segunda-feira, 25 de junho de 2012

Xavante em conflito

Gostaria de apresentar essa matéria jornalística do site Olhar Direto, de Cuiabá, com a expressão: Não me tirem do sério!

É que ela mostra que está ocorrendo um conflito extremamente sério na Terra Indígena Maraiwatsede devido à resistência dos posseiros e fazendeiros lá instalados, que se recusam a obedecer a ordem judicial para se retirar de lá. Porém, tanto pior porque o conflito está exacerbado devido às desavenças internas e a resultante desunião dos Xavante quanto à legitimidade de sua posse sobre essa terra indígena, que foi reconhecida como indígena em 1992, demarcada em 1995 e homologada em 1998, parte da qual os Xavante só conseguiram recuperar em 2004. Um grupo de tantos Xavante, não sei dizer ao certo, não sei se posso acreditar que sejam 150 deles, estão junto com os posseiros, tendo vindo de diversas outras terras indígenas xavante!

Quem poderá suportar uma coisa dessas! Qual o indigenista, qual o antropólogo, qual o funcionário da FUNAI que aguenta saber de uma coisa dessas!?

Só pode ser invencionice de algum modo. Ou exagero.

Sinto-me estranho diante dessa acontecimento e da desunião dos Xavante. Quando entrei na presidência da Funai a terra estava homologada mas não havia nenhum Xavante dentro dela. Por anos eles tentavam entrar e retomar sua soberania sobre o que havia sido demarcado, mas eram sempre dissuadidos por fazendeiros locais. A entrada dos Xavante em parte dessa terra se deu a partir de uma comunicação que eles me fizeram em outubro de 2003, com pedido de apoio à sua luta.

Pois bem, dei-lhes total apoio, de muitas maneiras. Com frequência os recebia em Brasília, os advogados da Funai conseguiam audiências com ministros do STJ e do STF, para onde os acompanhava, e enviei uma equipe das mais dedicadas da Funai, liderada por Edson Beiriz, administrador de AER Goiânia, com a ajuda prestimosa de Cláudio Romero e outros indigenistas.

Em certo momento enfrentei políticos e fazendeiros em Cuiabá, em conturbada reunião convocada pelo governador Blairo Maggi, e com a presença do vice-presidente, atuando como presidente, o falecido José de Alencar, todos pressionando para que eu aceitasse transferir os Xavante para uma pequena gleba de terras a 130 km de distância de sua terra já homologada. Lembro-me que, ao dizer que não faria isso ao presidente em exercício levantou-se um burburinho de que eu estaria desobedecendo ao presidente da República e que, portanto, seria demitido incontinenti. Não fui demitido, evidentemente, não sei por quê ou por obra e graça de quem.

O certo é que os Xavante persistiram e depois de passarem sete meses acampados na beira de uma estrada poeirenta, a BR-158,  ameaçados pelos posseiros e os capangas dos fazendeiros, tendo-lhes morrido duas crianças, conseguimos uma decisão do STF que os permitia finalmente penetrar na área e assentar aldeia. E isso foi feito para sua honra e para a glória da FUNAI.

Agora os Xavante estão desunidos e alguns dizem que essa não é terra deles?!

Tem algo de errado nisso, e precisa ser esclarecido. De todo modo, eis a matéria jornalística, escrita com parcimônia e objetividade. Creiam os que queiram!

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Xavantes se dividem e quatro caciques se aliam a posseiros em bloqueio da BR-158 (veja fotos)


Da Redação - Renê Dióz
Foto: Aprosum/Olhar Direto
À esquerda, bloqueio realizado por posseiros contrários à demarcação da Funai; à direita, lideranças xavantes aliadas ao cacique Damião durante a Rio+20
À esquerda, bloqueio realizado por posseiros contrários à demarcação da Funai; à direita, lideranças xavantes aliadas ao cacique Damião durante a Rio+20
Trezentos posseiros e 150 índios xavantes, liderados por quatro caciques, participam do bloqueio na rodovia federal BR-158, na região do Araguaia, desde a noite de sábado (23).

O ato é uma forma de protesto contra a decisão judicial federal que determina a desintrusão da área remanescente da antiga fazenda Suiá Missú, cujo território foi usado na demarcação da Terra Indígena Maraiwatsede pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Também foram anunciados bloqueios nas rodovias federais 080 e 242, mas a inda não há confirmação de que tenham se concretizado.

Os posseiros se opõem à medida judicial alegando que a demarcação da Funai foi fraudulenta, pois a área de ocupação tradicional indígena, segundo eles, não fica na região de Suiá Missú.

O mesmo argumento é utilizado pelos líderes indígenas aliados aos posseiros; eles não reconhecem a liderança do cacique Damião Paridzané, principal figura indígena a reivindicar as terras de Maraiwatsede tais como foram demarcadas pela Funai.

O cacique Damião, que participou da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20), ainda deve chegar do Rio de Janeiro, onde proferiu discurso inflamado cobrando do governo federal, da Funai e do Ministério Público Federal (MPF) celeridade na elaboração do plano de desintrusão que deverá promover o retorno dos xavantes liderados por ele a Maraiwatsede.

As informações são da TV Record Norte Araguaia, baseada em Confresa, segundo a qual apenas pouco mais de 120 índios ficaram dentro de uma das aldeias da região. Desses, apenas pouco mais de 20 insistem em permanecer nas terras.

Caciques

Ao lado dos posseiros no bloqueio da BR-158 estão os caciques Cristóvão, da aldeia xavante de Barra do Garças, José Luis, da aldeia de Campinápolis, Paulo César, de Nova Xavantina, e Nicolas, que veio de Canarana. O líder dos caciques é o ancião Policato, de 89 anos, tio de Damião Paridzané, nascido no Norte Araguaia e que declara nunca ter vivido nas terras de Suiá Missú. Além do tio Policato, um irmão de Damião, Rufino, participa de protestos contra a demarcação no Posto da Mata, informou a TV Record Norte Araguaia.

Contra a demarcação da terra indígena da maneira como a Funai procedeu, o ancião Policato argumenta com o próprio significado de Maraiwatsede: “mata misteriosa”. Segundo ele, por temor da mata fechada, os xavantes tradicionalmente sempre evitaram ocupar áreas do tipo, preferindo regiões de cerrado.

A verdadeira terra indígena que deveria ser demarcada seria a área de cerrado entre os municípios de Novo Santo Antônio e Serra Nova Dourada, mas o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) já realizou assentamentos ali. Do outro lado, a Funai não volta atrás da demarcação de Maraiwatsede, considerada equivocada e fraudulenta por parte dos xavantes liderados pelo ancião e também por parte dos posseiros.

Além disso, o grupo de Policato aponta que a Justiça Federal, temerosa de uma repercussão negativa, desconsiderou os referidos argumentos ao proferir decisão pró-Maraiwatsede devido à iminência da Rio+20, evento durante o qual a questão seria inevitavelmente exposta à comunidade internacional – tal como foi durante a Eco-92, vinte anos antes, também com destaque para a figura do cacique Damião.
 
Permuta


Por isso, os caciques do grupo aceitam o proposto pelo governo do Estado por meio de projeto de lei aprovado em junho do ano passado para resolver o impasse sobre as terras de Suiá MIssú: o Estado propôs transferir os xavantes que reivindicam permanecer na região para uma outra área, o Parque Estadual do Araguaia. A lei que autoriza a permuta com a União, de número 9.564, foi apontada como inconstitucional pelo MPF.

Funai

A assessoria de imprensa da Funai em Brasília informou que o órgão já foi notificado da decisão, proferida pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), que determina a desintrusão da área de Maraiwatsede. Os técnicos estão trabalhando no projeto de retirada dos não-índios e têm prazo de 20 dias para concluí-lo.

sábado, 9 de junho de 2012

Prefácio de Darcy Ribeiro ao livro OS ÍNDIOS E O BRASIL

Há 25 anos pedi a Darcy Ribeiro para escrever o prefácio ao livro que terminara de escrever, OS ÍNDIOS E O BRASIL. Darcy escreveu e o livro foi publicado pela Editora Vozes em 1988, com segunda edição em 1991. O livro está para sair de novo, em breve, em terceira edição, por outra editora, com adendos, acréscimos e análises renovadas. Compartilho com vocês o Prefácio de Darcy Ribeiro.


PREFÁCIO

Afinal, um livro sobre os índios bom de ler: honesto, sábio, leal. Sim, estas são as qualidades distintivas desse texto de Mércio Pereira Gomes. Ele aqui dá conta da situação existencial dos índios trinta anos depois do meu balanço em Os índios e a Civilização.
Quando procedi àquela avaliação, a expectativa da UNESCO, que encomendou a pesquisa, era mostrar ao mundo o caminho pelo qual os brasileiros estavam incorporando os índios à civilização como parte distinguível da sociedade nacional. Demonstrei que nada disso sucedia. Os índios vinham e estavam sendo exterminados. Cento e quarenta e três povos indígenas sobreviviam, é verdade (mas oitenta e sete haviam desaparecido entre 1900 e 1957), graças ao vigor extraordinário de sua identificação étnica que lhes conferia uma resistência espantosa. Só o alcançaram, porém, a custo de profundas transformações culturais, uma vez que grande parte das suas formas de fazer, de sentir e de conviver se tornavam inviáveis ao contato com a civilização.
Sobreviviam, assim, cada vez menos "selvagens", menos "exóticos", porque cada vez mais incorporados à rede de produção e de consumo. Por dez anos, andei exaustivamente por todo o país e não encontrei em lugar nenhum qualquer grupo de ex-índios confundíveis com os caboclos. Quaisquer que fossem as condições que enfrentassem, por mais que elas lhes fossem adversas, ainda mesmo quando profundamente mestiçado com negros e com brancos, permaneciam índios.


Foi assim que eu me deparei com eles: seja sob a proteção oficial do Estado, seja sob o amparo missionário, seja lutando frente a frente com o contexto civilizatório que os sitiava, todos eram e permaneciam índios. Vale dizer, viam-se a si mesmos como uma comunidade humana original, diferente da neo-brasileira.
A sobrevivência desses índios residia, precisamente, na sua aparente incapacidade para se desfazerem na sociedade nacional. Isto colocava uma questão crucial que ainda vibra, desafiando a Antropologia brasileira: como é que se constituiu o povo brasileiro, se não foi pela assimilação progressiva de grupos indígenas? Vai ser necessário aprofundar muito mais o nosso conhecimento sobre o papel do convívio dos índios com a civilização, debaixo das opressões do escravismo, e sobre as condições em que mulheres apresadas eram prenhadas para parir filhos que não se identificavam com a etnia materna e que eram rechaçados pela paterna. Esses filhos de ninguém é que, ao se avolumarem, iam constituindo uma terceira camada de gente, nem nativa nem européia, que seriam os primeiros brasileiros. Eis como se deu a nossa formação demográfica inicial. Só pela opressão individualizada de cada índio desgarrado de seu povo, os índios deixam de ser índio. No processo histórico-social, tal como ele se dá fora do apresamento, o que de fato ocorre não é o trânsito do índio ao brasileiro, como se pensava; mas o do índio isolado ao índio integrado, ou seja, aquilo que eu chamei de transfiguração étnica.
Já naqueles anos era visível que alguns grupos indígenas estavam crescendo demograficamente, e que a tendência era que, no futuro, viessem a existir mais índios, não havendo a hipótese de que fossem liquidados. Prevaleciam, porém, no conjunto, condições tão terríveis de compressão sobre os índios, que maior era o número dos que se viam exterminados, do que aqueles que conseguiam refazer o seu montante populacional. Passadas essas três décadas, Mércio nos mostra agora o fim do declínio demográfico dos povos indígenas, anunciando, com toda clareza, que vai haver mesmo mais índios no futuro do que no passado imediato.
A praga que mais devastou os povos indígenas, desde o começo dos nossos séculos, foram as pestes européias de extremada virulência que grassavam de tribo a tribo, em cadeias de contaminação generalizada. Epidemias como as de varíola, sarampo, catapora, difteria, gripe, coqueluche, tuberculose e outras. Esse fator de morte se reduziu sensivelmente porque na própria sociedade nacional essas ondas epidêmicas também desapareceram.
Outra praga, o genocídio, vinha diminuindo de freqüência, desde os tempos de Rondon. Ela diminuiu, também sensivelmente, nessas últimas três décadas, mas continua assassinando líderes indígenas, e os assassinos permanecem sempre impunes, o que demonstra a conivência da sociedade nacional com os massacradores de índios.
A terceira peste, que é o extermínio cultural, o etnocídio, induzido tanto pela própria burocracia oficial protecionista, como pela ação missionária, também declinou em seu poder destrutivo. Durante séculos e mesmo nas décadas primeiras do século XX, tremenda foi a opressão psicológica exercida sobre os índios pela desmoralização de suas crenças e pela indução da idéia de sua inferioridade, o que conduzia ao alcoolismo, à preguiça e à anomia.
O fim desse fator de extermínio se deve, de um lado, à mudança de atitude das missões religiosas, principalmente das católicas, que passaram a avaliar, para tentar evitar, os danos terríveis que o etnocídio por elas provocado causavam aos povos que pretendiam proteger a partir de uma ação em que o missionário se definia como agente civilizador. Esta era a face mais hipócrita da civilização: salvar as almas dos índios, facilitando o extermínio dos seus corpos e a espoliação de suas terras. Soma-se a essa forma de opressão a exercida pelo Estado, representado pela burocracia oficial, com o paternalismo amoral do funcionário que se fazia tratar como o "paizinho protetor".
O fato decisivo, entretanto, foi a resistência dos próprios índios que inviabilizou essa forma de etnocídio ao rechaçar o fanatismo missionário e o paternalismo burocrático, impondo respeito às suas próprias lideranças.
Mércio valoriza com muita justeza o papel relevante representado pela opinião pública nacional e internacional. Em muitas circunstâncias, nessas tantas décadas em que tenho lutado pela causa indígena, eu senti que só ganhando a opinião pública, através dos órgãos de comunicação, se conseguia salvar um grupo indígena de uma extorsão ou de um extermínio. É exemplar o caso do projeto de emancipação indígena, no governo Geisel, que, se aprovado, teria entregue todos os grupos indígenas ao arbítrio funcionário, dando aos burocratas o direito de declarar que uma tribo estava emancipada - na prática, abandonada à sua sorte. Foi a reação levantada na opinião pública nacional e internacional que paralisou a vontade genocida daquele governante.
Chamou a atenção, também, para um fator positivo, surgido recentemente, que é o pendor preservacionista de caráter ecológico, que passou a considerar as comunidades indígenas como faces raras do fenômeno humano que têm, também, o direito de ser e de se expressar.
Por tudo isso louvo este livro, com a alegria de ver que, afinal, temos um texto que pode servir de base ao debate sobre a questão indígena, tal como ela se apresenta, hoje, aos olhos dos próprios índios. Vale dizer, tal como se trava sua luta contra os genocidas e os etnocidas, agora não mais sob a égide do missionário ou do protetor, mas sob o mando do próprio movimento índio.
É de assinalar aqui que este índio novo, tão melhor armado para a sua própria defesa, provoca grandes antipatias. O seu símbolo maior, Mário Juruna, chega a desencadear ódios como se fosse um ser detestável. É profundamente lamentável que até a imprensa mais respeitável do país, a exemplo do Jornal do Brasil, tenha mantido, durante anos, uma campanha sistemática de desinformação contra o Deputado Mário Juruna, através dos procedimentos mais antiéticos, indignos da sua tradição jornalística. Essa gente, apodrecida no preconceito, ignora que Juruna surge à luz como um herói do seu povo. Graças à mobilização que ele fez de todos os Xavantes e à declaração de guerra que impôs à sociedade brasileira, ele recuperou para o seu povo mais da metade do território tribal, roubado com a conivência de funcionários da FUNAI. Como esquecer as célebres reuniões do Conselho de Segurança Nacional onde se colocava em discussão se se devia mandar tropas e canhões acabar com os Xavantes, à moda americana, ou se era mais ajuizado mandar demarcar as terras que lhes haviam sido furtadas.
Ao meu juízo, Mário Juruna pode ser considerado um dos melhores, se não o melhor deputado da legislatura passada, se eles se julgam por sua eficácia na defesa daqueles que se propõem representar. Muitas vezes sua ação pareceu ridícula e foi propositadamente deformada na imprensa. Mas é de notar que suas posturas intempestivas se realizavam sempre a partir de uma posição ética, tal como ocorreu quando provou que Maluf subornava deputados.
Irritação ainda maior provoca em outros setores o índio que apela para os mecanismos e linguagens do sistema capitalista para sobreviver no contexto mercantil em que está posto. Índios cobrando para serem filmados? Índios querendo royalties sobre minérios extraídos do seu território? Índios arrendando castanhais? Índios cobrando aluguel de pastos ou de terras agrícolas? Tudo isso parece horrível, tanto para os bobocas, por sua ingenuidade, que só admitem o índio como o selvagem ingênuo, quanto para os sabidos, que preferem negociar com funcionários ladravazes do que com as lideranças das comunidades indígenas.
Em seu diagnóstico pioneiro dessas situações novas, Mércio sempre olha os índios como gente igual a gente, merecedora de respeito, capaz de raciocínio lúcido, gente necessitada de apoio na luta por seus direitos, desde sempre expressos da forma mais clara em toda a legislação nacional, mas desde sempre sistematicamente espoliados.
Adotando a perspectiva de Mércio, começaremos a ver os índios como gente autônoma, cada vez mais precavida, que não carece, nem requer tutelas oficiais ou paternalismos missionários.
Este livro assinala um outro fato novo e relevante, que é o ressurgimento de uma Antropologia socialmente responsável ante os grupos que estuda. Ela ressurge na figura de antropólogos que me lembram Curt Nimuendaju e Eduardo Galvão, deixando para trás a atitude boquiaberta, novidadeira e moralmente irresponsável, que floresceu nos estercais da ditadura.
A sobrevivência dos índios, sua permanência histórica como parte constitutiva e essencial do Brasil, provoca desafiadoramente a necessidade de se criar uma nova Antropologia que responda não somente pelo presente, mas que também tome coragem de ousar pensar para o futuro. Todo o esforço antropológico brasileiro, até agora, vinha sendo no sentido de explicar quem são os índios e o porquê de tantos se extinguirem e uma porcentagem mínima sobreviver. Esta nova geração de antropólogos terá que se aliar aos índios para projetá-Ios no futuro e ajudá-los, por todos os meios, inclusive pelo pensamento, pela inteligência, a encontrar o seu lugar justo numa nação justa e digna.
Darcy Ribeiro

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Presidente Dilma homologa sete terras indígenas

A presidente Dilma Rousseff assinou ontem, em solenidade dedicada ao Dia do Meio Ambiente, a homologação de sete terras indígenas, sendo cinco no estado do Amazonas, uma no Acre e outra no Pará.
 
São terras de tamanhos variados. A Tenharim-Marmelos é a maior, umas das grandes terras indígenas do sudoeste do Amazonas. Seu processo de demarcação já vinha sendo trabalhado há vários anos, na verdade, ela já fora demarcada desde 2006, mas por alguma razão não fora dada por concluída até o ano passado. A T.I. Xipaya, localizada na margem esquerda do rio Xingu, entre as terras dos índios Kayapó e Kuruaya e as terras dos índios Parakanã, Araweté e Assurini, vai dar mais solidez e proteção ao rio Xingu. A T.I. Riozinho do Alto Envira protegerá a fronteira do Brasil com o Peru e vai permitir que os índios que estão fugindo dos madeireiros que estão devastando as florestas do Peru tenham algum abrigo. Essas três terras foram demarcadas entre 2005 e 2008, inicialmente durante minha gestão como presidente da FUNAI. As outras terras indígenas são de menor porte e com contornos que indicam a presença de aglomerados não-indígenas.


Para muitos indigenistas, para os índios que participam do movimento indigenista e para observadores da cena indigenista brasileira, essas homologações podem ser interpretadas como um sinal de que o governo Dilma vai deslanchar uma política mais favorável aos povos indígenas. Junto com elas foi assinado o programa de monitoramento das terras indígenas -- PNGATI -- que poderá ter um papel relevante na defesa das terras indígenas diante das ameaças que se avizinham. Para outros, inclusive, ironicamente, ONGs indigenistas que estão com a mão na botija, trabalhando dentro e fora da FUNAI, esse é sinal de uma mera satisfação, literalmente "para inglês ver", pela passagem da Conferência de Meio Ambiente da ONU, que está para começar.


Talvez as duas visões estejam certas, em dosagens diferentes. O que prevalece neste momento é um desconforto generalizado, primeiro, com a falta de mudanças na FUNAI, como se sua restruturação, criada pelo decreto 7056/09, não tivesse causado danos impressionantes à boa administração da FUNAI, até agora irreparados; segundo, com a crescente exasperação dos índios em relação à sofrível assistência de saúde que vêm recebendo nos últimos anos; terceiro, com a certeza de que o papel da FUNAI está ficando cada vez mais restrito e menos importante para a política indigenista -- e para os índios em suas aldeias, sem dúvida.

Comenta-se para cima e para baixo, até entre indigenistas chapas-brancas e ONGs suspeitosamente oportunistas, que o interesse desse governo na questão indígena se restringe à determinação de diminuir o peso do tema indígena na equação de licenciamento de obras perto de terras indígenas. Daí a presidente Dilma ter suspendido a homologação de algumas terras indígenas para antes passarem pela análise (diga-se, crivo!) do Ministério das Minas e Energia. Certamente para ver elas se incidiam de algum modo com planos de construção de barragens e hidrelétricas. Dada a fragilidade do órgão indigenista no panorama político brasileiro, especialmente no Congresso Nacional (recorde-se que o ano passado o então presidente do órgão foi desbragadamente insultado por parlamentares, em frente ao próprio ministro da Justiça, seu superior, que não esboçou a mínima defesa do seu subordinado), suspeita-se que sua fraqueza anuncia tempos de estadualização de políticas indigenistas.

Será? Será que o governo brasileiro irá voltar atrás, ao século XIX, ao Império, ao tempo anterior ao Marechal Rondon? Não posso acreditar que seja isso o que se trama pelos gabinetes do atual governo. Quero crer que a questão indígena brasileira está passando por um mal pedaço devido à pressão desenvolvimentista do últimos governos, coincidentemente, do PT. Poderia ter sido pela continuidade do PSDB, por tudo que sabemos daquele governo.

Entretanto, para aumentar a angústia de quem acompanha a questão indígena brasileira há muitos anos, e de quem já escreveu sobre a história do Brasil em relação aos índios (ver meu livro OS ÍNDIOS E O BRASIL, Vozes, 1991), pode-se ver que os últimos gestores da FUNAI, seus grupos ideológicos e suas milícias políticas acreditam piamente que estão fazendo um grande benefício aos índios diminuindo a capacidade da FUNAI de atuar diretamente no campo a favor dos índios. Foram esses grupos que fizeram a malfadada reestruturação da FUNAI. E se exultam de orgulho e confiança com as atividades que alimentam a ilusão de que, por se reunir em hoteis e salas de convivência, estão dando encaminhamento aos problemas indígenas.

Vale a pena, entretanto, lembrar o fato de que, no momento em que a presidente Dilma Rousseff assinava as portarias de homologação das sete terras indígenas, a índia Guajajara, Sônia Santos, fez um veemente discurso para a presidente, pedindo mais dedicação e mais comprometimento do seu governo com a causa indígena. Pelo menos os índios têm coragem e franqueza de encarar sua realidade!

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Ministro Lewandowksi dá nova chance à demarcação de terras indígenas

Há alguns dias, precisamente dia 23 de maio, o ministro do STF, Ricardo Lewandowski, negou provimento a uma reclamação proposta pelo Município de Amarante do Maranhão, na qual pedia-se que o processo de estudo com vistas à ampliação da Terra Indígena Governador, dos índios Gaviões-Pykobye, demarcada e homologada desde a década de 1980, com 42.000 hectares, aproximadamente, situada naquele estado do Maranhão, fosse declarado nulo, por liminar, e no mérito, junto com as portarias de estudo e delimitação já publicadas pela FUNAI.

O ato do ministro segue abaixo.

O importantíssimo a ser analisado nesse caso são os novos argumentos trazidos pelo ministro Lewandowski a respeito da matéria. Trata-se da validade ou não de alguns pontos ou "ressalvas" do Acórdão sobre a Homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol proferido pelo STF em 19/03/2009.

Os pontos são: (1) a data da promulgação da Constituição Federal -- 5 de outubro de 1988 -- serve como parâmetro temporal para a legalidade da "ocupação indígena" de determinada área de terra considerada pelos indígenas como suas? E (2) uma terra indígena já demarcada pode ser ampliada?

Essas duas ressalvas vêm sendo usadas por advogados de fazendeiros no Mato Grosso do Sul e alhures (como neste caso da T.I. Governador, no Maranhão) para parar e/ou anular os processos de demarcação de terras indígenas cujos possuidores indígenas alegam serem suas de direito originário. Diversas terras indígenas nessa condição tiveram seus processos parados em estados como Santa Catarina, Maranhão, Ceará, Paraiba, e outros.

Tudo indicava que essas duas ressalvas funcionavam como entraves avassaladores nos processos de demarcação de terras indígenas, umas espécies de protetores jurídicos dos fazendeiros.

Eis que o ministro Lewandowski dá nova interpretação não propriamente a essas ressalvas, as quais ele próprio avalizou-as na ocasião, mas às suas consequências em relação a outras terras indígenas.

Primeiramente, diz Lewandowski que o caso da T.I. Raposa Serra do Sol foi específico, tanto em si, quanto pelo fato de ter se originado de uma ação popular. Ação Popular não pode gerar determinações vinculantes.

Em segundo lugar, declara o ministro que, seguindo a interpretação da ministra Carmen Lúcia sobre outro caso, o poder jurídico brasileiro, ao contrário do jurídico americano, não se rege a partir do direito consuetudinário (Common Law). Portanto, não aceita vinculação automática de uma decisão jurídica, mesmo que vinda do nosso Supremo Tribunal, e que, no caso do Acórdão de Raposa Serra do Sol, não foi determinado para ser uma súmula vinculante.

Por fim, pondera o ministro Lewandowski, o caso desta reclamação do estado do Maranhão já está sendo julgado em apelo reiterado, tendo sido uma vez denegado, pela 20ª Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal.

Interessa a nós indigenistas e antropólogos os argumentos do ministro Lewandowski descritos nas duas primeiras partes. Ele praticamente abre novas potencialidades de demarcação de terras indígenas ao reinterpretar o Acórdão da Raposa Serra do Sol.

É um fôlego novo que pode favorecer a retomada da demarcação de terras indígenas que necessitam serem realizadas o quanto antes.

Mãos à obra, senhoras e senhores do DPI da Funai. Mãos à obra Ministério Público Federal, Advogado Geral da União, antes que seja tarde demais (isto é, que surja outro ministro para fechar essa porteira).


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Sentença do Ministro Ricardo Lewandowski, em 23 de maio de 2012



Trata-se de reclamação, com pedido de medida liminar, proposta pelo Município de Amarante do Maranhão/MA, em que se alega desrespeito à autoridade do acórdão prolatado pelo Plenário desta Corte no julgamento da Petição 3.388/RR, Rel. Min. Ayres Britto, por parte de sentença proferida, em
29/2/2012, pelo Juízo da 20ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal nos autos do Processo 0016759-73.2011.4.01.3400.
 

A decisão ora impugnada, ao denegar mandado de segurança impetrado pela municipalidade reclamante, afastou a alegação de nulidade das Portarias 677/2008 e 1.437/2010, da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, que haviam determinado a constituição de grupos técnicos para a realização de estudos necessários à verificação de eventual equívoco na delimitação – e, por
conseguinte, da necessidade de ampliação – da área da Terra Indígena Governador, demarcada em 1982.


O reclamante sustenta, em síntese, que a sentença reclamada, ao admitir o prosseguimento de estudos técnicos que visam à ampliação de reserva indígena já demarcada e homologada mediante o acréscimo de área não ocupada por índios em 1988, teria contrariado a decisão tomada por esta Corte
na Petição 3.388/RR, que, na apreciação do caso concreto, reiterou a existência de um marco temporal – 5/10/1988 – para a aferição da ocupação territorial por uma determinada etnia indígena e impôs, como salvaguarda institucional da constitucionalidade daquele procedimento demarcatório, a
vedação à ampliação da terra indígena já demarcada.
 

Requer a suspensão liminar do processo administrativo de ampliação da Reserva Indígena Governador até o julgamento final desta Reclamação e, no mérito, a sua integral anulação.
 

É o relatório necessário.

Decido.
 

Bem examinados os autos, constato a manifesta inadmissibilidade desta
ação reclamatória.


Como visto, a reclamação ora em exame aponta o descumprimento do acórdão proferido na Petição 3.388/RR, feito em que o Plenário desta Corte, ao julgar parcialmente procedente pedido formulado em ação popular, declarou, especificamente, a constitucionalidade da demarcação contínua da Terra
Indígena Raposa Serra do Sol e de seu respectivo procedimento administrativo-demarcatório, desde que observadas dezenove condições ou salvaguardas institucionais, inseridas na parte dispositiva da decisão com o intuito de conferir, segundo consta expressamente da ementa do julgado, um “maior teor de operacionalidade ao acórdão”.
 

Originalmente trazidas a lume no voto-vista proferido pelo Ministro Menezes Direto, essas condições foram incorporadas ao voto do Relator, Ministro Ayres Britto, conforme exposto no pronunciamento a seguir transcrito:
 

“Senhor Presidente, quero apenas confirmar com ajuste o meu voto, dizendo o seguinte - peço vênia ao Ministro Cezar Peluso para falar de logo -: o eminente Ministro Carlos Alberto Menezes Direito,
no seu magnífico voto, usou de uma técnica de decidibilidade ou de uma formatação decisória que me pareceu, num primeiro momento, estranha, mas, refletindo melhor, pela importância da causa, eu acho que compreendi perfeitamente a intenção louvabilíssima de Sua Excelência que foi traçar as diretivas para a própria execução desta nossa decisão por parte da União. Então, Sua Excelência transformou fundamentos, transplantou uma parte dos fundamentos para a disposição, para a parte dispositiva da decisão. E pareceu-me uma técnica interessante, inovadora que, embora inusual do ponto de vista da operacionalização do que estamos aqui a decidir, resulta altamente proveitosa.
 

Não tenho motivos para deixar de aderir a essa proposta de formatação decisória, até porque, se formos percentualizar as coincidências dos nossos votos, beiraremos os cem por cento dos
fundamentos, embora com palavras e fontes de pesquisa diferentes.
 

Faço o ajuste, Senhor Presidente, com todo o "conforto intelectual” (grifos meus). Observo, portanto, que o acórdão invocado nas razões desta reclamação apreciou, especificamente, o procedimento de demarcação da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol, não podendo, por isso mesmo, ter sua autoridade afrontada por atos e decisões que digam respeito a qualquer outra área indígena demarcada, como é o caso narrado nos autos. Isso porque não houve no acórdão que se alega descumprido o expresso estabelecimento de enunciado vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário, atributo próprio dos procedimentos de controle abstrato de constitucionalidade das normas, bem como das súmulas vinculantes, do qual não são dotadas, ordinariamente, as ações populares.
 

Não foi por outra razão que o Ministro Ayres Britto, Relator da Pet 3.388/ RR, asseverou, ao censurar o cabimento de reclamação análoga a que ora se examina (Rcl 8.070/MS), que “ação popular não é meio processual de controle abstrato de normas, nem se iguala a uma súmula vinculante”. Destaco, ainda, que o Ministro Cezar Peluso ressaltou em seu voto na Pet 3.388/RR que aquele julgamento representava “autêntico caso-padrão, ou leading case”, cujos enunciados propostos deixariam claro o pensamento da Corte a respeito do tema enfrentado.
 

Todavia, conforme ressaltado pela Ministra Cármen Lúcia ao negar seguimento à Rcl 4.708/GO, as consequências vinculantes do leading case, próprias do sistema do Common Law, não se aplicam, a priori, ao nosso sistema jurídico, uma vez que “o papel de fonte do direito que o precedente tem, naquele, não é desempenhado pelo precedente no direito brasileiro, salvo nos casos constitucional ou legalmente previstos, como se dá com as ações constitucionais para o controle abstrato”. Concluiu, então, a Ministra Cármen Lúcia ressaltando que “o precedente serve, no sistema brasileiro, apenas como elemento judicial orientador, inicialmente, para a solução dos casos postos a exame. É ponto de partida, não é ponto de chegada”.
 

Por fim, recordo que a jurisprudência desta Corte é firme no sentido de que a reclamação não pode ser utilizada como sucedâneo ou substitutivo de recurso, ajuizada diretamente no órgão máximo do Poder Judiciário. Veja-se que contra a sentença judicial ora contestada o reclamante já interpôs, regularmente, recurso de apelação, que será oportunamente apreciado pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região.
 

Isso posto, nego seguimento a esta reclamação (RISTF, art. 21, § 1º), ficando prejudicado, por conseguinte, o exame do pedido de liminar.
 

Arquivem-se os autos.
 

Publique-se.
 

Brasília, 23 de maio de 2012.
 

Ministro Ricardo Lewandowski
Relator
 
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