harrison: Acredito que alguns já estão descobrindo que existem maneiras de celebrar os grandes momentos da vida e adorar a Deus ao mesmo tempo, sem se submeter a espíritos malignos e sem parar de ser guajajaras. A "muquiada" talvez não desapareça, mas se modifique para alguns, tornando-se uma cerimônia cristã.

Valor: Quais foram algumas de suas maiores dificuldades lingüísticas durante a tradução?

Harrison: Falta de termos como fariseu, glória, sacerdote, camelo; falta de voz passiva, presença da antipassiva, ergatividade [concordância com o objeto direto, que não existe nas línguas européias], pós-posições em vez de preposições, ordem verbo, sujeito e objeto em vez de sujeito, verbo e objeto. ["Matou a onça João", em vez de "A onça matou João"], entre dúzias de dificuldades.

Valor: Como tradutor da Bíblia para o guajajara, o sr. se sente mais um homem da ciência (um lingüista) ou um evangelizador?

Harrison: Uma combinação. Não ia de aldeia em aldeia "pregando". Sou lingüista-etnólogo primeiro. Evangelista no fim, porque o que levei para eles acabou sendo a boa notícia (Evangelho) contida na Bíblia.

Um comentário:

Anônimo disse...

Acho um absurdo a constante tendência de desvalorizar o trabalho dos missionários por parte de linguistas e acadêmicos em geral. Se recusam a ver o lado positivo, as contribuições no que se refere a preservação da língua indígena que é fator de identidade de um povo, reclamam que o missionário vai só p/ traduzir a Bíblia (Esta se seguida inspira e promove desenvolvimento em todas as áreas do ser humano).E alguns acadêmicos que vão lá só para obter um diploma universitário? Realmente me chateio com isto. Acho ainda que há muito ressentimento e preconceito, infelizmente!

 
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