Neste Capítulo tratamos do surgimento da FUNAI e de sua atuação no Maranhão até o ano 2000, especialmente em relação aos índios Tenetehara
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Capítulo IX
A FUNAI e os Tenetehara
Razões de ser
A Fundação Nacional do Índio - FUNAI - surgiu da vontade do regime militar de criar suas próprias instituições e descartar aquelas que lembrassem de algo que ele era contra . Nos três anos após o golpe de 1º de abril de 1964, a desmoralização do SPI crescera e se difundira na mídia, e sua filosofia indigenista parecia ao novo regime muito condescendente, assistencialista e sem prumo. A geração dos companheiros de Rondon e seus discípulos imediatos não existia mais, e a dos antropólogos, indigenistas e sertanistas que havia participado e contribuído para a reorganização do órgão no pós-guerra fora deslocada ou estava sendo acusada de subversão política ou malversação de fundos, tendo alguns se exilado, e não se fazia renovação dos quadros. Francisco Meireles, o pacificador dos Xavante, de inclinações esquerdistas, foi processado e preso, enquanto os irmãos Villas Boas, assentados no Parque Nacional do Xingu, se aquietaram por lá, um pouco sob a cobertura da Força Aérea Brasileira, que há anos mantinha um serviço aéreo que dependia do campo de pouso do Parque. O último diretor do SPI do governo João Goulart, o médico sanitarista Noel Nutels, foi exonerado do cargo, processado diversas vezes e aposentado.
Durante o ano de 1964 o SPI ficou desorientado, estando à sua frente um burocrata do ministério da Agricultura, Aristides Procópio de Assis. Uma de suas medidas imediatas, naturalmente, foi a substituição de grande parte dos inspetores regionais por militares ou por gente ligada ao movimento golpista. Em 1965 foi nomeado para a 3ª Inspetoria do Maranhão o tenente-coronel Luiz Vinhas Neves, que ficou até abril de 1966, quando foi substituído pelo major-aviador Hamilton de Oliveira Castro. Este se fez conhecido pela idéia de doar as terras dos Canela para o INCRA, achando que podia deixá-los a viver permanentemente entre os Tenetehara . Nesse período que vai até dezembro de 1967 é que alguns antigos burocratas do SPI, como Luís Lacombe, junto com juristas como Temístocles Cavalcanti, planejaram a extinção do SPI e a criação de um novo órgão. A idéia de uma fundação implicava maior autonomia financeira e administrativa, bem como possibilidades de obter e manejar mais recursos. Seus mentores planejavam, inclusive, incrementar as atividades econômicas dos índios e gerir a renda de suas riquezas naturais, principalmente a madeira, os produtos extrativos e o gado, onde fosse possível, para ajudar com as despesas de custeio .
Assim, a FUNAI, instituída pelo decreto-lei nº 5.371, de 5 dezembro de 1967, veio para resolver o que o regime militar concebia como a questão indígena brasileira, qual seja, a presença de grupos étnicos populacionalmente e culturalmente diferenciados, os quais, embora de pouca conseqüência para a nação, controlavam vastos territórios, ao mesmo tempo em que estiolavam na pobreza e na impossibilidade de se desenvolver. Por ambos os motivos, chamavam a atenção da mídia para si, quase sempre negativamente para a imagem que o regime militar queria projetar do país. A resolução desse problema só poderia vir com a integração dessas populações à maioria nacional, o que significaria a dissolução das etnias indígenas que haviam sobrevivido até então. Essa visão - contrária à do SPI, que pretendia mudar o índio para que ele servisse de sustentáculo rural à nação - implicava duas ações, que mais tarde provaram ser incompatíveis entre si: a aceleração do processo de integração econômica e social, inclusive via emancipação da tutela do estado, por um lado, e a garantia de suas terras, em tamanho aceitável para eles e para a nação, por outro.
Sob tantos aspectos o novo órgão indigenista não iria diferir muito do velho. Passou do ministério da Agricultura para o do Interior, centrando todas as suas atividades de planejamento na sede, que foi transferida do Rio de Janeiro para Brasília. O Conselho Nacional de Proteção ao Índio, criado pelo General Rondon em 1939, foi mantido porém cada vez menos consultado até ser desativado em 1985. Vivendo um período de grande crescimento econômico, a FUNAI surgiu com orçamentos mais generosas do que os do SPI, os quais foram usadas para criar a infra-estrutura administrativa e operacional que iria durar pelos anos seguintes. A partir da década de 1980 os orçamentos foram diminuindo, o que coincide tanto com o fim do ciclo de crescimento econômico, quanto com a desaceleração do ímpeto de resolução projetada da questão indígena.
Como em outros órgãos estatais da época, a FUNAI era fiscalizada internamente por um setor de controle de informações, cujos cargos foram sempre ocupados por agentes do Serviço Nacional de Informações, ou oriundos do Exército, que informavam, espionavam e vetavam atos e pessoas considerados subversivos ou ameaças à segurança nacional.
Nos primeiros dois anos a implantação do novo órgão se deu lentamente, tanto mais porque esses anos vivenciaram um período em que graves questões políticas arrebatavam o país, que resultaram na Constituição de 1967, no famigerado Ato Institucional nº 5 e na Constituição outorgada através do Ato Institucional nº 10, em 1969. A questão indígena se fez presente nessas constituições não somente seguindo os moldes dos artigos a ela consagrados nas constituições de 1934, 1937 e 1946, mas adicionadas por medidas que favoreceram a ação estatal na demarcação das terras indígenas. Completando juridicamente a criação do novo órgão, em 19 de dezembro de 1973 foi promulgado a Lei nº 6.001 criando o Estatuto do Índio, o qual iria servir de guia normativo para o relacionamento entre índios e o Estado brasileiro até recentemente.
Por volta de 1970 as inspetorias regionais do SPI passaram a ser chamadas de delegacias, mais ao gosto militar, como aliás militares foram muitos dos delegados. As delegacias mantiveram a incumbência de coordenar as atividades-fins dos postos indígenas e de dar solução aos problemas mais prementes dos índios. Passaram a contar com um corpo médico-odontológico que, anualmente, ou de acordo com as necessidades, visitariam os postos e aldeias indígenas. Teriam também um setor jurídico para acompanhar as causas do órgão e representar os índios em juízo. Para abrigar os índios visitantes, deveriam possuir ou alugar hospedarias, que ficaram conhecidas como Casas dos índios.
Na ponta do organograma estavam os postos indígenas, cada qual com equipe própria formada por um chefe, um auxiliar de enfermagem, com uma boa farmácia, um técnico agrícola, um professor, preferencialmente indígena, com uma escola até o nível da 4ª série, e um ou mais serviçais, ou trabalhadores braçais, para cuidar dos bens do posto e fazer roças para o sustento da equipe. Fisicamente o posto deveria ter sede própria, casa de maquinário, viatura ou barco, canoas, ferramentas, se possível, luz elétrica e poço semi-artesiano. Na implantação dos postos foram utilizados os já existentes, criados pelo SPI, alguns com mudança de sede, e muitos mais foram criados a partir de meados da década de 1970. Quase todos mudaram de cognome, perdendo os nomes dos heróis e luminares do SPI, e passando a ter cognomes dos pontos geográficos ou das aldeias em que se situavam.
Em suma, a FUNAI foi instituída para ser um SPI menos carregado de história e ideologia, mais eficiente e impessoal na administração e que cumprisse o propósito indigenista fundamental do Estado brasileiro que era de fazer o índio virar um brasileiro como outro qualquer . A partir de 1971 a FUNAI criou um curso de formação de indigenistas, o qual foi ministrado por professores e antropólogos de confiança do órgão, especialmente da Universidade de Brasília. Até 1985 sete tais cursos haviam sido dados formando mais de duas centenas de indigenistas, muitos dos quais chegaram a galgar posições políticas de relevo dentro do órgão. No início os indigenistas se distinguiam como uma geração nova dos velhos sertanistas do SPI, mas, com o passar dos anos, eles mesmos, tendo experiência com povos indígenas autônomos de recém-contato, foram sendo promovidos aos cargos de sertanistas. Sob muitos aspectos, sobretudo os mais objetivos, tais como a demarcação das terras indígenas e o crescimento demográfico, pode-se dizer que a FUNAI melhorou, substancialmente, o legado do SPI. Por outro lado, suas deficiências inatas, especialmente a deformação do uso do poder, a subordinação a uma política desenvolvimentista e essencialmente antiindígena, a corrupção em vários níveis e a incúria administrativa provocaram, a contragosto, a reação cada vez mais política dos povos indígenas. Finalmente, há que se entender que os tempos eram outros, com a presença ativa da mídia nacional e internacional cobrando a defesa dos interesses dos índios, o florescimento dos movimentos democrático, indígena, ambientalista e de minorias em geral, bem como os desdobramentos econômicos e sociais da expansão agropastoril e extrativa que atingiram diversas regiões indígenas e que as conectaram às cidades e aos meios de comunicação.
O destino dos índios foi aos poucos se revertendo positivamente em função de novos fatores sociais que estavam ocorrendo na sociedade brasileira e no mundo indígena. Na sociedade brasileira cresceu o interesse e a simpatia pela causa indígena, abrindo com isso um flanco de crítica ao governo federal que antes só era acessível aos especialistas. No decorrer da década de 1980 iriam surgir novas lideranças indígenas que traziam um discurso mais contundente e afinado com os tempos e agiam com mais determinação política. Mais importante ainda, as populações da maioria dos povos indígenas estavam experimentando algo surpreendente até para os antropólogos que os conheciam: um crescimento demográfico incomparável, o que revertia a curva demográfica negativa de quase cinco séculos. Assim, o controle do destino dos índios foi ficando um pouco mais em suas próprias mãos, embora não se possa dizer que sua vulnerabilidade tenha sido controlada de todo.
Esses novos fatores se exerceram independentemente da ação da FUNAI, mas não se pode dizer que à sua revelia. Houve momentos em que o órgão indigenista teve ímpetos ativistas que marcaram uma presença positiva, tais como entre 1975 e 1979, e no biênio da transição democrática, entre 1984 e 1985. Porém, quase sempre sua direção foi exercida por militares sem vínculo com a ideologia rondoniana, sem nenhuma visão integradora da relação entre os índios e o Brasil. Os civis que os substituíram após 1985 tampouco compreenderam as possibilidades socioculturais dessa relação, considerando sua tarefa apenas como administração de conflitos interétnicos, ou, mais recentemente no governo Cardoso, como adaptadores da ideologia neoliberal ao órgão indigenista. Desde 1986 a FUNAI vem perdendo importância para ajudar os povos indígenas em relação aos novos obstáculos que os perseguem, e pouco faz para justificar sua existência. Seus objetivos precípuos não foram atingidos, já que nem todas as terras indígenas foram demarcadas e garantidas. Porém, para sorte dos índios, a emancipação da tutela do Estado, que havia sido proposta no final do governo Geisel como solução final para resolver a questão indígena no Brasil, não se tornou uma realidade. Os povos indígenas dão todos os sinais de querer continuar a ser índios, de continuar lutando pela sobrevivência e pela ampliação de seus direitos como etnias e como cidadãos brasileiros, participando de sua vida social, política e econômica. Ser índio e ser brasileiro não lhes parece condições incompatíveis. Embora desde a redemocratização do país estejamos vivendo um período de indefinição e desleixo da parte do Estado em relação aos índios, algo terá que ser feito, pois, do contrário, a inércia só servirá aos inimigos dos índios, que se agrupam com mais intensidade nos seus interesses de exploração das riquezas que há nos territórios indígenas .
Um relance sobre as presidências da FUNAI
O primeiro presidente da FUNAI foi um civil, José Bezerra Queirós, um jornalista pernambucano ligado ao regime militar, que, indeciso sobre que rumos o governo militar iria tomar em relação aos índios, se escorava nos moldes antigos e nos funcionários experientes do SPI para consolidar o novo órgão na burocracria do governo. Nos primeiros meses até o velho ex-diretor José Gama Malcher foi chamado para participar na implantação do órgão, e ele ainda tentou dar um sentido indigenista, mas foi exonerado em poucos meses.
O segundo presidente foi mais um pernambucano, o general Jerônimo Bandeira de Melo (1970-74), que durou praticamente o período do governo Médici, um tempo de rígido controle policial-militar, mas a FUNAI teve oportunidade de iniciar a formação de seus quadros indigenistas fazendo cursos de indigenismo. O terceiro presidente foi o paulista general Ismarth de Araújo (1974-79), que esteve na fase de distensão da presidência de Geisel. Foram anos de intensa atividade de delimitação e demarcação de terras, com os jovens indigenistas se aliando aos interesses maiores dos índios, furando o cerco de censura do período anterior, e dando voz aos índios. A imprensa, ainda amordaçada pelo AI-5, dedicou muitas páginas aos assuntos indígenas, especialmente depois que o governo militar tornou público seu projeto de emancipar os índios da tutela do Estado, fato que, na interpretação dos antropólogos, advogados e indigenistas, só iria agravar a situação periclitante dos índios diante dos interesses econômicos que os cercavam. A década de 1970 se caracterizou também pela facilidade de crédito e incentivos fiscais que permitiram a fazendeiros, empresas brasileiras e estrangeiras entrar na Amazônia, derrubar as matas e implantar fazendas de gado, a grande maioria das quais não iria subsistir sem novos ingressos de capital. Com isso, muitas terras indígenas foram tomadas e devastadas antes de serem reconhecidas como indígenas, ou até sob o beneplácito corrupto de funcionários da FUNAI que, ao serem consultados, davam certificados de inexistência de índios nas terras pretendidas.
Nos primeiros sete meses do governo Figueiredo o novo presidente da FUNAI foi o engenheiro mineiro Ademar Ribeiro da Silva, que, além de engavetar o projeto de emancipação, prometia a participação de antropólogos e o respeito às novas lideranças indígenas. Entretanto, Ademar da Silva caiu em novembro de 1979, sendo substituído pelo coronel João Carlos Nobre da Veiga (1979-81), que foi seguido pelo coronel Paulo Moreira Leal (1981-83), ambos ligados ao Serviço Nacional de Informações (SNI). Esse período é considerado o mais negro da FUNAI, “o tempo dos coronéis”, não só pelas perseguições que os indigenistas sofreram, como pelo descaso com as insurgentes lideranças indígenas, o clima de delação que passou a reinar no órgão, e principalmente as mudanças que diminuíram o poder da FUNAI para demarcar as terras indígenas.
Em setembro de 1984, o presidente Figueiredo nomeou mais um coronel do SNI para presidir a FUNAI, Francisco Marabuto. Surpreendentemente, Marabuto se cercou dos indigenistas que amadureciam no ofício e abriu uma frecha de esperanças para a participação de índios em cargos de importância do órgão. Em janeiro de 1985, Marabuto, junto com os indigenistas e muitos índios presentes em Brasília, se recusaram a acatar um decreto presidencial que abria as terras indígenas à exploração de mineradoras. O presidente Figueiredo recuou e cancelou o decreto. Parecia que a FUNAI ia entrar com força no novo governo civil a ser empossado em março. O novo presidente do órgão foi um experimentado burocrata, Gerson Oliveira, que, em razão das pressões exercidas pelos quadros indigenistas, iniciou sua gestão dando apoio às reivindicações de demarcação de terras, até as mais conflituosas, como a dos índios Apinayé do norte de Tocantins. Entretanto, o ministro do Interior, Costa Couto, pressionou a FUNAI e os índios para permitir a entrada de garimpeiros e madeireiros na terra dos Kayapó, o que abriu um flanco que iria, nos próximos dez anos devastar aquela área de mogno e ouro aluvial. Em setembro de 1985 o presidente Sarney demitiu Gerson e seus auxiliares mais radicais, tais como Ezequias Heringer, o Xará, José Fontenelle de Carvalho e outros, e nomeou um dos irmãos Vilas-Boas. Este, já alquebrado, iria durar alguns meses apenas, sendo substituído em março de 1986 pelo administrador de empresas pernambucano Romero Jucá Filho, que ficaria até ser nomeado governador interino do novo estado de Roraima, em novembro de 1988. A gestão de Romero Jucá é por muitos antropólogos considerada uma das mais contundentemente prejudiciais aos índios de todas da FUNAI. Não somente o órgão indigenista passou a ser cabide de empregos, como, através de uma série de decretos, a FUNAI perdeu ainda mais sua capacidade de demarcar terras indígenas. Os assuntos relacionados à educação, saúde e meio-ambiente foram passados para a alçada dos respectivos ministérios, o que diluiu a FUNAI e aliviou a responsabilidade do Estado pelo seu desempenho. Ademais, Jucá abriu as áreas indígenas para a mineração regular e irregular, em áreas tais como a dos índios Yanomami, Kayapó, Mundurucu, bem como a retirada de madeira em muitas outras áreas indígenas, no Pará e em Rondônia, aparentemente, segundo os processos que correm no Tribunal de Contas da União, auferindo recompensas ilícitas.
A partir de 1989, a FUNAI iria ser dirigida por alguns indigenistas e sertanistas experimentados no campo - Apoena Meireles, Sidney Possuelo, Cláudio Romero e Dinarte Medeiros -, não sem antes ter sido presidida por um sargento, mas sem capacidade de exercer liderança efetiva sobre os funcionários do órgão e sem visão sobre como dirigir os novos rumos do relacionamento entre os povos indígenas e a sociedade nacional. Seriam afinal meros executores das políticas mais abrangentes dos governos Collor, Franco e Cardoso. Essas administrações se caracterizaram pela manutenção do ímpeto de demarcações de terras indígenas, porém pela incapacidade de absorver positivamente as lideranças indígenas que almejavam participar decididamente nos rumos do órgão indigenista, e, sobretudo, pela diminuição da força política que a FUNAI (como antes o SPI) havia adquirido ao longo dos anos por todo o Brasil, especialmente os estados onde há mais índios. Neste último governo três advogados, Júlio Gaiger, Sullivan Silvestre e Carlos Marés de Souza, um ex-deputado federal, Márcio Santilli, e um ex-senador, Márcio Lacerda, todos com experiência no movimento social brasileiro que defendera muitas causas indígenas em anos passados, presidiram a FUNAI, sem deixar marcas de renovação. Ao contrário, coadjuvaram na implantação de uma política de esvaziamento político e administrativo da FUNAI, a qual se baseia numa concepção anti-rondoniana, ou mais propriamente pré-rondoniana do que deve ser o órgão indigenista. Essa política põe em prática a idéia de que o Estado brasileiro deve se afastar da responsabilidade que se auto-impôs no passado de cuidar dos índios, subentendendo que os índios devem se haver por si próprios. Negligenceiam a história da formação do Brasil, as condições presentes da política nacional e as próprias culturas indígenas, no afã de seguir a ideologia liberal de que todos os povos devem se auto-determinar. Como se entende que há ainda um longo caminho a percorrer para que muitos povos indígenas sobrevivam diante das forças avassaladoras ao seu redor, a ideologia liberal joga sobre a sociedade civil, através de suas organizações sem fins lucrativos, a responsabilidade de auxiliar os índios. É a repetição farsante da história das relações interétnicas no Brasil colonial.
A FUNAI no Maranhão e os novos postos indígenas
A fase de transição entre o SPI e a FUNAI, no Maranhão, foi, também, em alguns momentos, de alguma confusão e perplexidade. Em outros, estando à frente da inspetoria alguém de experiência, como João Fernandes Moreira, José Mendes Berniz, ou Júlio Alves Tavares, o funcionamento parecia nos padrões anteriores. O sertanista Cícero Cavalcanti, que chegara em dezembro de 1963 para substituir Olímpio Cruz, deu lugar, em agosto de 1964, a um parvenu que se dizia amigo do general Castelo Branco, José Fernando da Cruz, que levantou poeira de escândalo pelos postos indígenas que passou, vendendo gado no postos indígenas Gonçalves Dias e Tenente Manuel Rabelo, e confiscando um carregamento de amêndoas de cumaru, peles e resinas silvestres que se encontrava no Araribóia, o qual pertencia ao ex-funcionário do SPI, Raimundo Vianna, tendo sido comprado dos Tenetehara locais. Índios e servidores do SPI se assustaram com essa passagem, mas em julho de 1965 José Fernando da Cruz foi substituído, e os anos seguintes o cotidiano dos índios e funcionários do SPI seguiram com alvoroço mais em função das tensões com a chegada maciça de invasores das terras indígenas do que por modificações no órgão indigenista.
Assim, para os índios e para os funcionários de campo do SPI, a extinção deste órgão e a sua substituição pela FUNAI caíram de surpresa. No Maranhão, exceto pelo ataque de capangas de fazendeiros aos Canela, em julho de 1963, não havia motivos aparentes que demonstrassem a falência do órgão. Pelo contrário, nesse período até tinha havido expansão da assistência aos índios, pois o posto Tenente Manuel Rabelo, desde outubro de 1964, já não cobria sozinho todas as aldeias tenetehara de Barra do Corda, tendo sido criado o posto Brigadeiro Eduardo Gomes, que ficava na aldeia Canabrava e servia às aldeias dessa sub-região, incluindo Coquinho, Lagoa Comprida, Leite, Urucu e Juruá, bem como aos Timbira da aldeia da Geralda, ex-posto indígena Araribóia, na beira do rio Grajaú. Por sua vez, a aldeia Sardinha vinha tendo quase toda a infra-estrutura de um posto indígena, com escola, enfermeiro, curral de gado e um funcionário do SPI, servindo às aldeias próximas ao rio Corda, e prestando assistência aos Canela que ainda estavam refugiados nas terras tenetehara, antes de retornarem às suas próprias terras.
Assim, o que parece ter causado mais insegurança nos primeiros dois anos da FUNAI resultou da imposição feita aos funcionários do extinto SPI de tomar a decisão de optar ou por sua continuidade no ministério da Agricultura, e assim sair do serviço de índios, ou se transferir para o ministério do Interior, para trabalhar na FUNAI, porém sob o propalado risco de perderem benefícios e serem perseguidos. Muitos deles, e dos melhores, optaram por ficar no seu velho ministério, e até suas aposentadorias ficariam mofando em posições de porteiro, vigia e contínuo. O competente sertanista Benevenuto Riedel, seu trabalhador auxiliar, João Chaves da Silva, e os Tenetehara Domingos Soares, Antonino Pereira e Suely Bone da Silva, por exemplo, foram viver em cidades e trabalhar em repartições do ministério.
Aos poucos as mudanças burocráticas foram sendo efetuadas. Em janeiro de 1969, a 3ª Inspetoria do SPI caiu de nível administrativo e passou a ser uma ajudância, semelhante à Ajudância de Barra do Corda, não se sabe exatamente porquê, a não ser como um momento de diminuir a força do órgão indigenista no estado. Porém, a partir de fevereiro ou março de 1970, ela se alçou para o nível de delegacia, tornando-se a 6ª Delegacia Regional da FUNAI. A Ajudância de Barra do Corda foi mantida e renovada com mais verbas para cuidar dos índios Tenetehara, Canela Ramkokamekra e Apanyekra e os Timbira-Krepumkateyé de Barra do Corda e da beira do rio Grajaú. Até 1972 continuou a haver alguma infra-estrutura administrativa na cidade de Grajaú, a qual foi desativada em 1973, com a criação do P.I. Bacurizinho para servir aos índios das aldeias Ipu, Bacurizinho, Pedra, Talhado e Bananal. O posto Gonçalves Dias ganhou o cognome de posto indígena (P.I.) Pindaré; o Tenente Manuel Rabelo passou a ser P.I. Guajajara, o posto Brigadeiro Eduardo Gomes se tornou o P.I. Canabrava; já o posto Araribóia passou a ser P.I. Funil, nome da aldeia que o sediava, embora continuasse a ser conhecido como Araribóia. O mesmo ocorreu com o posto dos Canela. Aliás, o território dos Canela iria ser o primeiro a ser demarcado, homologado, e registrado em cartório, entre 1970 e 1972, numa espécie de reparação ao ataque de 1963. Os índios Gaviões e Krikati iriam ter seus próprios postos, e novos postos seriam criados, a partir de 1973, para os Tenetehara da Terra Indígena Caru, no alto Pindaré, um pouco a montante da embocadura do rio Caru (P.I. Caru), e mais dois para a T.I. Araribóia, sendo um na aldeia Angico Torto, na beira do rio Zutiua (P.I. Angico Torto), e o outro na beira do rio Buriticupu, numa aldeia recém-situada (P.I. Canudal). Em 1979 foram criados mais dois postos indígenas para os Tenetehara da T.I. Guajajara-Canabrava, o P.I. Coquinho e o P.I. Barreirinha, ambos nos limites da rodovia BR-262 que corta aquela área indígena.
A partir de 1983, com o convênio firmado entre a FUNAI e a Companhia Vale do Rio Doce, cuja Estrada de Ferro Carajás, transportando trens com duzentos vagões de minério de ferro da Serra dos Carajás até o Porto de Itaqui, em São Luís, passava ao largo de diversas terras indígenas, novos postos indígenas iriam ser criados, em alguns casos, para fortalecer a defesa da terra contra possíveis invasores, como no caso dos postos de vigilância da T.I. Caru; em outros, simplesmente para contentar as exigências de lideranças tenetehara que queriam assumir posições de chefia de posto, como no caso do novo P.I. Ipu, situado a apenas três quilômetros do P.I. Bacurizinho, que não tinha nenhuma razão estratégica para sua existência. Junto com o P.I. Bananal, somariam três postos na T.I. Bacurizinho, como pouco potencial de conflito interétnico. Aos quatro postos indígenas da T.I. Guajajara-Canabrava foi acrescentado mais um para cuidar das aldeias da beira do rio Corda, o P.I. Sardinha, que, aliás, já fora sub-posto anos atrás. Todos os postos, sob a jurisdição da Ajudância de Barra do Corda, iriam receber recursos tanto do convênio FUNAI/CVRD, que se encerrou em 1988, como da Eletronorte, neste último caso por compensação pela passagem dos linhões de transmissão da energia produzida pela hidrelétrica de Tucuruí. Em 1995 mais um posto indígena haveria de ser criado especificamente para a aldeia Colônia, o P.I. Colônia, talvez para lembrar a todos da importância histórica dessa aldeia e para satisfazer as suas lideranças em relação à hegemonia que a aldeia São Pedro vinha tendo desde 1940. Em 1990, com a definição da demarcação da T.I. Urucu-Juruá, compreendendo alguns quilômetros quadrados das margens do rio Grajaú, foi criado o P.I. Urucu-Juruá. Em 1995 foram criados novos postos na T.I. Araribóia - além do postos Funil, Angico Torto e Canudal - um ao longo do rio Zutiua, o P.I. Zutiua, e um na quina sudoeste, o P.I. Lagoa Comprida, desta feita para agradar lideranças políticas que não estavam envolvidas na venda de madeira da terra indígena.
A principal justificativa para a maioria dos postos indígenas criados na década de 1970 era de ordem estratégica para fortalecer a posição dos índios e da FUNAI, com vistas à demarcação das terras e posteriormente da preservação de seus limites contra invasores que estavam sendo atraídos pelos investimentos econômicos na região. Já aqueles criados a partir de meados da década de 1980 se baseavam numa consciência vaga sobre o crescimento da população tenetehara e na formação de novas aldeias que exigiam do órgão indigenista algumas medidas de assistência, bastante valorizadas pelos índios, como escolas, casas de farinha, e empregos. Nas sub-áreas mais isoladas ou distantes de estradas e com dificuldades de comunicação, como aquela situada no extremo noroeste da T.I. Araribóia, conhecida como Canudal, e a T.I. Caru, localizada no alto Pindaré (antes da passagem da Estrada de Ferro Carajás), exigiam a presença de posto indígena e uma infra-estrutura mínima de assistência: pequena farmácia, auxiliar de enfermagem, escola e uma professora das primeiras séries, ou monitor bilíngüe tenetehara, e quando possível um técnico agrícola. O Canudal passou de uma pequena aldeia, com pouco mais de 100 Tenetehara liderados pelo velho capitão Cipriano, oriundos da aldeia Funil, em 1973, para quase 700 habitantes, com cinco aldeias, dois anos depois. Lá tinha sido por mais de 50 anos uma área de caça e de coleta de produtos silvestres das aldeias do velho posto Araribóia. Também por lá viviam alguns grupos de índios Guajá, que ocasionalmente eram vistos pelos caçadores.
A atuação da 6ª Delegacia Regional
A transição do SPI para a FUNAI no Maranhão foi inaugurada com a tomada de posse de um militar aos 9 de janeiro de 1968, o segundo-tenente Manuel Ferreira Novaes, que nomeou um seu parente também militar, o sargento Domingos Justino Novaes para a dupla função de chefe da Ajudância de Barra do Corda e do posto Gonçalves Dias. Os dois Novaes vinham com alguma missão a cumprir, não se sabia qual, a não ser facilitar a vida das autoridades, dos políticos regionais e dos imigrantes nordestinos nas terras indígenas. Em Barra do Corda, o sargento Novaes oficiou não somente aos chefes dos postos regionais mas ao próprio juiz de direito de que tinha autorização do inspetor para arrendar a lavradores lotes de terras indígenas e recolher comissão. Assim foi feito em terras do posto Brigadeiro Eduardo Gomes, cuja comissão ele cobrou ao então chefe do posto Hugo Ferreira Lima. Determinou outrossim que este cobrasse arrendamento das terras de São Pedro dos Cacetes, algo impossível de ser realizado, não somente pela quantidade de lavradores, talvez umas 300 famílias à época, como porque os seus moradores mais antigos acreditavam que essas terras haviam sido liberadas desde 1928, como veremos no Capítulo X. Novaes deu ordens também para empleitar a derrubada e retirada de toras de cedro das terras da Canabrava e Lagoa Comprida, oficiando ao dito chefe, “Caso o trator tenha terminado de arrastar a madeira que tinha tirado, mande vir embora, e suspender a tiração de madeira até novas instruções. Mande dizer em que ficou (sic)as 100 toras de cedro que você disse-me que tinham tirado nas nossas terras (sic), digo, nas terras dos índios ...” No posto Gonçalves Dias, sua preocupação era igualmente com a madeira que estava sendo retirada das terras do rio Caru, que eram descidas em balsas pelo rio Pindaré. Diversos ofícios do então chefe de posto Bento Vieira perguntando sobre o que fazer com a madeira que ele havia aprendido são respondidos vagamente. Enfim, em setembro de 1968, a situação dos Novaes parece ter chamado a atenção da direção da FUNAI e eles foram exonerados. Nos meses seguintes iriam responder por um inquérito administrativo em que teria ocorrido o desaparecimento de três rifles papo-amarelo do posto indígena Gonçalves Dias.
Com a saída do tenente Novaes e o rebaixamento da inspetoria para Ajudância de São Luís, o novo ajudante seria Ismael Leitão, que ficaria até março de 1970. Nesse período, ele seria coadjuvado por João Fernandes Moreira, que substituíra outros inspetores anteriormente, e por um jovem contador recém-contratado, Roberval do Nascimento, que tomaria conta de todas as ações indigenistas e administrativas, da cidade de Grajaú ao posto Gonçalves Dias. Embora a Ajudância de Barra do Corda tivesse um novo chefe, Antonio Ferreira do Nascimento, que trabalhara ao lado do aposentado Olímpio Cruz, quem supervisionava de fato era Roberval. No posto Gonçalves Dias Roberval coletava as rendas e cuidava da venda do gado. No Grajaú foi responsável pelo abandono das aldeias da beira do rio. Roberval iria ficar na FUNAI durante a administração seguinte, sendo afinal exonerado pelo delegado major Alípio Levay em 1974.
O primeiro delegado da 6º Delegacia Regional da FUNAI foi o tenente-coronel Armando Perfetti, nomeado em março de 1970 e lá ficando até agosto de 1972. Perfetti seria delegado por mais três anos, entre 1977 e 1979. Oriundo da Polícia Militar, Perfetti era homem relacionado com o aparelho de informações, tornando-se inclusive chefe de informações da Universidade Federal do Maranhão, e viera com o intento de instalar um espírito novo de administração da questão indígena, impondo disciplina e lealdade por parte dos novos chefes de posto, controlando os arroubos dos índios e decidindo as questões pendentes sobre disputas de terras. Naqueles primeiros anos da década de 1970 não estava em voga a política de demarcar terras, e sim de resolver problemas pendentes, de diminuir tensões sociais, mesmo que a custo dos índios. Perfetti tentou de diversas maneiras, inclusive buscando agradar os índios com presentes, que os Tenetehara aceitassem a presença dos povoados São Pedro dos Cacetes e Alto Alegre, no município de Barra do Corda, e para que os Tenetehara do agora P.I. Pindaré abrissem mão das terras do baixo Pindaré e se transferissem para as terras do rio Caru, onde estava sendo instalado um novo posto indígena, ou para as terras do P.I. Araribóia (Funil), onde teriam condições de viver uma vida mais tranqüila. Em vão, eles persistiram, insistiram e ficaram.
Vale relatar que desde fins de 1968 havia aparecido na 3ª Inspetoria dois irmãos italianos, Fiorello e Valéria Parise, com licença para pesquisar os índios Guajá que viviam em pequenos bandos, autonomamente, entre o rio Gurupi e o vale do Pindaré. Após uma primeira viagem rio Pindaré acima, os irmãos Parise foram proibidos de se dedicar à sua pesquisa sobre os elusivos Guajá. Resolveram ficar no Brasil, se ofereceram para trabalhar na FUNAI, e, após, serem vistoriados pelo SNI, ambos foram contratados pela FUNAI como indigenista e antropóloga. Fiorello iria ser o primeiro chefe do P. I. Araribóia (1969-71), substituindo o velho Benevenuto Riedel, depois se transferindo para a 2ª Delegacia Regional em Belém, até sua aposentadoria em 1996. Valéria iria ficar até fins de 1973, saindo do Brasil por motivos de saúde. Ela é lembrada por muitos índios Tenetehara pela dedicação ao trabalho e gentileza no trato. Visitou todos os postos indígenas e escreveu relatórios sobre as necessidades que cada um tinha para se tornar postos eficazes. Sua presença na 6ª Delegacia fazia um importante contraponto à truculência do delegado Perfetti e seus auxiliares e ao pouco caso indigenista que predominava naqueles anos.
Com a saída do coronel Perfetti, entrou o major Alípio Levay, cujo trato com os índios e com os funcionários da FUNAI era mais cordial e modesto. O major Levay iria ficar de uma primeira vez por dois anos, até a chegada de um parvenu Francisco Rennó, que arranjara o emprego pela influência do irmão no ministério do Interior. Rennó deixou a marca de vender os arquivos guardados pelo Dr. Xerez como papel velho no primeiro mês de sua administração, em fevereiro de 1975. Tentou conciliar interesses indígenas com os de fazendeiros em conflito, mas saiu em junho de 1976 com fama de caloteiro na praça de São Luís. Porém, Rennó não se eximiu de prestrar algum apoio ao processo de demarcação das terras indígenas, que entre 1975 e 1979, sob diversas administrações, iria concentrar as atenções da 6ª Delegacia. O processo detalhado das demarcações será apreciado no Capítulo X, onde também serão analisados as relações entre indigenistas, chefes de postos e os Tenetehara.
Rennó foi substituído por Perfetti, que ficou entre 1977 e 1979, sendo então substituído por Sidney Possuelo, que ficou apenas alguns meses daquele ano. Em seguida voltou o major Levay, que ficou até junho de 1983. Em julho veio Dinarte Medeiros, que ficaria até setembro de 1984. Por fim a 6ª Delegacia iria ter o seu primeiro dirigente de origem indígena, o mestiço de Tenetehara Pedro Marizê Filho (sendo o pai Tenetehara, ex-servidor do SPI, e a mãe uma branca de Grajaú que havia sido professora do SPI na escola da aldeia Borges), que ficaria até dezembro de 1990. Ele foi substituído por um índio Tenetehara, José Arão, nascido e criado na aldeia Bacurizinho, cujo pai, Alderico Lopes, era já chefe de posto, e que ficaria entre 1991 e 1994.
As gestões desses dois Tenetehara, uma década inteira, representaram o auge de ascensão política dos Tenetehara. Podia-se dizer que os índios estavam no poder, mas era um poder já desaquinhoado de prestígio político nacional e estadual, de verbas, e descentralizado pelas ajudâncias, ou administrações regionais. Logo ficou evidente para muitos índios e funcionários da FUNAI que as verbas que o delegado podia controlar pessoalmente eram distribuídas mais com seus parentes da T.I. Bacurizinho, do que proporcionalmente com as demais áreas indígenas. Mesmo assim, havia um certo orgulho entre os Tenetehara, que passaram a fazer um esforço ainda maior para eles mesmos controlarem todas as chefias de posto e as ajudâncias. Com efeito, em 1993, a chefia da conturbada Ajudância, agora Administração Regional de Barra do Corda passou ás mãos de um mestiço Tenetehara José Dilamar Pompeu, da importante aldeia Sardinha, cuja mãe havia sido professora nos últimos anos do SPI.
Em 1988, na administração nacional de Apoena Meireles, a FUNAI havia feito uma reforma em que muitas delegacias regionais foram extintas, ou perderam poder sobre seus estados, sendo centralizadas em superintendências regionais. Tal qual em 1929, quando foi extinta a inspetoria do Maranhão, os índios do Maranhão passaram a ser supervisionados pela superintendência de Belém. Assim, a 6ª Delegacia passou a existir como poderes restritos de ajudância, igual às ajudâncias de Barra do Corda e a recém-criada em Imperatriz (que ficou com a supervisão das terras indígenas Araribóia e as dos índios Krikati e Gaviões). Em 1992, na gestão nacional de Sidney Possuelo, as superintendências foram extintas e as delegacias e ajudâncias voltaram a funcionar, todas agora com o título mais burocrático de administração regional. Mas, no Maranhão, certamente porque o administrador era um índio Tenetehara, cuja família da T.I. Bacurizinho conflituava com os Tenetehara de outras áreas indígenas, especialmente da Administração de Barra do Corda e da T.I. Araribóia, o poder da Administração de São Luís ficou restrito às áreas do Bacurizinho, Pindaré e Caru.
Os Tenetehara Pedro Marizê Filho e José Arão, embora considerados parciais em relação aos seus parentes, foram administradores que tentaram impor algum prestígio à decadente Administração de São Luís. Pedro Marizê parecia ser mais diplomático e contemporizador, enquanto José Arão tinha um estilo mais impositivo. Buscaram estender sua área de competência junto às autoridades estaduais maranhenses, mas aos poucos foi se tornando evidente que suas ações não incorporavam força política ao órgão ou aos povos indígenas. Os demais índios que não recebiam favores especiais, Tenetehara, Urubu-Ka’apor, Canela, Krikati e Gaviões, passaram a olhar seu patrício como uma figura de prestígio mas incapacitado, como eles esperavam que fosse capaz, para olhar por eles e lhes dar recursos para viverem melhor. Assim, em novembro de 1996 José Arão foi exonerado depois que um inquérito administrativo o julgou responsável pelo mal uso de verbas. Foi substituído por uma advogada e professora maranhense, por indicação direta da governadora do estado. Como era de esperar, ela não agüentou as pressões do cargo e saiu em 1997, sendo substituída por um indigenista, José Araújo , que permanecia como delegado até janeiro de 2000.
A assistência à saúde
Além da função de garantir e proteger as terras indígenas, o SPI/FUNAI tem tido a importante incumbência de cuidar do bem estar físico dos seus tutelados. Isto quer dizer, cuidar, no nível da emergência, para que uma população indígena não venha a ser dizimada ao ser assolada por moléstias contagiosas; e prestar assistência médica e sanitária contínua, no nível primário. As medidas protetoras são efetivadas por meio de programas de imunização contra doenças tais como a tuberculose, varíola (no passado), sarampo, coqueluche e difteria, assim como através de programas de tratamento para tuberculose, doenças venéreas, gripe, pneumonia, malária e as muitas variedades de doenças que atacam os órgãos internos de um indivíduo, e que são motivos de queixas da parte dos índios, particularmente estômago, intestino, fígado e rins. O resultado dos tantos programas de imunização do SPI/FUNAI pode ser considerado de relativo sucesso, particularmente entre as etnias do Parque do Xingu e entre outros povos indígenas que hoje têm crescentes populações, tais como os Xavante, Tikuna, Makuxi, etc. Outros, ainda que não tenham altas populações, como os Bororo, Karajá, Pareci, etc., foram e vêm sendo acompanhados por equipes médicas do SPI/FUNAI há muitos anos. Por outro lado, há muitos povos indígenas que receberam assistência médica muito pobre e raramente. Tal foi o caso dos Urubu-Ka’apor, que em conseqüência sofreram uma queda populacional da ordem de 70% de sua população pré-contato, que era de 1500 pessoas em 1927, e passou a menos de 450 em 1975 . Entre os diversos povos que foram contatados ultimamente, na década de 1970, como os Assurini, Parakanã, Arara, Guajá, Zoró, etc., suas perdas populacionais chegaram a ser da ordem de 50% em poucos anos. Felizmente eles se recuperaram e voltaram a ter populações equivalentes ou maiores que as originais. Outras etnias foram efetivamente destruídas por epidemias antes mesmo que fosse efetuada qualquer imunização .
Por outro lado, desde a década de 1960 a grande maioria dos povos indígenas brasileiros vêm crescendo em população, alguns a taxas bastante altas. Hoje, a população indígena brasileira ultrapassa 350.000, quando há quarenta anos estava em volta de 120.000. Na maioria dos casos isto se deve a vários fatores de ordem sanitária, social e até ideológica, de amplitude mundial . Porém dois fatores biológicos merecem ser mencionados aqui rapidamente, mesmo porque eles também incidem sobre o caso tenetehara. O primeiro é que nos últimos 30 anos deu-se uma queda substancial na taxa de mortalidade infantil entre muitos povos indígenas, talvez em função de algum cuidado médico providenciado pelo FUNAI, talvez pela diminuição da incidência de doenças que atacavam bebês, talvez ainda por formação de hábitos mais saudáveis de alimentação e higiene. O segundo é o aumento da fertilidade feminina em virtude de uma mudança nos hábitos indígenas tradicionais de espaçamento das gravidezes. Em muitas sociedades indígenas foi diminuído o período de tempo da reativação do intercurso sexual entre marido e mulher após o parto. Antes a mulher esperava que seu filho andasse para se relacionar com o marido, o que levava até doze meses; agora esse período caiu para alguns meses apenas. Assim, uma mulher indígena, que no curso de sua vida poderia ter sete ou oito gravidezes, dos quais apenas três ou quatro filhos sobreviveriam até a adolescência, hoje ela poderá chegar a completar dez ou doze partos, das quais sete ou mais filhos poderão sobreviver até a idade adulta.
Os programas de tratamento levados a cabo pelas equipes médicas do SPI/FUNAI no Maranhão ao longo das décadas de 1950 a 1990 foram todos de pouca eficácia devido à desarticulada e incompetente infra-estrutura fornecida pelo SPI/FUNAI. Até a década de 1990 a FUNAI tinha equipes de saúde permanentes (e aqui limito minhas referências à FUNAI já que durante a fase do SPI mal existia um corpo médico) compostas de atendentes ou auxiliares de enfermagem práticos residentes nos postos indígenas, que ficavam sob a supervisão de um médico contratado por meio período do dia, residente em São Luís. Havia também, em São Luís, um escritório dentário padrão, com um dentista trabalhando em período completo. O médico era informado pelos auxiliares de enfermagem sobre o estado de saúde de cada aldeia e dos casos individuais que necessitavam de cuidados especiais. Os enfermeiros auxiliares adquiriam, após alguns anos de experiência, alguma tarimba para diagnosticar as principais doenças que assolavam uma determinada área indígena. Quando surgia um caso grave, tal como indícios de doença mental, uma infecção prolongada que fosse difícil de ser curada com os antibióticos, vitaminas e outros medicamentos disponíveis na farmácia do posto, ou algo que necessitasse de cirurgia e portanto de internação hospitalar, o paciente seria levado para a cidade mais próxima ou direto para São Luís, para os cuidados do médico da FUNAI, que o encaminharia para os exames necessários. Os Tenetehara das terras indígenas Pindaré e Caru eram encaminhados para Santa Inês; os do Araribóia, até a década de 1970, iam para Grajaú; depois passaram a ser encaminhados para Amarante e Imperatriz, especialmente depois que lá foi criado a Ajudância de Imperatriz, a partir de 1988; os do Bacurizinho iam para Grajaú, e muito freqüentemente direto para São Luís por causa da influência que tinham na delegacia regional; os das terras indígenas Guajajara-Canabrava, Lagoa Comprida e Urucu-Juruá, iam para Barra do Corda.
Os precários programas de vacinação iniciados pelo SPI nos anos 1950 foram continuados pela FUNAI de forma mais consistente. A varíola, tão devastadora historicamente, foi aos poucos perdendo sua virulência. Quando a 6ª Delegacia Regional tomou as rédeas dos postos indígenas que serviam aos Tenetehara, por volta de 1970, sua atitude era de que a varíola já havia sido erradicada, portanto não mais requisitava a atenção das autoridades sanitárias. Porém um relatório redigido pelo enfermeiro do posto indígena Bacurizinho, em 1973, indica a suspeita da presença de cinco casos de varíola, que, no entanto, não foram confirmados .
Esse mesmo relatório considerava que a incidência de tuberculose entre os Tenetehara era pouca e que estava sob controle. Entre a população de 820 Tenetehara da T.I. Bacurizinho, havia quatorze casos de tuberculose registrados em 1974, seis dos quais na aldeia do Bananal, um deles resultando em morte. O tratamento da tuberculose era aplicado pelo atendente de enfermagem e supervisionado pelo médico da FUNAI, e estava de acordo com o plano utilizado para os brasileiros em geral. A incidência de tuberculose entre os Tenetehara (a grosso modo, 1,7% extrapolando os dados da T.I. Bacurizinho) contrastava desfavoravelmente com a porcentagem em que esta aparecia na população brasileira em geral, que era de 0,5% na década de 1970 , mas certamente não com a população de regiões como Grajaú-Barra do Corda.
Em 1974, de uma população de 820 pessoas do Bacurizinho, 152 foram vacinadas contra a poliomielite, 154 receberam o DPT (vacina contra difteria, tétano e coqueluche) e 145 foram vacinados contra sarampo. Os outros postos provavelmente também desenvolveram programas similares. Em 1975, 26 pessoas receberam injeções de DPT e pólio, mas não existem dados que informem se essas injeções foram aplicadas em pessoas diferentes ou se foram aplicadas doses de reforço nas mesmas pessoas que receberam a primeira dose. Semelhantes programas foram realizados ao longo dessa década e dos anos 1980, quando o sistema de saúde brasileira ainda funcionava no interior do Maranhão através de campanhas nacionais. Hoje em dia só há vacinações nos postos de saúde das cidades, e a FUNAI já não tem a organização necessária para efetuar campanhas em massa, o que poderá resultar numa maior vulnerabilidade de crianças tenetehara em relação a epidemias. Essa questão será tocada na reflexão final feita no Capítulo XIV, sobre a demografia tenetehara.
Em 1975, quase todos os Tenetehara que viajaram para Grajaú, Amarante, Barra do Corda, ou para uma das três aldeias chaves nas quais a equipe médica da FUNAI havia decidido criar clínicas provisórias, foram vacinados contra meningite, como parte de uma campanha nacional. Mesmo assim, não se pode ter muita certeza a respeito do cumprimento desses programas pois a equipe médica não mantinha um arquivo eficiente de fichas individuais que constasse quem fora vacinado ou quem apresentara reação às vacinas.
Assim, as doenças epidêmicas continuaram sendo, e continuam a ser nos dias de hoje, uma constante ameaça para os Tenetehara. Em 1973, quando supostamente os programas de vacinação com DPT já haviam sido iniciados, ocorreu uma epidemia de coqueluche nas aldeias de Bacurizinho e Ipu a qual causou a morte de pelo menos oito pessoas, entre elas dois adultos. Está claro, entretanto, considerando-se a incidência da doença e a taxa de sobrevivência, que os Tenetehara adquiriram um índice considerável de anticorpos contra essas doenças originárias do Velho Mundo. Por outro lado, não tem sido possível averiguar se as defesas naturais adquiridas pelos Tenetehara se comparam em termos favoráveis às adquiridas pela população rural brasileira.
O tratamento de saúde dado pela FUNAI nos últimos anos continua sendo bastante ineficiente. Todo posto indígena tem uma farmácia com estoques de medicamentos industrializados e fornecidos gratuitamente pelo governo brasileiro através de diversos programas. Essa farmácia e um auxiliar de enfermagem devem atender, em média, às necessidades de cinco a seis aldeias, portanto até 500 Tenetehara que estão sob a jurisdição de um determinado posto indígena. Entretanto, freqüentemente falta ao posto indígena o auxiliar de enfermagem, o mais das vezes por incompatibilidade entre ele e os índios, ou por estar em trânsito de transferência de um posto a outro, ou ainda devido à irresponsabilidade pessoal dos que tiram prolongadas férias abandonando o posto para ficar nas cidades. Além disso, esses auxiliares de enfermagem, em sua maioria, e especialmente após alguns meses de convívio com os índios, deixam de visitar as aldeias mais afastadas que estão sob a jurisdição do posto, como deveriam fazer pelo menos uma vez por mês. Assim, quando um Tenetehara adoece, tem que se deslocar ao posto indígena ou enviar um parente a fim de buscar medicação.
O médico, ou médicos, como chegou a haver na década de 1980, e o corpo odontológico da FUNAI devem fazer a ronda das aldeias sob sua responsabilidade quantas vezes forem necessárias durante o ano. No entanto, por razões e desculpas as mais variadas, se deslocam de São Luís, ou de Imperatriz, ou de Barra do Corda, no máximo duas vezes ao ano, visitando os postos indígenas durante algumas poucas horas ou alguns dias, conforme o tamanho da população a ser atendida. Além disso, suas consultas são feitas com o único objetivo de prescrever medicação para tratar um determinado sintoma e não para checar o estado geral de saúde dos pacientes. Em resumo, o conhecimento do estado de saúde de um indivíduo tenetehara é do tipo mais rudimentar, já que o médico faz consultas de alguns minutos, sem conhecimento anterior da saúde desse indivíduo, e apenas para aqueles que já estão visivelmente sofrendo de alguma doença.
O auxiliar de enfermagem diagnostica uma queixa física de um índio às vezes simplesmente pela descrição que lhe é dado por um parente do doente. As descrições mais comuns de doenças levam aos seguintes tipos de diagnósticos: anemia, tosse, dores no fígado, desinteria, febre, reumatismo, inflamação glandular, parasitas intestinais, dores de cabeça, cólica, vômito e conjuntivite. Ele prescreve então o tratamento seguindo as instruções da bula ou do rótulo dos medicamentos de que dispõe na farmácia. Assim, se um paciente queixa-se de fraqueza, o auxiliar de enfermagem fornece vitamina B em solução ou um composto que contenha ferro; para tosse é dado iodeto de potássio em associação com uma dose elevada de um antibiótico; para desinteria, diarréia ou dores de estômago (ou aquilo que se diagnostica como ameba) é dado “Kaopec” ou “Iroxine”. Obviamente, não posso avaliar com conhecimento de causa a eficácia desses tratamentos, mas posso afirmar que a administração de 200.000 unidades de um antibiótico a uma criança de seis meses de idade com resfriado e coriza - como presenciei muitas vezes - dificilmente será benéfica para a saúde da criança.
Com todas as deficiências inerentes a esse sistema de saúde apontadas e criticadas nos últimos trinta anos por indigenistas, antropólogos e médicos, a FUNAI, a partir de 1986, decidiu desmontá-lo e entregar a responsabilidade pela saúde dos índios ao ministério da Saúde. De acordo com essa medida, coube àquele ministério criar um setor para se encarregar de um esquema de atendimento, tanto a nível primário, realizado nas aldeias, como nos níveis seguintes, nos hospitais e clínicas das cidades vizinhas a terras indígenas. Uma espécie de Sistema Único de Saúde para os índios. Nos anos seguintes o que aconteceu foi uma piora nesse atendimento, só não chegando à total falência porque o esquema anterior não chegou a ser totalmente desmontado, restando ainda médicos e enfermeiras nas delegacias e postos indígenas que seguem o velho esquema. Até 1998, o novo sistema planejado não havia sido concluído de todo, e precisou de uma medida administrativa da própria presidência da República para passar efetivamente o cuidado da saúde dos índios para a alquebrada Fundação Nacional de Saúde. Os índios protestaram veementemente, mas em vão. Resta agora tão somente esperar para ver como será instalado pelas aldeias, pelos municípios e estados brasileiros onde há presença de índios, sem que o órgão indigenista tenha uma supervisão para controlar todo esse processo.
Enquanto o Convênio CVRD-FUNAI funcionou em relação à saúde indígena no Maranhão, isto é, até início dos anos 1990, havia recursos para atendimento de emergência, bem como para medicamentos. Nos últimos anos tem reinado um caos em que cada caso de emergência tem que mobilizar os esforços mais estridentes dos Tenetehara para que a delegacia de São Luís ou as ajudâncias de Barra do Corda, e Imperatriz consigam providenciar uma solução adequada. No dia-a-dia, os Tenetehara sobrevivem por força de sua resistência física e por algum socorro que lhes trazem a pajelança e os poucos remédios de ervas e de farmácia que conseguem comprar.
Cabe aqui o relato de um caso ímpar de assistência à saúde dos Tenetehara da terra indígena Bacurizinho. Desde meados da década de 1950, a fonte mais confiável e mais eficaz para prover assistência médica a esses Tenetehara tem sido dado por um médico italiano e pelo hospital que sua família fez construir na cidade de Grajaú. O médico era um frade capuchinho conhecido na região como Frei Alberto, da família Beretta. O hospital foi administrado até a sua morte, em 1988. É uma entidade sem fins lucrativos e como tal atende às necessidades de saúde de quaisquer pessoas (índios ou civilizados, pobres ou ricos) que o procurem. Desde sua fundação que os Tenetehara contam com ele e contavam com o benevolente Frei Alberto para qualquer tipo de tratamento de emergência. De fato, durante as décadas de 1970 e 1980, ao receber um pedido de socorro da parte dos índios do Bacurizinho, Frei Alberto imediatamente providenciava uma ambulância para ir ao posto indígena e trazer o Tenetehara que estivesse necessitando de cuidados médico-hospitalares. Normalmente essas emergências ocorriam para partos difíceis, acidentes com armas de fogo, mordidas de cobras venenosas e outros casos de vida ou morte nos quais o fator tempo seria importante. Na década de 1980, a FUNAI, reforçada pelo Convênio CVRD-FUNAI, assinou convênios com este hospital e com algumas clínicas em Barra do Corda e Santa Inês através dos quais essas unidades de saúde ficavam encarregadas de assistir aos Tenetehara e cobrar da FUNAI as despesas de admissão e tratamento médico. Com a falta de verbas, os convênios foram extintos e tudo voltou ao que era dantes, com as dificuldades de assistência médica de emergência. Entretanto, pode-se dizer, para sorte dos Tenetehara do Bacurizinho. que o hospital do Frei Alberto Beretta jamais recusou a entrada de um Tenetehara para tratamento de saúde.
Na década de 1970, quando ainda tinha disposição física, a assistência médica do Frei Alberto era levada diretamente aos Tenetehara do Bacurizinho. Cada terceiro domingo do mês ele mesmo visitava as aldeias Ipu e Bacurizinho, rezava missa nas duas capelas que mandara erguer nas respectivas aldeias, passava por cada casa e atendia aos doentes que se apresentassem. Distribuía medicamentos de farmácia, geralmente comprimidos para malária, xaropes contra tosse e antibióticos.
Nas desobrigas médicas e religiosas do Frei Alberto os Tenetehara procuravam assistir à missa espontaneamente, com a ajuda de uma freira que acompanhava o frade e que gentilmente os admoestava a freqüentar a igreja e mantê-la limpa. Os Tenetehara se referem a si mesmos como “católicos”. Deve-se lembrar que antes da chegada de Frei Alberto os Tenetehara do Bacurizinho se definiam como “crentes” devido ao fato de ter vivido entre eles o missionário protestante Ernesto Wooten na década de 1930. Nas décadas de 1970 e 1980, outros Tenetehara das aldeias não visitadas pelo Frei Alberto e mesmo os daquelas onde trabalhavam missionários protestantes, eram igualmente bem vindos ao hospital. Apesar do pouco tempo dedicado pelo Frei Alberto aos Tenetehara, estes se sentiam mais seguros como seus pacientes do que como pacientes da equipe médica da FUNAI. Por isso estimavam e respeitavam o frade por sua assistência e boa vontade. Seu sentimento de católico parece advir mais dessa relação do que propriamente de uma convicção étnica ou religiosa.
Entre os índios Tenetehara, assim como entre os brasileiros de quase todas as classes e origens, existe um alto grau de credibilidade na medicina farmacêutica. Na verdade, há uma pressuposição de que antibióticos podem curar tudo e que a sua aplicação por injeção é o meio mais eficiente de levar à cura. Como exemplo, fui uma vez abordado por dois Tenetehara que me pediam que lhes fornecesse injeções de penicilina para sarar machucaduras que haviam sofrido numa queda. Além disso, acreditava-se que quanto mais uma injeção ou tratamento causasse dor, mais eficiente seria. O mal uso, ou melhor, o uso fetichista de medicamentos, associado à abordagem sintomática do tratamento através do qual uma doença particular é tratada como uma unidade isolada, como se não fosse parte de uma síndrome patológica, resultava, como não poderia deixar de ser, em curas parciais e em alguns casos com seqüelas danosas.
Desde o primeiro período que convivi com os Tenetehara, no segundo semestre de 1975, e ao longo das mais de duas décadas, jamais consegui com que a FUNAI fizesse uma avaliação científica das condições gerais de saúde dos Tenetehara, nem tampouco dos resultados dos seus programas de saúde. Por observação e por conversas com diversos médicos que foram passando pela delegacia regional de São Luís, ou que eram contratados pelo Convênio CVRD-FUNAI, é possível fazer algumas afirmações mais ou menos genéricas sobre esses pontos. Primeiro, os Tenetehara, desde a década de 1970, ultrapassaram a condição de ter sua população ameaçada por algum tipo de epidemia que os levasse a uma queda substancial. Quando uma tal epidemia ocorreu, como a de coqueluche, em 1973, no Bacurizinho, eles não foram mais massivamente afetados por ela. Isto se deve em parte à imunidade adquirida e em parte também à assistência médica prestada desde o tempo do SPI. Esta vulnerabilidade relativamente menor (em comparação com outros grupos indígenas) a epidemias é confirmada pelo crescimento populacional dos Tenetehara, que passaram de 3.400 pessoas no início da década de 1950 para 4.900 em 1975, 6.500 em 1985 e 13.500 em 1999.
E
m segundo lugar, em um levantamento estatístico que fiz junto a 66 mulheres tenetehara com idades variando entre 25 e 70 anos, nas aldeias de Ipu e Bacurizinho, em 1975, ficou demonstrado, com certa margem de segurança, que a taxa de sobrevivência dos bebês que essas mulheres deram à luz se alterou positivamente a partir da década de 1960. Na verdade, como a assistência médica prestada pelo SPI, naquela década, era bastante tímida e irregular, provavelmente foram outros fatores que contribuíram para essa melhora na taxa de mortalidade infantil. Em conseqüência, também melhorou o estado geral de saúde dos Tenetehara por idênticos motivos.
É claro que, se as condições de saúde dos Tenetehara continuarem a melhorar, e se no futuro próximo não houver perigo de desmembramento da sociedade tenetehara, esta população crescerá a uma taxa mais alta do que tem ocorrido no passado, a menos que caia alguma tragédia sobre eles ou que venham a ser introduzidos no futuro métodos de controle da natalidade. Todas essas questões serão analisadas em detalhes no Capítulo XIV.
Concluindo, pode-se afirmar que os programas de assistência de saúde realizados ao longo dos últimos 50 anos pelo SPI e pela FUNAI para os Tenetehara, se bem que precários e quase sempre ineficazes, deram algum resultado positivo. Comparando com as ações em relação à demarcação e garantia das terras indígenas, como veremos no próximo capítulo, sua eficácia pode ser considerada bem menor. Esses programas de saúde ajudaram a propulsionar a incipiente tendência de crescimento da população tenetehara, barrando com isso o perigo de perda de força étnica e determinação política sem as quais poderiam sofrer um desequilíbrio social e uma ameaça à sua integridade étnica. Entretanto, de nenhum modo os programas de saúde foram capazes de arrefecer o sofrimento dos Tenetehara que contraem doenças na flor da idade e se prejudicam fisicamente para o resto de suas vidas. Nem se pode dizer que o bem estar dos velhos tenha melhorado com a ajuda de saúde providenciada pela FUNAI.
A educação escolar
Duas outras importantes incumbências que o SPI e a FUNAI se propuseram a realizar como parte de seu papel tutelar dizem respeito à educação a ser dada aos índios e ao desenvolvimento de suas economias. (Nos capítulos XI, XII e XIII, analisaremos a estrutura e a organização econômica tenetehara ao longo dos últimos 400 anos, inclusive no modo como ela se desenvolveu dentro do relacionamento patrão-cliente e através da intervenção dos órgãos indigenistas desde os jesuítas, o império e ao SPI/FUNAI. A idéia de prover certos meios - tecnologia, novas práticas de trabalho, moeda, conhecimento do mercado, etc. - para o crescimento econômico dos índios constitui parte importante da ideologia do órgão indigenista e visa a integração dos mesmos na “comunidade nacional”. Veremos como a intervenção economicista do órgão indigenista em relação aos Tenetehara pode ser considerada bastante ineficiente, mas nem por isso ineficaz, talvez no mesmo grau que a ação de saúde.)
Em relação à educação, pode-se dizer que seu propósito fundamental tem sido igualmente intervencionista e propulsor da integração. Porém, aqui também, a ação educacional suprida pelo SPI e pela FUNAI nunca chegou a atingir o objetivo de alfabetizar todos índios e prepará-los de algum modo para sua integração cultural à sociedade brasileira. Nem por isso deve-se descartar o pouco esforço realizado e seu papel na formação ideológica atual dos Tenetehara.
É interessante notar que o primeiro professor a ser introduzido pelo SPI entre os Tenetehara foi um Tenetehara. Felipe Bone era um jovem adulto, nascido na aldeia da Colônia, cujas primeiras letras havia aprendido no Instituto São José, criado pelos capuchinhos em 1896, em Barra do Corda. Ele deve ter estado entre aqueles meninos índios que foram perquiridos num exame final pelo juiz de direito da cidade, em 1900, e que formavam uma banda de música que dava as boas vindas aos passageiros que chegavam de barco ao porto de Barra do Corda . Como Felipe Bone, devia haver pelo menos uma dezena de jovens Tenetehara que sabiam ler e escrever por volta de 1920. Na verdade, a primeira geração de Tenetehara a ser alfabetizada foi a dos meninos da década de 1870, quando a Colônia Dous Braços, no município de Barra do Corda, estava sob a direção do frei José Maria de Loro. Segundo um seu relatório de 1877, havia cerca de 17 Tenetehara que sabiam ler e escrever .
O SPI contratou Felipe Boni e o levou para a aldeia São Pedro, na beira do rio Mearim, onde intencionava criar uma base de apoio do órgão. A aldeia Colônia, localizada a poucos quilômetros de distância, embora mais antiga, maior e mais prestigiosa, foi preterida para ser a sede da escola indígena. Em 1928, Boni estava dando aulas, casado com uma “cafuza” da região, conforme identifica Fróes Abreu no seu livro já citado, e tinha dois filhos. Ensinava não só as letras e os números, mas também civismo, conforme as instruções positivistas do SPI. Toda dia a bandeira nacional era solenemente hasteada antes das aulas. Passados alguns anos, dos quais não há informações, o resultado é que o professor Bone logrou alfabetizar diversos alunos Tenetehara, inclusive seus próprios filhos, como Antenor, Agenor e Suely. Alguns de seus alunos, como José Galdino, Raimundo Silvino e Domingos Soares, iriam ser contratados pelo órgão indigenista na década de 1950, traçando um caminho que iria se tornar mais que natural na década de 1980.
Em 1943, após a criação do posto indígena Araribóia, na beira do rio Grajaú, para assistir aos Tenetehara e Timbira da região, Bone foi transferido para lá. Uma epidemia de varíola estourou alguns anos depois, ceifando as vidas de cerca de oitenta índios, inclusive a do professor. Sua mulher e filhos ficaram no posto até ser desativado e transferido para a região do rio Zutiua. Alguns de seus filhos mais tarde iriam ser figuras importantes nesse novo posto. Uma de suas filhas, Suely Bone da Silva, se casaria com um filho de um tanoeiro local que iria se empregar no SPI até recentemente.
Em meados da década de 1940, os três postos indígenas que serviam aos Tenetehara, o Araribóia, o Tenente Manuel Rabelo, na aldeia São Pedro, e o Gonçalves Dias, no baixo Pindaré, tinham professor e escola. Charles Wagley e Eduardo Galvão relatam que a professora do posto Gonçalves Dias, Maria Dolores Maia, era uma jovem normalista vinda do estado do Amazonas, interessada nos índios, porém presa às noções de uma alfabetização tradicional e sem criatividade. Os livros eram os mesmos usados na escola primária da época e o método de ensino se resumia a repetir o que a professora recitava em sala de aula. Uma das frases que chamou a atenção daqueles antropólogos pela inutilidade pedagógica era ”A Terra é um planeta do sistema solar” (Wagley e Galvão, 1961: 23).
A professora Maria Dolores iria ser demitida em 1947, segundo ela por perseguição política do inspetor Otto Mohn, que por sua vez afirmou a causa ter sido incompatibilidade com os Tenetehara do posto Tenente Manuel Rabelo. Foi readmitida em 1948 por seu conterrâneo Dr. Sebastião Xerez, sendo transferida para a escola que ficara no antigo posto Araribóia. Porém, lá, além dos constantes surtos de malária, havia apenas doze alunos, e o SPI achou por bem criar uma nova escola para os índios da área do Bacurizinho. A escola foi criada na aldeia Ipu, em 1953, onde a professora Maria Dolores iria lecionar até sua aposentadoria, em 1974. Muitos foram os meninos alfabetizados por essa professora, e vários deles iriam se tornar monitores bilingües na década de 1970. Sua metodologia de ensino conservou os mesmos princípios da década de 1940, o que resultou no fato de só os mais espertos e interessados terem conseguido ir além do estágio de assinar o nome.
Por toda a década de 1950, nos demais postos, a educação escolar oferecida pelo SPI foi extremamente precária. Não havia professores indígenas e os poucos civilizados que tentavam ensinar os índios saíam desapontados ou escorraçados. O SPI se mostrava desinteressado e pouco fez para melhorar essa situação. Mesmo assim, em 1955 havia oito escolas indígenas em funcionamento, cinco das quais para os Tenetehara.
A educação formal iria ganhar um novo ímpeto a partir de 1972, quando a FUNAI decidiu implantar um programa educacional com uma nova metodologia de ensino usando preferencialmente professores indígenas. Conhecido como programa de monitoria bilingüe, foi implantado entre diversos povos indígenas sobre cujas línguas havia uma gramática escrita por um lingüista profissional. No caso dos Tenetehara, essa gramática fora feita pelo missionário-lingüista David Bendor-Samuel, que havia pesquisado e trabalhado como evangelizador entre os Tenetehara do baixo Pindaré. Desta vez, o lingüista e missionário do Summer Institute of Linguistics, Carl Harrison, foi o responsável pela elaboração das primeiras cartilhas da língua tenetehara, e com elas a FUNAI pode treinar os monitores bilingües Tenetehara.
Entre 1972 e 1975, durante três períodos de três meses, cerca de trinta homens e duas mulheres Tenetehara, sendo a maioria de jovens de menos de trinta anos, foram instruídos até o nível do terceiro ano primário e treinados para ensinar aos seus patriciozinhos. A responsável regional por esse projeto foi a professora, e depois funcionária da FUNAI, Deyze Lobão, que haveria de coordenar o programa educacional até sua aposentadoria, em 1994. A partir de março de 1975 o programa foi deslanchado com 21 monitores bilingües localizados nas aldeias da região de Grajaú-Barra do Corda. Nenhum Tenetehara do Pindaré ou do Caru conseguiu completar o curso, o que indica o avanço relativo dos índios da outra região. Os Tenetehara monitores foram contratados na condição de funcionários da FUNAI, tendo os salários fixados na faixa média, em torno de quatro salários mínimos, quantia bastante razoável para a época e para as condições em que exerceriam suas atividades.
Segundo Deyze Lobão, à época a competência educativa dos novos monitores variava muito. Havia daqueles que sabiam bem do assunto e sabiam ensinar a meninos e meninas com menos de doze anos; havia daqueles que sabiam pouco porém gostavam de ensinar; e havia alguns que sabiam muito pouco e portanto não podiam ser bons professores. Porém ela havia tentado aproveitar tantos quanto fosse possível, deixando para fazer uma possível triagem no decorrer dos meses por reclamação dos alunos. Como isso não chegou a ocorrer, e por solidariedade corporativa, os monitores menos preparados foram ficando no quadro, e diversos continuaram até suas aposentadorias.
A distribuição dos primeiros monitores entre as aldeias não se deu em todos os casos por critérios de necessidade ou número de alunos. A aldeia do Bacurizinho, por exemplo, ficou com quatro monitores por mais de três anos, até que dois deles fossem transferidos. Ipu teve dois até 1978, enquanto outras aldeias importantes em população ou localização ficaram sem escola e sem educação formal por muitos anos mais. Por exemplo, nenhuma aldeia da T.I. Pindaré recebeu monitor bilingüe, tendo ao longo dos anos professores brasileiros sem conhecimento da língua tenetehara.
Num rápido balanço do programa de monitoria bilingüe, em mais de vinte e cinco anos de funcionamento, pode-se dizer que ele foi responsável pela alfabetização de uma alta percentagem dos Tenetehara com menos de quarenta anos de idade. É provável que entre 30% e 40% dessa faixa etária estejam alfabetizados, ao menos ao nível de capacidade de ler um trecho simples de jornal e até escrever um bilhete. Isto quer dizer talvez uns 2.500 Tenetehara. Muitos sabem somar, diminuir e até multiplicar e dividir. Um bom número, talvez entre 200 e 300 avançou até o nível do ginásio, freqüentando escolas nas cidades de Grajaú, Amarante, Barra do Corda, Santa Inês e Bom Jardim. Uma dezena tentou o vestibular na universidade federal e dois ou três chegaram a cursar por algum tempo. Ao que parece nenhum chegou a se formar, até agora.
O programa poderia ter sido muito melhor e ter dado resultados mais positivos. Nesses anos todos não se desenvolveu nenhuma metodologia nova, nem os monitores iniciais jamais receberam qualquer treinamento extra ou passaram por algum programa de capacitação. Assim como na década de 1950, as décadas de 1980 e 1990 foram perdidas para a educação indígena entre os Tenetehara. Somente em 1998 é que a FUNAI abriu um novo programa de educação bilingüe e recrutou cerca de 70 jovens Tenetehara para treiná-los para serem monitores bilingües. Da turma original não mais que meia dúzia ainda leciona, embora ao longo dos anos novos monitores tenham sido contratados praticamente sem nenhum treinamento formal, só por haverem sido bons alunos e terem capacidade para ensinar, ou serem filhos de Tenetehara politicamente influentes. Entretanto, na década de 1980, diversos programas de educação indígena foram desenvolvidos entre outros povos indígenas do Brasil, com resultados bastante satisfatórios. Assim, produziu-se uma literatura interessante e informativa sobre educação indígena que poderia servir de base para uma reconsideração sobre a educação a ser ministrada entre os Tenetehara .
A ascensão dos Tenetehara e a crise do paternalismo oficial
Em termos gerais pode-se dizer que por volta de meados da década de 1980 a antiga e bicentenária forma de relacionamento entre civilizados e índios, especialmente os Tenetehara, que chamamos de patronagem social, e a caracterizamos uma vez mais no capítulo anterior, estava vizivelmente em crise. A história desse relacionamento no século XX aponta alguns momentos em que a patronagem social começava a ser desafiada pelos índios, seja quando acusam o inspetor Raimundo Miranda de ladrão, em 1929, seja quando saqueiam o armazém da Ajudância de Barra do Corda, em 1941, seja quando atacam o inspetor Xerez no posto Gonçalves Dias, em 1949, seja quando alguns Tenetehara começam a ser contratados para realizar tarefas não somente braçais, mas também de professor e encarregado do bem-estar de alguns aldeias, ao longo da década de 1950.
A crise da patronagem social foi se intensificando a partir da transição do SPI para a FUNAI já nos primeiros meses após o golpe de 1º de abril de 1964. O intempestivo inspetor José Fernando da Cruz inaugurou um estilo de relacionamento, antes desconhecido dos Tenetehara, caracterizado pelo trato grosseiro e por atitudes autoritárias e militarescas. O coronel Vinícius seguiu seu exemplo em 1973, enquanto o coronel Perfetti, delegado por dois períodos (1970-72; 1977-79), ficou conhecido por freqüentemente boicotar as ações dos Tenetehara para expulsar invasores de suas terras, bem como por ter presenciado sem nada fazer a tortura do Tenetehara Celestino Lopes, ex-servidor do SPI, no quartel militar de Grajaú, para que confessasse sua participação na venda de maconha. Tais modelos inaceitáveis de comportamento, bem como a tensão pela demarcação das terras indígenas, ajudaram a precipitar o surgimento de um novo estilo de liderança tenetehara em que a atitude superior de patronagem ou paternalismo não conseguiu arrefecer.
Vale a pena apresentar aqui o exemplo do surgimento das novas lideranças da Terra Indígena Bacurizinho a partir da década de 1960 para que possamos entender como a patronagem social foi sendo mais duramente desafiada até se estremecer em meados da década de 1980.
Bacurizinho é uma aldeia fundada em 1950 à beira do rio Mearim por um dos irmãos Lopes, Raimundinho. Seu irmão Francisco havia fundado Ipu, três quilômetros mais abaixo, alguns anos antes. Bacurizinho cresceu com a saída de moradores da velha aldeia da Pedra, bem como das aldeias a jusante, como Cocal Grande e Mangueira. Raimundinho Lopes morreu em 1957 e foi substituído por Pedro Marizê, filho do falecido cacique da aldeia da Pedra. Marizê era casado com uma Tenetehara, a qual abandonou para desposar, em meados da década de 1950, Luzia Vianna, irmã de Raimundo Vianna, de quem passara a ser sócio nos negócios de compra e venda de produtos silvestres da T.I. Araribóia, para onde se mudara. No vazio da presença de Marizê começou a se destacar o filho mais novo de Raimundo Lopes, Alderico, que, no final da década de 1950, tinha aprendido a tocar sanfona e formara um grupo com zabumba, pandeiro e triângulo para tocar música sertaneja nas festas que os Tenetehara tanto queriam emular dos sertanejos.
Nascido em 1939, na aldeia da Pedra, Alderico foi alfabetizado pelo pastor protestante Ernest Wotten, quando este se mudara da aldeia da Pedra para Grajaú, onde Alderico passou alguns anos de sua infância, estudando e trabalhando em serviços braçais, tais como de carregador de água. Por volta de 1968, quando a FUNAI veio tomar pé da situação indígena no Grajaú, Alderico foi reconhecido, por sua desenvoltura e boa conversa, cacique oficial do Bacurizinho, passando por cima da ascendência anterior de Pedro Marizê, que na época se encontrava no Araribóia, mas que queria manter seu controle sobre o Bacurizinho. Em 1973 Alderico foi escolhido para fazer o curso de monitor bilingüe, ao término do qual passou a receber um salário razoável a partir de setembro de 1974. Como cacique do Bacurizinho e monitor bilingüe, Alderico teve um papel destacável no processo da demarcação da T.I. Bacurizinho, especialmente por não se deixar corromper pelos interesses de negociação das terras. Com o crescimento político do movimento indígena por todo o Brasil, era apenas uma questão de tempo e oportunidade para que Alderico viesse a ser chefe de posto, como de fato aconteceu. Sua ambição, porém, era mais alta. Em 1985, ele comprou uma casa em Grajaú e mudou-se com a família, sem abrir mão da chefia do posto. Passava uns dias no Bacurizinho e os outros em Grajaú ou em São Luís, sempre fazendo política. Embora não tenha chegado a delegado da 6ª Delegacia Regional, em São Luís, conseguiu fazer seu filho, José Arão, de 1992 a 1996. Sua trajetória abriu espaço para novas e aguerridas lideranças tenetehara.
Entre os jovens líderes tenetehara advindos da luta pela demarcação das terras se destacou com muito vigor, entre 1984 e 1992, o também monitor bilingüe João Cassiano da Silva, mais conhecido pelo apelido herdado do pai, João Madrugada. Nascido em 1949, ainda na aldeia da Pedra, Madrugada vinha de uma família que mantinha relacionamento próximo com os civilizados há duas gerações. Seu pai havia trabalhado no serviço de canoas e um tio era vaqueiro de um fazendeiro local. Seu irmão mais velho, no entanto, era um Tenetehara que queria pouco trato com os karaiw. Como Alderico, Madrugada viveu alguns anos em Grajaú, aos cuidados de um compadre de seu pai, junto com uma irmã, Belita, que iria viver na aldeia Funil e seria uma das cabeças do comércio da madeira na década de 90. Madrugada freqüentou a escola pública de Grajaú e até os 20 anos trabalhou em serviços braçais, tentando disfarçar, como me relatou em 1975, sua condição de índio. Em 1970, resolveu retornar à vida indígena por se sentir discriminado na cidade. Vivendo da roça, casou-se em 1973, e quando surgiu o curso de monitoria bilingüe ele se tornou um dos 21 monitores concursados. Em 1976, após dois anos dando aulas na escola do Bacurizinho, a qual, aliás, tinha mais três monitores bilingües, Madrugada foi transferido para a aldeia Bananal, onde pode exercer o papel aguerrido da nova forma de liderança tenetehara, passando para trás as lideranças tradicionais. Procurando ter uma base na aldeia Bacurizinho, desfez o casamento anterior e casou se com uma filha de Virgolino, o que lhe deu mais força política e mais ousadia pessoal. Jovem, com desbragado talento verbal, conhecedor das mazelas da sociedade regional, cujas injustiças apontava com a veemência do vingador, Madrugada agregava ao seu porte político o status de funcionário público e a renda de monitor bilingüe. Em 1984, no bojo do movimento político tenetehara, fez-se chefe do P.I. Bananal, e daí passou a exercer uma irrefreável pressão sobre todos e quaisquer servidores da FUNAI, em seu área ou em São Luís. Seu discurso ressoava veemente, acusatório, às vezes auto-vitimizado, mas sempre bem articulado, tanto em português como em tenetehara.
Em 1985, com os recursos do Convênio CVRD-FUNAI sendo esbanjados na região do Caru, Madrugada liderou um grupo de aguerridos Tenetehara na tomada da Frente de Atração dos índios Guajá, que constituía um setor conspicuamente bem aquinhoado, sendo chefiada por um sertanista, dois auxiliares de sertanista, cargos bem remunerados, e com uma equipe numerosa de vigilantes, pilotos de barco e trabalhadores braçais. Os Tenetehara pressionaram e exigiram que o delegado da 6ª DR e a própria presidência da FUNAI os fizessem responsáveis pela Frente, e assim se fez. Dos vinte e poucos cargos da Frente e dos postos indígenas Caru e Awá, este último servindo aos Guajá, os Tenetehara tomaram quinze, deixando para os civilizados apenas algumas posições de trabalhador braçal e um auxiliar de sertanista. Madrugada se tornou o chefe do P.I. Caru, a partir de onde centralizou as ações da Frente Guajá e a distribuição de verbas do convênio.
Quatro anos depois, em 1989, Madrugada, já desgastado como chefe do P.I. Caru, com dívidas em diversos lojas de Santa Inês e em Grajaú, voltou à T.I. Bacurizinho e reassumiu seu cargo de chefe do P.I. Bananal. Daí por diante sua presença vai diminuindo e se nivelando à dos demais líderes tenetehara locais. Durante uns anos ele participou da venda de madeira daquela área, a qual logo se esgotou de árvores de lei. Hoje em dia Madrugada continua dono de um discurso bem articulado, mas já sem a legitimidade da causa para fazer sentido político. Destituído da chefia de posto, sua renda caiu para o nível intermediário de monitor bilingüe, sendo complementada com a venda de excedente agrícola que produz em suas roças, na aldeia Bananal.
Outro líder tenetehara que merece especial menção é José Lopes. Nascido na aldeia Ipu, em 1946, filho de Francisco Lopes, o cacique tenetehara que aparece no livro de Fróes Abreu quando ainda vivia na aldeia São Pedro, em 1928, Zé Lopes era considerado pela velha professora Dona Maria Dolores Maia como o melhor aluno tenetehara que já tivera em sua escola. Seu discurso era movido por uma vontade de racionalidade, mas também por paixão e determinação. Trabalhando em roça, pai de extensa família, em 1973 ele entrou no programa de monitoria bilingüe e passou a ensinar no Ipu. Em 1976 foi transferido para a aldeia Lagoa Comprida, numa área ainda não delimitada e reconhecida pela FUNAI, contígua à conflitiva T.I. Guajajara-Canabrava, onde exerceu um papel de liderança tanto no plano do discurso e mediação entre os Tenetehara e a FUNAI quanto nos confrontos com os posseiros do povoado Centro do Meio que não queriam se retirar da área ao redor da aldeia Lagoa Comprida. Por dois anos após a demarcação da T.I. Lagoa Comprida Zé Lopes iria ser chefe de posto substituto, até que os líderes da área acharam por bem tomar o cargo para alguém dentre eles. Assim, ele voltou à sua aldeia, e em pouco tempo, sendo instalado o P.I. Ipu, tornou-se seu chefe inconteste.
Como coadjuvante de Zé Lopes no Ipu destacou-se por alguns anos seu irmão, Chico Lino, um pouco mais jovem, mais estourado, mais destemido ainda, porém com pouca habilidade para exercer funções de liderança. Seu papel era fazer pressão sobre os chefes de posto do Bacurizinho e sobre funcionários da 6ª Delegacia Regional, e de tanto fazê-lo acabou obtendo o cargo de vigia da Casa do índio, em São Luís, entre 1985 e 1988, função que lhe pareceu dar poderes para interferir em todos os assuntos de administração da Casa, da compra de comida à atuação da equipe médica. Após alguns anos, já desgastado e cansado de morar em São Luís, conseguiu com que seu cargo fosse transferido para a T.I. Bacurizinho, fato inédito no órgão indigenista. Em 1990 já não havia jeito de Chico Lino manter um cargo que não existia e foi exonerado. Hoje ele é um amargurado ex-servidor que vive de seu trabalho na roça.
A partir de 1983 os Tenetehara já não conseguiam conter sua impaciência com a 6ª Delegacia da FUNAI por não cumprir aquilo que dela esperavam - uma vez demarcadas as suas terras: bom atendimento de saúde, melhoria nas suas condições econômicas, progresso educacional para os seus filhos. A saída do major Alípio Levay, em junho de 1983, e de Dinarte Medeiros, um ano depois, foram causadas diretamente por um movimento de diversas lideranças tenetehara, vindas das aldeias de Grajaú e Barra do Corda, por maior participação na administração da 6ª Delegacia.
Afinal, em setembro de 1984, os Tenetehara conseguiram nomear um patrício para dirigir a 6ª Delegacia Regional. Era o filho mestiço de Pedro Marizê, natural da aldeia Bacurizinho, cuja mãe era a irmã de Raimundo Vianna. Pedro Marizê Filho havia concluído o curso de administração numa faculdade em Brasília, e se reencontrara com seus patrícios através de seu pai, que mantinha casa na aldeia do Borges, na T.I. Araribóia. Depois de Pedro, que ficou até 1991, o delegado seguinte foi o filho de Alderico Lopes, Arão Lopes, tendo freqüentado a Universidade Federal do Maranhão, porém sem concluir qualquer curso, que ficou no cargo até 1996.
Os líderes que cresceram na década de 1950 e se consolidaram na década de 1970 souberam aproveitar as oportunidades que o SPI e a FUNAI lhes abriram, e foram além do esperado. Seus filhos deram prosseguimento nos estudos, na vivência urbana com os civilizados e no aprendizado dos modos como se pode subir na vida. É possível que ainda surjam lideranças da T.I. Bacurizinho como conseqüência dos investimentos sociais e ideológicos dos anos anteriores. Porém, sob os aspectos econômico e político, a importância da T.I. Bacurizinho caiu do seu auge entre 1975 e 1996. Tudo indica que suas possibilidades de inovação se esgotaram, e que será de outras áreas mais bem posicionadas no panorama político-econômico que surgirão novas lideranças para estabelecer a nova forma de relacionamento interétnico que haverá de prevalecer no Maranhão.
A presença de patrícios seus no período 1984-1995 como administradores em São Luís trouxe aos Tenetehara alguma satisfação cultural, mas diluiu o movimento político e não resolveu a sua insatisfação social e econômica. No início do ano 2000 restava um Tenetehara com funções de administrador em Barra do Corda, José Dilamar Pompeu, cuja capacidade de diálogo e negociação foi fortalecida pelo arrefecimento da gana reivindicativa de que os Tenetehara foram acometidos entre 1983 e 1995. É possível que sua presença torne mais estável e viável a gerência tenetehara sobre as instituições que os servem, e sua influência constitua um legado mais duradouro.
Faz mister compreender, enfim, que os Tenetehara não estão de forma alguma satisfeitos com a FUNAI, pelo que ela tem sido e pelo que é atualmente, mas muito menos com a possibilidade, ventilada na mídia como uma planejada mudança na política indigenista do governo Cardoso, de sua extinção. A presença dos Tenetehara no órgão indigenista demonstra, por um lado, a ambigüidade que o caracteriza na atualidade: fraco, mas indispensável; por outro lado, simboliza o crescimento político dos Tenetehara no panorama indigenista maranhense. Tudo isso é augúrio de um novo tempo, sobre o qual mal conseguimos vislumbrar seus primeiros traços.
quarta-feira, 3 de setembro de 2008
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3 comentários:
Excelente apanhado histórico, mas no relato sobre os vários presidentes da FUNAI, acho que ficou faltando citar o Jurandir Marcos da Fonseca, aquele que foi nomeado após a crise da BR-080 que corta o PQXIN, em que os índios interditaram a balsa exigindo a demarcação da margem direita do rio. Foi aquele presidente que nomeou o Megaron para a direção do parque e o Marcos Terena como Chefe de Gabinete. Isso foi em 1984, o último ano do governo Figueiredo.
Henrique, você tem total razão. Porém o livro já foi publicado e não há como refazê-lo. Só em uma segunda edição, que provavelmente só ocorrerá daqui a uns anos. De qualquer modo, fica registrada sua lembrança que faz muito sentido. De fato, o acontecimento da tomada do PNX pelos índios foi um marco divisório no relacionamento interétnico no país. Marcou a ascensão dos índios na Funai e no imaginário brasileiros. Abraços, Mércio
Caro Mércio, como fazer para adquirir o livro: O ÍNDIO NA HISTÓRIA: A SAGA DO POVO TENETEHARA EM BUSCA DA LIBERDADE.
Estou como Chefe de CTL em Grajaú, trabalho com o Chico Lino e tenho bom contato com José Arão Marize, Alderico Lopes, João Cassimiro da Silva e outros.
RAIMON RAIMERE DOS SANTOS MOTA
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