terça-feira, 26 de agosto de 2008

Relator da ONU, S. James Anaya, abre o jogo


Em entrevista coletiva dada ontem à tarde o Relator da ONU para Direitos Indígenas, o jurista apache norte-americano e professor da Universidade de Novo México, S. James Anaya, abriu o jogo sobre o que viu, o que achou e o que poderá escrever em seu relatório após uma viagem de doze dias por várias terras indígenas.

O relator foi bem recebido no Brasil e teve patrocínio de viagem e companhia digna de um viajante estrangeiro que é honrado no Brasil. Visitou Raposa Serra do Sol, Dourados e São Gabriel da Cachoeira. Lá se encontrou com os povos indígenas e teve conversas formais e informais com todos eles. Além disso esteve com autoridades brasileiras dos ministérios das Relações Exteriores, Justiça, Saúde e Meio Ambiente. Esteve na Funai e na Funasa. Recebeu relatórios de denúncias de diversos povos indígenas, encaminhados pelo CIMI e por Ongs indigenistas.

Não chegou a visitar o Parque Indígena do Javary, onde a maioria dos 3.500 indígenas vive em condições ambientais prístinas e autônomas, mas que sofre de doenças graves, como hepatite B e C e constantes surtos de malária.

S. James Anaya teve condições de ver muitas coisas do indigenismo brasileiro. E soube bem aproveitá-las.

Por isso é que, em sua entrevista coletiva, demonstrou ter obtido uma visão bem abrangente da questão, embora sem a profundidade necessária para fazer um relatório à altura de sua posição.

Anaya reconhece que o Estado brasileiro tem uma legislação extremamente favorável aos povos indígenas. Se ele quisesse ser correto, diria que a Constituição brasileira e o Estatuto do Índio não estão atrás da Declaração Universal dos Direitos Indígenas nem da Convenção 169 da OIT. Ao contrário, estão na frente em muitos aspectos, como o reconhecimento das culturas indígenas, de sua autonomia de decisão e do respeito da sociedade brasileira. Estão atrás apenas no que concerne a explicitação da necessidade de consulta aos povos indígenas sobre questões de seu interesse. Resta, entretanto, definir o que pode alcançar os interesses dos povos indígenas.

Por outro lado, Anaya trouxe uma fala inesperada para um Relator da ONU. Ponderou que a disputa pela terra no Mato Grosso do Sul é equilibrada em relação a direitos entre os índios e os fazendeiros. Acatou o discurso dos fazendeiros de que eles têm legitimidade sobre as terras que possuem, por titulação e antecedência à chegada dos índios. Será que Anaya entendeu todas as nuanças desse imbroglio?

Em relação aos interesses de arrozeiros da T.I. Raposa Serra do Sol, Anaya foi menos enfático em sua defesa. Sentiu que a presença desses produtores é bem mais recente e produziu efeitos indesejados no relacionamento interétnico.

Em conseqüência de sua viagem, Anaya chega à conclusão de que o STF poderá produzir uma "surpresa" em seu sentenciamento sobre a homologação da T.I. RSS, de modo que contemple os dois lados da questão. Talvez ele tenha recebido alguma informação interna de algum ministro do STF para projetar tal idéia. De todo modo, ele parece contente sobre um resultado que os povos indígenas daquela terra irão ficar extremamente descontentes.

Por último, Anaya aproveitou para fazer algumas críticas incisivas sobre o indigenismo brasileiro. Criticou tanto o Estado quanto as Ongs pelo que chamou de "paternalismo" com que tratam os povos indígenas. O que ele quer dizer com isso, não é explicado. Com freqüência, a noção de paternalismo tem sido usada e abusada por acadêmicos sem conhecimento de causa e sem entender os processos de relacionamento entre índios e sociedade nacional. Não é termo que ele use para o caso dos índios norte-americanos, mas, se ele prestrar atenção no relacionamento entre esses índios e o Bureau of Indian Affairs (BIA), ele verá que esse termo poderia ser usado do mesmo jeito. E pior, que os índios norte-americanos não querem abrir mão desse relacionamento por nada no mundo. Há nos Estados Unidos cerca de 750 tribos reconhecidas pelo governo federal (federally recognized tribes) e, apesar de anos de relacionamento direto com a sociedade norte-americana em geral, nenhum desses povos resolveu se "emancipar" da ligação que têm com o BIA.

Anaya criticou em especial o PAC, isto é, o Programa de Aceleração Econômico, do governo federal, por não escutar os índios. Isto pareceu mais buchicho das Ongs no seu ouvido do que uma análise real deste programa. O PAC atinge diversas terras indígenas nos projetos hidrelétricos, estradas, assentamentos, projetos econômicos, etc. O PAC está dentro da Funai abrindo espaço para que os índios possam dele participar. O problema é que a Funai não tem condições nem idéias de como fazer com que os índios aproveitem das possibilidades de desenvolvimento étnico através dos recursos possíveis.

Anaya tem a atitude superior de um índio esclarecido que está fora da realidade indígena. Acredita que, se os índios brasileiros forem deixados a si mesmos para resolver seus problemas, eles serão capazes de reconhecer suas prioridades e trabalhar muito mais efetivamente sem a ajuda do Estado. Não reconhece a dureza da vida discriminatória que sofrem em seus municípios e estados. Não reconhece que a assistência e proteção federais são essenciais para a sobrevivência e busca de novos caminhos para os povos indígenas brasileiros. Até nos Estados Unidos é assim, com a dependência que os índios norte-americanos têm do BIA. Mesmo os índios que vivem dos royalties dos casinos não largam mão do osso BIA.

Não sei dizer o quanto foi ou não positiva a presença de Anaya neste momento no Brasil. Do seu ponto de vista, sua visita foi um sucesso tremendo. Suas falas foram interessantes, desafiantes, embora não conclusivas. Pelo que entendo, seu relatório vai ser bastante duro e vai bater na tecla do indigenismo paternalismo e na falta de oportunidades para os povos indígenas. Um tanto quanto o ministro Mangabeira Unger, que quer que os índios brasileiros possam escolher se querem continuar a vier nas condições indígenas tradicionais ou se assimilarem ao sistema socioeconômico brasileiro. Quer dizer, ambos, por desconhecimento da história brasileira, não sabem do que estão falando.

Um comentário:

antropowatch disse...

Caro Mércio,
Tenho acompanhado o paternalismo de algumas Ongs para com os indígenas, a que chamo de paternalismo da esmola. Esclareço que nada se compara ao paternalismo do Erário em relação aos antropólogos e suas Ongs, que dominam as decisões demarcatórias dentro da FUNAI. Paternalismo existe sim, mas, é a sociedade que paga a um monopólio de antropólogos contratados e atuantes dentro da FUNAI. Este grupo de Ongs e seus "antropólogos" aprovam mediante fraudes etno- históricas demarcações ilegítimas, para depois achacar obras públicas através das medidas compensatórias milionárias. O representante da ONU deveria saber o que prepondera na FUNAI
: subverção da ordem e dos valores humanitários em favor dos interesses de Ongs e seus representantes.

 
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