domingo, 8 de junho de 2008

O Índio na História: Cap7 - A Transição Republicana e a Rebelião do Alto Alegre

Capítulo VII

A Transição Republicana e a Rebelião do Alto Alegre


A incepção da República, a 15 de novembro de 1889, não extinguiu de imediato a política indigenista imperial de colônias e diretorias parciais, mas sua atuação desacelerou rapidamente e, por volta de 1893, já não havia sinais de funcionamento. Ainda assim não surgiu outra legislação para preencher o vazio. A Constituição de 1891, apesar dos esforços da Igreja do Apostolado Positivista Brasileiro , não tratou do assunto índios e nada apresentou para servir de base a uma legislação indigenista. Contudo, estadualizou a questão indígena, por assim dizer, ao alocar na jurisdição dos estados da federação o controle das terras devolutas, isto é, das terras que ainda não tinham donos. Entre elas, naturalmente, estavam as terras dos índios, pouquíssimas das quais haviam sido demarcadas pela política imperial, nenhuma efetivamente no Maranhão .

No plano político nacional, com conseqüências importantes para os índios, o Estado foi declarado laico, separando sua atuação do elo havido pelo padroado com a Igreja Católica. Consolidou-se, com isso, a vulgarização de sentimentos anti-religiosos, ou mais precisamente, anticatólicos, ao mesmo tempo em que lojas maçônicas e centros positivistas se espalhavam no meio dos segmentos educados do país, mesmo em lugares tão remotos como Barra do Corda. Com efeito, já em 1888 um grupo local formado por um juiz municipal, Dr. Isaac Martins, um promotor de justiça, Dr. Frederico Figueira, um comerciante, Antonio da Rocha Lima, e um jovem promotor que havia sido enviado pelo presidente da província para se inteirar das perturbações da ordem na região, o Dr. Dunshee de Abranches (que mais tarde seria redator do “Jornal do Brasil”, no Rio de Janeiro), fundou o jornal quinzenal “O Norte”, o qual iria durar até 1940, com influência sobre uma vasta área do centro-sul maranhense .

Assim, passados os primeiros anos de rescaldo da era imperial, os índios iriam ficar à mercê dos fazendeiros e comerciantes com quem mantinham relações de patrão-freguês, ou nas graças de ordens missionárias que tentavam retomar algum poder sobre eles, como os dominicanos no rio Araguaia, os salesianos no Mato Grosso e no rio Negro e os capuchinhos da Província da Lombardia, Itália, no Maranhão. Ainda assim, no Maranhão, o hábito de apelar para autoridades em São Luís continuou, como atestam as patentes de tenente-coronel, major, sargento e alferes que os governadores mandavam passar para índios Tenetehara e Canela que os visitavam .

A influência, ainda que tênue, do positivismo se fará presente nas primeiras décadas republicanas no Maranhão através do domínio do chefe político inconteste do período que vai de 1895 a 1911, Benedito Leite, bem como de seu genro e sucessor, Urbano Santos, que vai até o mandato do governador Godofredo Viana (1923-1927) (Reis 1992). Todos os governadores do estado são eleitos sob a influência dessa dupla. Embora o interesse sobre índios fosse de pouca monta entre os republicanos maranhenses, aos 11 de abril de 1901, o governador João Gualberto Torreão da Costa promulgou a Lei nº 289 que, no espírito do que estava sendo realizado no Rio Grande do Sul desde a gestão do caudilho positivista Júlio de Castilho, intervém na questão dos índios do estado. Reza o único artigo dessa lei:

“É o governo autorizado a organizar o serviço de civilização de índios podendo aplicar como julgar mais conveniente a verba que para isso foi destinada na lei do orçamento”.

Por coincidência, a promulgação dessa lei se deu no auge da Rebelião do Alto Alegre, que veremos mais adiante, certamente como resposta ao alvoroço que havia se estabelecido no interior do estado; pânico, mais propriamente, nos municípios de Barra do Corda e Grajaú. Contudo, não há indicações sobre a aplicação dessa lei nos anos seguintes, o que a tornou letra morta.

No plano federal, só em 1910, sob pressão de grupos positivistas civis e militares e como resposta às acusações internacionais de que o governo fazia vistas grossos aos massacres perpetrados a índios chamados Coroados (os atuais Kaingang e Xokleng), no Paraná e Santa Catarina, bem como para submeter diversos grupos Kaingang que atacavam trabalhadores da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, que atravessava seu território em direção a Campo Grande, é que o governo republicano irá finalmente instituir sua política indigenista ao criar o Serviço de Proteção aos índios (SPI), como veremos no capítulo seguinte.

Os Tenetehara no limiar do século XX

Em 1890, numa espécie de balanço final da política indigenista imperial, levada a cabo pela diretoria geral dos índios, seu penúltimo diretor, Hermenegildo Jansen Ferreira, escreveu um relatório ao governador do estado do Maranhão no qual apresentava os números mais atualizados de todos os diretórios parciais e das colônias indígenas em funcionamento, tecendo uma decisiva argumentação sobre as medidas que deveriam ser aplicadas sobre as populações autóctones daquele estado . Dirigindo-se ao “cidadão governador” o diretor Jansen Ferreira defendia a tese de que uma política indigenista só podia ser eficaz através de uma estratégia de concentração das populações indígenas em umas poucas colônias, estas bem edificadas e financiadas com condições para alcançar o objetivo final de se tornarem vilas e cidades. O diretor reclamava que uma população dispersa era impossível de ser cuidada e que os experimentos anteriores haviam fracassado de todo. Essa proposta, como reconhecia o diretor, não era sua nem original, pois havia sido veiculada em anos anteriores por seu antecessor, José Carlos Pereira de Castro , que estivera à frente da diretoria geral nos últimos anos do Império, o que indica que era uma idéia que vinha se firmando na administração da política indigenista do Maranhão . É interessante notar que aqui já não se mencionava o papel de missionários na ação indigenista, anunciando os novos tempos laicos que viriam. Fica claro, igualmente, que o modelo de colônia que se pensava e que havia sido implantado durante uns bons 50 anos, se remetia aos propósitos dos antigos aldeamentos, tanto os jesuíticos quanto os pombalinos, que concentravam índios de etnias diversas com o propósito de transformá-los em vassalos ou cidadãos. O atavismo de tal idéia não deixa de indicar uma funcionalidade contínua para aqueles que administravam o relacionamento de índios com a sociedade brasileira.

No referido relatório, Jansen Ferreira arrolava e descrevia a situação das vigentes seis colônias indígenas e das 25 diretorias parciais. Alguns dos dados populacionais, como de costume, foram repetidos de relatórios anteriores, muitos retirados do relatório do presidente da província de 1881, o que demonstra o pouco caso que se fazia nos últimos anos do Império, e a decrescente preocupação com os índios, sobretudo diante dos problemas de construção de uma nova ordem política. Eis um resumo das colônias e diretorias que haviam sido estabelecidas para os índios Tenetehara.

1. Colônia Januária. Criada em 1854, na boca do rio Caru, havia então apenas 24 índios nela residentes, segundo o relatório, “mais pelo amor que vota o respectivo chefe ao lugar do que por obediência às leis da colônia”. Claramente amor pouco correspondido... Essa colônia já havia tido uma população maior, em anos anteriores, cerca de 91 pessoas em 1881, 135 em 1873, pois estava localizada em pleno território tenetehara. Além dos Tenetehara que moravam ao longo do rio Caru, a colônia Januária tentara desde a década de 1850 atrair um grupo de Timbira que tinha suas aldeias entre o rio Grajaú e o Pindaré, e que causava perturbações aos povoados e aos regatões que comercializavam ao longo do último rio. Em 26 de novembro de 1890, o novo diretor geral dos índios, Cândido César da Silva, iria comunicar ao vice-governador do estado que uma horda de Timbira estava atacando os comboios de gado que desciam pela estrada do sertão, ao longo do rio Zutiua, e tinha até atacado uma aldeia tenetehara e alguns regatões. Segundo esse ofício, dois índios da ex-Colônia Januária e um civilizado haviam sido mortos recentemente a flechadas.

As tantas aldeias tenetehara que podiam estar sob a jurisdição da Colônia Januária somavam cerca de 1.260 pessoas, porém dela pouco dependiam. Na verdade, o relacionamento mais estreito dessas aldeias era com os brasileiros que, nos últimos dez a quinze anos, tinham fluído em substancial migração para as ribeiras do rio Caru. Nas matas desse afluente do rio Pindaré, como do próprio Pindaré àquela altura, havia uma razoável quantidade de copaibeiras e alguma seringueira. Os imigrantes constituíam número suficiente para criar seu próprio povoado, Santa Cruz (Amaral 1896: 21), de onde transacionavam econômica e socialmente com os Tenetehara. Muito do mestiçamento tenetehara do vale do Pindaré vem daqueles tempos. Santa Cruz iria durar até a segunda década do século XX, minguando juntamente com a queda do preço da borracha e a diminuição da demanda por “óleo de copaíba, cravo, almécega e goma de maçaranduba”. Também contribuíra para essa retração e saída de civilizados da região a debâcle econômica da vila de Engenho Central, mais tarde, Pindaré-mirim, a qual, 150 quilômetros rio abaixo, comandava as atividades do vale do Pindaré, tendo substituído nesse papel a vila de Monção desde 1883.

Vale relembrar aqui que a vila de Engenho Central se fundara sobre as ruínas da primeira colônia criada para os Tenetehara, em 1840, a Colônia São Pedro do Pindaré. Apesar de ser considerada durante todo o seu tempo de existência como estando “em decadência” , na verdade, a Colônia São Pedro preenchera as finalidades ulteriores a que o modelo e o sentido de colônia indígena se prestavam: isto é, sua dissolução, pela extinção de um povo indígena, pela morte dos índios, pela absorção de sua população na população cabocla, pela entrada de migrantes brasileiros, e, enfim, por sua transformação em vila. A vila se robustecera com a entrada de novos imigrantes e com o estabelecimento de um engenho central de produção de açúcar, o qual fora planejado para processar uma grande quantidade de cana-de-açúcar que se esperava fosse cultivada na região do baixo Pindaré. A novíssima vila de Engenho Central exibia luz elétrica em 1896, bem como uma linha ferroviária com 10 quilômetros de extensão construída para conectá-la a um porto de escoamento na baía de São Marcos. O portentoso investimento iria fracassar de todo, e com isso cairiam todas as expectativas de desenvolvimento do vale do Pindaré. A Colônia São Pedro do Pindaré, não restam dúvidas, vinha diminuindo em população tenetehara desde a década de 1860, mas não estava de toda dissolvida por ocasião da sua transformação em vila. O ato de sua extinção, que se deu em novembro de 1881, foi arbitrado para favorecer aos acionistas do engenho central a ser lá implantando. Com efeito o então Diretor Geral dos Índios iria ser um dos sócios desse empreendimento (Caldeira 1988: 36).

É curioso notar que o nome Januária iria persistir mesmo depois do fim da colônia, pois foi aplicado nas duas aldeias que mais tarde serviram de bases dos postos indígenas criados pelo Serviço de Proteção aos Índios, como veremos no próximo capítulo.

2. Colônia Aratauhy Grande. Essa colônia foi criada em 1873 em uma aldeia da diretoria parcial “Foz do Grajaú”, na beira do baixo rio Grajaú, a umas duas ou três léguas de sua confluência com o rio Mearim. Abaixo dessa confluência se situava a vila do Mearim, hoje cidade de Vitória do Mearim. Seu estabelecimento visava atender mais de perto as aldeias tenetehara da região, dar mais segurança a uma zona estratégica de passagem para o Grajaú e Mearim, e certamente para assegurar mão-de-obra para os barcos que começavam a subir o rio com manufaturados para vender na vila da Chapada, hoje cidade do Grajaú, localizada a uns bons 400 quilômetros rio acima. A colônia somava em torno de 172 pessoas, mas atendia a outras três aldeias situadas mais acima no rio Grajaú, que seriam as aldeias da abandonada Colônia Palmeira Torta, com cerca de 163 índios.

Como vimos no capítulo anterior, não foi tranqüila a administração da Colônia Aratauhy Grande. Em fins de 1887, conforme correspondência trocada entre seu diretor e o diretor geral dos índios, e deste com o presidente da província, um grupo de 70 Tenetehara havia se mudado de lá para uma área no baixo rio Mearim, fugindo do assacamento que sofreram de um Joaquim Symphrônio de Oliveira que, apoiado por capangas, havia invadido as terras da colônia para retirar madeira, e, ao fazer isso, deixara seus bois invadirem as roças dos Tenetehara. O diretor geral apoiara seu diretor parcial, enviando ofício de reclamação ao Sr. Symphrônio, mas este parece que pouco se incomodara, pois continuara a invadir a colônia para retirar madeira e até insuflara os índios contra seu diretor. Alguns meses depois, fica-se sabendo que os Tenetehara fugidos começavam a ser persuadidos a retornar às suas terras . Aratauhy Grande iria se extinguir nos anos seguintes e as áreas das aldeias tenetehara seriam aos poucos tomadas pela entrada de imigrantes pobres e fazendeiros. Sem condições autônomas, provavelmente os índios foram coagidos mais facilmente ao trabalho de remeiro e vareiro das lanchas que passaram a subir e descer o rio Grajaú no final do século.

Aldeias extintas, terras tomadas, e vice-versa. Politicamente essa região era dominada, e continuou a sê-lo pelos decênios seguintes, pela família Bogea, cujo antecessor principal havia sido o primeiro diretor da Colônia Aratauhy Grande, e certamente não deixara de tomar proveito das oportunidades oferecidas. Porém uma ou duas aldeias tenetehara, localizadas numa área que ficou conhecida como Mata dos Bois, sobreviveram por muitos anos mais. Por motivos desconhecidos essas aldeias nunca receberam qualquer apoio do SPI e assim foram perdendo população e controle de suas terras, acabando de vez no fim da década de 1960, quando seus últimos habitantes, já mestiçados, mas ainda a contragosto , se transferiram para o alto Pindaré e repovoaram aquela região que havia ficado praticamente desabitada de Tenetehara.

3. Colônia Palmeira Torta. Criada em 1870, na beira do rio Grajaú, entre a vila da Chapada e a vila do Mearim, ela foi instalada para apaziguar os conflitos que haviam espocado alguns anos antes entre índios Tenetehara, índios Timbira e novos migrantes brasileiros que estavam se mudando para aquelas paragens, vindos do rio Mearim. Sua localização era longínqua para ser controlada de uma das vilas mencionadas, o que a levou a ficar nas mãos de moradores locais que se aproveitavam da mão-de-obra indígena para auferir rendimentos na troca de bens manufaturados por produtos da floresta. Nada muito diferente do que acontecia nas outras colônias e diretorias parciais, porém mais conflitual pela intensidade da disputa dos interessados e pela falta de hegemonia da vida citadina. Naquela altura o rio Grajaú faz parte das franjas da floresta amazônica, sendo rico em todos os produtos comerciáveis da época. Toda essa região entre o rio Zutiua, a oeste, e o rio Mearim, a leste, era até a década de 1840, território tradicional de povos Timbira - os Krepumkateyé e Kukuokamekra, bem como, mais ao norte, aqueles chamados na época Crenzés e Pobzés. Esses últimos foram aldeados numa colônia no rio Mearim, a Colônia Leopoldina, não muito distante do lugar que mais tarde iria ser o berço da cidade de Bacabal, atualmente uma das mais pujantes do Maranhão.

Para penetrarem e se estabelecerem em território timbira, os Tenetehara haviam desenvolvido um forte espírito guerreiro e identidade étnica, o qual, no entanto, não foi forte o suficiente para agüentar as pressões dos novos migrantes. Com efeito, a Colônia Palmeira Torta não floresceu de nenhum modo, tendo sua sede sido transferida para uma aldeia mais a jusante em setembro de 1877 para ser melhor controlado pela Colônia Aratauhy Grande. O relatório de Jansen Pereira dá como tendo uma população de 163 Tenetehara. As demais duas ou três aldeias tenetehara que dependiam dela foram se acabando. Seus habitantes sobreviventes ou se mudaram para jusante, na área de Mata dos Bois, ou a montante, mais próximo das aldeias sob a jurisdição da 16ª DP da vila da Chapada. Foi nessa última área que, em 1940, o SPI veio a fundar o posto indígena Araribóia para assistir aos poucos Tenetehara da região e aos quase 200 Kukuokamekra e Krepumkateyé que também moravam por lá, e, já sem forças para se manter autônomos, aceitaram as condições de viverem junto aos Tenetehara e em posição de subordinação política.

4. Colônia Dous Braços. Criada em outubro de 1874, na beira do alto rio Mearim, a pouco mais de três léguas a montante de Barra do Corda, esta provou ter sido talvez a mais importante colônia de índios Tenetehara e a que teve influência mais permanente na vida desses índios e no seu relacionamento com a sociedade regional. Seu primeiro diretor de fato foi o frade capuchinho italiano José Maria de Loro, que antes estivera na Colônia Januária por um ano. Tendo chegado ao Brasil em 1864, Frei Loro trabalhara antes em Pernambuco. Ele iria ficar até 1882, tendo se ausentado entre 1878 e 1879, substituído pelo Frei Antonino de Reschia. Os diretores seguintes, até 1893, seriam gente de Barra do Corda interessados na mão-de-obra indígena, como Antônio Ferreira do Nascimento e Caetano Martins Jorge .

A Colônia se formou da agregação de quatro ou cinco aldeias tenetehara, com uma população na faixa de 520 pessoas. Eram os principais capitães os índios Benedito, José Curador, Antônio Cunha Lobo, por alcunha Capitãozinho, e José Pinto, da aldeia da Lagoa do Boi. A nova colônia foi construída com mão-de-obra tenetehara em pouco tempo, com casa residencial do diretor, capela, casa de farinha, engenho de cana e armazéns de algodão e gêneros. A palha para cobrir as mais de 70 casas dos índios foi trazida da beira do rio Corda, num só dia, arrastada pelos índios .

Em setembro de 1876 deu-se um episódio que repercutiu negativamente contra o diretor. Na formação da Colônia, os líderes Tenetehara da aldeia Coroatá decidiram não participar e permanecer independentes. Mais tarde, o índio Capitãozinho pediu licença ao Frei Loro para colher algodão na aldeia Lagoa do Boi, e aproveitou para fugir da colônia com um grupo de familiares, ao todo cerca de 141 pessoas. Frei Loro mandou uma comitiva de 20 índios buscá-los. Num encontro entre a comitiva e um grupo dos índios “evadidos”, como assim os representava o Frei Loro, um genro de Capitãozinho, José Paulino, foi ferido a bala por um índio da comitiva, Joaquim Bento. Com isso, os outros o atacaram e o mataram. Ao saberem do incidente, as autoridades de Barra do Corda mandaram prender os supostos assassinos. A princípio Frei Loro evitou que os índios denunciados fossem levados a Barra do Corda, mas em fevereiro de 1877, lá estavam quatro deles na cadeia. Porém conseguiram fugir, ou foram soltos, e, ameaçados de serem enviados a São Luís para sentar praça na Armada, voltaram à sua aldeia. Logo depois foi enviada uma patrulha de soldados para prendê-los, mas não conseguiram, e o Frei Loro ganhou a culpa por isso. Em março, cinco dos acusados se apresentaram em Barra do Corda, foram julgados e sentenciados, recebendo como castigo a convocação para servirem na Armada. Segundo o relatório do Frei Antonino de Reschia, mais uma vez eles foram soltos e retornaram à sua aldeia. Os três principais se chamavam Manoel Pereira, José Ribeiro e Polycarpo.

Ainda hoje alguns velhos Tenetehara descendentes dos habitantes da Colônia Dous Braços contam, ao modo como ouviram falar de seus pais, como se deu a formação daquela colônia, como funcionava, os campos de algodão, o engenho de fazer rapadura, como o Frei José Maria de Loro guardava ouro num pote enterrado na capela, e como foi esse caso entre os índios. Os detalhes são pitorescos, mas o teor dos relatos pode ser comprovado pelos documentos da época, explicados pelo Frei Loro e por seu substituto temporário, Frei Antonino de Reschia .

Comparando três “mapas populacionais” elaborados por Frei José Maria de Loro, os quais dão as populações da Colônia Dous Braços em 1874, 1878 e 1880, incluindo os que entraram e os que saíram, os nascidos e os mortos, dá para verificar que essa colônia teve uma dinâmica bastante movimentada nesse período. De uma primeira população de 192 pessoas, em 1874, teriam sido incorporados 420 até 1878 e mais 124 até 1880. Teriam saído ou “evadido” 144, até 1878 e mais 154, dois anos depois. No período de seis anos teriam nascido 161 crianças e falecido 146, entre crianças e adultos, o que significava um pequeno crescimento. Ao todo, incluindo aqueles que viviam fora da Colônia Dous Braços, havia 751 Tenetehara na órbita desse estabelecimento. No seu último documento, de julho de 1882, Frei José Maria de Loro, ao fazer sua defesa contra as acusações de um barracordense, diz que os índios viviam bem, “robustos e nutridos”, embora de vez em quando esmolassem na cidade e fossem ludibriados em suas negociações, a ponto de receberem “um papel tirado de uma peça de chita” como se fosse uma nota de dinheiro. Frei Loro insiste em dizer que não proibia o contato e o relacionamento econômico dos Tenetehara com os barracordenses, mas procurava defendê-los desses tipos de abusos, seguindo o regulamento das colônias, de 1854. Tal era uma das acusações de Izaac Martins, o aritculista anticlerical que mais tarde iria ser um dos co-fundadores do jornal local “O Norte”. Esse tipo de acusação, que ressoa às acusações dos colonos maranhenses contra os jesuítas, ainda no século XVIII, se repetirá nos decênios seguintes, toda vez que a elite local sentir que algum dirigente do SPI ou da FUNAI agir de um modo indesejável aos seus interesses .

Em 1887, segundo o relatório do barracordense Caetano Martins Jorge, a Colônia Dous Braços continuava com uma população em torno de 520 habitantes, em oito aldeamentos, sendo três considerados ainda “selvagens”, o que só pode significar que estava fora da órbita da colônia. Certamente que ela não funcionava mais com o espírito anterior de manter os índios afastados do convívio permanente com os locais .

Junto com as aldeias que constituíam a diretoria parcial do Bananal, situada mais acima no riacho Enjeitado, afluente do Mearim, as quais somavam à época 496 pessoas, a população tenetehara que vivia em torno do município de Barra do Corda chegava, portanto, a um conjunto de cerca de 1.000 pessoas.

A aldeia que servia de sede à Colônia Dous Braços, tomou o nome de aldeia Colônia (“Nakoroy” em língua tenetehara), pelos anos seguintes e até o presente, numa prova da estabilidade de assentamento e exploração sustentada de uma mesma área por mais de um século e meio. Na verdade, o mesmo se pode dizer da aldeia Bananal, localizada a uns quarenta quilômetros a montante, e de outras aldeias daquela região, mas que tomaram diferentes nomes ao longo dos anos. Diversos líderes Tenetehara que fizeram parte da rebelião contra a Missão Capuchinha do Alto Alegre, episódio que será contado mais adiante, partiram da aldeia Colônia. O primeiro professor tenetehara bilingüe, reconhecido pelo SPI, Felipe Boni, lá nasceu e ensinou por muitos anos na aldeia vizinha a esta, São Pedro. A estabilidade e força política dessas duas aldeias, nas décadas de 1920, foram o principal motivo de consideração das autoridades locais na delimitação da primeira reserva de terras para os índios Tenetehara. Portanto, não se pode desconsiderar que em alguns momentos o esforço de colonização por parte das autoridades imperiais provincianas tenha sido de todo inútil para os índios Tenetehara, mesmo que consideremos apenas pelas conseqüências reativas a esse esforço. Melhor ainda, a Colônia nunca se dissolveu, mas permaneceu um dos principais esteios da identidade política dos Tenetehara da região.

Além dessas quatro colônias de índios Tenetehara, houve ainda a importante, aparentemente produtiva, porém malfadada Colônia Leopoldina, para os índios Crenzés e Pobzés, conforme foi assinalado logo acima. Além dessas, consta em alguns relatórios de diretores gerais dos índios, desde 1884, a criação de uma nova colônia, que deveria ter o nome Nova Olinda, a qual, porém, nunca foi instalada. É possível que ela tenha sido destinada para algumas aldeias tenetehara localizadas no rio Mearim, a jusante de Barra do Corda, numa região que foi tomada por migrantes nordestinos, onde hoje está a cidade de Pedreiras .

Paralelo às colônias, funcionava o sistema de diretorias parciais, com menos verbas do governo, mas de todo modo agindo sobre uma quantidade bem maior de índios e servindo de suporte para a ação de patronagem própria das relações econômicas da época. Eis uma breve descrição das diretorias parciais (DP) que funcionaram para os Tenetehara. Comecemos de oeste para sudeste, a partir do rio Gurupi.

5. 18ª diretoria parcial, ou DP do Gurupi. O rio Gurupi corre cerca de 1.000 quilômetros de sul a norte, servindo de fronteira entre os estados do Maranhão e Pará. Era então habitado por cerca de 1.750 índios Tenetehara, lá chamados de Tembé, ou ainda Timbé, mais uns 140 Timbira, 100 Amanajés e 80 Peocas , todos aldeados sob o controle da diretoria parcial. Em 1888, percorrera toda a sua extensão, sob encomenda de uma companhia de mineração inglesa, um Sr. José Maria Bernes, “incansável explorador de nossas florestas”, no dizer do relatório do diretor geral dos índios, que fizera o recenseamento ora apresentado. Seu relatório propunha o desmembramento dessa diretoria em duas, sendo que a segunda, numerada como a 25ª, receberia o nome de “José Bento de Araújo” (em homenagem ao recém-falecido presidente da província) e ficaria encarregada dos índios a montante do igarapé Gurupi-mirim. No entanto, nenhuma providência efetiva, além de constar em papel, parece ter sido realizada sobre essa recomendação. Além da população indígena recenseada, Bernes calculava que devia haver ainda cerca de 600 Urubu(-Ka’apor), 200 Guajá e 600 Timbira, todos “errantes”, isto é, sem depender da diretoria parcial. Portanto, haveria uma população indígena total de 3.470. A população Urubu-Ka´apor certamente estava subestimada em pelo menos dois terços , porém o número de Tenetehara representava uma queda avassaladora desde a estimativa que o engenheiro Gustavo Dodt fizera em 1872 , quando então deveria haver cerca de 7.500 Tenetehara para toda a região entre os rios Pindaré e Capim, dos quais uns 4.000 teriam suas aldeias ao longo do rio Gurupi. Se ambas as estimativas estiverem corretas, isto indica que o Gurupi estava sofrendo, e continuaria a sofrer nos anos seguintes, um verdadeiro colapso demográfico de sua população indígena, devido à intensidade do relacionamento de regatões e garimpeiros de ouro com os índios, tanto Tembé quanto Timbira, que se envolveram na economia de troca regional. Conflitos entre regatões e índios aconteceram continuamente desde a década de 1860, conforme relatado por Dodt, e iriam continuar nos anos seguintes, até que os Urubu-Ka’apor, no limiar do novo século, passaram a absorver todas as atenções oficiais e da população local pelo medo que provocavam com suas incursões e ataques a aldeias e povoados e aos viajantes de canoa. A ininterrupta e drástica queda da população tenetehara a levaria a 1.090, em 1920, a cerca de 300, em 1942, a apenas 70, em 1950, e por volta de 100 nas décadas de 70 e 80 . Uma parte dessa queda se deveu à incorporação de famílias e indivíduos tenetehara à população regional, conforme pode ser discernido no primeiro relatório da inspetoria regional do Pará e nas informações do relatório de Jorge Hurley ; uma parte menor se transferiu para as matas dos rios Piriá, Uruaim, Capim e Guamá, no Pará. Porém, esses últimos tampouco haveriam de se dar bem nas novas paragens, pois sua população, sendo pequena na década de 1920, com cerca de 130 pessoas, permaneceu pequena até recentemente. Em 1981, os Tembé do rio Guamá somavam cerca de 268 pessoas, incluindo 153 classificados pela FUNAI como descendentes de índios e 82 como não índios que viviam naquela comunidade . Hoje, a população Tembé da T.I. Alto Guamá é dada pela FUNAI como sendo de umas 800 pessoas, no que deve incluir a incorporação de mestiços e até lavradores brasileiros casados com índias ou mestiças Tembé. Certamente esta é uma estratégia de sobrevivência adotada pela cultura Tembé-Tenetehara para somar força e enfrentar a avassaladora invasão de suas terras e a pressão desses pobres invasores, de fazendeiros ambiciosos e de políticos regionais que cobiçam a dissolução dessa terra indígena.

6. 5ª DP Cabeça Branca. Localizada no rio Turiaçu, a seis léguas, ou a dez léguas, conforme outra informação, a montante da vila de Santa Helena, essa diretoria era composta de 300 índios Tenetehara, chamados Guajajara e não Tembé, em um número inespecificado de aldeias. Teria sido criada em 1871. A existência dessa diretoria de certa forma surpreende pois o baixo rio Turiaçu era habitado por índios Timbira no início do século, os quais ainda viviam nas vizinhanças até aquela data. É possível que esses Tenetehara fossem migrantes tardios em direção ao rio Gurupi e por lá haviam demorado numa área por onde passavam migrantes que se dirigiam às minas de ouro dos rios Maracassumé e Paruá. Esse aglomerado de Tenetehara iria desaparecer de todo, sem deixar vestígios de espécie alguma.

7. 7ª DP Camacaoca. Esta era a primeira diretoria parcial, entre as cinco que compreendia todo o curso do rio Pindaré a partir de alguns quilômetros da vila de Monção. Camacaoca fora, por volta de 1840, a última fazenda de civilizados no rio Pindaré. Ela se localizava um pouco acima, na margem oposta, onde fora situada a Colônia São Pedro. Em 1854 ainda significava algum coisa na região, tanto que seu nome foi usado pelo diretor Geral dos Índios Barreto Júnior para representar essa região até a embocadura do rio Caru. Em tese esta diretoria parcial supervisionava as aldeias localizadas à margem esquerda do rio Pindaré, até a embocadura com o rio Caru. Devido à pouca informação que existe sobre ela ao longo dos anos e à constante falta de diretores, é provável que não fosse operante. Sua população devia ser a mesma da diretoria seguinte, Ilhinha, com ela confundindo-se.

8. 20ª DP Ilhinha. Fundada em 1873, essa diretoria compreendia a porção de terras à margem esquerda do rio Pindaré até o rio Caru. Sua população é dada como de 660 Tenetehara (276 homens e 384 mulheres). Nos anos seguintes esse número vai cair bastante, pois ao seu lado iria se instalar uma colônia de imigrantes nordestinos, que ficou conhecida como Colônia Pimentel. Além da aldeia Ilhinha, a aldeia Lagoa Comprida, ou Tarupau, localizada na beira da lagoa do mesmo nome, que desemboca do rio Zutiua no rio Pindaré, e outras mais iriam sobreviver até o fim da década de 1940 (Wagley e Galvão 1961). No decorrer das primeiras décadas do século XX, algumas aldeias desta diretoria iriam se mudar mais para dentro da mata, assentando na beira da Estrada do Sertão, já aberta desde a década de 1880, a qual iria se consolidar como via de acesso terrestre do sul maranhense até Engenho Central, até a década de 1950. Com a entrada intensa de imigrantes que povoaram essa região, a partir desta última década, as terras ocupadas pelos índios foram sendo tomadas, muitos Tenetehara morreram, alguns passaram a viver pobremente entre essa gente lavradora, e o restante se mudou para a T.I. Pindaré, sob a proteção do posto indígena Gonçalves Dias, depois P.I. Pindaré.

9. 11ª DP Caru. Essa diretoria margeava o rio Caru desde sua embocadura no rio Pindaré, compreendendo também o rio Joaquim Gomes, afluente do rio Gurupi. A Colônia Januária estava localizada em suas terras, bem como cerca de 1.100 Tenetehara (460 homens e 640 mulheres). Do rio Caru podia-se ir para o rio Gurupi, e esta deve ter sido a principal via de migração, ao se atravessar ou contornar a então chamada Serra da Desordem, hoje conhecida como Tiracambu, que serve de divisor de águas para os afluentes dos rios Gurupi, Caru e, mais ao norte, o Turiaçu. Nessa ocasião e até as primeiras décadas do século XX, os Tenetehara davam-se ao trabalho de atravessar uns 40 a 50 quilômetros de território carregando canastras de óleo de copaíba e borracha para trocar com os regatões que freqüentavam o rio Gurupi. O velho Tenetehara Manuel Viana, que aos 40 e poucos anos havia sido o principal informante de Wagley e Galvão (1941-45), e com quem, em 1975 e nos anos 80, também tive o privilégio de conhecer e conversar, contava dessas viagens ao Gurupi, das transações que mantinham com regatões que subiam o rio Caru, e ainda das lutas que travavam com os índios Guajá que ganhavam o rio Pindaré, vindos do Pará, através do rio Caru. Contava também que, pela década de 1920, os Tenetehara que viviam no rio Caru foram se acabando e os sobreviventes migraram para as aldeias do alto Pindaré, para a Sapucaia, ou então rio abaixo para as terras da Ilhinha, a fim de ficarem mais próximos do posto indígena criado pelo SPI. Ele próprio era um exemplo dessa saga.

10. 8ª DP Boa Vista. Criada em 1854, o território dessa diretoria ficava às margens do rio Pindaré, no trecho que sobe após a embocadura do rio Caru até o lugar conhecido como Boa Vista onde havia uma aldeia tenetehara e um povoado de civilizados na década anterior. Devia compreender algumas quatro ou cinco aldeias, cujos vestígios eu mesmo tive oportunidade de ver na década de 1980. Mas sua população não é dada no relatório, o que quer dizer que talvez tenha sido incluída na arrolagem da diretoria parcial seguinte, Sapucaia. Quando Wagley e Galvão subiram o rio Pindaré, em janeiro de 1942, já não havia nenhuma aldeia nesse trecho. No entanto, o nome Boa Vista permaneceu e hoje é dado a um povoado na altura onde realmente deveria haver a dita aldeia tenetehara.

11. 9ª DP Sapucaia. Por diversos motivos, essa diretoria e as aldeias que a compunham era considerada das mais importantes dos Tenetehara. Seu território ia da aldeia Boa Vista rio acima até a embocadura do riacho Buriticupu. Nela habitavam cerca de 1.100 Tenetehara (500 homens e 600 mulheres) e havia uma forte presença de brasileiros, alguns residentes nas aldeias, outros em um povoado homônimo, de onde negociavam diretamente com os índios. Tal situação durou até pelo menos a década de 1920 , quando a concentração de Tenetehara começou a cair até acabar em fins da década de 1940. Wagley e Galvão visitaram essa região em 1942 e analisaram as características sociais e econômicas de suas aldeias. A Sapucaia compreendia o território original tenetehara mais denso, desde o tempo dos jesuítas. Sua importância geopolítica à época se devia ao fato de que de lá se podia comunicar com a região do cerrado maranhense, margeando o riacho Buriticupu. Portanto, provavelmente por lá é que se abriu uma das principais vias de emigração dos Tenetehara rumo ao centro-sul maranhense, a partir de meados do século XIX, migração que foi conquistada na luta contra as diversas etnias Timbira que aí habitavam. Quando os moradores do centro-sul maranhense decidiram abrir uma estrada para transportar seu gado para o baixo Pindaré, no ano de 1863 , escolheram um percurso que acompanhava o riacho Buriticupu e passava pela Sapucaia. Alguns anos depois esse caminho foi abandonado por dificuldades na passagem do riacho Buriticupu, que formava um extenso e perigoso brejo para o gado, e um novo caminho foi aberto margeando o rio Zutiua, mais a leste, o qual desemboca já perto da Colônia Pimentel.

12. 10ª DP Alto Pindaré. O território dessa diretoria segue subindo o rio Pindaré até o lugar conhecido como Pontal, já quase na sua cabeceira, porém antes do cerrado, onde viviam etnias Timbira, hoje os índios Krikati. O relatório de Jansen Ferreira diz que lá havia cerca de 1.000 Tenetehara (400 homens e 600 mulheres), mas é difícil de acreditar que fossem tantos. É mais provável que fossem os mesmos da diretoria anterior, a Sapucaia. Assim, arrolaremos somente 500 como sendo a população mais provável. A conquista do alto Pindaré, antes dos índios Amanajós, se dera em cima do decréscimo populacional desses índios e de sua dispersão após seu contato com missionários jesuítas em 1753. Duas pequenas aldeias amanajós se situavam mais para oeste, num dos afluentes formadores do rio Gurupi, o Cajuapara. É possível que esse trecho do alto Pindaré tenha sido outra via de migração dos Tenetehara para o rio Gurupi. Também daí se podia passar para o riacho Buriticupu na direção contrária.

13. 22ª DP Buriticupu. Essa diretoria é descrita como compreendendo as terras que margeiam o riacho Buriticupu e de seu afluente o riacho Serozal, que desemboca na altura média do Buriticupu. Os índios dessa área deviam ter vindo do Alto Pindaré e da Sapucaia, e ali devem ter se estabelecido provavelmente pela planura relativa do terreno, em comparação com a irregularidade de altitude existente entre essa área e a Sapucaia. Margeando o Serozal, ou o próprio Buriticupu, se podia chegar ao riacho Zutiua e daí até o rio Grajaú e a vila da Chapada. Havia então 652 Tenetehara (302 homens e 350 mulheres), e essa população permaneceu estável ou em crescimento lento pelos anos seguintes. Hoje essas terras, ampliadas até a margem esquerda do riacho Zutiua, compreendem a T.I. Araribóia, com 430.000 hectares, e lá vivem mais de 5.000 Tenetehara.

14. 4ª DP Presídio. Esta diretoria foi formada de aldeias que antes pertenciam à 16ª DP ou da Chapada. Eram aldeias localizadas na beira do rio Zutiua na altura em que está paralelo ao Buriticupu. Em 1872 havia duas principais, Tapera do Tenente e a própria Presídio, com cerca de 650 Tenetehara. Em 1890 eram 524 (243 homens e 281 mulheres), o que indica um decréscimo populacional da ordem de 20%. Essas aldeias tinham contato com aqueles do rio Grajaú, mas a partir da abertura da Estrada do Sertão passando ao longo do rio Zutiua, elas passaram a se relacionar também com as aldeias do baixo Pindaré.

14. 16ª DP Chapada. Esta diretoria se situava no rio Grajaú, a montante da Colônia Palmeira Torta. As aldeias que a compreendiam se localizavam mais próximas à vila da Chapada, algumas na beira do rio, outras mais para dentro, provavelmente na altura onde hoje está a T.I. Urucu-Juruá até as terras dos Timbira Krepumkateye, onde hoje está a T.I. Geralda-Toco Preto. Quando fora fundada, incluía as aldeias que margeavam o alto curso do rio Zutiua, que passaram a ter seu próprio diretor parcial na década de 1880. Em 1890 havia 644 Tenetehara em quatro aldeias nomeadas: Cocal, Jatobá, Tucum e Cocal Grande, que estariam na beira do rio Grajaú.

15. 21ª DP Bananal. Essa diretoria fora criada em 1873, na mesma ocasião da criação da Colônia Dous Braços, que ficava mais abaixo no rio Mearim. Bananal era o nome de uma entre três ou quatro aldeias que se localizavam na área entre o rio Mearim e seu afluente, o riacho Enjeitado. A aldeia Bananal ficava nas margens do riacho, como existe ainda hoje, mais ou menos na mesma localização. Em 1890 havia 496 Tenetehara, número que cairia com a Rebelião do Alto Alegre, da qual diversos de seus líderes participariam. A retomada de seu crescimento se daria a partir da década de 1940 e especialmente nas décadas de 60 e 70. Hoje as terras dessa antiga diretoria compõem a T.I. Bacurizinho, com 82.000 hectares e cerca de 2.200 pessoas.

16. 24ª DP Franco de Sá. Essa diretoria foi criada em 1884 para atender a um grupo de 61 Tenetehara que haviam se retirado da Colônia Palmeira Torta, por desavenças com vizinhos brasileiros, e se deslocado para as margens do baixo rio Mearim, num lugar chamado São Benedicto, no termo da vila de São Luís Gonzaga. Não há notícias de continuidade dessa aldeia nos anos seguintes, o que indica talvez que eles tenham retornado para o rio Grajaú ou para outras paragens com mais presença tenetehara.

Em suma, essas 17 unidades administrativas que cuidavam dos Tenetehara deviam incluir quase toda essa etnia, salvo as aldeias localizadas no lado paraense. Isto daria uma população total de 9.166 Tenetehara, cerca de quase 2.000 a menos do que uma década anterior. Esse decréscimo se deve especialmente aos Tembé do rio Gurupi, mas também aos Guajajara do alto Pindaré e de todo o Grajaú, pois na região do Mearim e do Buriticupu, a população se estabilizara e estava em crescimento vegetativo. O que parou esse crescimento foi a Rebelião do Alto Alegre, em 1901, que trouxe mortes e desorganizou o relacionamento interétnico anterior por um período de até vinte anos.

Nos anos seguintes ao relatório de 1890 do diretor geral dos índios Hermenegildo Jansen Ferreira, e apesar do que ele havia sugerido, o sistema de diretorias parciais e colônias iria ser abandonado, tanto por falta de recursos como por desinteresse político. A última atitude a respeito tomada pelo governo do Maranhão foi, em 1892, ao decretar que todas as diretorias passariam a ser colônias, por certo na expectativa de que surgissem recursos para aplicar, ou, mais provável, na esperança de que, como colônias, houvesse uma aceleração do processo de passagem de índio para lavrador brasileiro. Os índios, porém, não pararam de aparecer no saguão do Palácio dos Leões, sede do governo maranhense, para reclamar de algum mau trato por parte de seus patrões ou para pedir ferramentas, panelas, chapéus e outros utensílios. O governo não dispunha de recursos para gastar com índios e só fazia doações com a presença dos interessados, buscando sempre a fixação de uma relação pessoal que pudesse ser traduzida em lealdade. Desse modo, não deixava de exercer a função de "chefe" ao patronizá-los através da outorga de patentes militares. Com efeito, muitos índios, Tenetehara e Timbira, prezavam os títulos de patentes militares que recebiam dos governadores do estado. Eram capitães, tenentes, majores e tenentes-coronéis nomeados para suas aldeias, patentes que ostentavam com orgulho, como mostrou Fróes de Abreu ao ver um desses velhos documentos em 1928 . A recepção que um governador ou um secretário de governo dava a um visitante índio o marcava com prestígio, o qual era utilizado na sua volta, sobretudo se trouxesse consigo brindes e presentes de algum valor. Às vezes os índios procuravam uma autoridade do estado para confirmar ou sancionar algum ato já realizado ou que tencionavam tomar. A autoridade talvez nem soubesse o que estava em jogo, como veremos adiante num dos episódios da Rebelião do Alto Alegre.

As autoridades estaduais não lograram estabelecer nenhuma política indigenista conseqüente nesse período que antecede a criação do Serviço de Proteção aos Índios, e por convicção filosófica ou por inércia administrativa, estavam dispostos a receber a ajuda de novos missionários que se interessassem pelos índios. É o que vai acontecer quando a Ordem dos Capuchinhos da Província da Lombardia, Itália, que desembarcara em Pernambuco, em 1892, decide se projetar na Amazônia, em Belém e São Luís e fazer missão entre os índios desses dois estados. Apesar de laico, o governo do Maranhão concederá não somente licença para que a ordem se fixe em São Luís nas dependências da Igreja do Carmo, mas também um subsídio financeiro para seu estabelecimento em Barra do Corda .

A Missão do Alto Alegre

A escolha do Maranhão e dos índios Tenetehara pelos frades capuchinhos não fora aleatória ou insciente. Ao menos o frade que se apresentara para o encargo, Frei Carlos de São Martino Olearo, já tinha algumas informações sobre os Tenetehara pela leitura de relatórios que seus confrades, Frei José Maria de Loro, Frei Peregrino de Pezzaro e Frei Antonino de Reschia haviam escrito sobre seus respectivos trabalhos nas colônias indígenas de Dous Braços e Januária, alguns decênios atrás, cópias dos quais deviam ser encontradas na Itália. É provável até que a prolongada experiência de oito anos do Frei José Maria de Loro com os Tenetehara de Barra do Corda tenha sido a influência mais determinante na escolha daquela região para local da missão evangelizadora e civilizatória que pretendiam instalar, e não no Pindaré, por exemplo, onde então havia um número maior de Tenetehara.

Em 1893 Frei Carlos de São Martino Olearo chegava a São Luís depois de uma breve correspondência trocada com o bispo Dom Antonio Cândido de Alvarenga. Com esse apoio, um ano depois recebia do governo do estado o velho convento dos carmelitas, a Igreja do Carmo, localizado na atual Praça João Lisboa . Em 1895 já estava em Barra do Corda, tendo sido recebido com honras e reverência pelas autoridades locais, algumas certamente não sem uma ponta de desapreço. Seu primeiro passo foi a ereção, num sítio perto da cidade, do Instituto Indígena, destinado ao abrigo e educação de jovens índios maiores de 14 anos de idade. Com essa idade os pais indígenas não punham resistências a que seus filhos deixassem as aldeias e viessem morar em Barra do Corda para aprender alguma coisa dos civilizados. Assim, sem mais delongas, alguns meses depois dois frades capuchinhos estavam visitando as aldeias e trazendo rapazes Tenetehara, Canela e até os últimos Mateiros (Timbira da mata) para serem internados no Instituto Indígena. Em 1900, o Instituto já comportava 78 rapazes índios (Nembro 1955a: 41), o que era comemorado pelos capuchinhos e admirado pelas autoridades locais, sobretudo porque alguns haviam demonstrado boa capacidade para o aprendizado das letras e da música. Eles formavam uma banda de música que, na chegada de visitantes ilustres, era levada para saudá-los com vivacidade. Assim, pelo menos, é o que se comenta nas páginas de “O Norte” no ano de 1900 .

Porém os capuchinhos sabiam que o contentamento com eles não era geral. Ouviam rumores de que alguns barracordenses tentavam persuadir os índios a levar os filhos de volta para as aldeias sob a justificativa de que se eles continuassem estudando no Instituto poderiam ser recrutados pela Armada. Outra pressão vinha de um decreto federal recém publicado, de inspiração positivista, pelo qual ficara proibido o ministério do catecismo em escolas públicas, o que poderia eventualmente ser alegado contra eles pelos maçons locais. Por essas e por outras, os capuchinhos decidiram criar uma outra missão em território indígena para proteger os índios da influência desses maçons. Por 15 contos de réis, doados pelo governo estadual, Frei Celso acertou e comprou uma área de uma légua quadrada, ou 4.356 hectares, de terras de um sitiante chamado Raimundo Ferreira de Melo, conhecido pela alcunha de Raimundo Cearense, por ser migrante daquele estado, localizada nas proximidades de várias aldeias tenetehara.

Nesse sítio, em 1897, foi fundada a Missão de São José da Providência do Alto Alegre para atrair famílias de índios e abrigar meninas menores de 14 anos de idade, vindos das aldeias ao redor e de outras mais afastadas. O propósito mais ambicioso da missão era estabelecer na região uma verdadeira "cidade de índios", conforme está escrito nos livros que restaram dessa missão, localizados no Arquivo da Cúria dos Capuchinhos, em São Luís. Tal plano ressoa aos propósitos já citados dos diretores gerais dos índios, nos últimos anos do Império. Ou bem os missionários haviam sido persuadidos pelos entendidos em índios da capital, ou bem se pensava nas mesmas linhas por injunção dos tempos. Nessa ocasião, os frades capuchinhos fizeram um censo da população indígena que eles consideravam que tinham condições de atender, na região de Barra do Corda e Grajaú. Ao todo constavam 22 aldeias com 2.200 índios, sendo 18 aldeias tenetehara, com uma população de 1.500, e duas aldeias timbira e duas canela. Essas 18 aldeias representam, por certo, os 500 e poucos índios da extinta Colônia Dous Braços, os 500 da ex-diretoria parcial Bananal e mais uns 500 da ex-diretoria parcial da Chapada. Por certo não estavam contados os Tenetehara do rio Zutiua pois o seu acesso era bastante longínquo a partir do Alto Alegre. Assim, a população dos Tenetehara da região não havia decaído desde 1890, como no Gurupi e Pindaré.

O desenvolvimento da Missão do Alto Alegre, apesar de sua curta duração (1897-1901), teve um papel muito importante no remodelamento das relações interétnicas tenetehara/brasileiros, tanto em sentido prejudicial como benéfico para os índios.

Os primeiros encarregados da nova missão foram dois frades capuchinhos e um irmão. Alguns meses depois de fundada, em outubro de 1897, sete freiras capuchinhas, todas vindas da Itália, se juntaram ao corpo funcional do Alto Alegre. Em 1899 morre o Frei Celso, que é substituído por dois novos frades. Entre as catecúmenas a maioria devia ser Tenetehara, havendo algumas Timbira-Krepumkateye ou Kokuokamekra, do rio Grajaú. Também sob a custódia das freiras havia umas sete ou oito meninas da elite barracordense enviadas pelos pais para ficarem com as freiras em regime de internato para fins educativos. A convivência entre meninas índias e civilizadas não é objeto de nenhum comentário por parte dos frades, mas se pode supor que o interesse da missão fosse diferenciado. Em pouco tempo a missão se consolidava com uma população que oscilava entre 70 e 150 pessoas. Apesar de no início ter havido alguma dificuldade em atrair os índios para mudar suas aldeias para perto de Alto Alegre, logo as quatro aldeias tenetehara mais próximas - Coco, Curcajé, Canabrava e Crioli - bem como uma de índios Timbira passaram a conviver mais intensamente com a missão, trabalhando nas suas obras e nas lavouras de algodão e cana-de-açúcar.

A estratégia missioneira dos capuchinhos se baseava, ou melhor, recendia ao pensamento dominante do século XIX que juntava as noções de catequese e civilização. Não adiantava só ensinar a palavra de Deus sem mudar os costumes dos índios. Tal era, sem dúvida, a grande lição que a experiência jesuítica transmitira aos seus sucessores. Assim, para catequizar e civilizar índios eles concluíram que teriam que agir no sentido de desestruturar suas sociedades e suas culturas. Um dos pontos cardeais desse projeto está explicitado no livro de correspondência da missão do Alto Alegre, quando declara de suma importância "desmembrar as aldeias indígenas e reduzi-las a grupos familiares". O sacramento do batismo, que independentemente da missão e anteriormente a ela, já era fortemente desejado pelos índios como meio de virarem cristãos e serem aceitos pelos regionais, não deveria ser ministrado a nenhum índio de quem "não se tivesse a garantia moral de que não mais viveria em sua aldeia". O índio que fizesse parte da Missão do Alto Alegre, por viver nela ou em aldeias de sua autoconcedida jurisdição, e dela quisesse se ausentar, teria que obter permissão dos frades. Caso contrário, ficaria sujeito ao devido castigo.

A interferência na cultura indígena tornou-se particularmente incisiva quanto ao casamento, o qual deveria ser monogâmico e abençoado pelo rito católico. Os frades eram ferozmente contrários à poligamia e ao divórcio, ou à facilidade com que os casais se juntavam e se separavam, encarando esses costumes como "escandalosos". Aos olhos dos frades lombardianos, também era escandaloso o costume indígena de passar “le notti intiere in feste, baili e canti" .

Para supervisionar os índios em seu cotidiano os frades criaram uma rede de informantes, na sua maioria brasileiros que viviam na missão e se relacionavam com os Tenetehara. Era exercido também um rígido controle moral e de disciplina do trabalho sobre os jovens índios dos institutos de Barra do Corda e do Alto Alegre. Os regulamentos internos e o esquema de funcionamento desses institutos fazem lembrar o antigo sistema jesuítico de missões.

Às 5:30 da manhã, os alunos internos deviam levantar e lavar-se;
às 6:00 assistiam a missa e em seguida faziam o desjejum;
às 7:00 iniciavam o trabalho;
às 9:30 assistiam aula;
às 11:15 almoçavam e tinham tempo livre para recreação;
às 13:00 voltavam à aula;
às 14:00 faziam uma refeição leve e voltavam ao trabalho;
às 17:30 regavam as plantas ou a horta, limpavam e enchiam os recipientes de água;
às 18:00 jantavam e descansavam;
às 20:30 faziam a reza noturna e em seguida iam dormir.

Castigos corporais deviam ser aplicados após a terceira falta consecutiva. Finalmente, os estudantes que se aplicavam na escola e obtinham boas notas nos exames perante o diretor da escola e o juiz da cidade deviam ser recompensados em dinheiro. Porém, esse dinheiro era guardado pelos frades até que os premiados se graduassem na escola, à semelhança do que faziam os jesuítas, quando guardavam o dinheiro do trabalho indígena pago pelos interessados em seus cofres até a volta dos índios à missão.

O sistema capuchinho era anacrônico demais para que se faça necessária uma análise a respeito das razões pelas quais não lograria civilizar os índios, a não ser que consideremos civilizar como o processo de quebrar sua organização sociocultural e transformá-los individualmente em caboclos pobres e sem terra. Nesse sentido, a intervenção capuchinha até que poderia ter tido êxito, funcionando como mais um fator do processo histórico que se desenvolvia naquela época. A missão em si desfrutou de bastante sucesso pois sua organização econômica funcionava bem e o povoado não parava de atrair novos moradores. Não só se plantava arroz e mandioca para consumo interno mas também para ser comercializado em Barra do Corda, bem como algodão e cana-de-açúcar, este último sendo processado em rapadura e melaço no engenho lá construído. Contrataram um sapateiro e um ferreiro para viver no Alto Alegre em base permanente. Nos documentos pesquisados no Arquivo Custodial não há menção de pagamento pelo trabalho dos índios nas roças ou em outras tarefas. Isto provavelmente indica que lá operava um tipo de trabalho servil, à base de ressarcimento por mercadorias ou por acesso a serviços oferecidos pela missão.

Como no tempo dos jesuítas, o sucesso econômico do Alto Alegre atraiu a atenção e incitou a inveja dos fazendeiros locais, que se sentiram ameaçados pela evasão de camponeses e índios de suas órbitas de influência, os quais para lá estavam se mudando. Também provocou o descontentamento de comerciantes e cidadãos de Barra do Corda e Grajaú, que devem ter sentido que o Alto Alegre de algum modo desafiava o domínio dessas cidades sobre a economia da região. O povoado já aparecia como um ponto de parada na passagem entre essas duas cidades. Os capuchinhos se ressentiam dessa acolhida com reservas, e anos mais tarde iriam acusar seus detratores de serem maçons, simpatizantes do protestantismo e anti-católicos (Nembro 1955a: 40-42). Enfim, no ambiente de rivalidades latentes e interesses contrariados, não se pode deixar de considerar a influência que os regionais tiveram entre as motivações que impeliram os Tenetehara a se rebelar e destruir o Alto Alegre.

Em janeiro de 1900, espocou um surto de varíola, seguido de tétano, que ao longo de algumas semanas matou pelo menos 28 das 82 indiazinhas que viviam no internato do Alto Alegre, causando imensa dor aos seus pais e uma grande tensão entre índios e freiras. Anos depois, os Tenetehara relatavam angustiados, e sem se dar conta de que houvera uma epidemia, como as crianças da missão iam morrendo e as freiras simplesmente iam jogando seus cadáveresinhos num poço seco.

Em setembro do mesmo ano ocorreu um incidente de indisciplina de um índio que criou uma nova tensão entre índios e frades e precipitou a crise de vez. O Tenetehara João Caboré, natural da aldeia Colônia, onde vivia casado com uma civilizada, casamento este que fora santificado pelos frades, em visita a outra aldeia, a Canabrava, se encantara com uma índia mais jovem e lá ficara, aparentemente abandonando sua legítima esposa. Quando os frades souberam desse malfeito, mandaram alguns índios chamá-lo para dar satisfações. Caboré veio, certo de que iria receber algum tipo de repreensão. Os frades não quiseram conversa e lhe aplicaram um castigo para ele nunca mais esquecer. João Caboré foi acorrentado no porão do prédio principal da missão, nas próprias palavras do diarista da missão, "ora pelos braços, ora pelos pés, ora pelo pescoço", durante quatro semanas. Os relatos dos índios sobre esse incidente até o minimizam pelo tempo bem mais curto do castigo.

A tensão durou todo o final do ano e os primeiros meses de 1901. João Caboré sumiu. A rede de informantes dos frades os preveniu contra um possível ataque dos Tenetehara, e dias antes como sendo iminente, mas eles não acreditaram. Ninguém de fato acreditava que uma tal coisa pudesse vir a acontecer, embora houvesse antecedentes de rebeliões dos Tenetehara. O mais recente ocorrera em 1882 quando os Tenetehara praticamente expulsaram o Frei José Maria de Loro na sua volta à Colônia Dous Braços, e antes já se dera diversos casos de ataques de Tenetehara a agregados de fazendas e a regatões, como aquele que matou o cunhado de um diretor parcial na extinta aldeia do Cateté.

A Rebelião do Alto Alegre

Sábado, 13 de abril de 1901, João Caboré, acompanhado por algumas dezenas de líderes Tenetehara, posteriormente nomeados, e um número indefinido de guerreiros, acompanhados de suas mulheres e filhos, talvez uns 400 ou mais, chegaram ao Alto Alegre cedinho, na hora da missa, invadiram a igreja e foram matando todos os que ali se encontravam, a começar pelo frade que rezava a missa, abatido ainda no altar por um tiro de espingarda e depois por cutiladas de facão. Os demais, frades, freiras, mulheres, meninas e homens foram sendo mortos de diversos modos, às vezes com requintes de crueldade, num banho de sangue nunca dantes visto na região. As meninas barracordenses foram sendo mortas ao longo das semanas seguintes, algumas delas sendo usadas como concubinas. Pelo menos desde a Cabanagem (1838-40) tal tipo de incidente não acontecera com tanta violência e impiedade. No ruge-ruge da matança, uma mulher e um menino conseguiram escapulir e correram a avisar a população de Barra do Corda, lá chegando dois dias depois. Nos dias e semanas que se seguiram talvez um total de duzentos brasileiros regionais foram mortos, conforme cálculos feitos pelo jornal “O Norte” .

O incidente é conhecido na região como "o massacre do Alto Alegre". Os Tenetehara o denominam simplesmente "o tempo, ou o barulho do Alto Alegre". Na verdade, este acontecimento constituiu a última grande rebelião indígena contra o mundo civilizado que os envolvia e compungia à condição de servos, vassalos, ou cidadãos de terceira classe, para serem dissolvidos na massa subserviente de pobres sem terra. Não se pode ter certeza sobre o quanto os Tenetehara estavam conscientes dessa condição sociopolítica, mas certamente suas narrativas mítico-históricas o impeliam a não aceitar passivamente tais condições. Que o levante tomou ares de uma rebelião organizada e determinada a expulsar os brancos da região fica claro pela estratégia usada e pelo vigor dos ataques e da resistência que se seguiu. Segundo o relato do capitão Goiabeira, um dos oficiais que comandou a contra-ofensiva aos Tenetehara, quando do ataque que fizera ao Alto Alegre e à aldeia Canabrava, ele ouvira os líderes guerreiros gritando ordens e instruções de ataques que demonstravam alguma experiência em batalhas campais e com uso de armas de fogo. Com efeito, o clima político na região de Barra do Corda e Grajaú se caracterizava, desde a fundação daquelas vilas, como sendo de extrema rivalidade entre chefes políticos dos dois partidos do Império: o conservador e o liberal. Na década de 1880 a rivalidade entre o grupo conservador do Coronel Araújo Costa e o liberal liderado pelos irmãos Luís e Leão Leda havia chegado às vias de fato numa batalha na Serra da Cinta em que 126 pessoas foram mortas de parte a parte (Abranches 1959: 148). Nos anos seguintes após a República novas rivalidades surgiram, como brigas sangrentas. É mais que provável que índios Tenetehara e Gaviões tivessem participado de algumas batalhas, de um lado ou de outro.

Não está claro como João Caboré e Manuel Justino, os dois Tenetehara que foram acusados pelos brasileiros de líderes máximos da rebelião, arregimentaram tantos Tenetehara e planejaram o ataque fatal. Os capuchinhos nunca deixaram de acusar pessoas da própria Barra do Corda como insufladores . Alguns Tenetehara, bem como os Canela que participaram do rechaço aos índios, pelo lado dos regionais, explicam o acontecido como um meio de expulsar os capuchinhos de suas terras, pois estes estavam irresponsavelmente tirando os filhos ainda mamando do colo das mães e levando-os para a missão, só para depois, quando morriam, simplesmente os atirar no fundo de um poço.

Quantos índios participaram, de quais aldeias, e como foram arregimentados? O jornal “O Norte” vai dar um número de até 800 índios, os capuchinhos falam em 400 guerreiros. O Arquivo da Cúria dos capuchinhos tem o registro da acusação judicial aos Tenetehara, realizada em outubro daquele ano, que aponta 34 nomes e seis aldeias envolvidos. São aldeias da região imediata ao Alto Alegre, mas é bem possível que também tivessem conhecimento antecipado dessa rebelião outras aldeias entre o alto Mearim e o alto Grajaú . Como guardaram segredo é que é um mistério. Na verdade, nos dias que antecederam pelo menos uma mulher Tenetehara tentou avisar os frades sobre a iminência de um ataque dos seus compatriotas, mas eles não a levaram a sério. Por sua vez, líderes de algumas aldeias se recusaram a vir ao Alto Alegre e portanto sabiam que algo ia acontecer. O chefe da aldeia Naru, José Viana, tão logo soube do acontecido veio avisar os habitantes de Barra do Corda, sendo de início tomado por suspeito. Algumas aldeias do rio Mearim ficaram divididas, tendo uns participado, outros se recusado. Quando perguntado sobre se algum antepassado teria participado, muitos Tenetehara declaram que não, talvez como forma de autoproteção já que ainda existe alguma apreensão em falar sobre a rebelião.

O recrutamento de participantes é relatado como sendo obra de João Caboré (a quem os Tenetehara chamam de Kawiré Imàn) que fora de aldeia em aldeia convidando e convocando as pessoas para participar dos seus planos. Aqueles que demonstraram relutância, temeram por suas vidas e fugiram de suas aldeias para a região do Gurupi. O Arquivo da Cúria Custodial registra que Caboré fora a São Luís em novembro, dezembro de 1900, e se encontrara com um tal de “Hereje”, nome que por si só pode indicar desconhecimento de causa. Os Tenetehara falam nessa viagem e dizem que ele fora fazer um apelo às autoridades estaduais para que impedissem os capuchinhos de tomar suas crianças. Os regionais especularam, logo após a rebelião, que, na volta de São Luís, Caboré viera pelo vale do Pindaré e convocara as aldeias daquela região, o que parece improvável. Velhos índios do Pindaré negaram participação de seus avós. Fica claro que o plano do ataque foi desenvolvido após a vinda de São Luís, no período de chuvas, quando os Tenetehara permanecem mais tempo nas aldeias.

Entre os nomes dos 34 acusados citados no Arquivo, três tinham o sobrenome "Gavião". Esses homens eram de uma aldeia chamada Pau Ferrado, próxima ao rio Grajaú, e que era então área dos índios Timbira Kukuokamekra. Não é de todo impossível que esses homens sejam, na realidade, índios Timbira. Um informante Tenetehara, sem receber um pedido de confirmação sobre isso, também me disse que índios Timbira estiveram igualmente envolvidos na rebelião . Embora não fossem amigos e até pouco tempo ainda disputavam território e rivalidades étnicas, esses Timbira e os Tenetehara da região já se relacionavam com alguma proximidade. Além do mais, meninos e meninas timbira foram também tiradas de suas mães pelos frades capuchinhos para o Instituto Indígena de Barra do Corda. No Arquivo da Cúria consta que algumas delas morreram de tétano na epidemia de 1900. Assim, não se pode descartar a possibilidade de participação de alguns Timbira na rebelião.

O envolvimento de índios Timbira ajuda a compreender que o ataque planejado não aflorou de um movimento nativista ou messiânico, como se poderia esperar de um grupo étnico como os Tenetehara que viviam em condições sociopolíticas de potencial desagregação de sua sociedade. Timbira e Tenetehara estavam no mesmo barco, por assim dizer, mas não tinham cultura ou símbolos comuns que os unissem para que promovessem conjuntamente um movimento nativista. Assim, será melhor caracterizar o acontecido como uma rebelião de cunho não religioso, mas respaldado em narrativas mítico-históricas, como foi vista no Capítulo I, contra a presença dos missionários, o próprio sistema missionário e os eventos que se deram naqueles anos.

A chamada Guerra de Castas que se deu entre os Maias de Yucatã e os mexicanos regionais, entre 1840 e 1850, guerra que foi organizada pela aliança entre aldeias, é um parâmetro comparativo que se pode cotejar com o movimento tenetehara. Mas sua raiz é bem mais profunda e se deu num tempo mais prolongado. A guerra de Castas foi efetivamente instigada pela "Cruz que fala", um movimento religioso de cunho nativista (Reed 1964). Relatos tenetehara jamais fizeram alusão a quaisquer sinais de nativismo de cunho religioso naquele período e só muito depois, na década de 1950, encontramos os Tenetehara desenvolvendo uma potencial ideologia nativista com base religiosa. Em suma, apesar desta questão merecer mais atenção, fica aqui em aberto. Deve ser enfatizado, neste ponto, que mesmo uma sociedade tão frouxamente organizada como a Tenetehara pode descobrir formas de cristalizar-se em um bloco único para situações temporárias e de emergência.

Após terem tomado o Alto Alegre e matado quase todos seus habitantes, os Tenetehara lá se entrincheiraram com a intenção de guardar o domínio conquistado. Armaram tocaias na entrada e saída do povoado e passaram a atacar os viajantes desavisados que iam de Barra do Corda a Grajaú, ou vice-versa. Enviaram guerreiros para atacar as fazendas da vizinhança - Arroz, Arranca e Remanso são nomeadas, mas não Sibéria, a fazenda de Pedro Lopes - onde matavam quem lá estivesse, de onde levavam farinha, arroz e animais de criação, e resgatavam os meninos tenetehara que lá viviam como criados e agregados . Durante dois meses defenderam-se e rechaçaram dois ataques militares vindos de Barra do Corda e Grajaú, até que foram vencidos e desbaratados do Alto Alegre por uma força composta de 70 soldados vinda de Barra do Corda, comandada pelo coronel José Pinto, uma unidade militar de Grajaú, comandada pelo capitão Goiabeira, e, principalmente, 40 índios Canela que haviam sido recrutados para lutar contra eles.

Os Canela-Ramkokamekra (regionalmente conhecidos como Canelas da aldeia do Ponto), segundo o antropólogo William Crocker que os vem estudando há 40 anos, não tinham nenhuma história anterior de enfrentamento guerreiro com os Tenetehara, pois viviam muito distantes destes. Quem o tinham eram os Canela-Apanyekra, da aldeia Porquinhos, mais próxima dos Tenetehara que vivem no rio Enjeitado, afluente do alto Mearim. De todo modo, apesar de viverem pacificamente, os Canela tinham uma organização guerreira bem estruturada e mantinham um forte espírito de rivalidade com os Tenetehara. Não hesitaram ao serem convidados pelas autoridades de Barra do Corda para formar a linha de frente da tropa de ataque ao Alto Alegre. Tocando búzios e portando bordunas, à frente da tropa de Barra do Corda, os 40 Canela se assomaram guerreiros portentosos e determinados, e romperam a linha de defesa dos Tenetehara. Ao ouvirem os gritos de guerra e as buzinas dos Canela, os Tenetehara, homens, mulheres e crianças, que já estavam cansados e com escassez de alimentação, não conseguiram resistir por muito tempo e passaram a fugir das casas e do prédio principal do Alto Alegre. Segundo o relato de Tenetehara que mais tarde foram feitos prisioneiros, cerca de 28 a 30 Tenetehara foram mortos nesse confronto e outros mais feridos morreriam na fuga. Um ou dois soldados também morreram, uns mais foram baleados, mas nenhum índio Canela se feriu. Um grupo comandado por João Caboré se refugiou na aldeia Canabrava, a duas léguas do Alto Alegre, onde foram atacados por uma tropa comandada pelo capitão Goiabeira. Aí cerca de 18 Tenetehara morreram e muitos foram presos. João Caboré e outros líderes conseguiram escapar desse segundo cerco. Nas semanas seguintes, muitos Tenetehara foram sendo capturados pelas fazendas onde passavam ou sendo atocaiados depois de delatados. Vários locais da região são mostrados como sendo sítios onde se deram batalhas ou sortidas de regionais sobre Tenetehara em fuga. Num desses locais, Manuel Justino foi preso, e quando estava sendo levado a Barra do Corda foi morto, numa suposta tentativa de fuga.

Em fins de agosto, João Caboré depois de ter eludido diversas tentativas do coronel Pinto, de ter passado pelas Lagoas do Muçum e do Cipó, foi preso perto da aldeia Coquinho de onde foi levado a Barra do Corda. Em outubro foi julgado junto com os outros líderes e condenado à pena máxima de prisão perpétua. Não se sabe o que aconteceu aos demais. Num dia de novembro do mesmo ano, Caboré amanheceu morto, segundo “O Norte” vítima de febres palustres . O depoimento de Caboré diante dos seus interrogadores ilustra uma atitude característica dos Tenetehara com relação aos brasileiros, quando estes os acusam de algum delito. Negou veementemente qualquer participação no ataque e nos assassinatos, apenas admitindo ter estado presente lá, naquela fatídica manhã, quando, por coincidência, fora se banhar na lagoa que ficava ao lado da missão.

A dispersão dos Tenetehara que se seguiu à retomada do Alto Alegre pelos regionais é encarada por eles como um verdadeiro êxodo. Dizem que as mães chegavam a sufocar seus bebês quando choravam e se encontravam próximos dos soldados que os perseguiam. Passavam fome e, quando iam a uma fazenda mendigar comida, eram friamente assassinados.

Entre as histórias mais contadas pelos regionais, e mais ou menos aceita pelos Tenetehara, é a da menina Maria do Perpétuo Socorro Moreira, conhecida como Prepetinha. Ela era uma das oito meninas da elite de Barra do Corda que viviam internadas sob a custódia das freiras no Alto Alegre. Quando se deu o ataque, algumas delas foram mortas de imediato, uma ou outra foi tomada como concubina por Caboré ou Manuel Justino. Prepetinha sobreviveu a esses primeiros dias, e no êxodo foi levada pelos Tenetehara. Diz a lenda regional que a caminho da floresta do Pindaré, para onde foram muitos Tenetehara em fuga, ela ia gravando nas árvores os dizeres “por aqui passou a infeliz Prepetinha”. Muitas histórias afirmam que diversas pessoas chegaram a vê-la anos depois vivendo como uma verdadeira índia Tenetehara numa aldeia do alto Gurupi.

A dispersão dos Tenetehara foi massiva. Poucas das aldeias que existiam anteriormente permaneceram no mesmo local. A fuga se deu principalmente atravessando o rio Grajaú em direção oeste. Algumas famílias tenetehara se assentaram entre o médio Grajaú e o rio Zutiua, de onde, por volta de 1924, se tem notícias da sua existência. Estariam vivendo de um modo quase arredio e pouco querendo contatos com os regionais (Snethlage 1931). Por volta de 1931, o capuchinho Frei Sigismundo de Ombriano relata que, ao fazer desobriga na banda esquerda do rio Grajaú, foi timidamente abordado por uns índios Tenetehara moradores da aldeia Cururu, que teria se formado com participantes da Rebelião do Alto Alegre e que por isso se mantivera tão isolada (Nembro 1955b: 113-4). Outros grupos seguiram mais para oeste em direção ao rio Gurupi, provavelmente se misturando com os Tembé-Tenetehara. A maioria preferiu se localizar em áreas ermas, distantes dos rios, e alguns poucos debandaram até mesmo para fora de seu habitat tradicional, no cerrado grajauense.

No entanto, é importante notar que esse processo se deu em poucos meses e parece ter perdurado por apenas alguns anos. Em menos de dez anos novas aldeias tenetehara foram refundadas em mais ou menos os mesmos sítios. A animosidade explícita entre brasileiros e Tenetehara, diante da gravidade da Rebelião do Alto Alegre, foi surpreendentemente pouco intensa e de curta duração. Os próprios capuchinhos, apesar do terrível baque sofrido, não se esmoreceram de todo de constituir missão entre aqueles índios. A partir de 1904 já um deles, Frei Roberto de Castellanza, relata que havia passado os últimos sete meses em desobriga em aldeias indígenas de Barra do Corda, sem especificar se eram Tenetehara ou Canela (apud Nembro 1955b: 88-92). Entretanto, a partir da presença do SPI em Barra do Corda, que se dará em fins de 1913, nunca iriam receber permissão para criar missão e sim apenas para fazer desobrigas ou visitas às aldeias. Embora o sentimento de contrariedade e horror tenha sido a tônica entre todos os barracordenses e grajaúenses diante daquilo que o jornal “O Norte” chamava de “hecatombe”, já no início da dispersão, tem-se notícia de pelo menos um fazendeiro, Pedro Lopes, dono da Fazenda Sibéria, que ficava a meio caminho entre as duas vilas, teria auxiliado um grupo de Tenetehara e os levara para a região do rio Gurupi. Como se notou acima, essa fazenda fora poupada de ataques dos índios rebelados. O grupo socorrido por Pedro Lopes fazia parte de uma aldeia de onde haviam saído alguns participantes da rebelião, inclusive um de seus líderes, também chamado Pedro Lopes, e que se localizava perto de uma de suas propriedades. Pedro Lopes e os Tenetehara mantinham relações cordiais, dentro dos parâmetros da relação patrão-cliente vigente.

Por que houve essa ajuda? Será que Pedro Lopes se aproveitava da ocasião para retirar índios Tenetehara que de alguma forma atrapalhavam sua pretensão pelas terras que aqueles índios ocupavam ? Por outro lado, correram rumores de que este fazendeiro teria sido um dos principais instigadores do ataque tenetehara ao Alto Alegre, cujo desenvolvimento consolidava a estrada entre Grajaú e Barra do Corda, em detrimento a uma outra que passava por suas terras . Seja como for, o certo é que, além de escafeder esses índios do perigo, Pedro Lopes também os trouxe de volta alguns anos depois, e chegou mesmo a dar alguma instrução para alguns dos jovens meninos do grupo. Dois deles, irmãos, de quem se dizia que seriam seus filhos naturais, tomaram seu sobrenome e mais tarde tornaram-se bastante conhecidos na região como Tenetehara inteligentes e articulados, protetores dos interesses das suas aldeias contra os brasileiros das redondezas. Seus filhos continuariam os passos dos pais.

Um dos grupos que se aventurou cerrado adentro voltou mais tarde para sua área original na beira do riacho Enjeitado, afluente do alto rio Mearim. Junto com o grupo auxiliado pelo fazendeiro amigo de índios, eles se estabeleceram naquela área e a defenderam contra novos imigrantes, constituindo hoje a T.I. Bacurizinho, nome tomado de uma aldeia ali fundada em 1950. Sobre essa área haverá mais informações pois foi lá que passei os primeiros quatro meses de meu trabalho de campo, em 1975.

Conseqüências sociopolíticas

Quais foram as reais conseqüências da Rebelião do Alto Alegre se, como parece, tudo voltou ao normal tão rapidamente? A mais importante foi a de que esse acontecimento deteve temporariamente o processo de integração socioeconômica, que podemos chamar de caboclização, ou camponeização dos Tenetehara, o qual sem dúvida teria se incrementado com a concomitante perda de terras. Esse processo vinha acontecendo desde meados do século XIX, com a intervenção de autoridades regionais, através das diretorias parciais e das colônias, de missionários capuchinhos estabelecendo missões nesses postos, e em função de um crescente número de lavradores pobres e fazendeiros que imigravam para essa região e tomavam posse das terras que os Tenetehara faziam uso. A grande seca de 1877-1880 no Nordeste, especialmente no Ceará, trouxe muitos lavradores para esta região e também para o baixo Pindaré (Cunnif 1970: 259, 266). Novas levas de imigrantes vieram em 1888 e 1900 (Reis 1992).

Os Tenetehara da atualidade têm um discurso padronizado para explicar como os brasileiros daquele tempo desapropriavam suas terras e tomavam suas mulheres através de fraudes e artimanhas, como a de oferecer-lhes tabaco, sal e bugigangas em troca desses preciosos recursos. De fato, muitas áreas antes controladas por Tenetehara hoje são terras de regionais ou até lugarejos e cidades. Igualmente, é de se pensar que a maior parte dos genes brasileiros encontrados na composição genética dos Tenetehara - que parece ser bastante mesclada - data do século XIX, tempo das mães e avós de uma pessoa de 70 anos de idade, na década de 1970.

Com a inevitável animosidade, ou ao menos com uma fundada suspeita contra brasileiros, reafirmada na Rebelião do Alto Alegre, deu-se uma esfriada no relacionamento que já vinha desde a década de 1840. Antes tratados como pouco mais que animais pedintes quando nas vilas, agora os brancos passaram a ver os Tenetehara com mais cautela e distanciamento, se não respeito. Isto confirmou nos Tenetehara suas mais profundas suspeitas sobre a disposição odienta dos karaiw e lhes fez valorizar mais a sua cultura, criando uma nova justificativa de coesão, uma frente unida de Tenetehara contra brasileiros e quaisquer outras tribos indígenas. É claro que os Tenetehara nunca se sentiram inclinados a compartilhar ou se fundir com outras culturas, antes daquele acontecimento, mas ao longo do século anterior muitos haviam chegado ao ponto de cortar relações com a vida na aldeia para se associar com fazendeiros ou camponeses de algumas posses, tanto por razões econômicas quanto socioculturais.

A Rebelião do Alto Alegre pôs fim a esses alinhamentos progressivos com brasileiros. Em outras palavras, a sociedade tenetehara como um todo não mais sentiu que poderia se beneficiar socialmente por viver muito próximo de, ou com, brasileiros, embora houvesse daqueles poucos que assim o fizeram e continuaram a fazer, aos poucos se integrando como agregados e moradores em terras alheias. A compreensão deste fato, que se realizou conscientemente nos primeiros vinte anos do século XX, foi um importante passo no sentido da prevenção do desmembramento de aldeias em famílias independentes. Isto resultou na desaceleração do processo de integração socioeconômica.

Rixas, tão freqüentes entre famílias extensas, principalmente em situações de intenso relacionamento com a sociedade brasileira, se resolvem geralmente com a saída de uma das famílias rivais. Na expectativa de partilhar da vida cultural dos regionais, essas famílias terminavam se mudando para perto de lugarejos e fazendas de brasileiros. Agora que já não desejavam se tornar como os brasileiros, mudavam-se para outro local criando uma extensão da aldeia, ou, com a vinda de novas famílias, fundando uma nova aldeia. Fora por esse processo social que se dera a expansão dos Tenetehara e agora esse padrão ganhava novas forças de impulsão.

Na inexistência de razões culturais para a aculturação e assimilação ao campesinato brasileiro sem terras próprias, as razões econômicas já não poderiam ser tão importantes como antes. De fato, exceto pela criação de gado - que sem dúvida é muito atraente - não há nada que os camponeses façam em suas culturas agrícolas e com as técnicas de desmatamento e queima que seja diferente do modo usado pelos Tenetehara. Seus respectivos modos de produção e conseqüentes níveis de produtividade são diferentes, é claro, devido à diferente divisão social do trabalho e aos diferentes incentivos culturais. Os campônios brasileiros são mais produtivos e geralmente possuem mais produtos manufaturados que os Tenetehara. Os Tenetehara podem aumentar a sua produtividade apenas através de uma reestruturação de suas unidades de produção, mais isso só se faz possível em tempos de florescimento econômico dos bens que eles podem produzir.

Portanto, seu desejo de possuir bens manufaturados não é satisfeito na mesma medida que a dos campônios, o que faz com que o modo de vida do brasileiro seja de certa forma sedutor para um homem Tenetehara ambicioso. Por outro lado, as condições sociais dos campônios, como no caso do lavrador agregado que vive nas terras do fazendeiro e reparte o fruto de seu trabalho com o patrão, são inferiores às dos Tenetehara que vivem em aldeias autônomas e são donos exclusivos do produto de seu trabalho. Os Tenetehara têm consciência desta vantagem político-econômica, ao passo que os campônios são mais inclinados a alentar a ilusão de sua superioridade social, justificada na identidade com a cultura brasileira, concretizada em suas casas de taipa tão raramente pintadas e geralmente infestadas de insetos, e no seu cristianismo rural e sincretista, com muitas crenças advindas de seu passado indígena.

Essas considerações se fazem presentes nos dias atuais entre os Tenetehara. Creio que tenham sido articuladas pela primeira vez após a Rebelião do Alto Alegre, como se detecta nos relatos de velhos Tenetehara com quem conversei a respeito daquele acontecido e dos anos que o seguiram. Os Tenetehara, entretanto, jamais romperam relações com os brasileiros, à exceção, por alguns anos, de algumas poucas aldeias que se isolaram da convivência com os regionais até a década de 1920 (Snethlage 1931).

A Rebelião do Alto Alegre constitui o diferencial entre os Tenetehara da região de Barra do Corda-Grajaú e aqueles do Pindaré-Gurupi. Quando Emil Snethlage, um naturalista alemão, visitou essa região em 1924, calculou que a população Tenetehara que vivia entre os rios Mearim e Grajaú somava entre 750 e 800 pessoas (metade da população de 1896), sem contar umas 400 a 500 que viviam na região entre os Zutiua e o Buriticupu. No Pindaré e baixo Zutiua devia haver por esse tempo cerca de 1.500 Tenetehara e no Gurupi e Capim cerca de 1.100. Ao todo, portanto, havia cerca de 3.800 Tenetehara na primeira metade da década de 1920. Snethlage escreve que havia entre 12 a 14 aldeias tenetehara na área em que, 24 anos antes, houvera 18. Sílvio Fróes de Abreu, um geógrafo brasileiro que fez um estudo nessa região em 1928 (1931: 105), confirma os números de Snethlage. Essa população se firmou no seu território reconquistado e continuou a crescer sem parar, apesar das contínuas epidemias de sarampo, varíola e malária. A partir da década de 1960 seu número vai aumentar ainda mais e atualmente é da monta de 8.000 pessoas, isto é, constitui mais de dois terços da população tenetehara total.

A atual Terra Indígena (T.I.) Guajajara-Canabrava, onde se situava o Alto Alegre, a T.I. Urucu-Juruá, na beira do rio Grajaú, cujas aldeias participaram no assalto, e por onde os Tenetehara fugiram para o oeste, e a T.I. Bacurizinho, de cujas aldeias também houve participação, constituem hoje o centro propulsor da afirmação étnica e da participação política dos Tenetehara. Sua tinhosa determinação para garantir esses territórios resultou na expulsão do povoado de São Pedro dos Cacetes, que havia se encravado na T.I. Guajajara-Canabrava desde a década de 1930 e mais intensamente a partir de 1960, o qual, com cerca de 2.000 e tantos habitantes e uma forte patronagem política regional, trabalhava arduamente para se tornar município e controlar terras que eram de direito tenetehara. Caso isso tivesse acontecido aquela área teria se tornado uma verdadeira cidade de caboclos, como haviam sonhado os capuchinhos em 1897. Nesse sentido, a retirada dos moradores de São Pedro dos Cacetes, em 1996, pode ser considerada a última batalha da Rebelião do Alto Alegre. Dela saíram vitoriosos os Tenetehara.

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