sexta-feira, 21 de março de 2008

O Índio na História: Cap.3 - A Formação do Mundo Colonial

Capítulo III

A Formação do Mundo Colonial

A história do Maranhão (e da Amazônia em geral) vai tardar em mais de 100 anos, só começando, praticamente, na segunda década do século XVII. Até então o Maranhão era conhecido de entrelopos franceses que comercializavam com índios do litoral, e por umas poucas tentativas frustradas de colonização da região ainda no tempo das capitanias hereditárias. No final do século XVI o baixo Amazonas vinha sendo visitado por navios ingleses, a mando de Sir Walter Ralegh, e por franceses como Jacques Riffault, que viam na região boas razões para se estabelecer. A partir de 1611, holandeses, irlandeses e ingleses fundaram três ou quatro feitorias e colônias, tendo bastante lucro com a exportação de tabaco, urucum, algodão e madeiras, especialmente da árvore chamada pelos Tupinambá de “cotiara” (angelim). Entretanto, o interesse pelos índios se restringiu ao econômico, e poucas informações de valor etnográfico foram deixados nos escritos e documentos da época (Lorimer 1989). Por sua vez, são todavia ainda escassos e restritos os dados que poderiam ser fornecidos pela arqueologia para o período anterior a 1500. Assim, não há como compor um quadro etnográfico pré-cabralino daquela região.

É com a instalação de um colônia francesa na ilha de São Luís, em 1612, que começa a nossa história, tanto do Maranhão quanto dos Tenetehara. Preocupado em conhecer as terras que pretendia colonizar, o Senhor de la Ravardiere, chefe da colônia cognominada França Equinocial, envia, em 1613, uma pequena patrulha de exploração para reconhecer os rios que deságuam na baía e assim tomar conhecimentos dos povos que habitam essas terras. Sob a força de índios remeiros Tupinambá, a patrulha sobe o rio Pindaré e dá as primeiras notícias de um povo de fala tupi que habita esse rio, “les Pinariens”. Estimo serem os Tenetehara, pois logo em seguida, em 1616, franceses já devidamente expulsos e luso-brasileiros instalados na ilha, Bento Maciel Parente, em busca de ouro e escravos, sobe o mesmo rio e se bate contra “o gentio guajaojara, a quem fez cruel guerra”. “Guajaojara” seriam os Guajajara, os Tenetehara. Daí por diante os Tenetehara ficam submetidos ao poder colonial, e só quase 300 anos depois (1901) seria preciso força militar para combatê-los uma vez mais.

O conhecimento histórico sobre os Tenetehara vem desde então se acumulando através de notícias, relatos, cartas, documentos oficiais, sempre aos pouquinhos, em momentos espaçados e por autores das mais diversas procedências. Contudo, em nenhum momento da colonização do Maranhão surge um interesse assaz forte sobre os Tenetehara que emule algum cronista a fazer uma descrição desse povo. Até o Padre Antônio Vieira, prolixo por estilo e por interesse, que os conhece em 1653, na ilha de São Luís, não lhes dedica mais do que algumas linhas em sua vasta escrita e correspondência. Assim, é extremamente difícil se fazer uma história dos índios Tenetehara que não comporte uma alta dose de inferência, reconstrução imaginativa e até especulação.

Nos primeiros três séculos da história tenetehara há momentos e situações onde as informações são bastante escassas e indiretas. Há que se as ler e interpretar nas entrelinhas dos documentos históricos, quase que adivinhando pensamentos. Tais informações são usadas sempre com muito cuidado, com base numa perspectiva dialética, onde se pode conjecturar um quadro de uma determinada situação, ainda que mal descrita, através de inferências com o que sabemos do presente e por comparação com casos análogos mais amplamente documentados no mesmo período. Em alguns momentos, reconstituir uma época e uma região onde poderiam estar os Tenetehara é o máximo que conseguimos fazer para dar alguma idéia de como eles poderiam estar vivendo.

Há quanto tempo viviam os Tenetehara no rio Pindaré, e de onde teriam vindo? Presumo, seguindo Curt Nimuendaju (1937: 48), que eles teriam vindo do oeste, talvez do baixo Tocantins, no atual estado do Pará. Para chegar a essa hipótese, Nimuendaju usou de um artifício lingüístico hoje em dia considerado de pouco valor heurístico. A língua falada pelos Tenetehara, da família tupi-guarani, tem o prefixo /he-/ para marcar os pronomes diretos e possessivos da primeira pessoa do singular, “eu, meu, minha, meus, minhas”. Outras línguas com esse pronome, como os Urubu-Ka’apor e os Guajá , vieram comprovadamente do Pará para o Maranhão, já em tempos históricos. Em contraste, povos com línguas com o termo equivalente /xe-/, como os Tupinambá, teriam vindo do leste, através da costa . Supõe-se que os Amanajó, outro povo de língua tupi-guarani que habitava o Maranhão, ao sul dos Tenetehara, nessa ocasião, também teria vindo do Pará. De suposição em suposição, a pergunta aflora: o que estavam fazendo tantos povos indígenas tupi-guarani no baixo Tocantins? E outra quer emergir: seriam todos parte de um mesmo povo num certo tempo anterior? Nada podemos responder a essas indagações. Só a lingüística comparativa poderá algum dia propor uma hipótese razoável para preencher essa lacuna no conhecimento etnográfico. Por enquanto, são ainda muito pouco conhecidos os movimentos migratórios dos índios brasileiros no período pré-histórico, mesmo os dos índios de fala tupi, de quem se tem mais notícias do que de outros índios (Métraux 1927, 1963; Nimuendaju 1987[1914]).

A história recapturada dos Tenetehara é, portanto, essencialmente a história das transformações de sua sociedade e cultura a partir do momento em que foram trazidos para a órbita de influência das forças de colonização que se estabeleceram no Maranhão. Historizar transformações significa descrever uma situação num determinado instante e o que ela passou a ser num instante seguinte, e analisar o quê gerou este novo estado de coisas. O estudo de transformação social deve ser, consequentemente, um estudo baseado no método dialético. Aqui serão utilizados os conceitos de sistema e estrutura, os princípios de oposição e contradição e a passagem lógico-temporal de tese, antítese e síntese. São instrumentos de análise que se tornam concretos dentro de situações empíricas constituídas por conjuntos de problemas que se comportam como componentes de totalidades em formação. Utilizo o método dialético para analisar uma situação social, histórica, que não é estática em si mesmo e que, portanto, não pode ser concebida, a médio e longo prazo, por um método que enfoque primordialmente equilíbrio ou situação. Assim, fujo, por princípio, de qualquer interpretação funcionalista, inclusive a de ordem ecológica, bem como estruturalista e desconstrucionista, sobre a cultura e a sociedade tenetehara.

O enfoque dialético permite postular que os Tenetehara constituem um sistema sociocultural em relação de confronto com outros sistemas, em especial com o sistema composto pelas forças de colonização do Maranhão. Estes sistemas sociais contém um potencial inerente para auto-transformação, independente das influências que exercem um sobre o outro. Mas são fundamentalmente as mudanças que decorrem da influência do contato de um com o outro que nos interessa aqui. A influência que os Tenetehara tiveram sobre a sociedade colonial foi muitíssimo menor que aquela exercida pelos Tupinambá, mesmo se considerarmos unicamente a sociedade maranhense. Ela se manifestou em alguns momentos pelo desempenho de sua força de trabalho, pelo conhecimento que transmitiram dos métodos de utilização do seu meio ambiente e, principalmente, pela usurpação de seu território. Em alguns raros casos podemos detectar uma influência lingüística . Já a influência da sociedade colonial emergente sobre os Tenetehara é o fator essencial da história tenetehara. Portanto, será fundamental, desde já e em todos os períodos históricos, observar a sociedade colonial luso-brasileira-maranhense em formação para compreendermos melhor como se dá essa influência e que conseqüências tiveram e vêm tendo sobre a sociedade tenetehara.

Os dois campos analíticos chaves na descrição da história tenetehara são, por um lado, a sociedade tenetehara sendo trazida para o sistema colonial, nas várias fases da sua história. Por outro lado, a sociedade tenetehara resultante ao final de cada fase. Em termos dialéticos, podemos dizer que temos o fluxo histórico da tese (a sociedade tenetehara num determinado momento histórico), a antítese (esta sociedade em confronto com a sociedade colonial num momento histórico similar) e a síntese (a sociedade tenetehara resultante - e já em antítese com o próximo movimento).

As narrativas e as análises que aqui apresento da sociedade colonial se reportam de alguma forma aos debates que existem na historiografia do Maranhão e Grão Pará. Já para o período monárquico, quando o índio é considerado uma figura menor, assombreada pelo papel preponderante da escravidão e do negro, a história indígena constitui meras notas de rodapé, notícias parentéticas, pequenos adendos, como se não acrescentasse mais nada, a não ser pela contínua perda de vida e de território . Porém, ao encararmos a história do Maranhão pelo enfoque histórico-antropológico, levando em consideração o papel dos Tenetehara e de outros povos indígenas no continuum de relacionamento sociopolítico entre dominadores e dominados, não posso me furtar à responsabilidade de estar realizando uma releitura dessa história, particularmente no que diz respeito ao relacionamento socioeconômico com os povos indígenas, as estratégias de desenvolvimento econômico, as formas de recrutamento para o trabalho e as conseqüências reais dessas práticas sobre o destino dos índios. Nessa área de pesquisa os dados não são abundantes nem as análises tão claras para se formar um quadro definitivo do que era a sociedade maranhense e como ela se comportava em relação aos Tenetehara. O que motiva esse esforço é tentar traçar uma narrativa histórica sob o ângulo - não ouso dizer o ponto de vista - da história de um povo indígena.

A reconstrução que aqui tento apresentar da cultura e sociedade tenetehara, especialmente dos primeiros três séculos, não deixa de ser calculadamente um exercício de especulação e comparação. Como viviam realmente, que rituais partilhavam, como guerreavam, ao menos quantas aldeias havia e como se relacionavam umas com as outras são assuntos que mal podemos discernir pelos dados que temos. De todo modo, arrisco-me a esboçar alguns traços socioculturais nos capítulos que se seguem e deixo para mais à frente, nos capítulos XI, XII e XIII, o detalhamento de sua economia em transformação, que lastreia a sociedade em movimento.

Convém destacar que comecei a reconstruir e analisar a história tenetehara depois de adquirir uma certa compreensão dessa sociedade nos tempos atuais, através de meu próprio trabalho de campo entre eles, complementada pela leitura da literatura etnográfica a seu respeito . Meu método de análise parte desse conhecimento prévio e se desenrola num constante vai-e-vem no tempo. A partir da síntese da sociedade tenetehara dos dias atuais tento traçar a tese anterior através da análise da antítese, seu confronto com a sociedade envolvente. Em seguida busco a confirmação desta tese na história do Maranhão. Aí reconfirmo o movimento do passado para o presente. Em muitos momentos, essa confirmação não pôde ser obtida, e aí a solução apresentada tem, forçosamente, um caráter especulativo, embora baseado em inferências estruturais. É claro que este método de recomposição das transformações socioculturais é complementado por um traçado cronológico dessas transformações a partir de um ponto de referência dado, algum momento na história que tem um significado especial ou paradigmático. A narrativa e as análises dos temas deste e de outros capítulos são apresentadas em seqüência cronológica.

Para contextualizar a análise da história tenetehara, uma palavra deve ser dita a respeito do fatores históricos que condicionam as possibilidades de sobrevivência de sociedades indígenas brasileiras. Em primeiro lugar, há que se considerar o impacto da chegada dos europeus no Novo Mundo. A esse respeito todos os estudos apontam para o efeito das doenças trazidas pelos europeus como sendo o fator mais determinante de destruição e desestruturação dos povos das Américas (Ribeiro 1970; Hemming 1978, 1984; Wagley e Harris 1958). A taxa de queda demográfica nos primeiros anos de contato, antes que algum grau de imunização natural seja adquirido, determina em larga medida a margem de sobrevivência futura dos povos indígenas. Somente aqueles que conseguem manter uma unidade biológica de auto-reprodução mínima, experimentando e vencendo muitos surtos epidêmicos, são capazes de continuar sendo uma etnia, um povo específico. Na história do Maranhão, muitas etnias foram esmagadas nos primeiros anos de relacionamento interétnico e perderam esta condição essencial e mínima para sobreviver. Outras agüentaram, mas foram perdendo forças demográficas e culturais e, no decorrer dos anos, desapareceram como grupo étnico específico. Os Tenetehara obviamente estão incluídos entre os que conseguiram manter-se firmes e suportar o impacto das doenças trazidas do Velho Mundo.

Dois outros fatores a serem superados para que uma etnia tenha chances de sobreviver e prosperar são a miscigenação, como um processo de assimilação, e a perda do controle efetivo da terra, como recurso básico de uma economia de agricultura tropical, de caça e coleta. Esses fatores são bem conhecidos na história do Brasil. A colonização do recôncavo bahiano, de Pernambuco, São Paulo e Rio de Janeiro, todas implantadas na segunda metade do século XVI, estabeleceram o modelo que mais tarde iria ser aplicado no interior do país e na Amazônia, inclusive no Maranhão. A miscigenação de portugueses com índios, o uso forçado de sua mão-de-obra e a apropriação de suas terras foram os primeiros passos dessa colonização. Na Amazônia, a história se repete com mais intensidade e com a particularidade de não ter tido escravos trazidos da África até praticamente o terceiro quartel do século XVIII . A população que formou aquela sociedade, seu povo e parte de sua elite, foi amplamente recrutada, nas primeiras gerações de assimilação, das sociedades indígenas que habitavam a região.

A apropriação do capital social - mão-de-obra e conhecimento cultural - e do capital fixo - terra e bens naturais - dos índios foi a base da colonização do Maranhão. Por um século e meio, o Estado do Maranhão e Grão Pará consistiu em uma reduzida população de colonizadores portugueses e seus descendentes diretos, centrada em dois núcleos administrativos tentando comandar a produção de açúcar e tabaco, como se fazia no Nordeste do país, mas sem iguais condições de fertilidade e adequação de solos. A produtividade era baixa na agricultura e na pecuária e com isso não havia capital para importar escravos africanos para aumentar a produção. Agregada a estes empreendimentos havia o setor de coleta de produtos da floresta, como canela e salsaparilha, que empregava uma população de índios aldeados e atrelados ao poder colonial. No todo, a economia se organizava por um modo de produção que requeria uma quantidade crescente de terra e de mão-de-obra barata, muito pouco desenvolvimento tecnológico, baixa taxa de poupança e baixo nível de comercialização. A terra era concedida aos colonizadores pelos governadores e capitães-mores. Quando havia povos indígenas, era-lhes expropriada pela sujigação militar, política, ou religiosa. Seu controle efetivo se dava pelo estabelecimento de fazendas auto-sustentáveis, com plantações de cana-de-açúcar e tabaco ou com a criação de gado, e, principalmente, pela fixação de uma população dependente e subordinada, identificada e minimamente leal ao processo colonizador.

A mão-de-obra indígena era alienada das sociedades tribais através da força militar realizada por expedições de guerra contra índios considerados inimigos da fé cristã, ou pelas chamadas tropas de resgate. Entendia-se pelo termo “resgate” o ato de comprar ou trocar por produtos portugueses aqueles índios que supostamente haviam sido feito prisioneiros e que estavam condenados a serem sacrificados e comidos pelos seus algozes. Parecia legítimo e cristão esse ato de benevolência que salvava vidas. Na verdade, todos sabiam que isso não passava de um artifício para burlar uma legislação que condenava a escravidão indígena, exceto nesses condições. Em todo caso, os índios eram subjugados e reduzidos à condição de escravidão ou de uma espécie de servidão involuntária . O recrutamento desta mão-de-obra resultou na incorporação de uma população que, ao perder seus meios culturais de reprodução, foi forçosamente se assimilando à incipiente sociedade colonial.

Nos casos em que estes três fatores - doenças, recrutamento de mão-de-obra e perda do controle territorial - se combinavam de forma sobrepujante, o povo indígena se extinguia, raramente deixando marcas. O povo tenetehara conseguiu evitar que esse processo avassalador se desenvolvesse integralmente e continuou a se reproduzir física e culturalmente sobre uma base demográfica e com o controle efetivo sobre grande parte de suas terras. A história de como se deu isto é o que nos interessa saber. Há razões específicas de conjuntura histórica que favoreceram esse acontecimento. Há também motivos que advém da própria cultura e sociedade tenetehara e da forma como se desenrolaram os eventos de relacionamento entre os Tenetehara e a colonização do Maranhão. Ao longo do presente capítulo a situação de contato e de relacionamento interétnico dos Tenetehara será comparada com a situação de outros povos indígenas do Maranhão para ilustrar as razões da sobrevivência ou extinção de cada um desses povos.

Colonização e desenvolvimento são entendidos aqui como processos sócio-econômico-demográficos muito semelhantes. Do ponto de vista dos Tenetehara, a diferença entre os dois é meramente de ordem cronológica, enquanto que, para a historiografia brasileira, são momentos e noções distintos. No Maranhão, o período de colonização tem início efetivo a partir de 1615, quando forças luso-brasileiras vindas de Pernambuco expulsam a incipiente colonização francesa. Segue até a independência do Brasil de Portugal em 1822. O período de desenvolvimento, em seqüência, se inicia a partir daquela data e vem até os dias de hoje, sendo mais ou menos identificado com o processo de busca de autonomia brasileira e de modernização.

Já pela perspectiva da história tenetehara, esses quase quatro séculos (1613-2000) podem ser divididos em cinco períodos consecutivos que são caracterizados pela preponderância de formas particulares de relações interétnicas tenetehara-brasileiras (ou portuguesas). Esses períodos são:

Formação das relações interétnicas (1613-1759), subdividida em
a. fase da escravidão: 1616-1652;
b. fase da servidão: 1653-1759.

Libertação e transição: 1760-1840.

Clientelismo e a política indigenista imperial: 1840-1889.

A transição republicana e a rebelião do Alto Alegre (1890-1910).

Política indigenista do século XX: SPI/FUNAI: 1910-1985.

A partir de meados da década de 1980 pode-se dizer que esteja surgindo uma nova fase, que podemos chamar de transição à autonomia. O período correspondente à fase da escravidão é o assunto do presente capítulo. Os períodos posteriores serão discutidos mais adiante.

Tupinambá, Tenetehara e outros índios

A primeira tentativa de colonização do Maranhão se deu em 1535-38 através de uma expedição organizada e financiada por uma associação entre João de Barros, Ayres da Cunha e Álvares de Andrade (Buarque de Holanda 1989, Vol. I:105-6; Sobrinho 1946:7). A esses homens foram doadas duas capitanias hereditárias compreendendo extensas faixas de terra que se estendiam desde o cabo do Rio Branco, na costa nordestina, até a desembocadura do Rio Amazonas, abrangendo inclusive a ilha de São Luís e áreas circundantes. Por aquele tempo certamente já havia notícias dessa região, embora não saibamos ao certo de que natureza e com que detalhes. Com efeito, Vicente Pinzón havia navegado por lá alguns meses antes de Cabral vislumbrar o Monte Pascoal, sendo por isso o primeiro europeu a conhecer, se não a descobrir o Brasil (Bueno 1988). Os donatários receberam o direito de estabelecer feitorias, repartir terras entre os colonos e de instalar as instituições pertinentes a uma administração portuguesa colonial. As capitanias hereditárias foram o primeiro projeto português de colonização da área da América do Sul que tinha sido destinada a Portugal pelo Tratado de Tordesilhas de 1494.

Esta expedição fora bem capitalizada e equipada pois comportava dez navios e 900 marinheiros e potenciais colonos, além de 120 cavalos, mas naufragou nas costas do Maranhão, já na baía que abriga a ilha de São Luís. Os relatos dos náufragos que conseguiram de alguma forma voltar a Portugal - e foram menos de 200 - levam a crer que esta ilha era habitada, naquele tempo, por “gentio tapuia”, ou índios de língua e cultura não tupi, que se mostraram hostis às intenções dos sobreviventes. Mesmo assim, alguns portugueses ficaram na região e se “nativizaram”, isto é, passaram a viver com e como os índios, sendo eventualmente incorporados em sua sociedade (Soares de Souza 1971: 46, 51; Salvador 1954:134). Quinze anos depois, dois filhos de João de Barros aportaram na ilha de São Luís com a intenção de retomar os direitos de seu pai e por lá passariam uns cinco anos, sem conseguir firmar uma colônia. Ao que parece, logo depois desse tempo, a partir da década de 1560, os índios Tapuias foram forçados a sair da ilha por um contingente numeroso dos aguerridos Tupinambá, vindos da costa leste (Métraux 1927: 6-10), e entrelopos franceses já se faziam presentes na região (Sobrinho 1946: 7-8). Os Tapuias expulsos teriam subido o rio Itapecuru, um dos principais formadores da baía de São José e foram se instalar nas matas que margeiam o seu curso médio, onde, mais tarde, ficaram conhecidos pelo nome de índios “Barbados”. Pelo menos é assim que foram relatados esses possíveis acontecimentos por cronistas portugueses anos mais tarde. O certo é que tantas outras dificuldades políticas e econômicas foram impedindo os portugueses de fazerem novas tentativas de colonizar o Maranhão, até a segunda década do século XVII, quando o controle desta região ficou ameaçado pela instalação de uma colônia de franceses.

Em 1612, uma expedição francesa fundou, com todas as solenidades pertinentes e mais algum exagero extra para bem impressionar os nativos, a colônia “França Equinocial”, localizada num promontório a noroeste da ilha de São Luís, entre os rios Bacanga e Anil, iniciando assim a história do Maranhão luso-brasileiro. À época, a ilha já estava amplamente povoada pelos Tupinambá que tinham vindo da costa leste movidos pelo sentimento de ficar longe dos portugueses (Abbéville 1945: 65; Métraux 1927:6-10). Marinheiros franceses vinham mantendo proveitosamente, há mais de 30 anos, relações comerciais de troca com os Tupinambá da ilha e da Serra do Ibiapaba, no Ceará. Pelos troncos de pau-brasil, tatajuba, tabaco e produtos tropicais exóticos que os índios carregavam até suas naus, davam em troca facas, machados, enxadas, tesouras, espelhos, panos, chapéus, contas de vidro e outras bugingangas baratas (Abbéville 1954: 63). A expedição francesa era dirigida pelo nobre Daniel de la Touche, o Senhor de la Ravardière, que havia recebido concessão desde 1605 de Henrique IV para colonizar a costa norte. Após a morte de Henrique IV, associara-se ao nobre bretão François de Razilly, de quem recebera apoio inclusive para convocar a ordem dos capuchinhos de Paris, que enviara quatro missionários, entre eles Claude d´Abbeville e Yves d´Évreux, a quem mais tarde iriam se juntar mais doze frades. Os Tupinambá receberam a todos com honra e reverência (Pianzola 1991: 43-57).

Havia entre os Tupinambá, vivendo integrados com eles, certamente em posições de privilégio, com mulheres e filhos, muitos franceses, quase todos de origem bretã e normanda. Gente rude, de extração rural, capaz de viver como índios, sentindo o prazer e a liberdade dessa aventura. Eram conhecidos como turgimons, ou intérpretes, ou ainda "línguas", por saberem se comunicar bem na língua tupi. Esses franceses conheciam razoavelmente bem a cultura e os costumes dos índios, partilhavam de suas guerras e de seus temores, e serviam de intermediários entre os Tupinambá e os chefes das naus e autoridades francesas. O mais experiente deles era conhecido igualmente por franceses e índios pela alcunha de Mingau (que erroneamente aparece na historiografia impressa com a má grafia “mingan”) e era bastante requisitado pelas autoridades francesas. Na iminência da instalação de uma colônia francesa, passaram a prometer aos Tupinambá a chegada de paí poderosos que viriam para ensinar-lhes novas formas de viver uma vida de boa conduta e de paz.

Paí era o nome que os Tupinambá aprenderam a dar aos padres franceses falados pelos turgimons. Eles os comparavam aos seus grandes xamãs, chamados pajé-guaçu, líderes religiosos que, além de se comunicar com os espíritos, tinham a função de estimular e guiar os Tupinambá em suas migrações à procura da “Terra sem Mal”, o principal motivo da escatologia religiosa desse povo. Afinal, os Tupinambá tinham vindo em grande número desde o rio São Francisco, Pernambuco e Paraíba não somente na tentativa de se livrar da invasão e escravidão promovidas pelos portugueses naquela região, mas também à procura de uma salvação físico-espiritual (Métraux 1979; Clastres, H., 1978). Tinham alcançado e se instalado na ilha de São Luís, onde viviam em segurança, mas sua inquietude se baseava em motivos profundos. Os pajé-guaçu (que, segundo o padre Fernão Cardim, também eram chamados de caraíba, [apud Métraux 1979:66] embora no Maranhão este termo fosse usado para significar estrangeiro, no caso, “francês”) lhes davam conforto espiritual e alguma orientação político-social. A vinda de país mais poderosos ainda, originários do mundo extraordinário dos franceses, foi esperada com ansiedade e temor (Abbéville 1945:59-60, 74 ff).

Claude d’ Abbéville ([1613]1945) e Yves d’ Évreux ([1615]1874) descreveram em interessantes detalhes o modo como os franceses chegaram, como foram recebidos e como deram início à instalação da colônia. Tudo foi feito para impressionar os Tupinambá e com isso conseguir arregimentar, sem violência, a força de trabalho daqueles índios, sem a qual não conseguiriam prover as necessidades básicas da colônia, nem manter a extração do pau-brasil para exportação. Escrevem também sobre como os Tupinambá sentiam ódio e pavor dos portugueses, sobre suas dúvidas em relação à doutrina da religião cristã e sobre as primeiras reações à presença dos franceses e à nova ordem política em implantação, uma ordem que exigia obediência e serviço às autoridades, como novos vassalos que deveriam ser do rei de França. Nesses dois livros há tanta informação etnográfica sobre os Tupinambá quanto a dos melhores cronistas do século anterior. Na verdade, Abbéville e Évreux foram os últimos cronistas da cultura e sociedade tupinambá, e dos seus melhores. Depois deles muito pouco foi acrescentado a essa matéria, a não ser por missionários jesuítas nas missões do Paraguai e sul do Brasil. Porém, para nossos propósitos, basta-nos analisar o especial interesse suscitado no relato desses capuchinhos sobre o relacionamento interétnico, o povoamento e a distribuição de aldeias tupinambá na ilha, nos seus arredores e em outros lugares do Maranhão e Pará.

Em 1612, a ilha de São Luís, que tem uma área de 2.200 Km2, continha cerca de 27 aldeias que se distribuíam por todos os cantos e se ligavam entre si por caminhos ou pelos cursos dos rios Bacanga e Anil. As aldeias consideradas pequenas tinham entre 200 a 300 moradores e as grandes de 500 a 600. No total, pelo cálculo de Abbéville, havia entre 10.000 e 12.000 índios Tupinambá. Isto daria uma densidade demográfica da ordem de cinco pessoas por quilômetro quadrado, uma taxa talvez só encontrada, à mesma época, na várzea do rio Amazonas .

Uma aldeia pequena tinha de um a dois líderes, os tubixaba (ou tuxaua, na grafia e pronúncia do século XVIII) velhos conceituados ou guerreiros maduros vivendo com muitos parentes ao seu redor. As maiores podiam ter até quatro ou cinco tubixaba, sem que nenhum se sobressaísse dos demais. O líder da maior aldeia, o velho e respeitado Japiaçu, era, de uma forma não muito clara, reconhecido como chefe maior, ou morubixaba, de toda a ilha. Os franceses assim o queriam tratar, mas os relatos dos capuchinhos não deixam saber ao certo o que isso significava em termos de poder. Ao que parece, o prestígio de Japiaçu se devia ao reconhecimento de sua liderança em guerras passadas e a uma certa capacidade diplomática de lidar com conflitos entre outras lideranças. Entretanto, os franceses sabiam que tal liderança não constituía poder de mando, e assim negociavam com cada líder de aldeia e até de famílias extensas, independente do conhecimento e do consentimento de Japiaçu. Tal forma de relacionamento dava aos franceses um imenso trabalho, o qual transparece nos escritos dos capuchinhos.

A forma de liderança entre os Tupinambá tem suscitado indagações sobre o nível de sua organização política. Tudo indica que não havia poder político acima do consenso operado pelos tubixaba em cada aldeia. No Maranhão, como no recôncavo bahiano e no planalto de Piratininga, havia um número ponderável de aldeias que se confederavam em aliança e que tinham a figura do morubixaba. Entretanto, esse título não conferia uma autoridade de mando político, nem de comando econômico sobre as demais aldeias. Se isso tivesse ocorrido, os Tupinambá teriam alcançado o nível de poder político conhecido na literatura antropológica sul-americana como “cacicato” (Steward and Faron 1959; Roosevelt 1992). Ao que parece, o morubixaba, ou cacique, entre os Tupinambá era um poder nominal ou potencial, mas nunca real (Abbéville 1945: 58, 92, 234; Métraux 1979; Fernandes 1963, 1970).

Fora da ilha, a oeste, no lugar chamado Tapuitapera, havia de 15 a 20 aldeias tupinambá com uma população dita superior à da ilha (Abbéville 1945: 148). Mais a oeste, na baía de Cumã, havia outro conglomerado tupinambá com um número equivalente de aldeias. Dessa área até o Caeté, a “mata verdadeira”, na embocadura do rio Gurupi, que separa o Maranhão do atual estado do Pará, havia mais 20 a 24 aldeias tupinambá. No total é possível que houvesse de 40 a 50.000 Tupinambá vivendo ao longo da costa maranhense e paraense a partir da ilha de São Luís. A sudeste, e para o interior, na altura dos cursos médios dos rios Itapecuru e Mearim, havia outra concentração de aldeias tupinambá inimigas dos Tupinambá da ilha. A leste, ao longo da costa, viviam os temíveis e audaciosos Teremembés, índios de “fala travada”, e mais umas três dezenas de povos específicos chamados genericamente pelos Tupinambá de Tapuias, que não deixavam os Tupinambá se sentir inteiramente acomodados. Porém, penetrando pelo interior chegava-se à Serra do Ibiapaba, onde havia outra porção de aldeias tupinambá, bem como um grande número de aldeias de Tapuias de várias etnias. Todas essas concentrações tupinambá talvez tivessem se estabelecido recentemente, vindo da costa nordestina, embora seja possível que já houvesse Tupinambá no Pará, especialmente no delta amazônico e no baixo rio Tocantins. Abbéville (1945:149) relatou diversas visitas que fez a aldeias na ilha, bem como em Tapuitapera e Cumã. Sua visão é de que esses três núcleos tupinambá formavam um pacto de aliança entre si, para autoproteção e para guerrear os Tupinambá do Pará e de Ibiapaba, seus inimigos. Entretanto, cada aldeia ou grupo de aldeias partia para a guerra contra outras aldeias, tupinambá ou não, por iniciativa própria. Em visita a Cumã, por exemplo, Abbéville soube que tropas de guerreiros de algumas daquelas aldeias haviam marchado em direção oeste para atacar aldeias do baixo Amazonas. Já as aldeias da ilha tinham como seus principais alvos de expedições guerreiras os Tupinambá que viviam nos rios Itapecuru e Mearim e aqueles da Serra de Ibiapaba. (Abbéville 1945: 67, 95, 120-121).

Compreender a posição política dos Tupinambá do Maranhão é fundamental para este estudo sobre os Tenetehara por duas razões. Primeiro porque eles eram consideravelmente mais numerosos que qualquer grupo indígena, não só da região como também de toda a costa do Brasil, e por essa razão contribuíram enormemente para a formação do Maranhão colonial (e do Brasil em geral) tanto em termos demográficos como culturais. Em segundo lugar, porque é necessário que se conheça os Tupinambá em sua cultura e sua dinâmica com outros povos para que se possa distingui-los dos Tenetehara. Algumas famílias de índios Tupinambá foram missionizadas com índios Tenetehara e neles imprimiram o estilo de missionização jesuítica.

Os Tenetehara falam e os Tupinambá falavam línguas da família tupi-guarani muito semelhantes entre si (Rodrigues 1984/1985; 1986). Padre Antônio Vieira, o insigne jesuíta que dedicou boa parte de sua vida em defesa dos índios e falava a língua geral, uma variação simplificada do tupinambá, ensinada nos colégios jesuítas, ao entrar em contato com índios Tenetehara em São Luís, por volta de 1653, diz que a língua destes era “mais semelhante à dos Carijós [índios Guarani, culturalmente muito semelhantes aos Tupinambá, que viviam ao sul de Cananéia, São Paulo] que a qualquer outro do Brasil” (Vieira 1925: 394-395). Esta é uma afirmação surpreendente já que pode levar à hipótese de que os Tenetehara poderiam ser um subgrupo tupinambá igualmente recém chegado ao Maranhão e com alguma origem do sul do Brasil. Ou que teria havido um desenvolvimento paralelo de variação lingüística. Ou ainda, o que é mais provável, que o jesuíta se equivocara, querendo indicar que a língua tenetehara de fato era diferente da falada pelos Tupinambá. Sabemos igualmente que a língua dos Guarani era uma variação quase dialetal da dos Tupinambá, e ambas eram mutuamente inteligíveis. De qualquer modo, fica claro que a língua dos Tenetehara e a dos Tupinambá eram muito próximas, o que levanta a questão das semelhanças culturais entre os dois.

Entretanto, por mais que estes dois povos apresentem traços comuns que os liguem a uma mesma origem étnica, o que nos interessa aqui é identificar as diferenças culturais básicas que os separam. Talvez estas diferenças tivessem surgido em tempos recentes e em função do prodigioso crescimento demográfico dos Tupinambá que os fez mais poderosos. De todo modo, aqui se postula que a cultura tenetehara não apresentava a instituição do canibalismo dos Tupinambá, a qual compreendia, além das motivações de guerra e dos rituais conhecidos, a presença de um complexo religioso com pajé guaçu, que atuavam como proto-sacerdotes, com proto-templos e proto-ídolos (Fernandes 1963, 1970; Métraux 1927, 1979). Essa ausência se confronta com uma observação feita pelo Padre Vieira (1925: 394), a qual, entretanto, parece excessivamente generalizante para merecer crédito. Ele afirmava que todos os povos indígenas do Maranhão tinham “o costume universal de não ter ou tomar nomes” - o que significava tornar-se adulto - sem antes celebrar a cerimônia de “quebrar a cabeça do inimigo”. Considerando-se que quebrar a cabeça do inimigo fazia parte tanto da motivação de guerra quanto do ritual canibalístico dos Tupinambá, essa afirmação não deixa claro se ele queria dizer ou não que todas as tribos do Maranhão eram canibais. O certo, porém, é que outros cronistas não se dão ao trabalho de apontar quais outras tribos eram canibais. Essa preocupação só vinha à baila na hora de justificar a organização de uma tropa de guerra para tomar prisioneiros e fazê-los escravos. De qualquer maneira, sem o complexo cultural do canibalismo, a sociedade tenetehara certamente não apresentava aquela série de características demográficas e culturais que tornaram os Tupinambá um alvo de disputa da colonização portuguesa.

Tudo indica que os Tenetehara constituíam uma etnia distinta. Sua população era bem menos numerosa que a dos Tupinambá e se restringia a uma região mais ou menos delimitada. Suas aldeias eram autônomas, com liderança localizada, e continham talvez entre 200 e 300 habitantes, o que lhes dava um menor grau de coesão política. Essa característica social dava aos Tenetehara um poder de ação pequeno, mas lhes conferia uma estrutura social mais flexível, oferecendo maior potencial para a formação de novos agrupamentos em caso de perda populacional e, assim, maiores chances de sobrevivência. Em resumo, pode-se assumir que a sociedade tenetehara original era mais ou menos semelhante à de outras tribos tupi que conhecemos, como a dos Urubu-Ka’apor (Huxley 1956; Ribeiro 1974, 1996), Parakanã (Magalhães 1990), Araweté (Castro 1986), Assurini (Muller 1990), entre outras, que são caracterizadas por aldeias relativamente pequenas, formadas por grupos familiares sem estrutura de linhagem ou de centralização política dentro das aldeias ou acima delas. Tipos de organização social como esta não necessitam de elementos simbólicos socialmente fortes, como os rituais canibalísticos, para que seus membros consigam manter conscientemente uma cultura comum.

Os Tenetehara surgem no cenário histórico quando os franceses iniciam a exploração do interior do Maranhão. Em 1613, pouco tempo depois de se terem instalado na ilha, enviam diversas expedições de reconhecimento pelos rios de toda a região, inclusive aqueles desembocam nas baías que cingem a ilha de São Luís. Corria na época, e correu durante os muitos anos seguintes, a lenda de que havia ouro no alto Pindaré, fato motivador de diversas expedições ao longo da história, sempre sem resultados significativos. Subindo o rio Pindaré, uma pequena tropa comandada pelo Senhor du Prat dá com um povo de fala tupi. Esse acontecimento é relatado em carta ao padre Abbéville, que já havia partido de volta para a França, e é narrado pelo padre Yves d´Évreux, que permanecera por dois anos. Idêntica notícia é passada pelo Senhor de Pizieux ao mesmo frade, dizendo que “uma grande nação moradora no rio Pindaré” teria vontade de se tornar cristã (Abbéville 1975: 293, 296). Essa mesma informação vai ser repetida pelo Senhor de la Ravardiere ao passar o domínio da colônia aos portugueses, porém sem nada mais ser acrescentado (Sylveira 1976 [1624]). É que logo os franceses iriam se bater com os portugueses e não tiveram tempo para novas incursões no interior. Wagley e Galvão, ao escreverem sobre os Tenetehara (1949: 6) associaram a menção dessa nação indígena aos índios Tenetehara.

A Conquista do Maranhão

Em novembro de 1614, uma armada com oito navios, 230 soldados, 60 marinheiros, cerca de 300 índios Tupinambá de Pernambuco e da Serra do Ibiapaba, acompanhados de umas 300 mulheres e crianças, comandada pelo mameluco Jerônimo de Albuquerque, chega ao Maranhão com o propósito de expulsar os franceses. Em número muito inferior ao dos franceses e seus aliados, se alojam no continente, confronte à baía de São José, constróem um pequeno forte octangular, se entrincheiram e se preparam para esperar reforço antes de dar combate aos franceses em suas fortificações na ilha. Alertados por seus aliados Tupinambá, os franceses decidem atacar de sopetão para destruir esses inimigos. Erraram na estratégia e nas táticas de guerra. Os luso-brasileiros estavam entrincheirados num manguezal que os favorecia e dava margem de manobra para atacar e recuar. Numa batalha memorável, conhecida por Guaxenduba, a 19 de novembro de 1614, que durou praticamente um único dia, a tropa de Jerônimo conseguiu agüentar firme a investida de 200 soldados franceses e 1.500 índios, e ao final rechaçar e matar cerca de 115 franceses, inclusive diversos homens de nobreza, e mais de 500 índios, e tomar sete prisioneiros. Da sua parte, perderam não mais que uma dezena de luso-brasileiros e uma centena de seus aliados índios (Campos Moreno 1984 [1614]: 42-52; Sylveira 1976 [1624]: A3). Os franceses recuaram para o seu forte e, acometidos de dúvidas sobre a lealdade de seus aliados tupinambá e sem os reforços pedidos a França, acenam com um termo de trégua, o que foi aceito pelos portugueses. Acertaram de mandar navios para as respectivas cortes em Madri e Paris, com embaixadores para consultarem seus respectivos reis e voltarem com uma decisão conjunta, dando-se um prazo de espera de quatorze meses. Enquanto isso, cada uma das partes podia manter as suas posições respectivas.

Pouco antes do fim desse prazo, aportou no acampamento português um navio comandado por Alexandre de Moura, com patente de capitão-mor e com poderes de governador do Maranhão, para concluir o trabalho de Jerônimo de Albuquerque. Melindrado com essa imposição do governo geral do Brasil, Albuquerque e seus companheiros pressionam Moura, que desanuvia a situação declarando que voltará à Bahia logo que os franceses forem embora. Acertado esse acordo, eles decidem partir contra os franceses, dividindo-se em dois grupos, um comandado por Albuquerque, que penetra pelo interior da ilha, e o outro com Moura, que segue de navio contornando a ilha até São Luís. Os franceses capitulam sem resistência, entregam formalmente a colônia, e algumas semanas depois, em janeiro de 1616, partem em duas naus, deixando aqueles que resolveram ficar por vontade própria. Os portugueses tomam posse do forte de São Luís e logo iniciam o estabelecimento da colonização portuguesa. Reconhecem a validade estratégica do forte na ilha (mantendo o nome que os franceses haviam batizado em homenagem ao seu delfim), e enviam um navio para a embocadura do rio Amazonas para dar combate a outros invasores naquela região. Em fins de 1616, o capitão Francisco Caldeira de Castelo Branco funda Belém, na margem do rio Guamá, a alguns quilômetros da foz do grande rio.

Toda a expedição de conquista do Maranhão havia sido planejada a partir da Bahia, sob ordens da Coroa, mas com homens e mantimentos originários de Pernambuco. Entretanto, em pouco tempo a Coroa decidiu criar uma administração própria para a nova terra conquistada, separando-a do governo geral da Bahia. O fato é que a viagem pela costa do Maranhão a Pernambuco era mais difícil, por causa das calmarias e dos ventos contrários, do que diretamente para Lisboa. Assim, em 1621, as duas pequenas colônias portuguesas de São Luís e Belém, abarcando o vastíssimo território que ia do Ceará até os confins inexplorados da Amazônia, passaram a constituir o Estado do Maranhão e Grão Pará.

Semelhantemente ao Estado do Brasil, o Estado do Maranhão e Grão-Pará passou a ser dirigido por um governador geral nomeado pela Coroa, com sede em São Luís, e por mais um capitão-mor, com sede em Belém. Por volta de 1672, Belém toma o lugar de São Luís como sede da residência dos governadores e principal cidade daquele Estado. Em 1751, Belém se torna formalmente sede do governo geral. Em 1772 o Grão Pará, junto com a capitania do Rio Negro, passou a ter governo separado do Maranhão, ao qual se juntou a capitania do Piauí. Durante todo o período colonial, as cidades de Belém e São Luís tinham sua própria câmara (Marques 1970: 298), a qual, de acordo com João Francisco Lisboa, o eminente historiador do Maranhão em meados do século XIX, tinha as seguintes atribuições:

(1) fixar os preços dos trabalhos artesanais, da carne, sal, farinha de mandioca, garapa, tecidos e fios de algodão, medicamentos e produtos oriundos de Portugal;

(2) estipular salários para índios e trabalhadores livres;

(3) cobrar taxas, organizar o recrutamento da mão-de-obra indígena, fiscalizar as missões e declarar a guerra ou a paz a uma tribo indígena;

(4) criar povoados e postos avançados para o controle de Portugal (Marques 1970: 168).

Este sistema administrativo valeu durante todo o período de controle do Brasil por Portugal, ainda que, em 1772, o Estado tenha sido dividido em duas entidades separadas, o Estado do Maranhão (incluindo o Piauí) e o Estado do Pará (Marques 1970: 345).

Assim que os luso-brasileiros expulsaram os franceses, antes mesmo do sistema de governo ter sido instaurado, começaram a organizar a economia da região. A terra foi distribuída pelo capitão-mor aos conquistadores nobres, algumas como sesmarias, outras como se fossem capitanias hereditárias. A própria Coroa reservou para si alguns lotes de terras, especialmente na região do rio Gurupi, como se fosse donatária de uma capitania. Jerônimo de Albuquerque, apesar de filho de índia tupinambá com português, era do estamento social português, considerado como nobre, embora tivesse sido preterido como conquistador oficial do Maranhão. Emulando a economia em vigor no Nordeste brasileiro, os novos donatários assumiram a tarefa de estabelecer fazendas de tabaco e cana-de-açúcar. Como precisavam de mão-de-obra para esse trabalho e para construir a infra-estrutura da colônia, visaram de imediato os Tupinambá, ou aqueles que haviam ficado na ilha e nos arredores, pois muitos haviam fugido com a saída dos franceses. Apesar do modo respeitoso que adotaram nas primeiras falas com os Tupinambá da ilha, na presença dos franceses, inclusive citando a Lei de 1610, que proibia a escravidão de índios (Campos Moreno 1984 [1614]: 87), em pouquíssimo tempo os Tupinambá foram postos para trabalhar sob o comando de capatazes, e logo se deu o primeiro levante contra os novos colonizadores. Ainda em 1618 (Sylveira 1976 [1624]: A6; Marques 1970: 298), os Tupinambá de Tapuitapera e Cumã, na costa oeste maranhense, e as aldeias localizadas perto de Belém, se rebelaram contra a dominação portuguesa, certamente em razão do excesso de violência, mas também, aparentemente, movidos por alguma ilusão de que os franceses ainda poderiam voltar. Em Belém, fizeram um cerco que quase aniquilou de vez os moradores e soldados portugueses. Em Tapuitapera, estavam prontos para matar todos os portugueses de uma só vez quando um delator avisou os portugueses da ilha, e o castigo veio de forma rápida, sanguinária e exemplar pelo comando do capitão-mor Jerônimo de Albuquerque e seus capitães de infantaria Bento Maciel Parente e Mathias de Albuquerque. O capitão-mor foi de navio socorrer Belém e seus tenentes seguiram por terra, com cerca de 80 portugueses e mais de 600 Tupinambá frecheiros, sob seu comando. Aprisionaram os amotinados de Tapuitapera e os mataram na boca dos canhões. Em seguida, prosseguiram rumo oeste pelas aldeias do Cumã até o Pará, onde fizeram uma carnificina de tal monta que os números parecem inacreditáveis. Simão Estácio da Sylveira, que esteve no Maranhão um ano depois, relata que “fez neste gentio grandes estragos, e os mais delles descompostos de suas aldeas, e fugitivos pellos mattos cahirão nas mãos dos Tapuyas (outra nação sua contraria) que com esta occazião matarão, comerão, e cativarão quantos acharão, e se entende, que passarião de quinhentas mil almas os mortos, e cativos”.

Já o cronista Bernardo Pereira de Berredo, que foi governador do Maranhão e Grão Pará um século depois (1718-1722), daria um número arredondado de 30.000 Tupinambá mortos. Com isso, Berredo iria concluir que aquela repressão “extinguiu por aquela parte as últimas relíquias destes bárbaros” (Berredo (s/d [1749]: 131; Kiemen 1945: 22, fl. 10; Marques 1970: 298).

Para ser exato, os índios Tupinambá continuaram a existir, ainda que progressivamente em menor número e com força político-cultural cada dia mais frágil. Em 1619, apesar da fuga de índios Tupinambá da ilha, após a saída dos franceses, e logo depois da grande repressão aos Tupinambá da costa, havia ainda nove aldeias Tupinambá na ilha de São Luís, algumas com índios que haviam vindo de Pernambuco. Esse número iria cair nos anos seguintes devido às epidemias que espocaram e certamente aos maus tratos dos colonizadores portugueses. Outros povoamentos tupinambá no baixo Amazonas foram novamente atacados por Manuel de Souza Deça que “subjugou o resto que ficou dos Topinambás” . Pouco mais de trinta anos depois, em 1654, haviam sobrado somente cinco dessas aldeias na ilha de São Luís (Vieira 1925: 388); pelo fim do século, somente “duas ou três aldeotas” (Bettendorf 1910: 12). Porém, em 1730, esse número teria crescido e se estabilizado nas três missões jesuíticas localizadas na ilha, compreendendo talvez sete ou oito aldeias, sendo que a maior tinha uma população de 301 índios cristianizados, presumivelmente descendentes, em sua maioria, dos Tupinambá (Leite 1943: 104-106).

Em suma, a conquista e colonização inicial do Maranhão cobrou um preço altíssimo aos Tupinambá. Na ilha de São Luís, seu declínio populacional vai de 12.000 em 1612 para talvez 1.000, 120 anos depois. Se contarmos todos os Tupinambá da costa do Maranhão (incluindo Tapuitapera, Cumã e Caeté, conforme as estimativas dos capuchinhos franceses) em 50.000, e considerando que quase toda essa costa ficou deserta de gentes, essa queda demográfica é da ordem de 95%. Ao considerarmos um montante similar no baixo Amazonas, cujas populações foram arrasadas pelos conquistadores e depois incorporadas nas aldeias de administração e nas missões, veremos que a destruição foi avassaladora. Se pensarmos em termos culturais, na possibilidade de continuação do povo tupinambá, o desastre chega a 100%. No seu lugar iria florescer, como o contingente demográfico mais humilde da colônia, o índio aldeado, o lavrador sem terra, o agregado das fazendas, o pescador explorado, enfim, a base da cultura cabocla regional.

A Sociedade Colonial Maranhense (1614-1759)

A sociedade que se formou no Estado do Maranhão e Grão Pará se caracterizou, desde a sua incepção, pela violência contra os de fora - índios e estrangeiros - e por uma incessante competição interna pelo poder. Os primeiros vinte anos de sua implantação, realizados primeiro por Jerônimo de Albuquerque (que morre em 1619), depois por capitães-mores tais como Antonio de Albuquerque, Manuel de Souza D´Eça, Antonio Moniz Barreiros e Bento Maciel Parente, e enfim pelo primeiro governador geral, Francisco de Albuquerque Coelho de Carvalho (1625-36), são marcados pelo esforço para destroçar e submeter ao domínio colonial os Tupinambá que viviam da ilha de São Luís até a baía de Guajará, bem como as diversas feitorias e colônias de holandeses, ingleses e irlandeses que estavam estabelecidas no baixo Amazonas desde 1610. Nesse mesmo curto período os 500 a 600 portugueses e umas 300 mulheres que tinham vindo como conquistadores, bem como os 200 casais de açorianos pobres que tinham sido trazidos por contrato de imigração, se esmeraram em estabelecer um modus vivendi em que se impunham como autoridade inquestionável sobre os índios, que eram a sua principal fonte de riqueza. No propósito de ter e usar esse capital humano, que parecia sempre estar em falta, instalou-se uma disputa interna acirradíssima entre os conquistadores que viraram colonizadores ou colonos, os missionários, especialmente os jesuítas após 1653, e os funcionários do Reino que vinham periodicamente de Portugal quase sempre com a finalidade de fazer fortuna e voltar.

Vimos como foi prontamente solucionado o problema da autonomia dos Tupinambá pela sua ampla aniquilação física e subjugação política. O estilo brutal e inclemente que caracterizou essa tarefa deu a Bento Maciel Parente o epíteto de “o mais feroz exterminador dos índios”, qualidade que foi recompensada pelo rei de Portugal com a doação real da capitania do Cabo do Norte (atual Amapá) e mais tarde da própria governadoria geral do Maranhão e Grão-Pará (1638-41) . Nesses primeiros anos também foram dominados os índios Guaianases que viviam no baixo curso dos rios Monim e Itapecuru, abrindo uma zona para povoamento e implantação de engenhos de cana-de-açúcar. Outros povos indígenas no baixo e médio Tocantins, nos rios Pacajá e Xingu, nas ilhas e nas terras ao redor da foz do Amazonas foram atacados por uns tantos capitães de entradas para serem escravizados. Bento Maciel anchamente declara em representação feita ao rei de Portugal que só ele havia subjugado cerca de doze povos diferentes. Tal foi o excedente inicial que muitos deles foram vendidos para Pernambuco, onde, embora a mão-de-obra principal desde o início do século XVII já fosse africana, ainda havia necessidade do braço indígena para tarefas complementares . Quanto às colônias estrangeiras, os dois fortes holandeses situados próximo ao rio Xingu foram dominados ainda em 1621, enquanto os fortes e colônias ingleses e irlandeses localizados no lado norte da foz do Amazonas foram destruídos ao longo daquela década, sendo o seu último bastião destroçado em 1632. Seus sobreviventes, quase uma centena deles, foram feito prisioneiros e aliciados para trabalhar para os portugueses .

A colonização portuguesa se assentou em seis áreas do vasto novo estado - a ilha de São Luís, Alcântara (ou Tapuitapera, como também era chamada), o recôncavo do baixo Monim e Itapecuru, as terras costeiras dos rios Gurupi e Maracaçumé (área também conhecida como Caeté), no Maranhão; Belém e suas imediações, além de Cametá, no baixo Tocantins, e Gurupá, no baixo Amazonas, bem como a capitania do Cabo do Norte, atual Amapá. Exceto pelo baixo Munim, o Gurupá e o Cabo do Norte, as demais áreas haviam sido povoados pelos Tupinambá. A capitania do Cabo do Norte, que havia sido concedida a Bento Maciel Parente, foi abandonada como projeto colonial. O Caeté, que ficou como capitania real, também não prosperou. Nas demais áreas foram distribuídas sesmarias para aqueles que haviam participado na conquista e nelas iriam se implantar fazendas de cana-de-açúcar e tabaco, algum algodão, gado e mais tarde anil, sempre no sentido de assim formar uma sociedade colonial aos moldes daquela que já se formara no Estado do Brasil.

Era terra mais do que suficiente para o pequeno número de colonizadores com algum cabedal, aliás, cabedal esse que se resumia, então e pelos anos afora, ao braço indígena. Já em 1624, o jovem capitão-mor do Maranhão, Antonio Muniz Barreiros, se vê às voltas com a disputa pela mão-de-obra indígena. Em carta ao rei queixa-se de que havia falta de gentio para a lavoura e sugere que não fossem doadas aldeias de administração a quem não tivesse engenho de cana-de-açúcar . Preferencialmente a mão-de-obra indígena devia ser escrava mas, como nem sempre era possível, devido às objeções contidas nas leis portuguesas, o braço servil do índio aldeado perto da fazenda ou mesmo em missões religiosas, podia ser requisitado a um custo muito baixo. Todos queriam escravos domésticos para pescar seu pescado, plantar e manter uma roça de mandioca, milho e abóbora e cuidar dos afazeres pesados da casa. Até os pobres açorianos trazidos para preencher o espaço médio de pequenos lavradores e artesãos da sociedade também queriam escravos domésticos.

Em meados da década de 1630, pelos cálculos de dois holandeses que estiveram presos por 8 e 12 anos no Maranhão e Pará, Gedeon Morris de Jonge e Jean Maxwell, essa sociedade era formada por uns 1.300 portugueses capazes de pegar em armas, além de umas 900 mulheres, com quem constituíam família. Se considerarmos uma baixa média de dois filhos por família, a população total do estado chegava portanto a 4.000 portugueses ou descendentes de portugueses. Essa população estava distribuída entre São Luís e suas imediações (ilha, Alcântara e Itapecuru) com 500 a 600 casais formando ao todo 700 a 800 homens de armas; o Caeté, com 15 portugueses; Belém e suas imediações, com 300-400 casais formando 500 portugueses de armas; Cametá, com 15 a 20 portugueses; e Gurupá, com 30 soldados portugueses. A sociedade se alicerçava sobre o trabalho de cerca de 7.000 índios escravos e 14.000 índios livres (que mais adiante analisaremos como estando em regime de servidão involuntária) que viviam em cerca de 40 aldeias assujeitadas aos portugueses . Portanto eram sete índios escravos para cada casal de portugueses e até quatorze índios aldeados sob o controle de capitães, fazendeiros e das câmaras das cidades, trabalhando um ano inteiro por um machado e um facão, ou três varas de pano e um machado (quando eram pagos) . Havia ainda cerca de 100 estrangeiros entre holandeses, ingleses e irlandeses, que trabalhavam como comissários nos engenhos de cana-de-açúcar e nos fumais. Morris de Jonge escreveu um primeiro relatório para a Companhia das Índias Ocidentais tentando convencê-la de que valia a pena conquistar o Estado do Maranhão e Grão-Pará como extensão do controle das províncias nordestinas. Achava que um exército de 1.000 holandeses poderia tomar o Maranhão e o Grão-Pará, e contava que uns 100.000 índios de diversas etnias que calculava haver no baixo Amazonas estariam dispostos a se aliar com quem fosse inimigo dos portugueses. Entretanto, o retorno econômico dessa arriscada aventura não parecia ser muito promissor. Segundo Morris de Jonge, entre as fazendas e os cinco engenhos de açúcar a produção econômica nessa quadra de 1630 era bastante modesta: 1.500 caixas de açúcar; mais de 5.000 rolos ou 10.000 arrobas de fumo; 100 fardos de algodão, além de laranjas e madeira. No espólio de guerra haveria ainda patacões e cruzados obtidos com a venda de índios para Pernambuco e mais ferro de canhões e munição.

Certamente não foi por motivos econômicos imediatos que os holandeses eventualmente enviaram uma armada de “770 soldados e copioso número de índios” para dominar o Ceará e depois o Maranhão, não tendo chegado a Belém, erro que Morris de Jonge achou crucial para a derrocada do empreendimento. A presença holandesa no Maranhão durou de novembro de 1641 a fevereiro de 1644, tendo sido não mais do que um saque prolongado que, além de não trazer vantagens econômicas, debilitou as forças militares da Companhia das Índias Ocidentais. Para os colonizadores portugueses esses anos, que coincidem com a restauração da Coroa de Portugal, livrando-se do domínio espanhol, confirmaram o espírito de autonomia e de integração ao lusitanismo - o mesmo que estava ocorrendo em Pernambuco. Politicamente, o governador geral de então, Bento Maciel Parente, saiu-se desmoralizado por ter entregue São Luís sem resistência, tendo sido preso e levado para a fortaleza de Coelen, em Natal. Consagrados ficaram o ex-capitão-mor tornado fazendeiro Antonio Muniz Barreiros que comandou as forças locais até sua morte, e Antonio Teixeira de Melo, que o substituiu até a retirada dos holandeses e a chegada do novo governador geral, Pedro de Albuquerque.

O que emerge consistente desse período que vai até a década de 1640 é não somente a consolidação política do Estado do Maranhão e Grão-Pará mas também a configuração da sua sociedade e cultura, a qual vai se manter pelos próximos 120 anos, até que se desenvolva mais intensamente uma nova economia pela introdução de novos produtos de exportação e especialmente do braço africano. Naqueles primeiros 25 anos de colonização se configuram os dois estamentos fundamentais da colonização maranhense: os portugueses, ou brancos, incluindo os cristãos novos e os estrangeiros integrados, com algumas poucas famílias um tanto mestiças, mas progressivamente cada vez mais brancas pelo casamento endogâmico, bem como os oficiais do Reino que vinham periodicamente, além do clero religioso e secular; e os índios, nas condições de escravos, livres (servos) e selvagens. No meio desses dois foi se constituindo um subestamento de mestiços ou mamalucos, originalmente filhos de portugueses e índias que não eram socialmente aceitos pelo lado paterno , depois se reproduzindo por conta própria, que serviam de intermediários entre os brancos e os índios.

Esses estamentos se realizavam na prática como subclasses ou categorias sociais, de acordo com suas posições no sistema econômico . Seguindo os cálculos de Morris de Jonge, os postulados 4.000 portugueses seriam cerca de 16% da população, dos quais se pode conjecturar que não mais do que umas 100 famílias, ou umas 400 pessoas, ou 1,6% do total, constituíssem a classe dos “nobres”, as “famílias principais”, o topo máximo dessa elite . Os demais 14,4% se firmaram como os donos de pequenos e médios canaviais e fumais, militares e preadores de índios a soldo ou por conta própria, artesãos qualificados, barqueiros, comerciantes menores, etc. O estamento dos brancos, os únicos com direitos políticos, é aquele que, ao longo do período colonial, será chamado de “povo”, cuja opinião se fazia ouvir através de seus líderes, nas câmaras e senados de São Luís e Belém, através de petições ao rei, pelo envio de procuradores a Lisboa, ou, no limite, pela rebelião. Embora fosse corriqueiro e absolutamente aceitável que os portugueses tivessem direitos sexuais sobre as índias e mantivessem concubinas, os rebentos mestiços raramente eram aceitos e incorporados ao estamento dos brancos. Um mamaluco como Jerônimo de Albuquerque, nascido de uma índia Tupinambá em Pernambuco (em 1548), iria se casar com uma portuguesa, e seus filhos iriam se casar com brancas até apagar os traços de sua ancestralidade indígena . A partir do momento em que a sociedade se consolidou, após a expulsão dos holandeses, tal atitude tornou-se um requisito fundamental para se manter no topo da sociedade. A endogamia oficial prevaleceu como meio de reprodução do status quo, criando uma ideologia de pureza de sangue que à época se comparava ao sistema de castas das Índias Orientais, embora não tivesse sanção religiosa nem a inflexibilidade deste último. De todo modo, pode-se dizer que em geral os brancos se bastavam a si mesmos.

Os filhos mamalucos dessa elite eram aceitos pelo estamento indígena como seus superiores, tornando-se uma subclasse. Na década de 1630, seriam talvez uns 2.000 dos 14.000 índios livres ou 8% do total. Sua posição social se devia ao trabalho que exerciam como cabos de guerra, soldados, marujos e feitores de índios nas fazendas ou nas aldeias de administração. Era considerada uma gente dura e até impiedosa no trato com os índios. Dadas as condições de vida que tinham, é provável que raramente constituíssem famílias estáveis, embora deixassem prole por onde passavam e dominavam. Alguns dos seus filhos seguiam o caminho do pai, outros eram incorporados aos índios de aldeia. Com o passar dos anos uma parte deles iria ser incorporada ao pequeno estamento superior como uma subclasse baixa do povo, enquanto a maioria foi descambando para a classe de homens livres sem terra própria, vaqueiros, agregados de fazenda, soldados, ou trabalhadores urbanos de baixa qualificação.

Os índios aldeados, que eram de fato índios servos, com um contingente de uns 12.000 (14.000 menos 2.000 mamalucos) formariam assim uns 48% da população total. Trabalhavam por salários irrisórios nas fazendas e no serviço pesado de administração pública, construindo estradas e edifícios, e inclusive servindo nas operações de guerra. Constituíam famílias, que no entanto se desagregavam com freqüência, pois muitas vezes os homens não eram liberados para voltar para suas aldeias a tempo de fazer suas roças e prover alimentação, enquanto as mulheres eram recrutadas para trabalhar como domésticas e desencaminhadas da família. A esse respeito talvez valha a pena citar uma observação, que prima pela distorção hipócrita característica da sociedade machista e colonialista, feita ainda em 1587 pelo rico fazendeiro Gabriel Soares de Souza sobre índias Tupinambá da Bahia: “Também as moças deste gentio que se criam e doutrinam com as mulheres portuguesas, tomam muito bem o cozer e lavrar, e fazem todas as obras de agulha que lhes ensinam, para o que têm muita habilidade, e para fazer coisas doces, e fazem extremadas cozinheiras; mas são muito namoradas e amigas de terem amores com os homens brancos” (Soares de Souza 1971:313-4). Embora formalmente livres, os índios aldeados eram de fato recrutados involuntariamente para esses serviços, podendo ser castigados por não obedecer às ordens dos patrões. Para um observador interessado da época, eles sofriam mais do que os próprios índios escravos porque estes últimos seus senhores cuidavam mais para que não morressem . Constituíam a maior parte da mão-de-obra colonial e foram talvez o principal osso de disputa das forças políticas coloniais. No correr dos tempos, na medida em que foram perdendo sua autonomia cultural e o uso exclusivo das terras onde moravam, foram se misturando com os mamalucos pobres para constituir a grande classe de pobres da sociedade maranhense.

Os 7.000 índios escravos, que chegavam a 28% da população total naquela quadra, eram os escravos domésticos que cuidavam da casa e do provisionamento alimentar dos senhores, bem como os trabalhadores permanentes das fazendas. Como escravos podiam ser seviciados, punidos à vontade, alugados a outrem e vendidos. Faziam o contraponto com os índios livres - e por isso se rivalizavam - porém na medida em que foram sendo libertos pela injunção das leis, ou seu contingente diminuía por morte e não era recomposto, foram se desagregando do jugo pessoal dos senhores e se incorporando ao contingente maior de índios aldeados, caboclos sem terra garantida, agregados de fazenda, empregados domésticos e meniais, sendo tratados como servos. Por fim, havia os índios selvagens, gozando de autonomia tribal, vivendo à margem do sistema colonial, mas que serviriam até o final do século XVIII e princípios do século XIX como reserva de mão-de-obra e de tenência de terra. Provavelmente chegavam a mais de 300.000 no que hoje é o estado do Maranhão, e a um milhão no baixo Amazonas, onde hoje é o estado do Pará.

O relacionamento entre esses estamentos e suas incipientes subclasses, que por sua vez estavam sob uma incontornável hegemonia metropolitana, se pautava por uma cultura de dominação de caráter totalitário que buscava preservar de todas os modos aquilo que era dado como natural. Nos extremos desse relacionamento estavam, por uma lado, a certeza que os portugueses tinham do direito de escravizar ou sujeitar os índios ao seu bel prazer e interesse. De transparente representatividade desse sentimento é a observação que faz o procurador Miguel Guedes Aranha em 1685: “... sabido era que differentes homens eram proprios para differentes cousas; nós [os brancos] eramos proprios para introduzir a religião entre eles; e elles adequados para nos servir, para caçar para nós, para pescar para nós, para trabalhar para nós” .

Do outro lado, havia o sentimento indígena de liberdade que se representava na sua vida de pouca ambição a acumular bens, pouca disciplina e muito gozo, nas guerras, nas fugas, na insistência em preservar seus costumes, em não aceitar o deus cristão, na malemolência ao trabalho forçado e nas rebeliões antiportuguesas. Os observadores e os poucos cronistas da época, os jesuítas e os funcionários do Reino não cansam de mencionar as dificuldades que tinham em fazer os índios trabalhar, em “introduzir a religião entre eles”, em ganhar a sua lealdade e fidelidade permanentes. Os holandeses também, a deduzir de uma observação feita por um tenente em 1638, tinham dificuldades em controlar os índios livres: “é uma turba de gente moça, selvagem e ímpia; os homens têm duas ou três mulheres, nada fazem senão comer e beber...” “... Não posso obter desses índios o mínimo serviço ou auxílio sem pagar” . O ouvidor geral e provedor-mor da fazenda Maurício de Heriarte, escrevendo em 1662, não economiza em qualificativos negativos “São ingratissimos, não conhecem o bem que se lhes faz, e o mal o trazem sempre na memoria, athé se vingarem; são em tudo variantes”, além de “falsos, cobardes, traidores, carniceiros, cruéis, amigos de novidades: seu Deos é a gula e a luxúria, são homicidas, mentirosos, aleivosos, gente de pouco crédito e de nenhuma caridade, sem conhecimento da fé”. E para fechar, não castigam nem doutrinam seus filhos . O padre jesuíta Luiz Figueira que passou quase meio século entre o Ceará e o Pará, e escreveu uma gramática tupinambá, os considerava “de pouco entendimento”, “nem sabem duvidar nem perguntar, e assy pouco sciencia basta para os cultivar e fazer delles o que quiserem”. O padre secular João de Souza Ferreira, escrevendo em 1693, os via como “gente sem consciência, razão nem vergonha, e sem haver entre eles quem se aplique a oficina alguma” .

As guerras ofensivas contra os índios eram sempre realizadas com uma impiedosidade sem tamanho. Por sua vez, as rebeliões ou ataques que faziam aos portugueses foram sempre debeladas com violência exemplar . Além da primeira rebelião de 1618, como vimos acima, uma seguinte deveria ter acontecido em 1635, da qual só ouvimos falar por uma observação de Morris de Jonge , porém foi abortada no início por delação de uma índia concubina. A rebelião liderada pelo ex-catecúmeno Mandu Ladino, em 1712, levantou índios aldeados e selvagens no rio Parnaíba e foi violentamente desbaratada por forças militares oficiais junto com bandeiras de particulares . Certamente outras rebeliões localizadas poderiam ter caráter de levantes não fossem elas abortadas antes de suas eclosões.

Entrementes, no dia-a-dia do relacionamento entre portugueses e índios, o usual era exercer a autoridade de tal forma que incutisse medo e induzisse a submissão. O segundo governador geral, Jácome Raimundo de Noronha, conquistador e colonizador há 16 anos no Maranhão, nomeado pelo rei por indicação dos colonizadores, resume em 1638 a atitude compartilhada da época: “Todo o dito gentio se sojeita por temor”. Em conseqüência, aconselha os portugueses a serem corajosos e demonstrarem seu poder mantendo suas fortalezas bem municiadas. O poder precisava ser exibido com armas, com punições , com rigor disciplinar, mas também com uma aura de legitimidade transcendental, que era dada pela religião. O catolicismo antireformista dos portugueses não tolerava outras religiões, embora na prática os portugueses aceitassem estrangeiros que fossem católicos ou que se convertessem, como bem demonstrou Gilberto Freire . Com efeito, os estrangeiros que foram feitos prisioneiros nos primeiros anos de colonização eventualmente se incorporaram à sociedade dominante, embora, provavelmente, como os judeus convertidos ou cristãos novos, sempre sob uma ponta de desconfiança e uma discriminação, decrescente pelas gerações sucessivas. Em relação aos índios, sua aceitação à mínima condição de humanidade exigia sua conversão ao catolicismo. Os termos e efeitos da conversão resultavam, aos olhos dos portugueses, na dupla condição de humanizar os índios e de fazê-los aceitar as regras de submissão pessoal e de acatamento à ordem política e cultural vigente. Para isso é que era preciso a presença de missionários - e só nesse sentido é que eles foram tolerados pelos colonizadores. O pior índio era aquele que não conseguia entender e aceitar os ensinamentos religiosos dos missionários. Ao justificar o sacrifício de alguns índios Tremembés à boca do canhão, em 1677, o jesuíta João Felipe Bettendorf, autor de uma extensa crônica sobre a missão jesuítica, diz que jamais havia sido capaz de dar a qualquer desses índios “um bom sentimento de Deus”. Ao tentar doutrinar um dos seus maiorais, teria ouvido “estas escandalosas palavras nicatui ibaca, ibinho, ycatú, que quer dizer: Céo, não presta para nada, só a terra sim, esta é boa” (Bettendorf 1990: 318). No cômputo geral, entretanto, a tarefa da doutrinação religiosa com fins sociais foi desempenhada com eficácia pelos missionários que se estabeleceram no Maranhão e Grão-Pará - jesuítas, franciscanos, carmelitas e mercedários. Todos eles não só acatavam e emulavam a autoridade máxima do rei e de seus administradores, como também procuraram introduzir a autoridade divina pelo símbolo e pela liturgia.

O estamento português reclamava da falta de lealdade dos índios. Obviamente eram reclamos miúdos, pois do ponto de vista social o estamento indígena estava tão dividido entre si que poucas vezes conseguiu se aliar sob algum motivo ou pretexto contra os portugueses. Os índios, que compreendiam muitas dezenas de povos diversos, sem que nenhum fosse hegemônico - nem mesmo os Tupinambá porque perderam a grande parte de sua população em pouco tempo de lutas - mantinham originalmente uma rivalidade própria, motivada pelo sentimento de identidade étnica. Na medida em que iam sendo incorporados ao domínio colonial, como escravos, índios aldeados, ou índios de missão, iam perdendo suas características étnicas específicas e sua condição indígena ia se subsumindo à sua condição de classe, como escravo de fazenda, escravo doméstico, servo, e intermediário entre brancos e índios. Essas condições, se bem que parecessem embaralhadas para os portugueses, eram mais que suficientes para que eles pudessem se aproveitar para jogar uns índios contra os outros: índios missioneiros contra índios de aldeias de administração, índios forros contra índios escravos, mamalucos contra todos. Por sua vez, os índios também percebiam as novas distinções entre si em relação a pontos mais próximos ou mais distantes dos seus senhores, o que levava não somente à competição social como a criar ou refundar rivalidades entre eles, dificultando a possibilidade de surgirem formas de solidariedade política.

Os portugueses enquanto estamento social estavam unidos contra os índios. Internamente, entretanto, a rivalidade era bastante intensa, não só entre as subclasses de missionários, colonizadores, funcionários da Coroa e os de posição mais baixa, como dentro de cada uma dessas subclasses. Os jesuítas eram hostilizados pelos franciscanos e carmelitas, seus principais rivais. Por todos e quaisquer motivos econômicos, políticos e religiosos prosperavam intrigas entre eles. Cada capitão-mor, cada governador geral que chegava tinha como meio de se fazer presente denegrir o seu antecessor. Aliás, logo na conquista há uma vigorosa disputa entre Jerônimo de Albuquerque e Alexandre de Moura, e entre aquele e Francisco Caldeira Castelo Branco, que vai fundar Belém. O primeiro governador eleito pelo povo, Jácome Raimundo de Noronha (1636-38), provavelmente cristão novo, não amortece as críticas que faz ao seu antecessor, o falecido Francisco Albuquerque Coelho de Carvalho (1625-36), acusando-o de roubo e envio para a Índia de 200.000 cruzados do tesouro, de fazer uma lista de falsos nomes para desviar 1.000 cruzados que deviam pagar os soldados, e de querer doar a capitania de Cumã para um seu irmão . Já os colonizadores, que viviam a maior parte do tempo em suas fazendas, só indo a São Luís e Belém na quaresma e no fim do ano , se arvorando de conquistadores e nobres, se engalfinhavam pelo aval econômico e político das autoridades da Coroa e dos próprios reis a quem recorriam com freqüentes petições para obter direitos e benesses particulares. O motivo principal era naturalmente o controle do braço indígena, que dava lucro, prestígio e poder. Entretanto esse motivo econômico se espalhava permeando todos os setores da vida social, criando um clima de intrigas, acusações, delações, enganações, traições e tudo mais. Quando Antonio Vieira chegou pela primeira vez a São Luís, em janeiro de 1653, esse clima parecia estar no auge, ao que parece devido à insegurança que viviam os moradores, num momento de indefinição quanto ao status que a cidade iria ter - se estado, se capitania, se sede de governo central, se simples sede de capitania. O espanto de Vieira pode ser percebido nos sermões que iria pronunciar naqueles anos em São Luís e Belém, especialmente aqueles sobre a corrupção das autoridades e a cupidez do povo.

Os parcos dados escritos, crônicas e análises desse período, que vai de 1614 a 1759, indicam que a estrutura da sociedade colonial maranhense ossificou-se muito cedo não só culturalmente mas também demograficamente. Parece que a última substancial leva de imigrantes portugueses que entrou no Maranhão foi ainda em 1629 . Com efeito, passados cinqüenta anos desde o censo feito por Gedeon Morris de Jonge, que contara cerca de 2.000 portugueses, essa população é dada pelo procurador Manuel Guedes Aranha, em 1684, como sendo de 2.000 “vizinhos”, o que daria um total de, digamos, 8.000 brancos. Isto quer dizer tanto um crescimento baixíssimo, bem como possivelmente uma equilibrada entrada e saída de portugueses. Uma década depois, em 1693, esse número é confirmado pelo padre João de Souza Ferreira que dá 700 vizinhos em São Luís, 300 em Alcântara ou Tapuitapera, 600 (sic!) em Icatu (provavelmente incluindo Itapecuru) e 400 em Belém e imediações . É possível, entretanto, que os números de Morris de Jonge tenham sido inflacionados ao contar os mestiços casados, que aos poucos vão sendo alijados da elite branca. Com efeito, o próprio Vieira escreve que havia, em 1655, cerca de 600 portugueses de armas, menos do que os presumíveis 1.300 dados pelo holandês. De todo modo, quatro décadas depois, por volta de 1720, haveria, segundo o governador geral Bernardo Pereira de Berredo, cerca de 1.000 vizinhos em São Luís, alguns poucos em Icatu (antigo Monim), 70 no Itapecuru, mais de 300 em Alcântara e mais de 500 em Belém, isto é, não mais que 2.000 famílias! Se creditarmos que essas famílias já estavam estáveis e com maior número de filhos sobreviventes, poderíamos elevar a população de portugueses para talvez uns 8.000 para aqueles anos .

Desafortunadamente, não existem dados sobre a população indígena para que possamos ter clareza sobre a continuidade daquela estrutura social. Apenas para o ano de 1730, temos um censo jesuítico que dá 21.300 os índios aldeados em suas missões. Contando as missões das demais ordens e as aldeias de administração, é possível se supor que esse número chegava a 40.000, sem contar um número bastante menor, talvez uns 10.000, de índios escravos. Na década de 1750, governador geral Mendonça Furtado vai estimar em cinqüenta mil os índios aldeados em toda a Amazônia (Azevedo 1930: 235-6; 228-9). É provável que, se contarmos aqueles que viviam em aldeias de administração, esse número chegaria a 70.000, além de alguns 10.000 escravos.

De todo modo, é certo que o estamento indígena tenha continuado a crescer na proporção do crescimento da economia, mesmo porque ela continuava a depender do braço indígena. Esse crescimento foi tão lento que até 1748 se continuava a usar novelos de algodão e panos como moeda de troca (Varnhagen, 1962, Tomo IV: 89). Durante esse tempo não houve interrupção no serviço de tropas de guerra e de resgate para fazer escravos e nos descimentos para recompor os plantéis de índios forros das aldeias de administração e das missões religiosas . Entretanto, pode-se supor que, talvez a partir da década de 1730, o número, e portanto a proporção, de índios escravos domésticos e índios de aldeias de administração fosse caindo em relação ao número e proporção de índios aldeados em missões. O certo é que tornava-se cada vez mais difícil obter escravos e índios de administração, o que levava a elite portuguesa a acirrar seus ânimos contra as missões religiosas que, por volta de 1750, chegavam a ter mais de 60 missões em todo o Estado do Maranhão e Grão-Pará. Tudo indica que o número de expedições de guerra e resgate foi diminuindo no Maranhão, devido ao fim dos povos de população densa, permanecendo ainda no Piauí, estas motivadas pela expansão do gado, e no Amazonas, pela coleta das drogas do sertão. É possível, seguindo apenas essas conjecturas, estimar que a população subjugada ao domínio português do Estado do Maranhão e Grão-Pará, por volta de 1759, estaria na casa das 80.000 pessoas.

Eis a estrutura básica da sociedade colonial maranhense-paraense até 1759. A partir dos últimos anos desta década, importantes e inovadoras medidas de ordem econômica e política iriam resultar numa transformação da configuração demográfica, étnica e, de certo modo, também cultural desse estado. Veremos essas transformações mais de perto no Capítulo V. Novos personagens surgirão, a elite econômica se renova, como bem frisou Lisboa um século depois (1865). Entretanto, estava desde já consolidada a estrutura social e cultural (no sentido de comportamental) dessa sociedade. Os novos contingentes demográficos de negros e portugueses que iriam entrar a partir dessa última data não criariam espaços sociais novos, apenas se integrariam em seus respectivos nichos no escalão social pré-fixado. Não resta dúvida de que os termos e os modos do relacionamento social ainda faziam sentido para aqueles tempos e, de certa forma, continuariam a fazer sentido pelos séculos seguintes. Eis a tragédia social que ossificou indelevelmente a sociedade maranhense até o presente.

A Escravidão Colonial

É certo, dado o curto período de tempo que passaram no Maranhão, que os franceses lançaram mão da força de trabalho dos Tupinambá para erguer sua colônia. Para isso evitaram conscientemente a violência e tentaram usar de um método que incluía alguma forma de pagamento e alguma forma de indução forçada. Claude d’ Abbéville registra a chegada de índios Tupinambá vindos das aldeias da ilha bem como de fora para render homenagem aos chefes franceses e prometer-lhes o envio de mão-de-obra para eles. Mas nem sempre a promessa era cumprida. Registra também um certo deflacionamento do valor dos machados e facões usados como pagamento pelo trabalho indígena. Reconhecendo a força de autonomia dos Tupinambá, os franceses resolveram trazer para viver perto da administração da colônia um certo número de índios Tupinambá do baixo Mearim, a quem chamam às vezes de “Miarigois”, outras vezes “Pedras Verdes”. Como eram adversários dos Tupinambá da ilha, teriam vindo com a garantia de que não seriam massacrados. Isto é, ficavam sob a proteção dos franceses, o que significa que deviam muito a eles. Instalaram sua aldeia a pouca distância da colônia, podendo com isso fazer suas roças e ao mesmo tempo prestar serviço para os franceses. Isso aliviava a necessidade de mão-de-obra do dia-a-dia e, portanto, de pressionar os demais Tupinambá, evitando aborrecimentos mútuos. Com isso os franceses puderam se gabar de que tratavam bem os Tupinambá, e que era bom para eles os terem como aliados, em contraste com a notória brutalidade dos portugueses.

Porém, os portugueses e seus aliados Tupinambá é que foram os vencedores. Vieram ao Maranhão para estender o domínio português sobre aquelas partes e já tinham toda uma cultura de relacionamento com esses índios. Não perderam tempo na tarefa de arregimentar mão-de-obra a custo baixo, por coerção à servidão e por escravização. O seu método de repressão era de violência consciente, como vimos no caso do levante tupinambá de 1618. As conseqüências deste fato foram gravíssimas para a demografia e sociedade tupinambá do norte do Brasil.

Considerando especificamente os Tenetehara, há registro de que, no mínimo, duas expedições escravistas chegaram a atacar suas aldeias e levar um certo número de Tenetehara para viver junto aos portugueses na condição de escravos. A primeira foi realizada por Bento Maciel Parente ao subir o rio Pindaré na suposição de que lá haveria minas de ouro, talvez por causa de alguma informação obtida da primeira expedição francesa que subira esse rio três anos antes (Marques 1970:302). Essa suposição iria perdurar por uns bons 300 anos e estimularia diversas outras expedições, todas sem sucesso. Parente subiu o Pindaré com 45 soldados e 90 índios frecheiros, em fevereiro de 1616, e nas palavras do frei Francisco de Nossa Senhora dos Prazeres Maranhão, “passados alguns meses, se recolheu sem ter encontrado senão os índios Guajajaras [Tenetehara], aos quais fez cruel guerra” (Prazeres Maranhão 1946 [1819]: 44). Certamente trouxe escravos tenetehara para vender aos colonos que começavam a implantar fazendas no Maranhão ou para os incorporar às suas tropas indígenas de guerra .

Outra expedição escravista teria ocorrido na década de 1640 e foi organizada como uma entrada oficial para prear índios pelo capitão-mor do Pará (e não do Maranhão), Lucena de Azevedo, que jactava-se, em carta ao rei de Portugal, de haver capturado “600 Tupinambá e 50 casais da Nação Pinaré” (Kiemen 1954: 67, n.r. 58). “Pinaré” só podia ser Guajajara [Tenetehara] e isto é confirmado pelo Padre Vieira (1925: 395). Sair de Belém do Pará para caçar Tenetehara no interior do Maranhão, provavelmente por via do médio Tocantins, onde teria ido capturar Tupinambá, talvez significasse que valia a pena. Se houve ou não outras expedições escravistas aos Tenetehara não temos registros históricos.

A mão-de-obra escrava foi utilizada no Maranhão, como de resto em todo o Brasil, de duas formas. Uma consistia em trabalho doméstico realizado nas casas particulares dos colonos, o que incluía tarefas propriamente domésticas, como limpeza, cozinha, cuidado de crianças, etc., e também pesca, caça e preparo de farinha de mandioca. Não havia português ou descendente que vivesse sem plantel de escravos domésticos. Os próprios jesuítas achavam que cada casal de portugueses deveria ter pelo menos um casal de índios para o atender em suas necessidades básicas.

A segunda forma de trabalho consistia no uso de índios como escravos do eito. Trabalhavam na produção agrícola para exportação, nas plantações de cana-de-açúcar e tabaco que iam sendo instaladas na ilha, na área de drenagem dos rios Itapecuru e Monim e, mais tarde, a partir da década de 1720, no baixo rio Mearim. A quantidade de índios para fazer um engenho funcionar e um fumal dar lucro deveria ser bastante grande, sobretudo porque sua produtividade era notoriamente baixa. Nas fazendas os índios domésticos certamente também trabalhavam no eito, mas muitas das tarefas eram realizadas por índios forros que eram recrutados das aldeias de repartição.

O açúcar era a grande fonte de riqueza dos colonos luso-brasileiros do Nordeste e logo foi introduzido nas novas terras conquistadas. Em 1622, segundo Marques (1970: 63), já havia plantações na ilha e os engenhos foram logo sendo instalados. Por volta de 1641, quando os holandeses tomaram o Maranhão por três anos, havia cinco engenhos de cana em funcionamento, tendo sido instalados mais sete naqueles anos (Marques 1970: 63). Para instalar um engenho de cana era preciso um bom capital e bastante conhecimento tecnológico. Alguns engenhos eram financiados de fora, outros tinham sociedade de proprietários locais. Assim, os pequenos e médios plantadores de cana-de-açúcar não tinham capital suficiente para instalar seus próprios engenhos. Não existem informações a respeito do número de plantios de tabaco mas eles devem ter sido mais numerosos já que não necessitavam de tanto capital e o papel do tabaco na economia do Maranhão no século XVII é considerado tão importante quanto o do açúcar.

Os Tenetehara que chegaram a ser trazidos a Belém e São Luís para trabalhar nas fazendas do capitão-mor Lucena de Azevedo, ou para serem vendidos, certamente o foram na qualidade de escravos do eito.

Considerando que o índice de mortalidade dos índios que viviam em aldeias próximas a povoações portuguesas era bastante alto naqueles tempos, com os freqüentes surtos de varíola e sarampo, pode-se imaginar o que seria de escravos índios vivendo em condições subumanas de trabalho ininterrupto. Ao serem arrancados de suas aldeias e separados de seu meio cultural para trabalhar em tarefas duras, rotineiras e desagradáveis, sob o jugo ferrenho do capataz ou do dono desalmado, e sem o benefício de uma cultura solidária, não somente adoeciam fisicamente com facilidade como caíam em anomia, uma condição sociopsicológica de apatia, desânimo e perda do sentido de viver. Em tempos atuais a anomia tem sido observada como um dos fatores mais letais para a sobrevivência de um povo indígena recém-contatado. Não devia ser de outra forma nos tempos da colonização. Com efeito, os cronistas falam que muitos preferiam se suicidar comendo barro ou se enforcando.

Não só indivíduos, mas famílias inteiras eram retiradas das aldeias para viver agregadas às casas dos colonos, tornando-se servos domésticos. Como em São Paulo, deviam fazer seus próprios tijupás no quintal da casa do senhor, ou perto das roças (Monteiro 1995: 171). Os escravos das plantações trabalhavam sob o jugo de capatazes - geralmente mamelucos ou mestiços assimilados - que, segundo Vieira (1925: 308ff), não sentiam nenhuma empatia pelo bem estar daqueles que estavam sob seu encargo.

Não há estatísticas conhecidas sobre a mortalidade de escravos indígenas. Em São Paulo, onde há melhores dados a respeito, Monteiro (1995: 154-9) calculou que uma grande parte morria no trajeto dos seus territórios originais para as fazendas; outra parte morria no dia-a-dia de labuta excessiva, cansaço, desânimo e falta de alimentação adequada. Devido a isso havia necessidade de reposição periódica dos plantéis de escravos indígenas para as fazendas de trigo paulistas. Eis o principal motivo das bandeiras organizadas contra as missões jesuíticas em Itatins e Guairá na primeira metade de século XVII, precisamente quando a escravidão indígena vigorava no Maranhão. Mesmo alguém tão favorável à escravidão indígena como o padre João de Souza Ferreira (1894:92) não deixa de observar que a brutalidade era imensa e que cerca de metade dos índios trazidos à força morria no trajeto.

Por sua vez, as epidemias periódicas de varíola e sarampo provocavam grande devastação nos agrupamentos indígenas. No século XVII houve pelo menos quatro grandes surtos epidêmicos no Maranhão: sarampo, já no primeiro ano de domínio português, em 1616 (Gaioso 1970: 70) e em 1663 (Marques 1970: 312); varíola, em 1620 e em 1695 (Marques 1970: 298). Diz-se que esta última teria sido trazida por um dos raros navios transportando escravos africanos. Sua virulência provocou enorme queda demográfica entre os índios aldeados perto de vilas ou povoados portugueses, de São Luís a Belém do Pará (Bettendorf 1909: XLIII).

Apesar da economia maranhense ter sido bastante pobre, em comparação com o Nordeste açucareiro, até 1759, exigia, mesmo assim, uma constante reposição da força de trabalho em diminuição. A mão-de-obra escrava africana trazida pela primeira vez em 1671 e depois em 1685 teve seu transporte interrompido logo em seguida pela falta de capital para pagá-la, e assim não pôde substituir os índios. Comentando sobre esse assunto nesse anos, Ferreira (1894: 32) escreve que “aonde os Portugueses acham pouca conta trazerem pretos por tão alto preço, que parece impossível ganhar um negro em sua vida 100$000 reis, que é o menos que custa. Em comparação, um escravo indígena saia por 10 patacas, ou o valor de 5 machados (Ibid: 54).

A reposição da mão-de-obra escrava indígena era efetuada através de expedições armadas contra tribos indígenas. Estas expedições ficaram conhecidas como entradas, quando eram organizadas e sancionadas pela administração colonial, e bandeiras, quando organizadas por particulares. As bandeiras mais conhecidas foram as organizadas por ”homens de São Paulo”, no dizer da época, que tinham como finalidade precípua obter índios escravos para suas plantações de trigo. Nesse afã também exerceram o papel de consolidar o domínio português sobre uma vasta área então sob o jugo espanhol. Com a experiência que adquiriam na caça a índios, muitos bandeirantes se colocaram a serviço dos governos gerais do Brasil e do Maranhão bem como de particulares para “limpar” uma determinada região da presença de índios para a produção econômica, bem como para obter novos escravos (Monteiro 1995: 91-7). Por volta de 1680 Domingos Jorge Velho, de cepa paulista, invadiu os sertões do Piauí fazendo escravos, dizimando muitas aldeias indígenas e provocando migrações dos sobreviventes para o Maranhão, o que resultou em mudanças no quadro etnográfico do estado desde então.

Confrontada por colonos sequiosos por mão-de-obra escrava, de um lado, e por padres jesuítas defensores do sistema de missões e de aldeias de administração ou repartição, de outro, a Coroa portuguesa se pautou por uma estratégia de contrabalançar esses interesses aparentemente opostos através de uma política indigenista muito flexível e inconstante, principalmente nos dois primeiros séculos de colonização (Gomes 1991: cap. II). A conquista e colonização do Maranhão foram realizadas sob leis que variavam em torno do equacionamento do trabalho indígena, com leis, alvarás e regimentos que mudavam de um extremo a outro. De todo modo, pode-se dizer que a base das leis que prevaleceram no Maranhão até 1759 está inscrita na Lei de 1611, que declarava a liberdade dos índios, salvo os obtidos em guerra justa. Porém esta já derivava do primeiro dispositivo de legislação indigenista, que foi o alvará real de 1570, o qual declarava que os índios eram livres, exceto em casos especificados, inclusive a guerra justa. Tais exceções viraram a regra em todos os documentos posteriores (por exemplo, os de 1595, 1605, 1609, 1611, 1649, 1652, 1655, 1684), onde sempre havia cláusulas que estabeleciam que entradas e bandeiras poderiam ser organizados para promover guerras contra tribos indígenas que estivessem ameaçando a propriedade portuguesa, ou que se recusassem a aceitar os ensinamentos da religião católica, ou que mantivessem escravos para serem sacrificados em rituais canibalísticos. Estes pretextos foram essenciais para que a política indigenista colonial fosse efetivamente antiindígena seja na letra, seja no espírito da lei (Gomes 1991; Kiemen 1954) . De todo modo, a Lei de 1686, com seu respectivo Regimento das Missões, estabilizou as atribuições dos missionários das diversas ordens e permitiu aos colonos e às autoridades locais definir assuntos tais como a repartição de índios, o valor do trabalho e o julgamento sobre a justeza de entradas e a escravização de índios.

Além dos Tupinambá e dos Tenetehara, como foi mencionado, entradas e bandeiras foram enviadas também contra os Barbados, Guanarés e Aracares em 1620 (Marques 1970: 105-106), os Uruatis em 1649 (Leite 1943: 144), Cahy-Cahy (ou Caicais) em 1671 (Leite 1943: 161), e outras tribos ao longo do rio Parnaíba (Leite 1943: 164). (No Pará essas expedições foram muito mais freqüentes, extensas e diversificadas.) No século XVIII este tipo de ação predatória teve continuidade contra os Barbados em 1719, em 1721 e 1722, depois da tribo haver destruído três engenhos de cana-de-açúcar no baixo Rio Mearim (Marques 1970: 105-106); os Acroás, Güegües e Pimenteiras do Piauí e vários grupos Timbira ao longo dos rios Mearim e Itapecuru (Nimuendaju 1946: 4ff) .

O resultado dessas expedições de guerra só podia ser o aprisionamento para escravização individual dos índios, não a localização deles em aldeias de repartição ou em missões. De todo modo, os escritos deixados por jesuítas e administradores da Coroa deixam crer que era no Pará e no Amazonas que estava o grosso da população indígena, a qual era vítima preferencial dos escravagistas. No Maranhão compravam-se índios cativos adquiridos no Pará para recompor os plantéis dos trabalhadores dos engenhos de cana e dos tabacais. A população indígena do Maranhão, embora na casa dos 300.000 no início do século XVII e ainda substancial por mais dois séculos, não era densa o bastante para valer o trabalho de arregimentar tanto esforço, cabedal e desgaste. A maior dificuldade de transporte fluvial também desencorajava expedições mais arrojadas pelos sertões e cerrados.

De todo modo, quanto aos Tenetehara, esse período de escravização vai deixar uma marca de medo, ódio e repúdio aos portugueses de São Luís e dos engenhos na baixada do rio Monim, para onde uma vez foram forçados a ir como membros de missão, e portanto trabalhadores livres, conscritos. Mas esta é a história que se segue, do tempo mais largo e mais substancial da servidão.

Os Tenetehara sobrevivem

Na prestação de contas que o Senhor de la Ravardiere, comandante geral dos franceses, fez aos portugueses, ele descreve as expedições que mandou fazer para contatar diversos povos indígenas no interior do Maranhão e no rio Amazonas, e dá a entender que entre esses povos havia um “que é maior nação, que toda a dos Tupinambás” (Moreno 1984 [1614]: 98). O que poderia significar essa expressão para quem conhecia os Tupinambá vivendo em aldeias de 500 ou mais moradores? Seria apenas uma comparação pleonástica para impressionar os portugueses? De qualquer modo, é difícil crer que os Tenetehara pudessem constituir uma população comparável à dos Tupinambá, mas certamente não poderiam ser um povo de pequenas e poucas aldeias. Dificulta ainda mais a especulação inteligente saber que, na próxima informação de que temos conhecimento, já em 1653, o Padre Vieira dá como informação certa que havia somente algumas (Vieira 1925: 395; Moraes 1860: 400, diz explicitamente cinco) aldeias tenetehara no alto rio Pindaré. Considerando que os Tenetehara haviam sofrido, nesse ínterim, um violento ataque em 1616 e outros dois no decênio de 1640 a 1650, e que estes ataques os deixaram muito amedrontados e arredios em relação aos portugueses (Vieira 1925: ibid.), é compreensível que sua população tivesse caído a um nível bastante baixo, como quer o Padre Vieira, e que uma parte dela estivesse enfurnada nos matos, sem querer saber de portugueses, nem mesmo de jesuítas à sua volta. Por outro lado, o ouvidor geral Maurício de Heriarte (1662: 174) iria escrever em 1662, sem dar detalhes, que o rio Pindaré era “mui povoado de índios Guajavas (sic)”, o que indica que os colonos sabiam ou especulavam sobre os Tenetehara, já então sob o controle dos jesuítas. Levando todos esses pontos em consideração, poderíamos especular um número até 10.000 como sendo a população dos Tenetehara no início do século XVII. Em 1653, quando os jesuítas subiram o rio Pindaré com o propósito de constituir missão entre eles, talvez fossem uns 30% dessa população original, o que constitui o nadir populacional dos Tenetehara em todos os tempos, ou cerca de 2.500 a 3.000 pessoas.

Em 1730, num dos censos realizados pelos jesuítas no Maranhão, havia duas missões estabelecidas para os Tenetehara. Uma delas, que ficou conhecida como aldeia, ou missão, de Maracu, localizada no baixo Pindaré, tinha 404 habitantes índios. A outra, chamada de São Francisco Xavier, e mais tarde de aldeia de Carará ou Acarará, somava 799 habitantes, entre diversas aldeias inespecificadas, e estava localizada no alto Pindaré. É muito provável que houvesse então outras aldeias tenetehara naquela região que continuaram a existir sem a interferência direta dos jesuítas. Assim, pode-se chegar a uma suposição de que, naquela data, devia haver cerca de quatro mil Tenetehara. Se estas inferências e especulações têm alguma validade para a reconstituição da história tenetehara, pode-se concluir que, não obstante terem sofrido guerras de destruição e apresamento, seu declínio populacional não foi contínuo e irrecuperável. Ao contrário dos Tupinambá, cento e vinte anos depois do primeiro entrosamento com os franceses e da primeira grande devastação sofrida dos portugueses, essa população crescera e se estabilizara.

Há quatro razões interligadas que poderão explicar esse fenômeno. Em primeiro lugar, as aldeias tenetehara se localizavam desde o médio até o alto rio Pindaré, uma zona de difícil acesso por canoa devido à estreiteza do rio e à conseqüente profusão de árvores caídas em travessa, bem como pela presença de uma erva aquática chamada mururu. Havia portanto barreiras naturais que dificultavam o trânsito de grandes canoas e portanto o acesso dos colonos à mão-de-obra dos Tenetehara. Uma expedição de guerra para fazer prisioneiros era sempre algo mais custoso do que nos rios Itapecuru e Mearim.

Em segundo lugar, a população tenetehara, por não ser mais tão numerosa e por viver em aldeias dispersas, conforme se supõe, não constituía atrativo para as periódicas investidas portuguesas em busca de escravos. Certamente uma expedição deste tipo jamais seria tão lucrativa quanto as organizadas para as áreas de grande concentração populacional habitadas pelos Tupinambá, mesmo que tão distantes quanto as do rio Tocantins, ou aquelas das grandes aldeias de povos jê do centro-leste do Maranhão.

Em terceiro lugar, os jesuítas tomaram de imediato um interesse pelos Tenetehara, por suas terras e por sua mão-de-obra. Estes responderam com alguma deferência e pouca animosidade. Isto contribuiu para que, a partir de 1653, os Tenetehara ficassem relativamente protegidos das expedições de cativeiro promovidas pelos portugueses, fossem as entradas oficiais, fossem as bandeiras particulares. Mas não contra o perigo das epidemias, já que estas se espalhavam da própria missão.

A quarta razão, e a mais importante, é a de que o território habitado pelos Tenetehara, mesmo na área do médio Pindaré, que se constitui das franjas orientais da floresta amazônica, não era adequado, ou pelo menos não tanto quanto as florestas de galeria do leste maranhense, para o sistema de fazendas implantado pelos colonos portugueses. A região do baixo Pindaré e baixo Grajau se apresentava com campos alagadiços e terras arenosas, de pouca valia para a agricultura. As regiões preferenciais de colonização maranhense dos primeiros dois séculos seriam aquelas do curso dos rios Itapecuru e Monim, onde o tabaco e a cana-de-açúcar foram implantados, e as do baixo Mearim e da região de Tapuitapera, em cujos campos havia condições propícias para a criação de gado. (Bettendorf 1910: 19; Marques 1970: 63). Subir o rio Pindaré era custoso, tanto que, após tentar fixar os Tenetehara no alto e depois no médio Pindaré, os jesuítas decidiram trazê-los para o baixo Pindaré, numa região de lagos e perizes, com alguma mata de galeria, onde puderam estabelecer uma missão estável e plantar cana-de-açúcar e criar gado vacum e cavalar. Eis quando começa efetivamente a segunda fase de relacionamento interétnico dos Tenetehara.

3 comentários:

Anônimo disse...

Adorei esse site!!!
Maravilhoso!!!

Anônimo disse...

Estou fazendo uma pesquisa de escola com minha filha onde pede que pesquiseo nome que os índios davam para o ser superior criador dos rios e o ser superior criador das matas. Alguém pode me ajudar?
Já estou com dor de cabeça de tanto pesquisar e não encontro...
Obrigado

Professor disse...

TUPÃ

 
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