domingo, 30 de novembro de 2014

O ministro Márcio Thomaz Bastos, os índios e e

São muitas as lembranças que tenho do Ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos quando eu fui presidente da Funai. Quero recordar algumas delas para demonstrar meu respeito e carinho pelo Dr. Márcio, falecido hoje tão inesperadamente.

As lembranças começam do primeiro momento em que lhe fui apresentado em seu gabinete ministerial. Só o conhecia de jornal, pelo seu papel na transição democrática, como presidente da OAB, e como advogado criminalista, no júri dos assassinos de Chico Mendes. E ele nunca ouvira falar de mim. Eu havia sido convidado pelo seu chefe de gabinete, o advogado de direitos humanos Sérgio Sérvulo da Cunha, a quem conhecera três dias antes, no Rio de Janeiro, para conversar com o ministro, em Brasília, sobre a Funai.

Naqueles dias de início de setembro de 2003 a Funai estava uma zorra, em convulsão há oito meses, sem direção e sob a pressão de mais de 500 índios em Brasília, clamando por mudança, por atendimento a suas reivindicações coletivas e pessoais. Dr. Márcio me atendeu numa conversa de não mais que meia hora, cada um de nós sentado nas vetustas cadeiras do MJ, eu abismado ao mirar a Esplanada dos Ministérios e o Congresso Nacional.

O que ele viu em mim, ou leu em mim — com sua mente de criminalista que tem que adivinhar porque um homem mata sua mãe e merece perdão — nesse curto espaço de tempo, é de admirar. Ele me dizia que queria alguém com um jeitão de impor ordem numa Funai da qual ele sabia quase nada, ouvindo aleatoriamente índios, antropólogos, políticos e funcionários do órgão sem saber qual direção tomar. Disse-lhe que não era gerentão nem generalão, que, sendo antropólogo, meu perfil era de ouvir, conversar, propor e considerar objeções, e só depois tomar atitude.

Minha experiência de governo tinha sido a de subsecretário de planejamento junto a Darcy Ribeiro, no segundo governo Brizola, quando fizéramos 504 escolas públicas de tempo integral, os CIEPs, e a Universidade do Norte Fluminense. Com Darcy aprendera a administrar, a ouvir, a debater, a brigar e a ter atitude política. A conversa que começou formal, tornou-se amável, completamente sincera, e terminou sem convite. Ao final, ele me perguntou se eu queria ser presidente da Funai, respondi-lhe que sim e dei-lhe meu livro Os Índios e o Brasil, e ele me perguntou se este seria meu programa de ação indigenista. Ri, mas disse-lhe que talvez sim. Dois dias depois meu nome estava no Diário Oficial da União como novo presidente da Funai.

Naquela mesma tarde alguém comentou a conversa e a notícia correu pela internet. A Coiab, a principal associação de representação do movimento indígena, soltou nota de que eu não seria bem vindo, que eu vinha da linhagem de Darcy Ribeiro e do Marechal Rondon, que tinha sido do PDT e agora do PPS, e que havia publicado um texto no jornal eletrônico Achegas criticando o PT. Meses depois soube pelo seu chefe de gabinete que o todo poderoso ministro José Dirceu havia então conversado com o Dr. Márcio e pedira-lhe para não me nomear. O Dr. Márcio lhe teria retorquido que talvez o ministro Dirceu também o quisesse demitir, e o Zé calou-se.

Ao longo de três anos e sete meses de meu mandato na presidência da Funai o ministro Márcio teve muitos motivos para me demitir. Havia pressão direta do PT, de ONGs indigenistas, de fazendeiros, de políticos do agronegócio, de alguns governadores, do vice-presidente da República, o fazendeiro de algodão José Alencar, da cozinha do governo (mas nunca do próprio presidente Lula, de quem sempre recebi um amável retorno às minhas ponderações e sugestões), da 6ª Câmara do Ministério Público que atende às reivindicações indígenas, de uma parte da imprensa – mas nunca dos índios, suas comunidades e suas representações tradicionais. Com estes sempre tive uma boa e alegre convivência, tendo visitado mais de 80 terras indígenas e recebido mais de 300 delegações nesse período de incumbência.

Quando um grupo de guerreiros Cintas-Largas, em uma manhã de 15 de abril de 2004, matou 29 garimpeiros de diamantes na Terra Indígena Roosevelt, no Estado de Rondônia, defendi-os veementemente com o argumento de que estavam exercendo o seu direito de proteger suas terras. Foi um momento difícil, a questão tomou vulto na imprensa, alguns jornalistas me acusaram de ser anti-humanista, um antropólogo me cognominou de “pequeno Napoleão”, o Exército considerou fazer uma missão para entrar na área indígena para resgatar os corpos, a fofocada na Funai e em hostes contrárias espalhou que eu seria demitido.

Naquela semana a Funai estava homenageando os índios Xavante e sua luta pela retomada da Terra Indígena Marãiwatsede, e eu me sentia orgulhoso de estar contribuindo para isso. O Dr. Márcio jamais disse uma palavra contrária às atitudes e posições que eu estava tomando. Ao longo de todo o período que antecedeu ao massacre eu o comunicava de tudo. Acho que mataram uns 10 garimpeiros, ministro, podem ter sido 18, ministro, acho que o número chega a 30, ministro. E tentava relatar as providências tomadas, mostrar-lhe que tínhamos o melhor homem de área, o bravo e inesquecível indigenista Apoena Meirelles, que, 35 anos atrás, havia ajudado seu pai, Francisco Meirelles, a fazer os primeiros contatos pacíficos com os Cintas-Largas. Apoena iria ser assassinado por um rapaz seis meses depois num bizarro incidente na cidade de Porto Velho, RO.

E houve muitos outros exemplos da firmeza do Dr. Márcio Thomaz Bastos em relação a mim. Voltando a aqueles tempos, parece estranho que nunca tenha duvidado de minha capacidade de trabalho e de minha lealdade pessoal a ele e ao governo Lula. Sua equipe de trabalho, composta por jovens advogados paulistas, a seu comando, também nunca deixou de me ajudar e me mostrar os percalços que podiam me atingir. A eles todos eu sou grato.

Duas grandes atuações indigenistas aconteceram comigo e o Dr. Márcio.

O primeiro foi a demarcação e homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, na região mais setentrional do Brasil, incluindo o Monte Roraima. Fazendeiros tradicionais e espúrios, o Conselho de Defesa Nacional, governadores, políticos de todo o espectro partidário, do PCdoB ao PP, se posicionaram contra essa demarcação. Mostrando-lhe o histórico da demarcação de terras indígenas no Brasil, as lutas indígenas para sobreviver, o Dr. Márcio logo se deu conta de que a demarcação de Raposa Serra do Sol seria sua obra indigenista mais importante e significava o ápice do indigenismo brasileiro, iniciado em 1910 com o Marechal Rondon. Foi com esse argumento que ele convenceu o presidente Lula de que este ato era digno e glorioso e ficaria nos anais da República, talvez acima de outros atos presidenciais.

O seguinte instante de alegria do Dr. Márcio em relação aos índios foram suas visitas a terras indígenas. Ele esteve em 2004 no Kuarup promovido pelo povo Kamaiurá, na Terra Indígena Alto Xingu. Lá permaneceu por três dias, dormindo em rede na casa do cacique Kotok e vivenciando as diversas fases desse ritual. Em setembro de 2005 ele voou para a Terra Indígena Baú, dos índios Kayapó, a quem entregou o ato de demarcação de sua terra indígena, que havia sido contestada por fazendeiros e políticos da região da BR-163, no Estado do Pará. E em março de 2006 ele levou os papéis de demarcação da Terra Indígena Panambizinho, no Mato Grosso do Sul, aos índios Guarani-Kaiowá, que hoje ainda sofrem por carência de terras. Nessa ocasião ocorreu um imenso temporal que fez a cobertura do palanque voar aos ares e todo mundo correr para o abrigo das casas. O Dr. Márcio sorria despreocupado, olhando o céu em alvoroço, enquanto seus seguranças se avexavam tentando proteger o chefe. Os Kaiowá acharam que o temporal era um belo sinal de vitória por sua luta extrema que vinha desde a década de 1930 para garantir a terra que lhes havia sido subtraída para fazer um loteamento para os imigrantes da ocasião.

No seu período de ministério, Dr. Márcio e eu conseguimos homologar 67 terras indígenas, firmar a demarcação de 31 novas terras e abrir algumas dezenas de processos de análise de novas terras. Nada fácil, dada a cautela jurídica com que sua equipe de advogados verificava os argumentos de demarcação. Nada fácil, pois o cerco contra a demarcação de novas terras indígenas estava se estreitando, tanto no Congresso Nacional quanto no Judiciário. Por isso mesmo, muitos processos de demarcação foram contestados juridicamente por fazendeiros e políticos e acabaram nos tribunais, em estado de disputa. Nos últimos anos o Supremo Tribunal Federal tem tomado posições que restringem ainda mais a possibilidade de novas demarcações em áreas contestadas.

Ainda há um largo caminho a trilhar na demarcação de terras indígenas até que os povos indígenas sejam efetivamente contemplados com o sentimento de recuperação e consolidação de suas condições de vida. O Brasil lhes deve muito.

O Dr. Márcio tinha a visão do possível a se realizar a cada tempo. Ao se fazer ministro, tornou-se um verdadeiro homem de estado, um estadista. Seu olhar era multifacetado, abarcando as diversas perspectivas da sociedade brasileira. Mas suas decisões eram tomadas com firmeza. Os muito índios que foram por ele recebidos em audiência ou a quem ele ajudou no cumprimento de suas reivindicações sabem disso.

Ao indigenismo brasileiro o Dr. Márcio deixou sua marca. Por extensão, ao Brasil, que só será uma nação próspera e honrada, no dizer do poeta Gonçalves Dias, com a “inteira reabilitação” dos índios. O Dr. Márcio Thomaz Bastos deixou a marca de um homem que sabia, por intuição pessoal e por sentimento histórico, da importância dos índios para a constituição da grandeza do Brasil.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

A batalha de Humaitá

Em Humaitá a situação continua tensa. A população exige que o desaparecimento de três pessoas seja esclarecido. O Exército perambula pelas aldeias dos Tenharim e não consegue pista do que aconteceu. Dizem que acharam um carro queimado que pode vir a ser o carro prendido pelos índios. Mas não há prazo para se esclarecer isso. Por seu lado, os índios estão encurralados, recebendo o apoio do Exército em forma de proteção e alimentos. Nenhum índio permanece na cidade de Humaitá com medo de ser linchado. A Funai não sabe bem o quê fazer, todos os seus funcionários graduados saíram para Porto Velho ou Manaus.
A pedido de uma jornalista, escrevi as seguintes considerações sobre o assunto.

1. Em muitas partes do Brasil há situações semelhantes à de Humaitá. Há alguns anos os índios passaram a conviver nas cidades, a criar uma vida urbana, e isso resulta em tensões, seja de ordem econômica, seja de ordem cultural. Entretanto, em geral, as tensões são dissipadas pelo conhecimento mútuo e pela confiança que se estabelece entre as partes. Muitas cidades brasileiras convivem perfeitamente bem com os índios que lá habitam ou que a frequentam. Outras não. Em geral, as tensões estão mais presentes em cidades novas, recém-formadas ou recém frequentadas pelos índios. Nelas há uma incompreensão por parte dos cidadãos não indígenas sobre quem são os índios e como eles devem se relacionar com o mundo dos "brancos". Já os índios buscam um caminho de bom relacionamento, ao seu modo, mas as coisas nem sempre ocorrem como os cidadãos brancos querem.

2. Em diversas partes do Brasil, onde passam rodovias, os índios se deram conta de que as rodovias produzem impactos em suas vidas. Eles sentem que muitos se valem dessas rodovias e por elas são beneficiados. Mas não eles, os índios. Daí começaram a cobrar pela passagem de automóveis nessas rodovias. Por exemplo, os índios Pareci permitiram que se fizesse um atalho em uma rodovia, que passou por suas terras, diminuindo a distância, mas sob a condição de pagarem pedágio. Isso vem ocorrendo há uma dezena de anos, e, apesar das reclamações, tornou-se uma realidade regional. Já os índios Kayapó cobram um pedágio pela passagem de carros em balsa sobre o rio Xingu. Os caminhoneiros reclamam, o governo do Mato Grosso quer acabar com isso, mas os índios mostram força para manter o pedágio. Há legalidade sobre isso? Provavelmente não, mas são fatos reais que precisam ser considerados para algum foram de legalização. Pedágio, hoje em dia, é cobrado nas principais rodovias brasileiras, supostamente em troco de sua manutenção, o que nem sempre é real.

3. O caso da Terra Indígena Tenharim-Marmelos é típico de outras situações em que há uma pressão extra, bem maior e contundente, por parte de madeireiros que invadem a terra indígena e dela fazem uso indiscriminado. Em algumas delas, faz-se vista grosso em troca de algum pagamento; em outras, há uma maior supervisão, e os índios recebem uma porcentagem maior. Há legalidade nisso? Provavelmente não, mas é um fato real, e precisa ser levado em conta.

4. A retirada de madeira em terras indígenas é ilegal. Mas está acontecendo sob as vistas do Ibama e da Funai, e pouco se consegue fazer, ainda mais quando alguns índios estão envolvidos. Isso também tem que ser levado em consideração.

5. Evidentemente, os índios não gostam de ver suas florestas serem devastadas. A maioria não permite que isso aconteça.

6. Portanto, falta uma política social e econômica para que aqueles índios que, em determinadas circunstâncias, não permitam que se retire madeira de suas terras. Quem haverá de fazer essa política? O governo, claro. Mas, não consegue. A retirada e expulsão de madeireiros se dá sempre em surtos, com polícia, Ibama, Funai, todos juntos. Mas, em geral, desafortunadamente, dura só enquanto há a presença da polícia.

7. Falta, portanto, uma política mais consistente na questão da proteção ambiental brasileira. Quem há de fazer isso?

8. No caso recente ocorrido na região abrangida pela cidade de Humaitá, deu-se uma incontida explosão de desentendimentos, com os resultados que estamos acompanhando pela mídia. As mortes ocorridas, de parte a parte, têm que ser contabilizadas e julgadas. Isto é essencial para que se volte à situação anterior e se estabeleça um modus vivendi razoável para ambas as partes. Eventualmente, as tensões poderão ser dissipadas. Para isso, é preciso que se fortaleça a mediação da Funai para dirimir possíveis conflitos. Quem deve fazer isso? O governo, é óbvio.

9. É fundamental que o caso Humaitá seja resolvido. Se não, a cidade ficará impregnada de tensões, outras cidades brasileiras também poderão pagar seu próprio preço, e os índios continuarão a sofrer pela discriminação e pela falta de um caminho benéfico à sua ascensão no panorama brasileiro.
 
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