segunda-feira, 10 de março de 2008

O Índio na História: Cap.2 - Convivendo com os Tenetehara



Capítulo II

Convivendo com os Tenetehara


O primeiro dia do antropólogo

A primeira vez que estive com um índio foi, por coincidência, um Tenetehara, na cidade de São Luís, numa tarde de julho de 1975. Ao subir os degraus da varanda da casa que abrigava a 6ª Delegacia Regional da FUNAI - Fundação Nacional do índio -, na rua do Apicum, vislumbrei a figura de um índio sentado numa cadeira de varanda, desconfortado, absorto em si mesmo, com um ar de quem não sabia porquê e para que estava ali. Ao vê-lo mais de perto calculei, pelas fotos que conhecia do livro de Wagley e Galvão, que aquele senhor, com idade de 55 para 60 anos, devia ser um Tenetehara. Não demonstrava pressa nem ansiedade, como se estivesse suportando um castigo com paciência. Embora obviamente em posição de humildade, não parecia humilde, não disfarçava seu mal-estar. Uma figura nova e surpreendente para mim. Por que estava ali? Eu me perguntava ao passar por ele e entrar na sala de espera à procura de alguém para me apresentar.

Viera ali para receber minha licença de pesquisa em área indígena, para conhecer e conversar com o delegado da FUNAI no Maranhão e para obter informações que me ajudassem a decidir sobre para qual área tenetehara eu deveria ir e que providências imediatas deveria tomar. Tinha 24 anos e vinha dos Estados Unidos, da Universidade da Flórida, onde fazia meu doutorado com o Professor Charles Wagley, o decano dos brazilianistas da época, com quem obtivera uma bolsa de pesquisa para reestudar os Tenetehara mais de 30 anos após sua pesquisa realizada juntamente com Eduardo Galvão e outros pesquisadores brasileiros. Já havia passado por minha cidade natal, depois de uma ausência de cinco anos, pelo Rio de Janeiro, onde estivera pesquisando nos arquivos do Museu do Índio, ajudado pelo conhecimento etnohistórico e pela generosidade intelectual de Carlos Moreira Neto, e também por Brasília, na FUNAI, onde apresentara meu plano de pesquisa e as credenciais exigidas para obter a licença de pesquisa e permanência com os Tenetehara. O diretor de assuntos comunitários, o antropólogo George Zarur, que havia sido meu colega na Flórida, me pedira para analisar o problema da plantação e consumo de maconha por parte dos Tenetehara e, principalmente, o tráfico desse entorpecente que estava começando a ficar mais intenso e perigoso para os índios.

A conversa com o delegado foi decepcionante. Obviamente ele não se interessava por índios. Estava ali desde fevereiro de 1975 pelo emprego que lhe fora conseguido por influência de um irmão ligado ao esquema de poder dos militares do Ministério do Interior, ao qual estava subordinada a FUNAI. Nos primeiros dias em que assumira a delegacia havia mandado retirar e jogar fora todos os papéis - como se fossem papéis velhos e não documentos históricos - que se encontravam na Casa do índio, a qual durante anos havia sido a sede da Inspetoria Regional do Serviço de Proteção aos índios - o SPI -, o órgão que antecedera a FUNAI. Menos ainda se interessava pelos Tenetehara que, a seu ver, nem índios seriam, já que muitos falavam português, agiam com matreirice, se comportavam com arrogância e teimosia, pareciam invejosos, briguentos e sem espírito de comunidade, cada um vivendo como queria. Pouco se assemelhavam aos índios Canela, que lhe pareciam mais ao feitio do que devia ser um índio de verdade, um índio puro, sem contaminações, não aculturado.

Pesava na sua compreensão do índio aquilo que, na época, se concebia como “graus ou estágios de aculturação”. Para ele, como para a maioria dos brasileiros, educados ou não, o índio estava em processo de extinção, seja por morte física, devido a doenças e matanças perpetradas por invasores de suas terras, seja por morte étnica ou cultural, que se dava pela influência da sociedade e cultura brasileiras sobre sua forma de ser. Quanto mais o índio adotasse hábitos brasileiros, como o uso de roupas, calçados, óculos, relógios, quanto melhor falasse a língua portuguesa e se comportasse com desenvoltura entre brasileiros, mais estaria perdendo sua cultura nativa e mais estaria se transformando em brasileiro, rural e pobre, por suposto. A própria FUNAI classificava os povos indígenas segundo uma escala de relacionamento com a sociedade nacional, a qual ia da condição original de viver isolado, ou sem contato com brasileiros, em seguida, de estar em contato intermitente, depois, de estabelecer-se em contato permanente, até chegar ao estágio final de integração. A FUNAI procurava agir com os índios de acordo com seu estágio nessa escala, com maior ou menor condescendência ou exigência. A visão do delegado não era uma exceção, chocava apenas pelo jeito desembaraçado com que falava o que sentia, sem escrúpulo pelo cargo que ocupava. Eu, aprendiz de antropólogo, escutava aquilo com uma ponta de desprezo e com um aperto no coração.

Os Tenetehara davam-lhe motivos para muito aborrecimento e preocupação, ainda mais porque estavam vivenciando um período muito intenso de ameaças reais de perda de território por causa das invasões de multidões de pequenos lavradores e das tentativas de grilagem por parte de fazendeiros e empresas agropecuárias que estavam vindo comprar terras no Maranhão naquela quadra. No ano e meio que ocupou esse cargo, o delegado tentou de vários modos dirimir disputas de terra entre índios e invasores, às vezes defendendo os direitos dos índios, às vezes tentando contemporizar interesses de fazendeiros, inclusive jogando com a disputa de lideranças e tentando corrompê-las com promessas de dinheiro ou de privilégios na FUNAI. Em vão. Saiu sem demarcar as terras dos Tenetehara, mas não conseguiu arrefecer o ânimo dos índios na luta pela consolidação de seus territórios, que iria se dar logo em seguida. Saiu com o peso da acusação de improbidade administrativa, supostamente por desvio de verbas para proveito próprio. Mas, como de praxe, nem houve inquérito.

Como ele, outros indicados políticos viriam a ser delegados da FUNAI em São Luís, iriam sofrer as pressões cabidas e descabidas de índios e não índios e iriam deixar o cargo de chofre e quase sempre maculados em suas honras. Com eles sempre se agregavam funcionários corruptíveis e corruptores que, de uma forma ou de outra, se aproveitavam para melhorar suas posições de trabalho ou obter benefícios pessoais. Como em tantas repartições públicas brasileiras, eram fáceis de serem reconhecidos e muitos mantinham controle sobre áreas estratégicas da administração. Em São Luís, como em Brasília, funcionários ligados à maçonaria controlaram, em diversas épocas, muito da burocracia desses órgãos. Alguns poucos delegados chegaram a sustentar um esforço continuado para tentar resolver as urgências e carências dos índios, bem como as mazelas de um órgão que fora criado pelo autoritarismo militar e se deteriorava em suas funções e suas ações a olhos rasos. O fim do regime militar não trouxe nenhuma melhora significativa nesse órgão, mas pelo menos deixou de ser um ninho de delações e a tática de ameaça arrefeceu como instrumento de administração.

Desde meados da década de 1980, a delegacia de São Luís vem perdendo, em função de mudanças administrativas da FUNAI nacional, seu poder de decisão sobre a problemática indígena regional, bem como sobre a administração da maioria das terras e postos indígenas do Maranhão. De supervisora de todo o Maranhão, passou a simples agência administrativa com controle sobre apenas quatro das terras dos Tenetehara: Pindaré, Caru, Bacurizinho e Urucu-Juruá. Nos últimos dez anos vem sendo dirigida ora por ex-chefes de posto, ora por índios Tenetehara do Bacurizinho, ora por novas pessoas alheias à questão indígena indicadas por políticos maranhenses. Em 1997, no entanto, foi empossado um indigenista formado nos cursos da FUNAI, reconhecido por sua dedicação e diálogo com os índios.

Nas décadas de 1970 e 1980, a maioria das terras indígenas no Maranhão foi reconhecida oficialmente e demarcada, um sucesso que é de admirar, sobretudo pela amplitude de interesses e intensidade da luta pela terra que se travava naquele estado. É certo que havia precedentes nesse reconhecimento. O SPI já havia delimitado e praticamente demarcado de três a quatro áreas importantes, desde 1923. Uma delas foi esquecida pela FUNAI, duas foram diminuídas pelas invasões, e uma outra terminou sendo demarcada em tamanhos maiores (ver Capítulo X). De todas as áreas reconhecidas como indígenas, apenas as terras dos índios Krikati e um dos territórios dos Guajá ficaram pendentes até recentemente. A Terra Indígena (T.I.) Krikati foi demarcada em fevereiro de 1997 depois que os próprios índios, impacientes com tanta demora, forçaram uma decisão governamental a seu favor e contra os interesses de posseiros e fazendeiros, após atearem fogo em duas torres de linhas de transmissão elétrica que passam no seu território e ameaçarem com mais ações desse tipo. Um dos territórios dos índios Guajá, a T. I. Awá-Guajá, cuja área de 220.000 hectares foi delimitada por uma equipe da FUNAI sob minha coordenação, em 1985, permanece na expectativa de ser demarcada, embora em tamanho menor. A demora em fazê-lo tem acarretado a entrada de muitos invasores e o conseqüente devassamento da floresta.

Um dos territórios dos Tenetehara de maior tensão demográfica, a T.I. Guajajara-Canabrava, embora delimitada por decreto estadual em 1923, parcialmente demarcada em 1929, quase demarcada na década de 1940, e uma vez mais demarcada e homologada pelo governo federal no final da década de 1970, finalmente conseguiu se livrar do povoado de São Pedro dos Cacetes, nela incrustada desde a década de 1930 e que teve no seu auge, nos anos 1980, cerca de 2.500 habitantes. O povoado, exibindo quase todos os serviços urbanos, se dava ares de sede de município e contava com o apoio de políticos regionais interessados nos votos de seus moradores. Contabilizava dezenas de conflitos com os Tenetehara locais e já passara por vários planos de remoção de seus habitantes para outra área, sem que se chegasse a uma solução definitiva. A persistência inabalável de lideranças tenetehara de não abrirem mão de manter essas terras e expulsar os invasores terminou por vencer essa guerra extremamente difícil.

Havia ainda, e continua a haver, outras terras indígenas que nunca foram reconhecidas pela FUNAI, como diversos territórios dos índios Guajá, que, pelo pequeno tamanho dos grupos e sua mobilidade espacial, eram sempre vistas como “áreas de perambulação”, uma noção equivocada do indigenismo brasileiro e profundamente prejudicial àqueles índios. Pouco se fez para garantir aos grupos que lá viviam a sua permanência, sendo necessária a sua transferência para outras terras onde havia mais grupos guajá.

Há ainda diversos casos de remanescentes de povos indígenas, às vezes não mais que algumas famílias, que vivem há anos como camponeses, exceto pelo seu espírito solidário de pertencerem a uma comunidade e pela identificação com um passado indígena. Eles nunca conseguiram ser reconhecidos pela FUNAI como índios de pleno direito e assim nunca tiveram a garantia de terras coletivas. Naquele ano de 1975, um homem se dizendo descendente dos índios que viviam na ilha de São Luís, num povoado chamado São José dos índios, distrito da cidade de São José de Ribamar, que fora uma das três aldeias jesuíticas com índios Tupinambá missionizados desde o século XVII, viera se apresentar à FUNAI para pedir sua colaboração para expulsar invasores que estavam tomando essas terras, que eram dos seus parentes e antepassados. Foi visto como uma curiosidade por parte dos funcionários da delegacia, a maioria dos quais não tinha a mínima compreensão de que ele poderia estar dizendo a verdade. A FUNAI via esses casos, como vira outros anteriormente, como um aborrecimento à parte, sem capacidade para tomar alguma providência. Anos depois, essa atitude iria mudar, na medida em que o reconhecimento da identidade indígena foi se focalizando nas condições básicas de vivência comunitária e no auto-reconhecimento de sua identidade, não importando a maior ou menor presença de características fenotípicas ditas indígenas.

Quem era o Tenetehara que eu acabara de ver e como chegar a ele? Era conhecido como Manezinho, pois era baixinho até para os padrões tenetehara, e vivia numa aldeia da T.I. Araribóia, que logo soube ser a maior área dos Tenetehara e a que tinha as aldeias mais tradicionais, ou mais “primitivas”, como se dizia. Vi num mapa que era uma área enorme, com mais de 400.000 hectares planejados, e, mais tarde, vim a saber que havia sido reconhecida e delimitada pelo SPI desde o começo da década de 1960. Os seus limites laterais seguiam, e incorporavam, os cursos dos rios Zutiua e Buriticupu , mas as partes norte e sul eram delimitados por linhas secas. Manezinho estava em São Luís, enviado que fora pelo chefe de posto como uma espécie de castigo por ter flechado e matado um porco de um lavrador brasileiro que vivia pobremente perto da sua aldeia, talvez numa terra que Manezinho considerava como pertencente a Araribóia.

Mas será que ele não tinha razão para chegar às vias de fato com um intruso em suas terras? Bem, ele podia até ter razão, me dizia o delegado, mas não podia ter feito o que fez porque ia provocar mais violência. Aquela área já estava com graves problemas por causa da invasão de mais de 2.000 pessoas desde que uma empresa de construção, a EIT (Empresa Industrial Técnica), havia aberto uma estrada de rodagem ligando a cidade de Grajaú ao povoado Arame, atraindo esses pobres lavradores que vinham expulsos de suas condições de meeiros ou agregados das fazendas do leste maranhense, do Piauí e de outros estados nordestinos.

Havia uma intensa movimentação de migrantes sem-terras e de médios fazendeiros naquela região do centro-sul maranhense, como, de resto, em quase todo o estado. O centro-sul do Maranhão já experimentara influxos semelhantes de migrantes nordestinos desde a seca de 1877, mas este agora, que começara em meados da década de 1960, parecia muito mais intenso e dava a impressão que não iria acabar senão com a dissolução das terras tenetehara e dos outros índios da região, os Canela, Gaviões, Krikati e grupos Timbira.

Os índios Tenetehara estavam realmente tensos e irritadiços, sentindo o perigo de perder suas terras, como haviam perdido terras no século passado - que sua memória e sua mitologia histórica não os deixavam mentir - e buscavam meios de arregimentar forças e apoios externos para se defender. Tudo isso sem nenhuma organização visível, sem nenhuma instituição centralizadora ou decisória, nenhuma liderança forte que fosse reconhecida por todos, ou ao menos por uma maioria. Na verdade, os Tenetehara primavam pela falta de estruturação política e defendiam seus interesses em função das ameaças imediatas a cada área em particular. Um sentimento de solidariedade étnica predominava, sem dúvida, sobretudo quando havia um inimigo comum que pairava acima de todos. Eram os karaiw, os “cristãos”, os “brancos”, os “invasores”, os “poderosos”, às vezes o “governo”, em alguns momentos ouvi dizer os “capitalistas”.

Assim, nesse clima, se a atitude de Manezinho parecia à FUNAI a de um velho desequilibrado, para os Tenetehara era uma atitude de reação desafrontada, mais um passo de coragem, mais um gesto de ousadia para emular aos demais. E, com efeito, logo-logo viriam atitudes e ações mais ousadas ainda.

Entabulei conversa com alguns funcionários que se mostravam receptivos com a presença de um antropólogo, algo ainda raro e não ameaçador. Lá havia um outro índio Tenetehara, Raimundinho, que era funcionário da FUNAI há alguns anos e que servia cafezinho e fazia tarefas de office-boy na cidade. Seu rosto era marcado por seqüelas de varíola e seu olhar era tristonho, sorria com certa ingenuidade e com a humildade de quem sabia que era esse o comportamento que se esperava de um índio na cidade, e especialmente de um índio funcionário. Conversei com ele, perguntando-lhe de onde viera, há quanto tempo morava em São Luís, se pretendia voltar para alguma aldeia, curiosidades de antropólogo jejuno. Ele me respondia com poucas palavras que me davam a impressão de sua fragilidade existencial e de um certa visão estóica da vida, algo que não deixa de tocar os visitantes em áreas indígenas e que confunde a análise do antropólogo. Me encantava estar conversando com um Tenetehara e me preocupava que ele não vivesse mais entre os seus, não tivesse família, nem fizesse roça, e pouco falasse sua língua. Me entristecia saber que, de vez em quando, ele tomava umas carraspanas que o deixavam caído ao léu nas ruas da cidade.

Ao meu lado se acercara uma moça baixinha e vivaz, chamada Deyse Lobão, que há três anos estava na FUNAI implantando um programa de educação bilingüe para os Tenetehara, aproveitando os próprios índios alfabetizados e capacitados para darem aulas como monitores. Ela, de imediato, e ao longo de muitos anos de convivência e amizade, foi me prestando ajuda e informações sobre o funcionamento da delegacia regional e dos postos indígenas, sobre o comportamento de chefes de posto, sertanistas, médicos, o dentista de muitos anos, auxiliares de enfermagem, e outros funcionários administrativos, bem como fornecendo dados específicos sobre índios Tenetehara de projeção, as dificuldades enfrentadas pelo seu programa de educação, e tantas coisas mais. Informações perspicazes, com um senso do jogo do poder, mas com pouco conhecimento da inserção da problemática indígena no cenário local. Deyse era visada pela cúpula da delegacia porque tinha a petulância de levantar suspeitas e acusações sobre atitudes antiindígenas que lá ocorriam, e porque mantinha um excelente relacionamento com os índios e com as lideranças emergentes do programa educacional. Como podia-se prever desde então, os vinte monitores desse programa, que passaram a receber um salário mensal mais que razoável para os padrões interioranos maranhenses, da ordem de US$120, em 1975, seriam, em pouco tempo, os líderes políticos mais visíveis dos Tenetehara.

Queria conhecer Manezinho e cheguei-me a ele perguntando-lhe se poderíamos conversar mais tarde sobre a sua aldeia. Ele achou estranho, mas disse que podia conversar. Combinei de ir vê-lo na Casa do índio, onde estava hospedado, logo mais à noite. O delegado não fez objeção ao meu pedido e até me deu uma carona de volta ao hotel, mostrando-me no caminho a Casa do índio, uma dessas típicas casas geminadas da movimentada Rua do Sol.

Pelas 7:00 horas da noite lá fui eu conversar com Manezinho e também com Alderico, um Tenetehara que estava chegando da aldeia e que me fora apresentado por Deyse Lobão como a pessoa com quem eu poderia me acertar para fazer a pesquisa de campo. Alderico era o “capitão”, como era chamado o representante oficial de uma aldeia, da aldeia Bacurizinho, localizada na terra indígena que tomou o nome de Bacurizinho, no município de Grajaú, centro-sul maranhense. Parecia o oposto de Manezinho e sob vários aspectos era realmente diferente e se realçava sobre os Tenetehara. Não tinha ainda 40 anos, com uma cara larga e quadrada, mostrando uma barba fechada, um bigode gengis khan, que se diferenciava do estilo clark gable preferido pelos homens Tenetehara que tinham pêlos no buço, e uma barriga volumosa que não pararia mais de crescer.

A conversa com ele e Manezinho se deu na mesa de jantar da Casa do índio, tendo por perto, entrando e saindo, vários índios Tenetehara, Canela e Urubu-Ka’apor, que, de vez em quando, eu procurava envolver na conversa com uma pergunta ou outra. Na ante-sala ao lado havia uma televisão em preto e branco e vários índios e funcionárias assistiam a uma novela popular na época, Gabriela. Em certo momento, entraram na sala, trazidos por uma enfermeira da FUNAI e outra funcionária que eu havia visto na delegacia, como se quisessem me mostrar, dois rapazes, dois meninos e uma menina Guajá, causando movimentação e azáfama. Eram os Guajazinhos que haviam sido trazidos de dois lugares diferentes do interior do Maranhão, pertencentes a grupos que haviam sido contatados por camponeses e sertanistas da FUNAI e cujos pais ou parentes haviam morrido. Estavam aí como órfãos de pais e de etnia, pois não se sabia como, quando e a quem devolvê-los, embora estivesse em funcionamento um posto de atração no alto rio Turiaçu com vários grupos Guajá já em relacionamento estável. A menininha e os dois meninos não teriam mais que três ou quatro anos e eram afagados e paparicados por todos, principalmente pelas funcionárias da Casa e da delegacia. Tinham mães demais. Já os rapazes adolescentes começavam a perturbar com sua indiferença soberba às coisas e à etiqueta brasileira e com seus impulsos sexuais desejando vazão.

Fui levado para ver os quartos que serviam de dormitório, com um monte de redes armadas, roupas e toalhas penduradas pelos punhos e caibros, homens, mulheres e crianças deitados, conversando, fumando e cuspindo no assoalho. Sentia o odor acre e mofento que estava na casa e me perguntava por que as coisas não poderiam ser mais limpas, agradáveis e saudáveis. Por que a casa que servia de hospedagem aos índios não era situada numa chácara num subúrbio da cidade, com mais espaço e árvores ao redor, com menos perigo de contaminação entre pessoas que vinham ali exatamente para se tratar de doenças geralmente contagiosas? Alguns anos mais tarde, a FUNAI alugou uma casa de hospedagem como eu imaginara naquele tempo e com isso atraiu um número sem fim de índios com suas famílias, alguns adoentados, outros a passeio em São Luís. Em certos dias havia até 200 deles, pressionando com problemas de alimentação e conforto. Depois disso a FUNAI optou por voltar à velha casa da Rua do Sol, suportando a falta de ventilação e o desconforto, mas com isso desencorajando visitantes.

A conversa com Manezinho e Alderico foi se fazendo, aos poucos, agradável e produtiva. Eu tomava a iniciativa de perguntar, sempre de forma circunloquial, tentando me explicar com clareza e testando o quanto eles estavam me compreendendo. Perguntava a um e a outro sobre assuntos da pesquisa: onde estava a aldeia, quantos habitantes havia, como eram as casas, que outras havia por perto, o que se plantava, e, depois, as típicas perguntas antropológicas sobre os nomes que se dão a parentes, irmãos, irmãs, pais e mães, etc. Calculava que as respostas podiam até ser inventadas na hora, desviadas quando impróprias, mas que também podiam ser “verdadeiras”, que fariam sentido no contexto em que elas se operavam e que seriam de grande utilidade (como confirmo neste momento). Por sua vez, eles também estavam me testando pelas respostas que davam e pelas observações que eu fazia.

Manezinho ficou emocionado quando lhe perguntei se era bom viver na sua aldeia. Aí ele me falou da “fartura” de alimentos que tinha lá, dos tipos de cereais, dos bichos de caça e dos peixes no rio Zutiua e nas lagoas, dos mistérios que acontecia no Lago Branco, demonstrando que estava com saudades. Isso me deu coragem para perguntar-lhe por que havia matado o porco do karaiw, o termo que os Tenetehara usam para o não índio. Ele mudou de fisionomia, me encarou e passou a contar que o tal dono do porco havia matado um seu irmão alguns anos atrás, e por isso havia sido levado preso para a cadeia da cidade do Amarante, onde tomara uma grande surra, mas depois fora solto e voltara para o mesmo lugar. Acrescentou que o mataria se pudesse. Mas isto não terminaria levando-o à cadeia e deixando sua família sem arrimo? Podia ser, “mas é assim mesmo”, me dizia, como se a vida tivesse regras e moira e que não se podia fugir delas.

Alderico, em sua posição de líder - e também de monitor bilíngüe, pois era um dos mais bem alfabetizados dos Tenetehara tendo feito os cursos preparatórios do programa - falava com desenvoltura, mas com cautela, dando respostas com algum enfado. Até que lhe perguntei sobre o problema de terras que estava acontecendo na área Bacurizinho. Aí ele se animou para contar o último incidente de confrontação que os índios tiveram com um japonês chamado Akashi, casado com uma mulher da tradicional família Arruda Barros, na região desde fins do século passado, que se dizia proprietário de um pedaço das terras do Bacurizinho. Akashi tinha ido à aldeia do Talhado para convencer os Tenetehara a sair de lá, e entrara em calorosa discussão com eles, até que um deles pegou uma mancheia de barro e o esfregou em sua cara, desmoralizando-o perante os outros índios e provocando uma ameaça de vingança. Alderico viera a São Luís para tratar de problemas educacionais com a professora Deyse, mas também para relatar ao delegado que os índios estavam querendo uma decisão dele para garantir esse trecho de suas terras. Os Tenetehara da área alegavam que esse trecho já havia sido garantido pelo SPI através de acordo com a família Barros, em 1959, inclusive com indenização em dinheiro, conforme era do conhecimento de todos e conforme constava em documento registrado no cartório de Grajaú, do qual ele trazia uma cópia.

Por que então a tibieza da atitude do delegado? Algumas semanas depois o delegado foi novamente a Bacurizinho, e lá já estava eu, com mais conhecimento e informação para afirmar e confirmar em discussão com as partes interessadas o legítimo direito dos Tenetehara. Num encontro entre todos os interessados realizado num hotelzinho na entrada da cidade de Grajaú ficou claro que o delegado queria um acordo em que os índios abrissem mãos de uma parte daquelas terras. Para isso, não se envergonhara de tentar dividir o ânimo dos índios oferecendo dinheiro e favores a Alderico e a Virgolino, um Tenetehara bastante conhecido entre os regionais e que estava em ascendência econômica na ocasião. Não dobrou nenhum dos dois. Alderico se fazia um líder responsável, encarnando o espírito mais comunitário de seu povo na defesa dos seus direitos e interesses, sem perder de vista, naturalmente, as contingências culturais de autonomia das aldeias e de diluição do poder de mando das lideranças. Tinha que lutar pelo seu espaço de líder respeitado pelos karaiw em competição com outros líderes, que pensavam por seus próprios meios e decidiam de acordo com o apoio que pudessem conseguir dos seus liderados. Mas num ponto todos pareciam estar de pleno acordo, o que os unia com uma força que desde muito não existia: a defesa de suas terras.

Não sei se por já ter lido tanto sobre índios e sobre como se chegar a eles pela primeira vez, ou por ser um nordestino com infância rural, o fato é que considerei a conversa com Alderico e Manezinho produtiva. Acertei, sem maiores delongas, que iria para a aldeia de Alderico em alguns dias, junto com ele, depois de comprarmos alguns equipamentos de estadia e alguns presentes que seriam distribuídos para todos na aldeia, como símbolo de boa vontade e amizade. Os índios, por sua vez, iriam fazer uma casinha de dois cômodos perto da casa de Alderico onde eu e minha esposa poderíamos morar por alguns meses. Eu iria aprender sua língua, estudar seus costumes e tentar ajudá-los na sua luta pela preservação de suas terras. Parecia algo razoável e possível.

Numa aldeia tenetehara

Quinze dias depois de termos chegado ao Posto Indígena Bacurizinho, na margem direita do rio Mearim, ao lado da aldeia do Ipu, minha casinha foi efetivamente construída pelos índios Tenetehara, na aldeia Bacurizinho. Era uma casa feita com esteios de troncos roliços ainda com cheiro de madeira verde, medindo 5m por 5m, com telhado de duas águas e paredes cobertos de palha nova de babaçu, com uma divisória que separava um quarto de dormir e guardar coisas e uma sala com uma mesa tosca e tamboretes para visitas. Duas redes ficavam permanentemente penduradas para quem quisesse se deitar, descansar, sentar ou dormir a qualquer hora.

Não havia cozinha, nem banheiro. Iríamos cozinhar atrás da casa, à moda dos índios, usando lenha num tripé de pedras sobre o qual as panelas iam ao fogo. Porém, manter um bom fogo e ficar de cócoras vigiando as panelas não eram tarefas fáceis. Após algumas tentativas demorosas e frustrantes que minha mulher fez para cozinhar arroz e feijão, sob o riso escarninho de algumas mulheres e crianças que nos observavam, o próprio Alderico achou que melhor seria se nós contratássemos uma brasileira casada com um Tenetehara para fazer a comida em sua casa e trazer-no-la em marmita três vezes ao dia. Assim foi feito e pudemos comer a vontade uma comida com gosto de rural brasileiro com tempero guajajara.

O banho seria tomado no rio a um quilômetro abaixo, e as necessidades fisiológicas seriam feitas a uns duzentos metros nos fundos da casa, num matagal onde, às vezes, recebia-se visitas de porcos à procura de qualquer alimento. Nada muito tranqüilo e relaxante encarar um porco à espera, mas não chegava a ser ameaçador. Pela madrugada da primeira noite de dormida fomos acordados com um farfalhar assustador vindo da parede da casa. Ao corrermos para fora percebemos na escuridão alumiada pelas estrelas que um burro estava arrancando e mastigando as folhas ainda verdes que constituíam as paredes da nossa casa. Aí foi preciso construir um cercado de paus finos e garranchos ao redor para espantar este e outros animais esfomeados, e também para sentir um pouco de privacidade também de dia, já que este era um sentimento que se aplicava de modo bastante diferente entre os Tenetehara.

Nossa casa nova ficava defronte à casa grande, de barro batido e paredes caiadas, de Alderico e sua família, que incluía sua velha mãe, sua mulher e sete filhos, dois deles de outros casamentos, uma prodigalidade que continuou sendo bem exercida por Alderico, bem como por outros que foram melhorando de condição econômica. De certo modo eu era um protegido dele, o que não me era inconveniente. Sua mulher e mãe muitas vezes apareciam para conversar com minha mulher e ajudá-la em seus problemas de adaptação. Como não tínhamos filhos, achavam que éramos recém-casados e que logo iria aparecer um. Os filhos de Alderico e seus amiguinhos iriam aparecer em casa com muita freqüência, curiosos para saber como vivíamos e o quê fazíamos. Passavam o portalzinho da cerca, entravam na sala, no início discretos e desconfiados, depois alegres e brincalhões, se escoravam na mesa, desenhavam sobre papel que eu lhes presenteava, davam informações sobre o que estava acontecendo na aldeia, quem tinha saído para a roça, quem tinha caçado à noite, quem tinha cantado de pajé. Quase todos falavam um português tímido, de poucas palavras, mas sem sotaque. Seus desempenhos iriam melhorar com o tempo, num bilingüalismo bastante natural. Um deles, José Arão, 20 anos depois, iria se tornar delegado da FUNAI em São Luís, alçado pela força política dos Tenetehara do Bacurizinho; dois anos depois iria ser exonerado sob a acusação de ter favorecido parentes com verbas marcadas para outros postos.

Ao lado estava a casa de Joaquinzinho, irmão mais velho de Alderico, que também era monitor bilingüe, embora menos conceituado, com uma família muito grande, todos da mesma esposa. Madalena, sua mulher, estava grávida de seu décimo filho e iria morrer tragicamente deste parto alguns meses depois. A placenta “colou” e não desceu e ela se esvaiu sem que o enfermeiro, chamado às pressas do posto indígena, pudesse estancar o sangramento. A nenêzinha nasceu perfeita, sem problemas, e foi criada pela mulher de seu irmão mais velho, que já tinha filhos.

A escola vinha em seguida, uma casa dividida entre uma terça parte, com dois cômodos de guardar material escolar e merenda, ambos com porta e fechadura, e um salão de frente, de paredes baixas, que servia de sala de aula para 20 a 30 alunos sentados em bancos escolares. Qualquer pessoa podia espiar ou assistir as aulas e isso era importante para os pais que queriam ver como os professores tratavam seus filhos. As reuniões mais importantes da aldeia ou com visitantes eram realizadas na escola.

Essas três casas em frente à minha eram referências importantes para mim. Da sala de minha casa, sentado à mesa, eu as via pelas frechas de minha cerca, sem precisar me mexer. Porém, mais auditiva e próxima era a casa do meu lado direito, também de palha como a minha, embora já velha, que pertencia a um sobrinho de Alderico, com sua mulher e quatro filhinhos. À noite, os ouvíamos chorando, rindo e ralhando, e de manhã cedo os garotos saiam para brincar e para nos visitar. A mãe tinha um olhar cândido e satisfeito de uma mulher feliz.

Bacurizinho era, naquele ano, a maior aldeia tenetehara, com quase 300 pessoas. Fora fundada, ou “assituada”, como diziam no linguajar maranhense, pelo pai de Alderico, Raimundinho Lopes, em 1950, vindo da velha aldeia da Pedra, no interior da área indígena. A Pedra, criada no início do século, se tornara inviável porque o poço que a sustentava de água, de tão cavado e remexido, fora se esgotando e já não minava no estio. A pequena árvore de bacuri, ao lado da qual as primeiras casas foram sendo construídas, emprestara o nome à aldeia, a qual, devido à sua importância a partir da década de 1960, terminou por representar toda essa terra indígena.

Alguns anos antes, em 1946, um irmão de Raimundinho, Chico Lopes, havia saído da Pedra com seus cunhados e um grupo de parentes e fundara a aldeia do Ipu, também na beira do Mearim, perto de uma corredeira d’água (yrypu) que lhe dera o nome. Assim, quando Bacurizinho surgiu, já existia Ipu. Duas aldeias comandadas por dois irmãos, com todas as características de rivalidade fraternal, demonstrando a tendência cultural dos Tenetehara de se alinharem preferencialmente com cunhados, ao invés de irmãos, refletindo a regra de residência uxorilocal e a dependência dos homens recém-casados para com seus sogros.

A história lembrada dos irmãos Lopes, como de resto das famílias tradicionais da área Bacurizinho, se remetia ao início do século, quando deu-se o levante dos Tenetehara contra a Missão dos Capuchinhos do Alto Alegre. Esse levante, ou rebelião indígena, que resultou na morte de quase 200 brasileiros e mais de 300 Tenetehara, se deu em 13 de março de 1901 e repercutiu por todo o Maranhão. Foi a última grande rebelião indígena no Brasil. O pai dos irmãos Lopes teria sido protegido por um fazendeiro local, chamado Pedro Lopes, logo que as forças militares brasileiras começaram a desbaratar as forças guerreiras tenetehara. Por essa patronagem, ele havia adquirido o sobrenome Lopes, num processo de autonominação que se aplica a outros sobrenomes usados pelos Tenetehara, como Carvalho, Souza, Silva, Amorim, etc. Negava-se de toda maneira que o pai ou avô, ou qualquer parente próximo dos irmãos Lopes tivesse participado no movimento guerreiro, mas os dados da época mencionam um Pedro Lopes como um dos líderes Tenetehara da chamada Rebelião do Alto Alegre.

Seja como for, o fato é que o Tenetehara Lopes foi protegido e levado para outra propriedade de Pedro Lopes na região do rio Gurupi e lá teria ficado por alguns poucos anos, até que a calmaria se estabelecesse e ele pudesse voltar para sua região natal. Ainda temerosos de algum revide por parte dos civilizados que perderam parentes, preferiram não ficar muito expostos e foram assituar, com outras famílias Tenetehara, um local alto e benfazejo que ficou conhecido como aldeia da Pedra, distante uns 20 quilômetros da beira do rio Mearim. Lá, ou em lagoas próximas, já havia sido sítio de outra aldeia tenetehara desde pelo menos 1856, quando o engenheiro St. Amand, explorando o rio Mearim, registrou a presença de Tenetehara, inclusive desta antiga aldeia no centro da mata, outra a leste, no riacho Enjeitado, então, como hoje chamada de Bananal, e uma outra a oeste, na beira do rio Mearim, cujo sítio mais antigo era chamado de Coati. Essas três aldeias estavam nos limites setentrionais da expansão tenetehara, já nas franjas da mata de transição para o cerrado.

Menos nebulosa era a história de que os irmãos Lopes, pela aparência mestiça indicativa de sangue brasileiro, a qual foi passada para seus descendentes, especialmente o próprio Alderico, seriam filhos naturais do karaiw Pedro Lopes, resultado do mesmo processo de intensificação do relacionamento interétnico que se deu em fins do século passado e que afetou outras famílias Tenetehara.

No desmembramento da aldeia da Pedra surgiram primeiro Ipu e depois Bacurizinho. Próximo a Bacurizinho ficavam as aldeias Mangueira e Talhado, estas desmembradas de aldeias que se seguiram à antiga aldeia Coati do rio Mearim (ver para maiores detalhes Capítulo X). Nas décadas de 1950 e 1970 mais umas quatro ou cinco pequenas aldeias iriam ser formadas, na medida em que homens mais ambiciosos saíam dessas aldeias atraindo parentes consigo para desbravar novos locais de roça e moradia. Na verdade, até que viessem a crescer em número, constituíam mais apropriadamente moradas de famílias tenetehara do que aldeias, pois continuavam a se identificar com as aldeias mães e delas dependiam. Nos anos seguintes, um número maior de aldeias iria pulular na T.I. Bacurizinho e noutras terras tenetehara, num processo que refletia não somente um real crescimento demográfico, quase uma explosão, mas também a formação de lideranças novas que queriam estabelecer as bases demográficas e sociais de seu incipiente poder político. A FUNAI não deixava de contribuir para a intensificação dessa tendência, pois ia reconhecendo cada uma dessas novas moradas como aldeias, acatando a autoridade de seus líderes e responsabilizando-se pelo seu aparelhamento com bens de produção, como fornos de farinha, juntas de boi e ferramentas, como parte de sua política de fomento econômico.

O território da área Bacurizinho se formou, portanto, por causa da presença daquelas três aldeias desde meados do século XIX. Bacurizinho e Ipu dominavam agora a região central e oeste, enquanto a leste ficava a velha e conservadora aldeia do Bananal, na beira do riacho Enjeitado, formando a própria divisa leste da área. Com uma população que chegara a mais de 400 em 1881, Bananal caíra em prestígio e população. Até a década de 1940 era considerada a aldeia mais a ocidental das aldeias do município de Barra do Corda e, por sua vez, a mais oriental do município de Grajaú. Em tal posição, os encarregados pelo SPI e depois a FUNAI mal lhe davam atenção. Esse é o ponto mais próxima da área dos índios Canela Apanyekra, com quem os Tenetehara do Bananal tiveram muitas desavenças e brigas, até se alinharem em defesa de suas respectivas terras na década de 1970. Sua população havia estacionado em pouco mais 100 pessoas até meados da década de 1960. Mais isolada pela precariedade de estradas, a população tenetehara do Bananal manteve um padrão cultural mais tradicional e politicamente menos entrosado na linguagem do relacionamento com a FUNAI. Os Tenetehara do Ipu e de Bacurizinho os consideravam “atrasados,” e seus líderes eram tratados com alguma condescendência. De modo que, quando foi criado um posto indígena para reforçar sua posição territorial, em 1976, o Bananal não tinha lideranças políticas com o estilo adequado para impor uma posição de força. Assim, quando os Tenetehara começaram a ocupar posições de chefia administrativa, a partir de 1980, a chefia do posto indígena Bananal terminou sendo ocupada por um índio monitor oriundo do Bacurizinho.

Em 1975, Bacurizinho era uma aldeia de formato retilíneo, constituída por três fileiras paralelas de casas, três “ruas”, como diziam, que iam da extremidade mais alta, onde se situavam as casas mais antigas, descendo suavemente uns 300 metros para a extremidade mais baixa, onde ficavam as últimas casas. Ou, por outra, estas últimas seriam consideradas as primeiras, se a pessoa chegasse à aldeia pela estrada que vinha do posto indígena e da aldeia Ipu. Ali ficava o campo de futebol, arenoso quase todo e com tufos de capim aqui e acolá, fazendo o divertimento de jovens e adultos nos fins de tarde e nos domingos. Na extremidade alta, se impondo sobre a aldeia, havia uma capelinha de barro batido e paredes caiadas, onde uma mesa simples servia de altar para uma estátua de Nossa Senhora, que Frei Alberto Beretta, o frade capuchinho que dirigia um hospital em Grajaú e que lá fazia missão, fizera construir há alguns anos.

O terreiro entre as duas ruas principais era irregular, com buracos e regos de chuva, mas era quase todo limpo, capinado por cada morador da casa em frente, como se fora um pátio. Já o terreiro da terceira rua, que surgira nos últimos anos porque faltava espaço para se fazer casas, era mais “sujo,” quer dizer, menos cuidado, formado pelo quintais das casas da segunda rua, cheio de matinhos e capinzais. A vantagem de morar na primeira rua era que os quintais das casas davam para o rio, descendo uma ribanceira. Assim, as famílias tinham seus próprios lugares de banho. Porém, morar na terceira rua não parecia ser sinal de desprestígio ou de conceituação social inferior - algo que certamente já existia entre os Tenetehara, mas que se manifestava com muita sutileza e temporalidade, e por meio de outros signos - mesmo porque muitas velhas famílias lá viviam por opção, por quererem estar menos visíveis na aldeia e perante seus visitantes.

Ao longo dos anos fui conhecendo outras aldeias Tenetehara e vendo que a maioria delas tinha o padrão de casas formando “ruas”, mesmo que algumas só chegassem a ter uma rua, isto é, uma fieira de casas que se abriam para um pátio. As poucas aldeias que não conformavam a esse padrão eram as mais antigas e tradicionais, que se localizavam em lugares mais ermos. Invariavelmente eram aldeias menores, não mais que oito ou dez casas, que se posicionavam em desalinho, apenas mais ou menos perto umas das outras, ou, às vezes, centradas em função de um riacho ou de um poço d’água. Os velhos diziam que antigamente suas aldeias formavam uma figura circular, com as casas dispostas em torno de um pátio central. Realmente, os relatórios de antigos missionários falam em tais formatos de aldeias, como as velhas aldeias Cururu e Colônia.

Os Tenetehara tinham muito gosto em falar de suas aldeias e de como elas eram grandes e bonitas, sempre enfatizando a noção de “rua”. Esse termo representava o sentido de ordenamento espacial, por comparação com o que existe nas cidades e nos povoados brasileiros, e refletia obviamente a ansiedade dos Tenetehara de serem bem vistos pelos karaiw. Mas também calava fundo no sentimento político tenetehara que queria algum embasamento concreto para frear a tendência autonomista de sua cultura. Uma aldeia bem arruada refletia, assim, na mente dos Tenetehara, uma ordem política bem arranjada, com lideranças reconhecidas e acatadas em sua representatividade diante dos karaiw, com atividades econômicas equilibradas, enfim, com capacidade de atuação política e, especialmente, com o reconhecimento e o respeito das aldeias vizinhas.

Tais significados eram mal-e-mal compreendidos pelos funcionários da FUNAI e por outros brasileiros que, ao compararem essas aldeias com aquelas dos índios Canela, viam nas primeiras não mais que vulgares imitações do padrão caboclo de povoamento. Mas o erro maior que incorriam era não entender a diferença entre aldeia e morada, que na língua tenetehara se traduzia pelas categorias taw e tekohaw. A palavra taw é o cognato da conhecida palavra tupi-guarani taba, que significa “aldeia”. Como entre os antigos Tupinambá, o termo denota uma unidade política e econômica autônoma. Autônoma não quer dizer auto-suficiente, se tomarmos o termo ao pé da letra, mas a condição de tomada de decisões políticas e coletivas sem a sanção de outras aldeias. Em termos econômicos quer dizer a possibilidade real de produzir as condições materiais de sobrevivência sem ajuda formal e permanente de outras aldeias. O que não exclui a existência de trocas de bens produzidos com alguma vantagem por uma aldeia em relação a outra.

Já a palavra tekohaw, que se pode traduzir por “morada”, (literalmente “lugar de vivência”) não é uma aldeia pequena, como supõem os funcionários da FUNAI, mas um lugar em que uma ou mais famílias situam para fazer roça, ou passar temporadas, ou viver separadamente do grosso da aldeia onde viviam. Quem mora numa tekohaw necessariamente se identifica como membro de uma taw, seja por razões políticas, seja para efeitos econômicos. Uma tekohaw não tem número bastante de pessoas para ser auto-suficiente política e socialmente, nem tampouco para exercer-se ritualmente. Em geral, é composta por membros de uma mesma família extensa, que, por não poderem casar entre si em virtude da proibição de casamentos entre primos, não pode se auto-reproduzir. Na medida em que outras famílias vão chegando para viver no mesmo local, a tekohaw, que é freqüentemente identificada pelo nome de alguém, seu principal situante, como se fosse seu “dono”, vai virando uma taw. Até isto acontecer, outros fatores têm que entrar em jogo, como a capacidade de formação de lideranças e de desligamento da taw mater.

No entendimento com a FUNAI, contudo, os Tenetehara conseguiram elevar muitos de suas tekohaw ao nível de taw, o que provocou um aumento muito grande da demanda por serviços que esse órgão vinha prestando, sobrecarregando-o em demasia na década de 1980. Ao mesmo tempo, inflacionou o número de postulantes a liderança política, intensificando a disputa entre eles e a pressão sobre a FUNAI. Em épocas anteriores, as tekohaw eram vistas e compreendidas como “centros”, ou “centros de roça”, um termo que, na cultura cabocla regional, significa o local onde uma ou mais famílias têm a sua roça, uma casinha, um paiol de arroz, até um forno de fazer farinha, e lá permanecem boa parte do ano, embora se reportem a um povoado onde realizam sua identidade social completa. É certo que, como na passagem de tekohaw para taw, também há uma passagem de centro para povoado, na medida em que novas famílias venham se localizar no centro.

Esse paralelo de instituições talvez tenha surgido da influência indígena sobre a sociedade cabocla brasileira, ela própria de origem indígena. Mas explica-se igualmente pela imposição das condições ecológicas e de povoamento extensivo na floresta, onde a presença de terras férteis para agricultura e de outros recursos importantes para a sobrevivência se localizam irregularmente, provocando a transumância e o disperçamento. Os Tenetehara já tinham essa instituição socioeconômica que lhes permitia ampliar seu território de usufruto dos recursos florestais. Quando os brasileiros caboclos lá foram chegando, com técnicas de produção muito semelhantes, simplesmente foram se acomodando às possibilidades de adaptação através de uma instituição equivalente.

Dias de verão, noites de danças e caçadas

As madrugadas de julho e agosto se fazem sentir pelo frio que parece cair do céu e pelo mormaço que sobe úmido da terra, penetrando pelo tecido da rede de dormir e exigindo pijama e cobertor, e, para maior conforto, um foguinho debaixo dos pés. Um fogareiro de carvão, feito com lata de 40 litros de querosene é uma solução cômoda e comum entre sertanejos, mas os índios continuam a preferir uma fogueirinha de lenha seca, ainda que a foligem da fumaça manche a rede e a deixe com cheiro de defumado, e de vez em quando uma faísca pipoque para dentro da rede e queime a perna de alguém. A tradição é forte e, além de aquecer, ajuda a espantar os raros mosquitos que zunem no Bacurizinho naquela estação.

A noite cai rápida e tranqüila nesta zona de mata de transição, a cinco graus abaixo do equador, e logo faz cessar o movimento da aldeia, a não ser por uma eventual sessão de pajelança que sempre atrai parentes, cantadores e curiosos. No silêncio da noite a aldeia ressona com o roncar dos homens e mulheres, com o choro de bebês e crianças, com o tossido e a escarração dos gripados, e com o latido de cães, o cantar dos galos e o zurrar dos jumentos. As mulheres acordam para amamentar seus bebês e atiçar os fogos debaixo das redes. Alguns se levantam com fome e comem o que há de sobejo, especialmente quando há sobras de algum petisco, como carne de caça moqueada. Ao levantar-se e sair da casa abre-se uma deslumbrante visão do manto azul negro da abóbada celeste que se realça com a iluminação das estrelas e da lua, deixando a impressão indelével de que a natureza envolve a aldeia e a torna parte de si e, ao mesmo tempo, a faz insignificante.

As sessões de pajelança são acalentadas pelo cantar dos pajés e cantadores auxiliares que reverbera, em coro ou descompassado, em tons altos e baixos acima dos outros sons da madrugada. As mulheres cantam sempre em coro seguindo um compasso atrás da iniciativa das vozes masculinas. Alguns solfejos de cantar contínuo e logo se sabe quem está trabalhando naquela noite. Quem está sendo curado é lembrado e comentado no dia seguinte, fazendo a fama dos curadores.

Quando o dia começa a clarear aumentam os barulhos domésticos. O choro dos bebês e dos meninos mimados se mescla com o bater das panelas, o farfalhar dos abanos ao fogo e o vozerio áspero dos adultos acordando de mal humor. Em minha casa, ao abrir os olhos e esticar as pernas encolhidas para suportar o frio da madrugada, por volta das seis horas, seis e meia, ainda parecia escuro, pois a luz chegava ainda branda por entre as frechas das palhas que formavam as paredes e o teto. Na rede ao lado minha mulher também ia acordando sem muita pressa, imaginando o que ia acontecer nesse dia. Eu me levantava da rede, pegava minha caneca de alumínio, enchia de água de pote, espremia pasta de dentes na escova e saía para a frente da casa, olhando o resto da aldeia, o tempo que fazia, as pessoas que já zanzavam pela rua. Punha-me a escovar os dentes, como faziam Alderico e alguns poucos homens que tinham adquirido esse hábito. De repente, parecia que todos na aldeia já estavam acordados, homens e mulheres preparando alguma coisa para comer, uma panela de arroz, uma pipoca de milho, um aipim cozido, batatas no borralho do fogo e, para aqueles que podiam comprar, um café fraco, mas apetitoso. Logo havia gente saindo de casa e indo às suas tarefas, à caça ou à roça, e a meninada passava sorridente e conversadora com seus cadernos debaixo do braço, a caminho da escola.

Naqueles idos de fins de agosto os monitores tenetehara estavam ensaiando com os alunos a comemoração do Sete de Setembro. Meninos de um lado, meninas de outro, duas filas marchando pela aldeia ao som de um tambor e um tarol e sob a égide de uma bandeira levada num mastro. Decoravam o hino nacional, aprendiam a desenhar a bandeira brasileira e a gritar “independência ou morte”! Daí voltavam para os exercícios de aritmética, eterna dor de cabeça para os próprios monitores, e para escrever frases em português e na língua tenetehara. Repetiam em coro o que era ditado, escreviam na lousa e nos cadernos as palavras recém aprendidas. Depois de alguns anos, três, quatro, ou cinco, estava tudo decorado. Alguns demonstravam interesse em seguir, tendo aprendido matérias da terceira ou quarta série primária. Quando os pais demonstravam interesse de que seus filhos deveriam continuar os estudos, a FUNAI tentava arranjar maneiras para eles ou elas irem para as cidades. No final dos anos 1970 e em anos seguintes, com dinheiro do orçamento ou de algum programa de indenização, conseguia-se alugar quartos em pensão para meninas ou meninos de mais de doze anos, e matriculá-los nas escolas públicas ou privadas de Barra do Corda e Grajaú. Outros se hospedavam com parentes índios que viviam na cidade, ou, como no caso da família de Alderico, depois que virou chefe de posto e passou a ganhar um bom salário, viviam em família em casa alugada. Assim, como resultado desse esforço de educação bilingüe, muitos jovens tenetehara foram alfabetizados e vários avançaram em seu conhecimento formal da sociedade brasileira. Dois ou três deles foram fazer cursos na Universidade do Maranhão, em São Luís, e um virou delegado regional da FUNAI. Daqueles anos já dava para ver que algum desdobramento dessa natureza iria eventualmente ocorrer. Poderia ter sido mais amplo e proveitoso, não fossem as vicissitudes do funcionamento da FUNAI e da luta interna entre os próprios índios.

Em fins de agosto, em terras de transição amazônica, quem está fazendo roça já deve ter concluído a fase inicial de brocar o mato, derrubar as árvores e deixá-las ao sol e à pouca umidade para secar até ficar no ponto de ser queimada de setembro para outubro. É das roças do ano anterior ou até de anos passados que se colhe a mandioca para fazer farinha, a qual deve ser abundante para todos, a base alimentícia dos Tenetehara. O feijão, a fava, a abóbora, se sobraram, o arroz, o amendoim, o milho, o cará e outros legumes, colhidos entre fevereiro e abril, ficam guardados em casa ou em paióis nos centros de roça, e servem de alimentação complementar e regrada, já que dificilmente sobra em abundância durante todo o ano. Com tempo livre das tarefas agrícolas imediatas, é hora dos homens se dedicarem a outras atividades econômicas. Nas terras do Caru e do Gurupi, quando o óleo de copaíba constituía um bem de valor de troca, procurado por regatões e com bom preço em São Luís ou Belém, estariam com toda a família acampados em áreas onde as copaibeiras são encontradas com alguma densidade. Em épocas de valorização da castanha do cumaru, nas terras do Araribóia, grupos de homens estariam embrenhados na mata coletando essa preciosa castanha tão oleosa e perfumada. Com a valorização do jaborandi, naquelas mesmas terras, estariam arrancando folhas desse arbusto e trazendo-as para secar nos pátios de suas casas. Nos longos tempos de valorização de peles de animais silvestres, que duraram até a década de 1960, estariam acampados no interior das matas, próximo a aguadas, caçando onças, jaguatiricas, cobras sucurijus, veados, porcos do mato, antas e o que desse a natureza para comer e o mercado para aproveitar o couro. Na década de 1970, só a folha de jaborandi mantinha valor de mercado, e esta só era encontrada no Araribóia. A floresta dava penas de aves, alguns tipos de cipós finos e sementes de santa maria, sempre em pouca quantidade, produtos necessários para a confecção de artesanato para venda. A derrubada de árvores para madeira era atividade esporádica para consumo próprio ou para a venda para pessoas da região. Só iria produzir efeito devastador em meados da década de 1980, quando dezenas de madeireiras se instalaram no centro-sul maranhense aparelhadas para explorar as últimas reservas de madeiras nobres do estado. Aí muitos Tenetehara entraram nesse frenesi de derrubada e na ilusão de ganhar dinheiro fácil e permanente.

Em 1975, a atividade principal dos Tenetehara na alta estação da seca era a tradicional e valorizada caça de animais silvestres para consumo. Diariamente saíam homens por conta própria ou em grupos para trilhar as veredas de tatus, pacas, cotias e esperar dar de cara com um bando de macacos ou porcos queixadas, uma revoada de jacus, ou algum mutum ou veado perdido. Nem sempre tinham sorte, mas quando obtinham algum resultado positivo toda a aldeia sabia e os parentes sempre podiam esperar algum pedaço de presente. O modo de caçar mais eficiente nessa época do ano era a chamada “caça de espera” ou o que pode também ser chamado de “tocaia noturna”. Alguém descobria, a uma distância de duas léguas a mais da aldeia, alguma árvore que estivesse soltando flores ou frutos que os animais gostavam de comer. À tardinha lá chegava o caçador, armava sua rede nos galhos de uma árvore vizinha e lá ficava a noite inteira esperando a chegada dos animais. Na escuridão de noites sem luar, preferencialmente, apurava os ouvidos para o menor crepitar de folhas secas que davam sinal da chegada cautelosa desses animais, da saltitante cotia à rufante anta, e esperava o melhor momento para ligar a lanterna, focar no animal e disparar a espingarda. Freqüentemente vinham em dois, para apoio mútuo, pois um ajudaria o outro a carregar as caças abatidas ou a procurar no dia seguinte o animal que porventura tivesse sido atingido numa parte menos vital e tivesse corrido até se exaurir.

Grupos de dez ou mais homens faziam caçadas mais prolongadas que duravam até duas, três ou quatro semanas, principalmente quando eram intencionadas para a produção de carne moqueada para a Festa da Moça, também conhecida como Festa do Moqueado, (na língua tenetehara “Wiraohaw”) o ritual de apresentação de jovens à sociedade. O pai, ou os pais das moças, financiavam o grupo ao providenciar munição e farinha de mandioca; em alguns casos, uma cachacinha também podia entrar na conta. Seguiam para o centro da mata, especialmente para as áreas que nunca tiveram roças e eram deixadas propositadamente como reservas de caça. Na T.I. Bacurizinho havia a área do Jutiu ou Zutyw, a qual ficou preservada até poucos anos atrás quando a pressão demográfica e política dos próprios Tenetehara levou algumas famílias a fazer roça e “assituar” a região. Nessas temporadas, passavam o dia e a noite caçando em revezamento. Comiam a farinha, que era trazida nos bornais de sacos de estopa ou nos cofos de folhas de palmeira, misturada com assados das entranhas dos animais abatidos e alguma fruta silvestre ou palmito. Armavam uma bancada de oito a dez varas de dez centímetros de grossura por três metros de cumprimento, juntas uma a outra sobre três travessas a uma altura de uns 80 centímetro do solo, onde era feito e espalhado um fogo. A carcaça dos animais era posta sobre essa bancada para assar lentamente, perdendo umidade aos poucos e pegando fumaça, assim se conservando. É o processo de cozimento por defumação, chamado moquém, técnica conhecida de todos os índios brasileiros, especialmente os de tradição tupi.

Ao cabo desse período voltavam carregando os cestos de palha nas costas, cheios de carne moqueada, veados, cotias, porcos queixadas e caititus, abatidos na tocaia noturna, e macacos e jacus derrubados nas caçadas diurnas. Ao chegarem à aldeia os alegres caçadores disparavam salvas de tiros que se misturavam com a animação que percorria toda a aldeia, principalmente os parentes das moças que assim tinham certeza de que haveria carne para a festa. A carne moqueada era posta sobre um novo moquém, em fogo brando, para continuar a sua preservação. Cada peça ia perdendo umidade, secando e se empretando com a fumaça. As carcaças de macacos iam ficando cada vez mais parecidas com múmias decrépitas, os dentes se esgarçando com o encolhimento das carnes do rosto. Os meninos se divertiam com essas caras, que lembravam também as caras de humanos, numa visão macabra de canibalismo estilizado.

O moquém ficava em lugar público, em geral sob a proteção de uma palhoça improvisada em frente ou ao lado da casa de um dos pais de moça. Os cachorros que ousassem se aproximar eram castigados duramente no chute ou na vara para que não achassem que podiam voltar e fazer algum estrago quando não houvesse ninguém por perto. À noite se reuniam homens, mulheres e crianças em frente ao moquém para cantar e dançar as músicas do Wiraohaw. Ensaiavam assim por algumas semanas até o dia aprazado, quando à tardinha as moças eram pintadas a caráter e trazidas a público para serem expostas diante de todos e dançarem junto aos pajés cantadores durante a noite e a madrugada, enquanto a carne era consumida em caldos com farinha, chamados de “chibés”. Ao amanhecer do dia, concluía-se a celebração com uma distribuição de bolos de farinha misturados com carne de nambu e jacu pilados (A palavra “wiraohaw” quer dizer “o momento ou lugar de comer pássaro”; portanto o ritual parece dar a maior importância a este último ato de distribuir os bolos empaçocados).

Veremos em outros capítulos referências à importância desses e outros rituais por mim presenciadas no Bacurizinho e em outras áreas tenetehara. Ao longo dos anos iria participar de outras Festas do Moqueado, com poucas variações, quase sempre acontecendo entre agosto e novembro. Em uma delas se tentou introduzir a distribuição de carne de gado como complemento à caça, ato este que foi estranhado por muitos. De todo modo, quando alguém ou grupo de famílias decide dar uma Festa do Moqueado a animação toma conta da aldeia e a notícia se espalha por outras aldeias, quando muitos fazem planos de estarem presentes no dia conclusivo. Ainda na década de 1950 muitos rapazes tiveram suas festas de maturação, quando aprenderam a cantar com os velhos cantadores e foram doutrinados nos sentimentos mais elevados da cultura masculina tenetehara. Mas a festa dos rapazes parece estar relegada ao abandono, só restando a das moças, numa clara indicação da importância da jovem mulher para a estrutura social matrilinear dos Tenetehara.

A outra grande festa dos Tenetehara é a Festa do Mel (“Zemuichiohaw”). É uma festa de celebração da cultura tenetehara, elaborada com danças e cantos em torno do mel, que é diluído e posto em cumbucas e garrafas penduradas dos caibros da casa do dono da festa. No último dia de cantoria, dizem que os cantadores são tomados de uma emoção muito forte, como estivessem rememorando o próprio sentido de ser tenetehara. Embora difícil de ser produzida, a Festa do Mel não foi esquecida e abandonada, e de ano em ano alguma aldeia com melhores condições econômicas e estabilidade política realiza uma dessas festas.

Nos primeiros dias de setembro, já enfronhado no dia-a-dia tenetehara e com vontade de conhecer a floresta e a vida de caçador, ofereci-me e fui convidado por Gentil, um Tenetehara de uns 30 anos de idade que impressionava a todos por sua personalidade alegre e disposta a qualquer tarefa, para uma caçada de espera numa área de caça conhecida como São José. Gentil era filho de pai Tenetehara e mãe mestiça de índio e negro, falava português fluente e era casado com uma índia bonita e alegre que vivera em Grajaú e também falava português fluente. Tinha sua casa na aldeia Ipu, a poucos metros do posto indígena, e ganhava uns trocados auxiliando o chefe de posto com os serviços de roça e tomando conta da junta de bois. Apesar do espírito brincalhão, tinha sonhos e inclinações místicas e estava começando a aprender a ser pajé. De fato, alguns anos depois, virou pajé e foi se tornando um líder entre várias famílias da aldeia Ipu. Com o desmembramento dessa aldeia, terminou estabelecendo sua própria aldeia, na direção precisamente do São José. Na nossa caçada vinham também dois rapazes, sobrinhos de Gentil, e um brasileiro da cidade de Grajaú que trabalhava como trabalhador braçal do posto indígena, emprego que conseguira depois de ter se casado com uma Tenetehara após uma paixão correspondida e a aceitação dos parentes da noiva.

O São José ficava a uns 25 km a leste do Ipu, para dentro da terra indígena e afastado do rio Mearim. Era uma área de mata de transição onde já houvera aldeias tenetehara muitos anos antes, mas agora ficara como reserva de caça do Ipu. O caminho para chegar lá atravessava capoeiras velhas e carrascais espinhentos, e subia umas boas ladeiras, o que nos levou, por força da minha relativa lentidão e falta de hábito de andar nesses meios, umas boas oito horas de caminhada. Eu carregava uma mochila de brim grosso nas costas com cartuchos e munição extra, lanterna a pilha, a minha rede de dormir, um cobertor de lã, uma muda de roupa, leite em pó, café e fumo para cigarro, e minha espingarda cartucheira calibre 28 na mão. Os demais carregavam suas armas, redes, lanternas, um pouco de carne seca já assada, um pacote de sal e bastante farinha de mandioca para nós quatro comermos durante quatro ou cinco dias. O caminho era às vezes largo para duas ou três pessoas, às vezes, se tornava uma simples vereda que se fechava pelo capinzal e pelas ramadas dos arbustos do carrascal, nas quais se aninhavam ninhos empelotados de carrapatos a espreita do primeiro passante, boi ou gente, para nele se grudar. Os Tenetehara viam a minha canseira e irritação ao dar topadas nos tocos do caminho, riam e procuravam me animar anunciando que estávamos chegando, estávamos chegando.

O sol foi aos poucos arrefecendo e finalmente fomos chegando à beirada da floresta, ou melhor, de uma capoeira alta já virando mata, onde a caça era abundante e “mansa”, isto é, não tão arisca quanto a que vivia perto das aldeias, e, na estiagem, vinha beber nas lagoas perenes. Decidimos que era por ali que iríamos ficar e procurar os nossos pontos de espera. Arreamos nossas mochilas na sombra de umas árvores, fizemos fogo, esquentamos uma refeição de carne assada, com farinha e café, e logo os rapazes foram procurar árvores que estivessem soltando flores para armarmos nossas redes. Para subir na minha árvore tive que ser ajudado por Gentil, pois não dava para chegar até o primeiro galho sem um empurrãozinho. De galho em galho minha rede foi amarrada a uma altura de cinco metros do solo. Nela eu podia ficar sentado, espingarda à mão, ou recostado, com os pés balançando ao ar, ou mesmo encolhido, quando desse frio e sono, coisa que eu deveria evitar se quisesse matar alguma caça. Numa árvore ao lado Gentil aprontou sua rede, já com o sol se pondo. Daí nos pusemos calados, imaginando, fumando, e esperando nossas presas. Nossos olhares focalizavam a área imediatamente ao redor da aroeira em flor que estava “pisada,” isto é, com muitas pegadas de veados e cotias. Na escuridão que caiu, sem uma réstia de lua, os ouvidos deviam estar atentos para o mais leve crepitar de folhas secas no chão. Eu estava pronto para passar uma noite de muito proveito.

Com efeito, menos de uma hora depois de aninhado em minha rede, ouvi a pisada de um bicho se aprochegando. Meu coração disparou, a respiração ficou ofegante, o braço tremeu. Me posicionei na direção de onde ouvia as pisadas, mirei a espingarda segurando a lanterna com a mão esquerda, cliquei o botão e vi um veado azulado quase debaixo de minha rede. Disparei, o tiro ecoou e o coice da espingarda no meu peito me atordoou por um momento. Refoquei a luz e lá vi o animal caído, se estrebuchando. Um alívio e uma satisfação me vieram ao mesmo tempo. O resto da noite fiquei ouvindo os tiros dos companheiros nas outras esperas e sentindo o frio da madrugada subir por baixo da rede e descer em pingos de orvalho pelas folhas da árvore. Em duas ou três ocasiões ouvi barulhinhos de pisadas, quase saltitos, focava a lanterna e via uns animaizinhos com os olhos faiscando na luz e pensava que fossem ratos, não valia a pena atirar. Gentil deu dois tiros nesses bichinhos. Eram cotias, e, no dia seguinte, eu fiquei de inexperiente e ignorante que não sabia distinguir uma cotia de um rato do mato.

De manhã cedinho desamarrei minha rede, enrolei-a e desci para ver o resultado da caçada. Gentil estava acocorado olhando suas cotias, mexendo nelas, avaliando suas idades, verificando se estavam prenhes, enfim, fazendo coisas de caçador. Também manipulei a veada que matara, abri sua boca para ver o estado dos dentes, levantei suas pernas para ver seu úbere e se havia “bernes”, isto é, ovos de uma mosca que se aloja na pele do animal e que o deixa “sujo”. Ela estava prenhe, o que me deixou com pena, mas não constituiu motivo de pesar ou preocupação da parte dos Tenetehara. Se estivéssemos na aldeia, o feto seria comido por uma pessoa velha, mas aqui iríamos jogar fora. Gentil amarrou as pernas da veada e jogou-a nas costas, enquanto eu levava as redes, as espingardas e as cotias de volta ao acampamento. Logo chegaram os dois companheiros com uma cotia e um caititu, que é uma das duas espécies de porco do mato que vive em bandos de 10 a 20 animais, sendo a outra espécie o porco queixada, que pesa o dobro do caititu e vive em varas de até 100 ou mais indivíduos. A conversa, naturalmente, foi sobre a noite passada e os animais vistos e abatidos. Todo incidente relevante de uma caçada é compartilhado entre os caçadores. Qualquer coisa extra é descrita em detalhes para que todos saibam, possam fazer um juízo do acontecido e ganhar experiência. Quebramos o jejum com café, leite em pó, farinha e fígado assado. O fígado (de qualquer caça, especialmente do jabuti) é de longe a iguaria favorita dos Tenetehara, como, de resto, de todos os povos indígenas com que iria conviver nos anos seguintes. É macio, saboroso e rico em gordura e vitaminas. Deitamos em nossas redes sob o abrigo da sombra para descansar até à tardinha, quando nova noite de espera nos aguardava, em outras esperas.

A caçada durou quatro dias e três noites, cada uma diferente da outra. Ao final, eu estava cansado mas satisfeito. Voltamos carregando alguns quilos a mais em nossas mochilas. Os Tenetehara traziam a caça já moqueada em pedaços nos cestos de folha de palmeira babaçu ou tucum. Ao entrar no Bacurizinho, tendo passado pelo Ipu e pelo posto indígena, a notícia do meu relativo sucesso já havia chegado por lá. Era cumprimentado por homens e mulheres com aprovação e com sorrisos marotos. O jovem caçador chegava trazendo caça para a esposa, e nada parece ser mais sexualmente excitante do que esse ato. Eu próprio me sentia mais cheio de mim, e minha esposa, ao me ver chegar, apesar de feminista, no auge da autoconsciência de seus direitos, inclusive o de não sucumbir aos símbolos do machismo, não pode evitar o coquetismo de mulher de caçador. Nos meses seguintes, até meados de novembro, fiz mais duas caçadas de espera, mas só pernoitando e voltando ao Bacurizinho na manhã seguinte. Minha inexperiência me fazia confundir tamanduá com veado, porco caititu com tatu. Os Tenetehara riam, galhofavam de mim e contavam em detalhes esses atropelos. Eu não me incomodava, agia como antropólogo e ao menos achava pretexto para conversar com meus companheiros, ouvir histórias de caçador, sentir o sentimento tenetehara sobre a caça e sobre a masculinidade. Munição era sempre um bem raro e caro e eu trouxera pólvora, chumbo e espoleta que me serviam como bens de troca e de retribuição. (Para as mulheres havia linha, agulhas, alguns tecidos, panelas e talheres.) A preservação de áreas de caça, onde nem roças nem aldeias poderiam ser feitas, era uma prática cultural que requeria uma boa quantidade de terras, e os Tenetehara usavam esse argumento com a certeza de que os brasileiros regionais entendiam e sabiam apreciar, não sem uma ponta de inveja. Muitos tentavam se aproximar dos índios, fazer camaradagem, prestar algum favor, especialmente com o intuito de ser retribuído e desfrutar noites de espera em áreas tranqüilas, de caça abundante e mansa.

Um quarto de século de convivência

Passados quatro meses vivendo na aldeia Bacurizinho e convivendo também com os Tenetehara da aldeia Ipu, tendo saído duas vezes por alguns dias para fazer compras na cidade de Grajaú, achei que já tinha adquirido um bom relacionamento com essas comunidades e que tinha material de interesse etnográfico e etnohistórico para escrever sobre essa área indígena e sobre a vida dos Tenetehara em geral. A sociedade tenetehara já havia sido descrita por Wagley e Galvão e eu descobrira algumas coisas a mais sobre parentesco e organização política que iriam melhorar aquela descrição e formar um quadro explicativo do modo como os Tenetehara tinham enfrentado seus problemas de sobrevivência, aculturação e afirmação étnica. Achava que o importante seria provar como eles tinham sobrevivido, não como tinham se aculturado, e como estavam enfrentando os problemas do presente. O fato de sua população ter duplicado em trinta anos era o sinal mais óbvio que me levava a mudar minha problemática.

Era importante agora conhecer outras áreas tenetehara e aquilatar se os processos sociais e culturais que eu estivera observando no Bacurizinho também lá ocorriam. A população crescia em outras áreas? O sentimento de ser tenetehara era igualmente forte e indicativo do desejo de preservar a identidade? O processo de organização política era semelhante, e se houvesse variações significativas, como funcionavam? De que forma os Tenetehara estavam articulando seu poder de resistência contra a ofensiva brasileira de posseiros e fazendeiros interessados em suas terras?

Queria também conhecer outras áreas simplesmente pelo prazer de vê-las. Queria ver a mata amazônica em pujança, não somente a área de mata de transição e o cerrado. Queria ver outras aldeias, especialmente aquelas chamadas primitivas, onde as mulheres andavam sem blusa e os homens mal falavam o português. A ampliação de meu conhecimento empírico dos Tenetehara era um modo de me resguardar do perigo de extrapolar uma visão obtida de uma única área, mesmo uma bastante significativa, o que fora um dos erros principais que levaram Wagley e Galvão a atirar tão fora do alvo ao predizer a extinção desse povo.

Assim decidido, minha esposa e eu distribuímos alguns dos bens que tínhamos levado, arrumamos nossas coisas, máquina de escrever, fichas, mapas, diários, fotos, fitas gravadas, etc., e nos despedimos emocionados de nossos amigos do Bacurizinho. Já que agora eu estaria perambulando sem casa, dormindo nos postos indígenas ou em casas da comunidade, ela decidiu voltar aos Estados Unidos para retomar seus estudos.

Além dos Tenetehara que eu entrevistara formalmente ou com quem conversara à toa para me informar de histórias, versões ou interpretações, tivera contato com muitos brasileiros que de vários modos se relacionavam com os Tenetehara. A velha professora, Dona Maria Dolores Maia, natural do Amazonas, vivera com os Tenetehara desde 1940, quando fora contratada pelo SPI, estava aposentada e morava em Grajaú. Tinha lecionado em aldeias dos postos indígenas do Pindaré, Barra do Corda e Grajaú, sempre com os Tenetehara, com quem se afeiçoara e havia adotado como filhos dois rapazes da aldeia do Ipu. A maioria dos monitores dessa área havia sido educada por ela própria. Ela me falou da grande epidemia que viu acometer os índios Timbira Krepumkateye, do médio Grajaú, onde o posto indígena Araribóia havia sido fundado em 1940, mas transferido em 1949 para a região dos rios Zutiua e Buriticupu, que por esse motivo passara a ser conhecida como Araribóia. Falou da rivalidade dos irmãos Lopes que fundaram Ipu e Bacurizinho, da dificuldade que os índios mais empreendedores tinham em manter um cabedal maior que a média, do desgosto que tivera por ter sido retirada do Ipu como subversiva por um interventor após o golpe de 1964, e do sofrimento de ter perdido seu filho Tenetehara adotivo, aparentemente por um colapso cardíaco.

Outra figura importante na vida dos Tenetehara da região do Grajaú, e isso compreendia as aldeias da T. I. Bacurizinho e da T.I. Araribóia, desde fins da década de 1940, era o comerciante de Grajaú, Raimundo Vianna. Com 65 anos de idade, aposentado como coletor público, ocupava-se do único hotel da cidade localizado quase na beira da estrada que vinha de Barra do Corda e ia para Imperatriz, estrada que deveria fazer parte da Transamazônica, mas que naquele trecho não havia sido asfaltada. No seu hotel se hospedavam todos, de motoristas de caminhão a funcionários do governo, policiais, o antropólogo e aqueles índios Tenetehara que tinham dinheiro para pagar a diária. Nos anos que se seguiram aos entreveros provocados pela guerrilha do Araguaia, freqüentemente policiais federais paravam por ali à procura de possíveis sinais de inquietação ou de presença de estranhos. Os chamados cabeludos, “hippies”, ou maconheiros também apareciam por lá, onde sempre podiam encontrar com algum índio e transacionar alguma coisa. Numa ocasião fui abordado por um policial federal que queria saber o que eu estava fazendo na aldeia dos índios. “Você é antropólogo ou sociólogo?” Parece que ficou menos apreensivo quando lhe afirmei que era antropólogo e estava interessado nos mitos dos índios.

Nos anos em que Raimundo Vianna foi agente do SPI, entre 1950 e 1959, seu chefe, com base em São Luís, era um inspetor que ficou bastante conhecido na região e nos anais do Serviço por sua honestidade e dedicação à causa indígena. Era o advogado amazonense, de ideologia positivista, Dr. Sebastião Xerez. Durante aqueles anos os dois trocaram uma vasta correspondência por carta e bilhetes sobre todos os acontecimentos relacionados aos índios e, em alguns momentos, sobre a política maranhense da época. Esse arquivo pessoal, que Vianna guardava em sua casa, me foi mostrado para consulta e depois foi-me presenteado para guarda permanente. Nele encontrei um baú muito rico em dados sobre a economia indígena, o trabalho do SPI, o relacionamento interétnico, além das posições pessoais dos missivistas. Esses dados me ajudaram imensamente a compreender a permanência, a continuidade e as descontinuidades do relacionamento interétnico nessa região tão conturbada do Maranhão. Mais tarde, em São Luís, procurei o Dr. Xerez, que, aos 70 anos, ainda ia de quando em vez à FUNAI para cumprimentar os funcionários e ver um ou outro índio velho que o conhecia. Ele tinha seu próprio arquivo, mas nunca tive ocasião de consultá-lo, mesmo após sua morte alguns anos depois.

Nos dias que fiquei no hotel do Vianna me deleitei com as muitas histórias, anedotas e tiradas que esse exímio contador gostava de contar para todos que o quisessem ouvir. Histórias de sertanejos, de malassombração, de caçador, de brigas de índios, de matanças de índios, de loucuras de uma cidadezinha do interior do Maranhão. O hotel vendia artesanato, “enfeites,” como ele chamava, de índios Tenetehara, Timbira, Gavião e Krikati que por lá passavam a caminho das cidades ou de outra área indígena. Raimundo Vianna comprava esses enfeites pelo preço que, com um pequeno lucro, pudesse vender para os seus hóspedes, que na época se interessavam por artesanato indígena. Estava à vontade com os índios, falava com eles com um misto de ar de superioridade, de quem já foi chefe, e de respeito, de quem sabe que não pode ser grosseiro com índio. Os velhos índios respeitavam Vianna, proseavam com ele, aceitavam a sua patronagem. Os mais novos, os monitores bilingües, começavam a criticá-lo dizendo que ele havia ganhado muito dinheiro à custa deles no passado. Na verdade, analisando o seu arquivo dá para ver que Vianna mantivera um razoável nível de honestidade com os índios, e procurara comprar os bens que eles produziam naquela época, principalmente a castanha cumaru, peles silvestres e madeira cortada em tábuas, por preços condizentes com o mercado. Mas, é claro, havia margens para lucro.

Os dois últimos meses de 1975, depois de ter deixado minha esposa em Belém, passei andando pelas aldeias tenetehara do Pindaré, Araribóia e de Barra do Corda. Observei a diferença que há entre a pequena área indígena do baixo Pindaré, a T.I. Pindaré, zona da floresta amazônica, região de uma frente agrícola de expansão com intensos problemas de invasão e do que se poderia chamar de aculturação indígena, e a região do Araribóia, onde a mata era extensa e pujante, e os índios viviam da agricultura de subsistência e do excedente que conseguiam com produtos da floresta. Presenciei uma segunda Festa da Moça, onde, após o ritual tradicional de danças dirigidas pelos pajés, deu-se um baile de forró tocado por um conjunto musical com sanfona, triângulo, pandeiro e zabumba formado exclusivamente de jovens índios Tenetehara. A mistura do tradicional com o importado pareceu-me genuína e fortalecedora do espírito tenetehara, não espúria, imitativa ou vulgar.

Em duas semanas que me ausentei dos Tenetehara subi o alto rio Turiaçu num barco de motor de popa da equipe que estava mantendo um relacionamento amistoso com um grupo de índios Guajá, cujo contato havia sido feito dois anos antes pelos sertanistas Jairo Patusco, José Carlos Meireles e Florindo Diniz, junto com a antropóloga italiana Valéria Parise. Conheci os Urubu-Ka’apor a caminho, os tão falados índios da flecha de ponta de ferro que haviam sido estudados por Darcy Ribeiro e Francis Huxley no início dos anos 1950. Encantei-me com o modo afável com que eles se comportavam e indagavam sobre minha vida. Perguntaram-me por Maíra, seu herói civilizador, cuja história se assemelhava à dos Tenetehara. Teria eu o visto pelos lugares onde andara? Senti a emoção de presenciar a força de um mito vivo que agita uma cultura. Encantei-me sobretudo com os índios Guajá, um dos últimos povos que vivem da caça e pesca, sem necessidade de agricultura, para quem, a partir de 1980, iria dedicar a maior parte do meu tempo de pesquisa de campo, visitando-os quase que anualmente, e com quem ainda hoje me sinto ligado e me preocupo pelo seu destino. Algum dia ainda escreverei sobre eles. Dessa primeira visita aos Guajá sobrou-me uma bruta de uma malária da qual iria sentir a primeira manifestação duas semanas depois quando estava na aldeia do Presídio, na T.I. Araribóia, na casa da família do missionário protestante e lingüista, Dr. Carl Harrison. Em janeiro de 1976 a malária iria se manifestar uma vez mais quando eu já estava nos Estados Unidos. Dois meses depois sofri outra recaída. Eu havia contraído as duas principais variedades da malária, a vivax e a falciparum, e a cura foi se dar por etapas.

Passados esses meses de trabalho de campo, voltei aos Estados Unidos, escrevi uma dissertação de doutorado e a defendi em junho de 1977. Em seguida retornei ao Brasil onde fui ensinar na Universidade de Campinas (1978-1990) e em anos seguintes na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (1992-1994), a Estácio de Sá (1993), e a Universidade Federal Fluminense (1997-), no Rio de Janeiro, bem como no Macalester College (1996-1997), nos Estados Unidos. Nesses anos tenho continuado a fazer pesquisas de campo no Maranhão, principalmente com os Guajá, mas também com os Tenetehara de diversas aldeias que já havia conhecido e outras mais que visitei por alguns dias. Entre elas estão as aldeias do alto Pindaré, onde Wagley e Galvão estiveram 30 e poucos anos antes, a região original dos Tenetehara, a qual praticamente havia sido abandonada no início da década de 1960 e estava sendo recolonizada por famílias Tenetehara vindas de outras partes do Maranhão. Conheci nesses anos outras aldeias da T.I. Araribóia, entre elas a do Canudal, onde participei de outra Festa da Moça e mantive as mais interessantes conversas com o velho índio Cipriano. Visitei as aldeias da T.I. Guajajara-Canabrava onde viviam os índios mais radicalmente defensores de suas terras, exatamente porque era lá que se situava a missão do Alto Alegre, dos frades capuchinhos da Lombardia, que havia sido destruída pelos Tenetehara em 1901 e que uma nova onda de frades tentava recuperar para si. Ao lado dela estava o povoado de São Pedro dos Cacetes que, com mais de 2.500 habitantes, ameaçava a integridade dessa área indígena.

Em todos esses anos nunca deixei de manter aceso meu interesse pela vida dos Tenetehara, na sua luta por autonomia e reconhecimento, bem como uma profunda admiração pela sua vontade férrea de ser um povo respeitado pelo povo brasileiro. Minha atitude desde sempre é a da interação pessoal e do diálogo, às vezes até franco demais para um antropólogo que precisa, por dever de ofício, de informação espontânea para fazer sentido. Conversei, proseei e até discuti com muitos índios Tenetehara ao longo desses anos e sei que com alguns a relação mudou de boa para ruim. Com o aprendiz de pajé, Gentil, tive numa ocasião uma conversa que resultou mal para mim. Depois de ouvir dele uma versão sincrética do mito de Maíra, no qual às aventuras dos irmãos gêmeos se incorporava uma intervenção divina, foi-me perguntado como eu achava que o mundo fora criado. Relatei uma versão simplificada do mito científico, da bola de fogo e gases que vai se esfriando e a vida vai surgindo e evoluindo. Alguns dias depois Gentil me contou que sonhara que eu era o próprio demo e que ele se encontrara comigo na roça e me empurrara com uma zagaia para dentro de um buraco. A velha cantadora do Ipu, Josefina, também se aborreceu demais com minha conversa e a notícia de que eu não acreditava na intervenção divina se espalhou pela aldeia, o que me causou algum mal-estar por algum tempo.

Em outras ocasiões demonstrei discordância com atitudes de líderes que, no meu entender, estavam impondo um estilo de pressão política que acabaria prejudicando a causa tenetehara diante da sociedade civil maranhense que a apoiava. Queriam muitas vezes que a FUNAI financiasse suas despesas pessoais e lhes desse empregos, inclusive na direção da frente de atração que estava sendo montada, em 1985, para os índios Guajá. Quando conseguiram seu intento e passaram a mandar nessa frente, ficou óbvio que eles estavam pouco interessados na sorte dos Guajá e sim nos recursos que podiam obter e desviar para suas vidas particulares. Terminaram sendo exonerados dessas posições de mando e recuando no processo de expansão de conhecimento e participação mais favorável na sociedade brasileira. Nos últimos anos diversos Tenetehara que haviam sido chefes de postos indígenas e líderes respeitados perderam seus cargos e até sucumbiram, para manter seus padrões de vida, ao expediente, negativo à integridade tenetehara, de vender madeira, arrendar a colheita de jaborandi para estranhos, e até arrendar terras para lavradores pobres.

No entanto, o processo de desenvolvimento político dos Tenetehara não pára. Novos líderes surgem, novos caminhos de luta se abrem nas condições permitidas no Maranhão e no Brasil. Em várias ocasiões os Tenetehara participaram de assembléias regionais, bem como pan-indígenas, convocadas pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), o qual, junto com a própria FUNAI, os vem auxiliando de vários modos a enfrentar os novos desafios. Não há mais terras para serem demarcadas, portanto, os novos tempos exigem atitudes mais conciliadoras e negociáveis, sem perder a firmeza. Os novos líderes estão se situando no campo da negociação mais estável, atuando como chefes de postos indígenas, chefes de setores administrativos, até como delegados regionais da FUNAI.

Certamente ainda há espaço para mais participação, embora a sociedade brasileira esteja em fase de indiferença para com os povos indígenas. Amanhã ou depois, com as terras que conseguiram reter como suas, os Tenetehara terão novas oportunidades para se fortalecer economicamente, se mover e ganhar posições, não obstante os percalços e os imponderáveis. Há história para ser feita. Uma longa história está por trás desse presente contínuo, e é o que veremos a seguir.

2 comentários:

Anônimo disse...

See Here or Here

Anônimo disse...

Parabéns pelo trababalho realizado junto aos Guajajaras. Estou em fase concluisva de uma especialização para implantar o sistema de vigilância alimentar e nutricional indígena e suas informações contribuíram de forma direta para minha pesquisa. Quando falamos de estudos sobre os povos indígenas, ainda se observa a falta de informação e o pouco conhecimento que temos em relação a esses povos tão discriminados e viventes às margens da sociedade.
Abçs
Lindoracy

 
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