domingo, 13 de abril de 2008

O Índio na História: Cap.5 - Liberdade ainda que recôndita

Capítulo V

Liberdade ainda que Recôndita

De servo a índio doméstico: 1759-1840

Nos dias 6 e 7 de junho de 1755, a Coroa Portuguesa, sob a autoridade de seu Ministro Plenipotenciário, Sebastião José de Carvalho e Mello, mais tarde conhecido como Marquês de Pombal, baixou dois importantes decretos de política indigenista. O primeiro declarava os índios livres, uma vez mais, independentemente de terem sido capturados em guerras justas ou resgatados de outras tribos indígenas como cativos. Consequentemente, apesar das guerras punitivas ou defensivas serem ainda permitidas contra grupos indígenas agressivos, não seria mais permitido submeter prisioneiros ao cativeiro. Ao invés disso, os índios conquistados ou “pacificados” deveriam ser instalados em aldeias livres, mas não mais de repartição, sob a guarda de um diretor, em geral, fazendeiro ou militar, e providos de meios para seu desenvolvimento econômico e moral, o que significava a sua integração na sociedade colonial.

O segundo decreto real cancelava o prévio poder temporal que os jesuítas exerciam sobre as suas aldeias de missão. Ao invés disto, essas aldeias seriam extintas enquanto missões e passariam a ser vilas, se contivessem mais de 150 habitantes, e “lugares,” ou povoados, se sua população fosse menor que 150. O status administrativo de vila exigia um conjunto de cargos políticos e judiciais como o de vereadores, meirinhos e juizes ordinários. Na medida do possível, essas vilas deveriam ser administradas por seus próprios habitantes, e o fato de diversas delas realmente o terem sido indica que os índios, mestiços e luso-brasileiros que lá viviam, ou ao menos suas lideranças, estavam, em graus variados, integrados ao sistema colonial. As aldeias de repartição, já consideradas livres, poderiam igualmente se tornar vilas ou lugares, ou poderiam se manter como aldeias dirigidas por seus chefes indígenas, chamados de capitão, costume que fora instituído desde 1733 para mediar os interesses dos habitantes índios das aldeias e os dos administradores e colonos (Araripe 1958: 111). Até aldeias que não eram propriamente nem de repartição nem missões, compostas de índios supostamente livres mas sob o controle de particulares, podiam se tornar vilas ou lugares. Um desses casos se deu na Baía de Cumã, onde um particular, José Bruno de Barros, fez doação de uma tal aldeia, onde viviam 360 índios sob sua guarda, que virou a vila de Guimarães (Marques 1970: 365). Ficava a critério dos governadores nomear índios para dirigir suas aldeias, ou administradores leigos, os quais, nesse caso, seriam chamados de diretores dos índios.

A aplicação dessas novas determinações reais significava que os jesuítas tinham que abrir mão do controle que exerciam sobre os índios e ficar na desconfortável posição de meros párocos. Prevendo dificuldades na implantação desses dois decretos, o governador geral do Maranhão e Grão Pará, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, meio irmão do Marques de Pombal, com quem trocou uma extensa correspondência durante seu período de governadoria (1751-59) , guardou-os por quase dois anos, até que, aos 3 de maio de 1757, baixou um decreto com 95 itens legislando sobre essas medidas. Entretanto, os aspectos mais cruciais relacionados com a liberdade cultural, autonomia das aldeias e soberania das terras indígenas que os decretos de 1755 previam, foram atenuados e substituídos por métodos de maior controle político e social por parte do governo colonial. Essa compilação de orientações e normas ficou conhecida como Diretório dos índios, e às vezes como Diretório de Pombal (Prado 1967: 101-107; Almeida 1997: 149-225) .

Entre as tantas mudanças projetadas, uma delas dizia respeito à continuidade da doutrinação religiosa dos índios, só que, daí por diante, não poderia mais ficar a cargo dos jesuítas, e sim de padres seculares ou até de outras ordens. Para o desenvolvimento das aldeias previam-se melhorias econômicas através da introdução de novas culturas agrícolas e o ensino de novas técnicas artesanais. Desenvolvimento político para os índios significava aprender a organizar suas sociedades nos moldes do sistema português de vilas. Esses avanços econômicos e políticos deveriam ser ensinados por artesãos luso-brasileiros e pelos diretores nomeados. O salário dos diretores deveria ser pago com um sexto da renda da produção indígena vendida no mercado. Uma política de casamento entre índios e colonos deveria ser encorajada e implementada tanto quanto possível nessas vilas e em toda a colônia.

Finalmente, o que estava sendo tramado entre os irmãos Pombal e Mendonça Furtado, veio à luz, e, em 3 de setembro de 1759, novo decreto real determinou a expulsão de todos os jesuítas do Maranhão e Grão Pará e do Brasil, e em seguida de todo o reino de Portugal. Suas propriedades foram confiscadas pela Coroa e, nos anos seguintes, foram sendo arrematadas em hasta pública por gente de cabedal, fazendeiros e comerciantes, bem como doadas a funcionários do governo e particulares (Marques 1970: 418-20). Os beneficiários ficaram conhecidos como “os contemplados,” pelo favorecimento que receberam e pelo baixo valor que desembolsaram .

Para os Tenetehara isto significou que daí por diante eles estavam livres do subjugo jesuítico mas não tão livres a ponto de levarem a vida da maneira que quisessem. O propósito social, ou civilizacional, do Diretório dos índios era de elevar os índios aldeados da condição de gente rude para a de gente civilizada, moradores de vilas luso-brasileiras, vassalos do reino, pela adoção de convenções legais e de usos e costumes da sociedade colonial. Tal propósito previa mudanças de ordem econômica que deveriam surgir no curso da aplicação dessas medidas e de outras no futuro.

O tema principal que sustentava o discurso sobre os propósitos do Diretório era o da liberdade que os índios iriam obter, tanto dos colonos que os mantinham como escravos, quanto dos jesuítas e outros missionários que os tinham como servos. Os Tenetehara há muitos anos não experimentavam a canga da escravidão, mas viviam sob o manto jesuítico nas missões de Maracu e Carará, acostumados com o regime de vida servil, fiando-se na proteção que a Companhia de Jesus lhes podia oferecer. Aqueles que viviam no Carará, tendo mudado de localização desde 1730, rio abaixo, para mais perto de Maracu, estavam mais vulneráveis ao recrutamento esporádico, embora, por carta régia de 31 de janeiro de 1730 (Anais 1948: 237-8), deviam ser igualmente eximidos do serviço braçal nas fazendas dos colonos. Em caso de recrutamento, seu trabalho não era gratuito, mas pago à moda da época, com algumas varas de pano e ferramentas, como se trabalhadores livres fossem .

Por esse tempo, a missão do Maracu havia progredido bastante desde os últimos 50 ou 60 anos. Sua população não é conhecida mas devia estar em torno de 400 a 500 pessoas. O último censo jesuítico conhecido data ainda de 1730 e registra 404 índios, incluindo os catecúmenos (Leite 1943, III: 188). Podemos considerar que nesse período tenha havido algum crescimento demográfico, mas não deve ter se sustentado devido à grande epidemia de varíola (sarampão ) que assolou o Maranhão e Grão Pará entre 1748 e 1749 (Marques 1970: 337) . Já a missão de Carará contava com cerca de 780 índios, ainda no tempo em que se situava na confluência do rio Caru. Ao ter sido transferido mais para baixo, deve ter perdido população e, por não lhes ser exclusiva, os jesuítas nunca lhe deram a mesma atenção que davam a Maracu. Em todo caso, é de supor que a grande maioria dos Tenetehara continuou a viver em aldeias autônomas no seu território original no alto Pindaré. Ali devia haver um número bastante expressivo de Tenetehara, o que nos pode levar a ponderar um número, quem sabe, de 4.000 Tenetehara em meados do século XVIII. Ao longo do período de controle jesuítico, os Tenetehara das duas missões se mantiveram em contato uns com os outros e com os demais Tenetehara do alto Pindaré. Esse contato não ocorria meramente sob a forma de ocasionais encontros entre homens tenetehara que conduziam as canoas dos jesuítas ao longo do Rio Pindaré, ou em outras expedições que os jesuítas faziam, e sim sob a forma de um relacionamento permanente que envolvia troca de bens, participação em cerimônias culturais e relações de parentesco.

Nos primeiros anos a missão do Carará, embora tivesse missionário permanente, inclusive com igreja e armazém, não era um empreendimento socioeconômico como Maracu. Havia dificuldade em subir o Pindaré por causa do estreitamento do rio e a presença da erva aquática mururu. Em 1728, uma expedição enviada pelo governador geral Alexandre de Souza Freire para descobrir ouro no alto Pindaré, o suposto ouro que os jesuítas abscondiam daquela missão, levou 15 dias para chegar lá a partir de São Luís. Além do mais, as matas e terras daquela região não possuíam bens de extração comerciáveis àquela época, não eram adequadas para plantações de cana-de-açúcar e tabaco e nem para a criação de gado . A missão do Carará foi transferida em 1730 para mais abaixo do Pindaré, em parte, provavelmente, por pressão dos colonos que queriam ter acesso à mão de obra tenetehara, já que lhes era proibido o acesso aos Tenetehara da missão Maracu; em maior parte, porque os jesuítas preferiam ter esses índios mais perto de sua principal missão.

Por pouco mais de um século estiveram os jesuítas com os Tenetehara, e por 70 anos esse relacionamento foi próximo, permanente e influente. Porém é difícil avaliar o quanto se instalou definitivamente dessa influência na cultura Tenetehara. É possível supor que a vaga crença que os Tenetehara professam em “Deus,” um ser superior a quem denominam de tupàn em língua tenetehara (tupã na língua geral), como parte de sua cosmologia e sistema de crença religiosa, tenha sido adquirida daqueles tempos, com reiterações posteriores e continuadas ao longo do tempo. Tupàn existe e é falado com reverência nos momentos de perigo, mas nunca foi incorporado à mitologia tenetehara. A crença em santos da Igreja Católica, em milagres e intervenções divinas provavelmente foi esquecida nos anos seguintes de autonomia e só voltou a existir pelo contato renovado com segmentos da sociedade regional.

As transformações que se processaram na sociedade tenetehara durante os anos de servidão nas missões e por influência indireta nas aldeias autônomas não perduraram quando o sistema de servidão jesuítico foi abolido. Certamente pode-se dizer que as características da sociedade tenetehara pós-jesuítica se constituíram mais como uma adaptação à situação de contato e relacionamento com os colonos e as novas frentes de desenvolvimento econômico por que passava o Maranhão do que como resultado da influência jesuítica anterior.

O período pombalino teve conseqüências terminantemente deletérias para os índios que viviam nas missões, que se viram obrigados a adotar costumes coloniais, perder terras para invasores e se adaptar aos ditames de uma novo regramento em que eles eram de antemão subordinados e sem protetores. Porém, para os Tenetehara que viviam nas aldeias do alto Pindaré, como um povo e como cultura, foram tempos de alívio e autonomia, quando puderam volver-se a si mesmos, praticar seu modo tradicional de ser e ganhar fôlego para enfrentar as novas formas de relacionamento interétnico.

Com efeito, aos 8 de agosto de 1757, a Missão Maracu foi declarada extinta por uma comissão enviada pelo governador Mendonça Furtado e adquiriu o status de vila com o nome português de Viana. Dezenas de outras aldeias jesuíticas em todo o Amazonas também receberiam nomes de vilas portuguesas, como Santarém, Guimarães, óbidos, etc. A missão do Carará, localizada então a alguns quilômetros de Maracu-Viana, por ser menor, ganhou o status de lugar, passando a se chamar de Monção, aos 16 do mesmo mês e ano (Leite 1943, III: 188-192; IBGE 1959: 226 – 7; Livro de Criação de Villas e Lugares, 1745-).

O inventário da extinção de Maracu e sua passagem a vila de Viana contém alguns dados esclarecedores da importância dessa missão no Maranhão. A igreja, reconstruída havia poucos anos, era grande e se situava no alto do morro, de costas para o lago Maracu, onde ainda hoje está. Ao lado ficava a casa de vivenda dos jesuítas, construída de madeira e coberta de telha, pois a região tem grande carência de pedras, contendo seis aposentos forrados. As casas dos índios deviam se alinhar pelas laterais, formando no todo uma praça em quadrado característica das missões jesuíticas, provavelmente nos moldes como ainda hoje existe a praça central de Viana. Defronte a esse aldeamento ficava o engenho de São Bonifácio, cuja casa principal tinha 60 palmos em quadra. Era formado por quatro engenhos contendo seis alambiques, além da casa de purgar açúcar. Existiam ainda oficinas de tecelagem, carpintaria, serraria e ferraria onde se fabricavam roupas, foices, machados e enxadas. A casa de canoa tinha 44 palmos de comprido e na ocasião abrigava 10 canoas novas e um bergantim recém fabricado. Da casa de farinha foram arrolados forno, duas rodas de ralar mandioca, 20 tipitis e 4 gurupemas, apetrechos de amassar mandioca pubada para depois ser torrada. Foi estimado que a roça da missão podia produzir 700 alqueires de farinha por ano, o que necessitaria uma área de roça de uns 50 hectares, se compararmos com a média de produção atual. Para tanto seria preciso a mão de obra de pelo menos 100 homens e umas tantas mulheres. Em cultivo permanente havia campos de cana-de-açúcar, 3.600 pés de cacau, laranjeiras, limoeiros, 4.000 pacoveiras e mais de 60 pés de café. Completando esse quadro agrícola, havia cinco currais de gado vacum, com cerca de 15.600 cabeças, e um curral de gado cavalar, com 500 cavalos e jumentos.

Para a constituição da vila de Viana, foi erguido pelourinho e nomeados vereadores e almoxarifes. Ao que parece, por dedução da origem e etimologia dos nomes - tais como Francisco Xicaxy - quase todos esses cargos foram preenchidos pelos próprios índios na ocasião. Mais de 60 anos depois, por volta de 1820, o Frei Francisco de Nossa Senhora dos Prazeres Maranhão, um observador da época, relata que antigamente a câmara de Viana era formada por índios e brancos, mas que agora já não o era mais (Prazeres Maranhão 1946: 140) .

É difícil precisar, por falta de mais dados, como se iniciou o processo formal da passagem dos Tenetehara do status de índios missionizados para índios civilizados do Maranhão. É certo que nada foi muito dramático, pois mesmo o engenho de São Bonifácio levou alguns anos para ser vendido. Em 1761, o governador geral Joaquim de Mello e Póvoas escreveu ao Marquês de Pombal relatando as dificuldades que vinha tendo para vender o dito engenho. Em 1765, o engenho teve o seu preço estipulado em 200.000 cruzados (Arquivo Ultramarino, Papéis Vários, Tomo 1º) . Efetivamente ele foi vendido alguns anos depois para um senhor José Nunes Soeiro, que lá iria morar e estabelecer os rumos da vida política da vila de Viana pelas gerações seguintes .

Em comparação com outras vilas maranhenses à mesma época, Viana e Monção ficariam estagnadas economicamente pelas décadas seguintes. O surto de desenvolvimento econômico que iria tomar conta do Maranhão a partir de 1760 dar-se-ia pelo vale do Itapecuru e leste maranhense, passando ao largo do vale do Pindaré e de toda a região a oeste. Viana chegou a perder sua posição anterior de exportador de gado e até pelo menos a década de 1820, quando o coronel do Real Corpo de Engenheiros, Antonio Bernardino Pereira do Lago, a visitou como parte de um levantamento geográfico que fazia daquela região, sobrevivia apenas da comercialização de peixe salgado e mandioca (Lago 1872: 407), bem como da exportação de madeira (Prazeres Maranhão 1946: 140) para São Luís. De qualquer forma, Viana era a sede de uma vasta freguesia que abrangia todo o vale do rio Pindaré, para o que mantinha um comandante geral, juiz ordinário e câmara. Sua força policial era composta por quatro soldados de linha e dois capitães do mato, cada um dos quais trabalhando com seis índios.

Tudo indica, portanto, que o processo de assimilação dos descendentes dos Tenetehara de Viana e Monção à população de índios civilizados ou de caboclos do Maranhão colonial estava se completando pela segunda década do século XIX. Na descrição que faz da vila de Viana, o engenheiro Lago (1872: 407, 412) contabiliza uma população de 843 habitantes morando em 137 fogos, dos quais 400 eram índios “já civilizados e obedientes às leis.” Já a vila de Monção abrigava 90 almas em 25 fogos, dos quais 40 eram índios civilizados, reconhecidos por Lago como descendentes dos Tenetehara (Guajajara). É quase certo que já há algum tempo, talvez desde a última década do século anterior, esses índios houvessem perdido contato com seus parentes que viviam autonomamente rio acima, no alto Pindaré. É provável que até mesmo tivessem perdido o uso da língua materna.

A legislação pombalina, por todas as suas normas de controle político dos índios e por ter aberto as terras ao redor das extintas missões à doação de sesmarias, e a vivência urbana com luso-brasileiros forçaram a integração e assimilação dos Tenetehara das vilas de Monção e Viana ao regime colonial e à sociedade luso-maranhense, num processo lento, porém contínuo e sem retorno. Só os Tenetehara que decidiram sair da nova vila e receberam as terras de Taquaritiua para assentar, a três léguas de Viana, haveriam de ter condições de permanecer índios por muitos anos mais e continuariam a viver em certa autonomia cultural, mantendo suas terras coletivamente, até os nossos dias. Entretanto, subindo o rio Pindaré a montante de Monção, passando da fazenda Camacaoca, último aglomerado de luso-brasileiros, os Tenetehara iriam permanecer autônomos durante todo esse período e até praticamente a quarta década do século XIX, com bastante liberdade para crescer e se expandir para outras regiões do Maranhão.

Em relação aos demais índios do Maranhão e do Pará, bem como de outras regiões do Brasil onde havia índios aldeados, o sistema de aldeamento instituído pelo Diretório dos índios teve conseqüências semelhantes. Isto é, uma substancial queda populacional, o abandono dos antigos engenhos de açúcar e cachaça, a diminuição do gado nas fazendas e, enfim, a passagem do índio servo para índio doméstico. Desde a morte de Dom José I, protetor do Marquês de Pombal, em 1777, que este caíra em desgraça, e suas obras passaram a sofrer críticas de todos os lados. No caso dos aldeamentos indígenas dirigidos por diretores leigos, o argumento mais geral era de que seus resultados teriam ficado aquém dos seus verdadeiros propósitos de integração dos índios à sociedade colonial. Dizia-se que as aldeias estavam em decadência em razão da cupidez, ambição e violência dos diretores, que se aproveitavam dos índios e os deixavam sem espírito de dedicação ao trabalho e sem condições de se civilizarem. Um dos testemunhos mais abalizados foi dado pelo Bispo do Pará, Dom Antonio Brandão, que, entre 1783 e 1788, percorreu sua diocese visitando todas as vilas e povoados do Pará, inclusive quase todas as aldeias indígenas que estavam sob o regime do Diretório. Outra crítica igualmente fundamentada foi feita pelo emissário da Rainha, Antonio José Pestana da Silva, em 1788, que viera ao Pará para avaliar as denúncias que chegavam à Coroa sobre a decadência dessas aldeias e a conseqüente falta de braços para a lavoura. Por fim, após sete anos em comando da administração do governo do Pará, o governador geral Francisco de Souza Coutinho redigiu um “Plano para a Civilização dos índios da Capitania do Pará,” no qual reiterou as críticas já feitas aos diretores e ao sistema e sugeriu a extinção do Diretório dos Índios e a sua substituição por nova legislação. Com efeito, em carta régia de 12 de maio de 1798, o Príncipe Regente Dom João aboliu o Diretório e estabeleceu os termos de uma nova política indigenista.

Para o leitor desavisado os termos desta nova legislação vão espantar pela dureza com que vai retomar velhas práticas condenadas pelo Diretório de Pombal, bem como dar prosseguimento ao processo de desagregação e desfazimento dos aldeamentos indígenas e a conseqüente assimilação desses índios já domésticos em caboclos e brasileiros clientelizados. Assim, foi retomada a legitimidade de se praticar descimentos de índios selvagens para as aldeias próximas a vilas luso-brasileiras, bem como de se declarar guerras defensivas, com a possibilidade de se manter os índios prisioneiros por um certo período a fim de educá-los. É de surpreender que tais medidas pudessem ser tomadas após tantos anos de crítica generalizada, mas a surpresa iria aumentar com medidas ainda mais cruéis nos anos seguintes. Ademais, o decreto tornou extintos os patrimônios territoriais das aldeias indígenas e os pôs disponíveis para a venda para qualquer pessoa. Encorajou a entrada de qualquer pessoa nas aldeias para negociar com os índios, sem a supervisão de nenhuma autoridade mediadora. Determinou ainda que qualquer índio que não tivesse uma casa e roça para cuidar podia ser recrutado para o trabalho por autoridades ou por particulares (Hemming 1987: 58-9; Moreira 1988: 30-4). O fato das aldeias deixarem de ter diretores brancos nomeados pelos governadores não trouxe nenhum avanço em autonomia política para os índios, pois passaram a ficar sob o controle das forças políticas mais próximas, fossem eles juizes de paz, vigários das paróquias, vereadores das câmaras, fazendeiros locais, comerciantes e regatões. Sem padres nem diretores leigos para os dirigir, a legislação de 1798 impôs aos índios o status de órfãos e nomeou como tutores os juizes de paz ou, na sua ausência, juizes de comarca. Finalmente, o relacionamento entre brasileiros e índios passou a ser considerado explicitamente como um entre “amo e servo.” Com esse espírito e, a partir de 1804, com as cartas régias que Dom João iria emitir contra índios considerados selvagens, é que vai finalizando o período histórico de relações interétnicas no Brasil regidas por Portugal.

No Maranhão essas medidas tiveram conseqüências desastrosas para os povos Timbira e Gamela e para os índios domesticados ou civilizados que viviam em aldeias próximas a povoados e vilas com economias em desenvolvimento. Aqui, como no Pará, a maioria dessas aldeias se desestruturou, deixando um vazio populacional em vários locais. Porém, por motivos diversos, algumas continuaram a manter um certo número populacional, guardando algum território próprio, e só ao longo do século XIX é que iriam desaparecer de todo. Nessas áreas a presença indígena ainda se fazia sentir, apesar do aumento enorme de contingentes negros vindos da África trabalhando como escravos nas fazendas. A mão-de-obra indígena era recrutada pelos tutores, reais ou prepostos, para toda sorte de serviço que não fosse aquele feito por escravos. Havia até alguma disputa por esse trabalho, como pode se avaliar das acusações feitas por funcionários da Coroa contra feitores de índios. Em uma carta publicada no jornal Farol Maranhense (1829, n.º 98), um leitor indignado acusa o vigário da freguesia de Nossa Senhora da Lapa e Pias de fraudar a eleição para juiz de paz em favor de um seu protegido. Nessa freguesia, que comportava o Lugar de São Miguel, antiga missão jesuítica de índios Tabajara e Caicais, os índios que lá habitavam, agora considerados civilizados, teriam sido proibidos de votar pelo interesseiro vigário (apud Coelho 1990: 125).

As razões da liberdade recôndita

No alto Pindaré, território tradicional dos Tenetehara, a presença jesuítica já era fraca há duas ou mais décadas antes de sua expulsão, desde que tinham transferido a missão do Carará rio abaixo. O interesse pelos Tenetehara daquela região nunca fora muito insistente e assim é provável que eles tenham vivido com grande autonomia, apesar de confrades seus estarem vivendo em missões. Porém, nos anos que antecederam à expulsão dos jesuítas, o padre David Fay, um jesuíta de origem húngara que cuidava da missão do Carará, se interessou pela sorte de um outro povo indígena do alto Pindaré, os Amanajós, também de fala e cultura tupi e supostos tradicionais inimigos dos Tenetehara. Algumas cartas de missionários jesuítas relatam como se deu o contato, o que tentaram fazer com esses índios e como se deram as confusões quando o governador Mendonça Furtado, já com planos traçados para minar o poder dos jesuítas, resolveu impedir a criação de uma nova missão para eles e determinou que os índios contatados fossem trazidos para a ilha de São Luís. O Padre Fay foi acusado de sedição por supostamente ter insuflado os Amanajós contra o governo geral . Com a saída definitiva dos jesuítas os Amanajós ficaram à mercê de novos senhores, sem que se saiba com clareza o que lhes aconteceu. Alguns deles foram efetivamente trazidos e localizados em algum lugar na ilha; outros acabaram indo para uma região totalmente fora de seu território, os sertões de Pastos Bons, no sul maranhense, que estava sendo colonizada por boiadeiros vindos do Piauí (Paula Ribeiro 1848: 62). Lá sobreviveram alguns que foram se integrando lentamente, durante todo o século XIX, como parte da população local de pobres e marginais. Por muitos anos, os mapas do Maranhão iriam trazer a inscrição “aldeias dos Amanajós,” tanto nos Pastos Bons quanto na altura do alto rio Pindaré, pois lá também havia ficado uma aldeia deles.

Com a saída dos jesuítas e a falta de povoamento e desenvolvimento econômico no vale do Pindaré, vai se criar um vazio de presença luso-brasileira no médio e alto Pindaré, e os Tenetehara autônomos acabam perdendo contato com a sociedade regional. Contribuiu, também, para esse isolamento, a presença ameaçadora de índios Gamela e Timbira que, nas décadas seguintes, iriam manter em constante alerta a esparsa população colonial de brancos e mestiços da região, desencorajando novos imigrantes. Em conseqüência, os Tenetehara voltaram a viver nos moldes de sua organização social tradicional apropriada para uma economia exclusivamente de subsistência.

Deixando de lado os Tenetehara das ex-missões, é possível que a população dos Tenetehara autônomos ficasse na casa de 3.000 pessoas por volta de 1760. Pelos anos seguintes eles iriam crescer em números e se expandir em território, aproveitando tanto o seu isolamento quanto o espaço geográfico desocupado das matas do Pindaré e seus afluentes e dos grandes rios Grajaú e Gurupi, respectivamente a leste e a oeste do seu território tradicional. Esse novo espaço vai se esvaziando de seus habitantes originais, os diversos grupos timbira, e nele vão se instalando concomitante e paulatinamente os Tenetehara na medida em que sua população vai crescendo. Quando, por volta da quarta década do século XIX, esses rios começam a ser povoados ou explorados por frentes de expansão extrativista, já lá vão encontrar aldeias tenetehara em números surpreendentes. É possível que, nesse período de 70 a 80 anos, os Tenetehara tenham triplicado seu contigente populacional, chegando a 9.000 pessoas.

Vivendo tão reconditamente assim, pouco se sabe dos Tenetehara. Ao que parece, não houve incursões de qualquer espécie ao rio Pindaré a montante de Monção, nesse período. No início do século XIX persistirá essa falta de conhecimento, a qual pode se notar pela confusão que se faz desses índios com outros da região. Gaioso ([1813]1970), cujo livro tem bastante informação sobre outros povos indígenas, desconhece a existência dos Tenetehara. Em 1811, tendo visitado a vila de Viana, o capitão Francisco de Paula Ribeiro, que conhece tão bem tantos outros índios do Maranhão, igualmente desconhece a existência dos Tenetehara (Paula Ribeiro 1848: 55). Frei Francisco dos Prazeres Maranhão (1946), escrevendo na mesma época, chega a descrever alguns aspectos dos Amanajós, mas não menciona o nome Guajajara, a não ser em referência ao século XVII. Os Guajajara são mencionados por Lago, primeiro, como moradores, em 1793, de uma aldeia acima da vila de Monção, acima da fazenda Camacaoca, último ponto colonial no rio Pindaré, mas que desde então teriam passado a viver como índios civilizados naquela vila; depois, como selvagens, “que são os peores,” errantes entre os rios Pindaré e o baixo Grajaú. Na verdade, pela descrição que Lago (1872: 410-412) faz dos índios Gamela e pela intensidade da presença dos Timbira, fica claro que esses índios é que eram os verdadeiros habitantes da região do baixo Pindaré, e não os Tenetehara. O certo é que nenhum desses cronistas chegou a ver um índio Tenetehara vivendo em alguma aldeia autônoma, talvez apenas seus descendentes inominados que viviam nas vilas de Viana e Monção.

Desenvolvimento econômico e escravidão africana

Enquanto o vale do Pindaré estagnava, as medidas e iniciativas econômicas delineadas pelo Marquês de Pombal começavam a provocar um poderoso surto econômico na região leste do Maranhão, trazendo novos contingentes populacionais e mudando drasticamente a paisagem anterior. Em 1756, ao mesmo tempo em que abrogava o poder temporal dos jesuítas, antecipando a sua expulsão, a Coroa Portuguesa concedia direitos e privilégios monopolistas a uma recém formada Companhia Geral do Grão Pará e Maranhão, empresa de capital privado criada para promover o cultivo e a exportação de algodão no Maranhão. Os vales do Itapecuru, Monim e outros rios menores, o baixo Mearim e até o médio Parnaíba, que se caracterizavam como terras de mata de transição entre a floresta amazônica e o cerrado, consideradas especialmente adequadas para o cultivo de algodão, foram sendo desbravadas e cultivadas por novos fazendeiros e seus escravos africanos. Ajudara na disposição de desenvolver essa região, e não o vale do Pindaré, o fato de já haver nos baixos cursos desses rios algumas vilas e povoados com tradição de economia de exportação - cana-de-açúcar e tabaco - uma certa quantidade de mão de obra qualificada e alguma infra-estrutura para servir de base de expansão.

Em 1760, quatro anos após a instalação da dita companhia, 651 arrobas de algodão foram exportadas pelo porto de São Luís. Em 1771, a exportação aumentava para 4,055 arrobas e em 1781 chegava a 298.582 arrobas (Gaioso 1970: 179). Nas primeiras décadas do século XIX essa exportação ficava em torno de 400.000 arrobas, caindo um tanto nos anos mais tensos das guerras napoleônicas por dificuldades de exportação. Por sua vez, em 1766, começou o cultivo comercial do arroz, inicialmente feito em áreas contíguas às da cultura do algodão. A variedade tradicional plantada era o arroz vermelho ou arroz da terra, mas como o mercado para o qual este produto estava destinado, Lisboa, preferia o arroz branco, os rizicultores do Maranhão receberam, em 1772, ordem para cultivar apenas esta última variedade (Marques 1970: 91-3). Daí por diante, o cultivo do arroz se estendeu por novas áreas e sua exportação só foi superada pela do algodão dentre os produtos exportados pelo Maranhão (Machado 1854: 65).

O algodão e o arroz sustentaram o surto de desenvolvimento econômico e de transformações sociais e demográficas do Maranhão por mais de um século (1760-1870). Nesse tempo sua população cresceu e se modificou drasticamente com a vinda de escravos africanos para trabalhar nas novas plantações. Novas cidades se desenvolveram rapidamente, especialmente ao longo dos rios, e a fronteira agrícola foi esbarrar com a pastoril na altura de Caxias, no médio rio Itapecuru, na altura em que esse rio mais se aproxima do rio Parnaíba.

Todo esse desenvolvimento agrícola foi feito com o braço africano. O contingente de índios acessíveis ao trabalho em fazendas era suficiente apenas para uma economia estagnada. Ao serem declarados livres pelo Diretório de Pombal, tornou-se improdutivo caçar novos plantéis nos sertões e altos cursos dos rios. Com capital e boas perspectivas econômicas o estado do Maranhão (agora sem o Grão Pará, que passou a ter governo próprio, a partir de 1772) finalmente se emparelhou com o estado do Brasil em relação ao uso de mão de obra escrava vinda da África. Os primeiros escravos africanos chegaram ao Maranhão em 1761 (Marques 1970: 264). Daí por diante o trabalho escravo cresceu na mesma proporção do crescimento das exportações e tornou-se a principal fonte de mão-de-obra em todas as zonas de expansão agrícola, em menor proporção na pastoril, mas quase nenhuma na extrativista, até a abolição da escravidão em 1888 .

Cabe abrir um pequeno parêntese aqui para notar que, durante todo esse século de crescimento econômico, poucas experiências foram tentadas para colonizar qualquer região através de mão-de-obra livre, em forma de grupos familiares agrícolas, ou por assalariamento. Essas experiências foram realizadas depois da independência através da instalação de “colônias,” compostas de imigrantes nordestinos e, em três ou quatro casos, com açorianos, alemães e chineses, como ocorreu na década de 1850, as quais invariavelmente são consideradas de parcos resultados positivos. O padrão escravocrata que se firmou no Maranhão com a mesma intensidade que existia no Nordeste e Sul do país, como se fosse a mais natural das condições de trabalho e da vida social do Brasil, não deixou espaço econômico e político para o trabalho livre.

Os negros africanos mudaram a fisionomia do Maranhão não apenas em termos demográficos mas também culturalmente. Em poucos anos essa província de poucos brancos, bastante mestiços índios e ainda numerosos índios autônomos virava uma pujante província de fazendeiros poderosos, comerciantes abastados e exportadores ricos em meio a uma multidão de negros. Na segunda década do século XIX, de acordo com a descrição do viajante inglês Henry Koster (1942: 250), a maioria da população de São Luís, que somava cerca de 12.000 habitantes, era negra. Em 1805, Ribeira do Itapecuru-mirim, certamente a cidade mais próspera do Maranhão naqueles anos, tinha uma população total de 13.672 habitantes, que o comerciante argentino radicado em São Luís, Raymundo José de Souza Gaioso (1970: 164) repartiu e classificou da seguinte maneira:

11.775 eram escravos negros;
306 eram fazendeiros que, com suas famílias somavam 1606 pessoas;
26 eram comerciantes;
174 eram jornaleiros, ou trabalhadores livres diaristas;
23 eram artistas, ou trabalhadores livres com algum ofício,
e os demais 68 eram funcionários civis, clérigos e mendigos.

Esses números, tão maciçamente negros, demonstram sem dúvida a pujança da economia do Maranhão e sua dependência do braço escravo. Mas Itapecuru-mirim, por ser então um ponto estratégico da expansão do algodão e do arroz, devia ser uma exacerbação da tendência das mudanças demográficas que estavam ocorrendo. A proporção geral para todo o Maranhão era menor, mas chegava a mais de dois escravos negros para um branco livre, conforme os cálculos do Frei Francisco dos Prazeres Maranhão (1948: 148), que dá 160.000 como sendo a população do Maranhão em 1820, sem contar os índios . Só entre os anos de 1812 e 1820 teriam chegado pelo porto de São Luís, cerca de 36.356 escravos (Marques 1970: 264), não obstante as dificuldades de transporte causadas pelas guerras napoleônicas.

Nas primeiras décadas do século XIX o Maranhão experimentava o auge do seu crescimento econômico e demográfico. Porém, segundo alguns autores, logo em seguida a economia deixaria de crescer com a intensidade que vinha tendo e, entre altos e baixos, iria cair de produção até estagnar-se irremediavelmente a partir da década de 1870 . Assim, só muito lentamente é que algum crescimento econômico e demográfico vai chegar pelos lados do baixo Pindaré. Primeiro, porque lá poucas terras eram apropriadas para o cultivo do algodão, e mesmo a cana-de-açúcar só dava bem em alguns terrenos. O gado tinha que pastar, no inverno, debaixo d’água, o que fazia com que sua mortalidade fosse extremamente alta. Na sua visita à região, em 1819, o engenheiro Lago relata que os fazendeiros locais faziam o cálculo da mortalidade de bezerros como sendo de 300 por 1.000 (Lago 1872: 408).

Gamelas e Timbiras

Porém, no juízo de diversos autores maranhenses do século passado (Marques 1970: 132, 344; Gaioso 1970: 231), o grande impedimento ao desenvolvimento econômico e à chegada de novos povoadores ao Pindaré eram os chamados índios selvagens, em especial os Gamelas e os Timbiras Krejé. Apesar de combatidos durante toda a segunda metade do século passado, após a tentativa de missionização dos jesuítas, apenas uma aldeia gamela havia sido subjugada e transferida para a região do baixo Pindaré. Ela é uma das três aldeias mencionadas por Lago, estando localizada à beira do lago Cajari, a alguns quilômetros de Viana. Compreendia então 28 índios ainda andando nus, furando os beiços e as orelhas e vivendo em casas de palha arredondas, nos moldes tradicionais. Mais a montante, já chegando perto de Monção, havia outras duas aldeias - Garapiranga (sic) e Capivary, as quais, junto com a aldeia de Cajari, somavam cerca de 280 índios (Lago 1872: 410). Aparentemente não havia que temer a estes Gamela. Entretanto, outros grupos Gamelas continuavam a viver autonomamente e a praticar “correrias,” sortidas rápidas contra povoados, fazendeiros e viajantes por toda essa região, do rio Turiaçu até o baixo Mearim. Em 1810, atacaram Cajari e ameaçaram atacar Viana, em defesa da qual foi enviada uma força com 40 soldados e 70 paisanos para os conter (Paula Ribeiro 1841: 366) . Em 1818 e 1819, atacaram mais para o oeste, próximo ao rio Turiaçu, matando cinco pessoas na primeira vez e roubando ferramentas na segunda (Lago 1872: 396).

A ameaça dos Gamelas durou mais algum tempo, até que, provavelmente na década de 1830, foram dominados e postos sob controle. Faltam dados para se fazer uma reconstrução dessa subjugação, mas deve ter sido violenta e letal. Vale notar a esse respeito a preocupação contida no primeiro relatório do diretor geral dos índios do Maranhão, em 1850, quando busca demonstrar a sua capacidade de trabalho e o resultado de seus esforços, ao assegurar que os índios Gamelas estavam vivendo pacificamente, quase todos falando português. Estavam sob a jurisdição da 4ª diretoria parcial dos índios, localizada em Cajari. Eram então 80 indivíduos, o que significa que havia acontecido uma queda demográfica de quase 60% desde 1819, quando lá passara o engenheiro Lago. Um ano antes teria havido uma epidemia de sarampo na aldeia .
No decorrer do século XIX os Gamelas sobreviventes do baixo Pindaré iriam sofrer uma continuada diminuição demográfica e perda de autonomia territorial e cultural a tal ponto que iriam desaparecer como etnia. A última aldeia dos Gamelas a sobreviver foi aquela mesma do lago Cajari, visitada por Nimuendaju na década de 1930. Eram alguns vinte ou trinta pessoas que mal se lembravam de um vocabulário consistente de palavras indígenas. Parenteticamente, vale notar que, de todos os índios do baixo Pindaré, apenas um grupo, provavelmente remanescentes dos antigos Tenetehara de Maracu-Viana, que teriam se retirado daquela vila, por moto próprio, com a chegada dos brancos, e passaram a viver numa gleba de terras cobertas de floresta, perto do campo Aquiri, a três léguas de Viana, a qual receberam em doação formal de um governador geral, continuou a viver como se fossem índios, em regime comunitário, mas sem falar língua indígena, até os nossos dias, constituindo um dos exemplos mais singulares da lenta passagem assimilativa de povos indígenas a camponeses brasileiros .

Os Timbira, por sua vez, não pararam de fazer correrias pelo baixo e médio Pindaré até praticamente a década de 1860, embora com menos intensidade e perigo. Diversas tentativas, todas infrutíferas, foram feitas por parte de tropas militares e expedições pacíficas para conter suas investidas contra fazendas, navegantes do rio Pindaré e até as aldeias tenetehara do médio Pindaré (Coelho 1990: 126, 130, 150). Até que, a partir de 1850, índios Timbira Pobzés e Crenzés (Pukobye e Krejé) começaram a aparecer espontaneamente em grande número perto do pequeno povoado de Bacabal, no médio rio Mearim, aceitando o relacionamento pacífico. Os responsáveis pela política indigenista do Império não perderam tempo para consolidar esse contato e aldeá-los em uma colônia indígena instituída exclusivamente para eles em 1854. Curt Nimuendaju, seguindo opiniões da época, acreditava que esses grupos seriam os responsáveis pelos ataques feitos desde aquela região até o baixo rio Turiaçu (Nimuendaju 1946: ??). Com efeito, a pressão timbira iria cair nos anos seguintes, mas, ainda no ano de 1859, diversas aldeias tenetehara do médio Pindaré iriam se apavorar com sinais de índios Timbira rondando nas proximidades (Coelho 1990: 150).

Eventualmente os Timbira perderam sua força de agressão e deixaram de ser o entrave principal do desenvolvimento do rio Pindaré. Nos anos seguintes, os aldeados Pobzés e Crenzés iriam perder população por causa de epidemias de sarampo e varíola e as terras que lhes haviam sido reservadas iriam ser tomadas pelo crescimento daquele povoado, que mais tarde seria uma das principais cidades da região . Os demais Timbira do baixo Pindaré iriam ou fugir para o rio Gurupi e lá se adaptar à economia de troca extrativa (Dodt 1981[1873]: 86), ou se alojar em terras reservadas para os Tenetehara, no rio Pindaré, sem qualquer possibilidade de manter um contingente populacional suficientemente coeso para exigir uma assistência mais atenta da política imperial ou do órgão indigenista republicano. Hoje contam-se algumas famílias de índios Timbira mestiços vivendo no rio Gurupi e outras tantas numa área dos Tenetehara do médio Pindaré.

Repensando índios no início do século XIX

Não é mera coincidência que quatro autores que escreveram sobre fatos do início do século XIX no Maranhão, embora interessados mais na economia e povoamento daquele estado do que em índios, terminaram se ocupando destes e fazendo uma reveladora reflexão sobre como os índios eram vistos pela elite local da época.

Raymundo José de Sousa Gayoso, comerciante e diplomata argentino radicado em São Luís, ao escrever seu livro sobre a lavoura maranhense, em 1813, tem como propósito chamar a atenção da Coroa para as dificuldades que estava passando, naquele momento, a economia daquela capitania. Para tanto ele eventualmente faz uma análise das forças demográficas que compõem a sociedade maranhense da época. No geral, os índios são classificados como pertencendo a uma única categoria populacional, embora Gaioso reconheça distinções entre eles de acordo com o grau de contato e integração com a sociedade regional. São chamados de “domésticos”, aqueles que vivem pacificamente em aldeias e participam de alguma forma da economia regional. São “bravios” ou “selvagens” os que recusam o contato, resistem às invasões e atacam fazendas que se instalam em seus territórios, constituindo uma das barreiras para a continuidade do desenvolvimento do Maranhão, pois controlam terras que são consideradas necessárias para a formação de novas fazendas (Gaioso 1970: 110, 119-120, 227).

Em termos de escalonamento social, Gaioso (ibid.: 115-23) vai posicionar os índios no ponto mais inferior, abaixo dos escravos negros que, por sua vez, ficam abaixo dos mulatos, mestiços, nacionais (ou crioulos), e dos reinóis, que eram os nascidos em Portugal. Em termos econômicos, ele considera que os negros são os provedores da mão-de-obra para a agricultura e para o trabalho doméstico, os mulatos trabalhavam como artistas, os crioulos eram donos de plantações e os portugueses os funcionários da Coroa e exportadores. Os índios, por suposto, estariam fora do sistema econômico, sendo selvagens, ou indignos de menção, sendo domésticos.

Frei Francisco de Nossa Senhora dos Prazeres Maranhão, um jovem frade capuchinho natural de Trás-os-Montes, vai reconhecer duas categorias de índios, agrupando civilizados e domésticos como índios “christianizados,” ou ainda como “caboclos,” enquanto os selvagens são chamados de “tapuios” ou “gentios” (1848: 144). Classificação um tanto literária, pois este último termo certamente já estava caduco naquele tempo, e tapuio era usado com mais freqüência no Pará. Já o termo caboclo vai se tornar um sinônimo de índio doméstico e passa a ser largamente usado em todo o Maranhão, até recentemente.

O major graduado Francisco de Paula Ribeiro, português do Minho, que desde o fim do século anterior servia no Maranhão como comandante de tropas militares encarregadas de cuidar de índios selvagens, faz uma interessante reflexão sobre os índios e suas relações com o mundo da época. Em primeiro lugar, Paula Ribeiro reconhece a distinção básica entre índios selvagens e índios domésticos. Em segundo, o major está aí para cumprir com seu dever de militar e fazer executar as cartas régias emitidas pelo Princípe Regente Dom João com expressas determinações sobre como dominar os índios que estavam impedindo a expansão econômica em diversas regiões do Brasil, inclusive o Maranhão. Paula Ribeiro pondera até que essas cartas régias seriam favoráveis aos índios selvagens, pois davam-lhes a chance de fazer as pazes, e, no caso de serem atacados e dominados, de poderem ser conduzidos a viver em aldeias sob a proteção do estado. Caso contrário, tropas de fazendeiros, que ele chamava de bandeiras, como umas seis ou sete que ele menciona terem sido realizadas, no início do século, contra diversos povos Timbira, fariam esses ataques de uma forma mais violenta e arrasadora, freqüentemente levando os prisioneiros à escravidão. De fato, ele relata a história de uma que ocorreu contra os índios Augtugê (provavelmente os atuais Apinajé), em 1816, que resultou na escravização de 160 índios, inclusive a venda de 135 deles, que foram ferrados nos braços com um círculo e enviados para Belém (Paula Ribeiro 1841: 367).

Uma covardia inominável, pensa Paula Ribeiro. Mas diversos desses índios selvagens, especialmente os Piocobgês, mais tarde conhecidos como Gaviões dos campos da chapada maranhense, não são uns coitadinhos, pois resistem a todas as expedições contra eles e até destróem o incipiente povoado que fora criado no alto rio Grajaú, matando 38 pessoas à base de flechadas e pelo fogo atirado dentro das casas. Só meio século depois é que esses índios iriam ser derrotadas, dominados e subjugados ao controle político e militar do Maranhão.

No final do seu relatório “Roteiro de viagem que fez o capitão Francisco de Paula Ribeiro às fronteiras da capitania do Maranhão e da de Goiás no ano de 1815 ...” Paula Ribeiro vai dar expressão à indagação ansiosa de um índio Capiecran (um antecedente dos Canela) chamado Terupé, ao refletir sobre seu destino:

“Qual era a causa porque de tantas povoações numerosas, suas nacionais, que ele por tradição antiga entre os seus tinha notícia viviam entre nós há dilatados anos, da mesma forma que ele com a sua se propunha hoje a viver, não encontrava uma só multiplicada em grao proporcionado a tanto tempo; porém antes sim evaporadas todas, ou quasi a expirar a sua memória?”

A resposta viria cruel, algum tempo depois. Esse índio estava entre aqueles que foram a Caxias, em 1815, com o intuito de confraternizar e receber presentes. Lá foram propositadamente infectados de varíola, morrendo muitos e espalhando a infecção por todo o sul maranhense até o norte de Goiás.

Mas é o coronel engenheiro Antonio Bernardino Pereira do Lago (1872: 411) que irá fazer a classificação mais ampla e precisa sobre os índios que considera existir no Maranhão, uma classificação que define o momento histórico e que haverá de se repetir por todo o século:

1 - índios “civilizados” - aqueles que falam português, observam nossas leis, hábitos e costumes;
2 - índios “domésticos,” - que vivem em aldeias, mantêm seus costumes, são agricultores mas não têm habilidades;
3 - índios “selvagens,” - que são nômades e hostis.

A primeira categoria é motivada pelo conhecimento que Lago tem dos índios ex-aldeados que viviam na ilha e especialmente no baixo Pindaré. Constituem uma quantidade bastante expressiva de pessoas, ainda não confundidas totalmente com a população rural pobre e desvalida. Aparentemente ainda resta nessas populações algum forma de organização social comunitária que os distinguiria dos mestiços agregados em fazendas. Entre civilizados e domésticos a separação ainda é relevante para Lago, embora não para os demais autores. Aos poucos essa distinção vai se esvanecendo e o termo caboclo, ou índio manso vai ser usado por aqueles que já não se consideram mais índios.

Tomando essas reflexões e somando-as às considerações feitas por Maria Elizabeth Coelho em seu estudo sobre a política indigenista no Maranhão provincial (1990: 122-134), verifica-se que a questão indígena ainda é assunto candente no Maranhão do início do século XIX. Governadores do estado, depois a junta administrativa, o conselho de governo e a assembléia legislativa demonstram contínua preocupação pelos índios que “infestam” as margens dos rios Pindaré, Mearim e Grajaú, nomeados pelo governador Paulo José da Silva Gama, em 1814, “gamelas, manajós, timbiras e guajajaras.” Por sua vez, os índios civilizados estão ainda por toda a parte, inclusive muito próximo a São Luís, nas três antigas aldeias jesuíticas, agora as vilas de Vinhais, Paço do Lumiar e São José do Ribamar. Lago visitou essas vilas e contou seus habitantes nas vilas e em povoados chegando a um número de cerca de 2.500 índios civilizados (Lago 1872: 385-390), entre os 16.000 habitantes (incluindo escravos negros) da próspera cidade de São Luís (Prazeres Maranhão 1848: 139).

Os índios domésticos estão pelo interior a fora, nas antigas missões abandonadas, em aldeias que viraram vilas, em aldeias agregadas a vilas e fazendas. Trabalham como remeiros nas canoas, construtores de estradas e açudes, nas tropas de guerra e em tantas outras atividades que são consideradas como de privilégio oficial, para as quais são obrigados ainda a prestar serviço gratuito, ou sob baixíssimos salários, como se ainda estivessem sob o regime servil de aldeias de repartição. Não é outra a impressão que tem o major Francisco de Paula Ribeiro quando comenta a situação dos índios de São Miguel da Lapa e Pias, e Pai Simão (1848: 5, 21).

Já os índios selvagens continuam a perturbar naqueles tempos, sendo a principal preocupação das autoridades nas primeiras décadas, até que explode a revolta da Balaiada, em 1838, e começam a se formar quilombos de escravos fugidos. O tema de acusação contra índios selvagens é de que suas correrias contribuem para afugentar fazendas já instaladas e desencorajar novos estabelecimentos. Na verdade, é um tom ligeiramente exagerado, pois a expropriação de territórios indígenas vinha ocorrendo com grande intensidade na região de expansão econômica pelo menos desde meados do século passado (Marques 1970: 158). Contra os povos indígenas do cerrado essa expropriação vinha se dando manu militari por expedições patrocinadas pelos governadores do Maranhão e da capitania do Piauí, algumas justificadas como guerras defensivas, mas sempre com a expressa permissão da Coroa. A partir de 1804 o Regente Dom João iria emitir uma série de cartas régias que estimulavam e justificavam essas expedições, aquilatando as preocupações da Coroa com os povos indígenas que haviam sobrevivido próximos a regiões de desenvolvimento econômico, como Minas Gerais, Espírito Santo, sul da Bahia e noroeste de São Paulo (Moreira 1971). Acrescentem-se às expedições oficiais as muitas outras expedições de extermínio realizadas por tropas organizadas em forma de bandeira por fazendeiros locais contra aldeias que já não exigiam tantos efetivos militares nem planejamento estratégico.

Contra os índios da floresta, “gamelas, timbiras, manajós (Amanajó) e guajajara”, expedições militares oficiais não se dão muito bem, como relatara Paula Ribeiro, daí o certo tom de alarme. Fazendeiros locais armavam tropas de assalto que tinham mais eficiência em destruir aldeias, ou, ao menos afugentá-las para mais distante. Não sabemos porque os Guajajara e Amanajó são incluídos nessa lista de índios assaltantes, pois não há notícias de correrias suas. Provavelmente são confundidos com os outros dois. Os Gamelas e Timbiras da Mata definitivamente assustam moradores do baixo Pindaré e Mearim até 1850. De qualquer modo, daí por diante a preocupação oficial vai se focalizar quase que exclusivamente na resistência que os Gaviões e Krikati impõem na região da chapada maranhense e contra as ocasionais rebeliões dos Guajajara já praticamente “domesticados,” se não “civilizados,” como irão dizer alguns diretores de índios na segunda metade do século.

Expedições de guerra, bandeiras e aprisionamento de índios que vagueavam longe de suas aldeias foram meios de pôr cobro às dificuldades que os índios selvagens ainda podiam gerar contra a expansão da sociedade maranhense por novas paragens. Porém esses meios só alcançaram o seu objetivo final de controlar militar e socialmente todos os índios do Maranhão graças ao próprio desenrolar do processo de colonização econômica e expansão demográfica, nas áreas de arroz e algodão, nos cursos baixo e médio dos rios Itapecuru, Monim e Mearim, e nas áreas de criação de gado, no alto Itapecuru e bolsões dispersos do cerrado do nordeste do Maranhão. Nessas regiões gestava-se um poder de relacionamento social e econômico que consolidava um modo de vida dominante, o qual atraía, de forma ambígua, porém irretratável, as populações indígenas que iam sendo envolvidas.

Repensando Fronteiras Econômicas: adaptação ou extinção

O desenvolvimento econômico do Maranhão, embora engendrado por políticas oficiais de incentivo à agricultura e à importação de escravos africanos, teve uma dinâmica anárquica e incontrolada. Ele se fez tanto pela intensificação do uso da terra, pelo ingresso de capital humano de escravos, quanto pela extensão e povoamento de novas áreas. A classificação dos índios de acordo com grau de controle que a sociedade dominante tinha sobre eles - civilizados, domésticos ou aldeados, e selvagens ou errantes -, proposta por Lago, corresponde efetivamente ao grau e tempo de uso de terras. Quanto mais distante dos centros de produção e exportação, menos intensa a economia, mais rarefeita era a população brasileira e mais selvagens os índios. Nas franjas geográficas das produções agrícolas, pecuárias e extrativistas desenvolvem-se relações de tensão entre índios e brasileiros cujos efeitos vão variar entre a possibilidade de adaptação ou a eventualidade da destruição de populações e a extinção de povos indígenas. A análise dessa dinâmica e dos seus efeitos tem sido feita através do conceito de fronteira econômica.

Entre tantos sociólogos e antropólogos que desenvolveram trabalhos sobre esse tema, Darcy Ribeiro (1970) traz uma contribuição pertinente e abrangente. Utilizando um extenso corpo de dados em seu estudo sobre a extinção das tribos indígenas no Brasil entre 1900 e 1957, Ribeiro procurou demonstrar que as fronteiras de expansão agrícolas e pastoris produzem diferentes efeitos sobre os grupos indígenas em disputa. Sua hipótese básica é de que as fronteiras agrícolas que recaem sobre povos indígenas têm um maior poder de destruição do que as fronteiras pastoris, por provocarem um relacionamento mais intenso entre brancos e índios. Comprovada em muitos casos, como os índios do sul do Brasil e do sul da Bahia, nas primeiras décadas do presente século, é preciso rever as experiências de cada situação no Maranhão para compreender melhor todo esse fenômeno.

De modo geral pode-se constatar que os dois tipos de fronteira pressionam por terras, mas em diferentes graus. A frente pastoril requer largas extensões de terras com pastos naturais bem como fontes de água para o gado. A presença de índios é sempre problemática porque a presença do gado nas melhores terras torna escassa a presença de outros animais silvestres, rareando as fontes de alimentação tradicionais dos índios. Com isso os índios tendem a caçar o gado para seu proveito, provocando a ira e o revide dos criadores. Os ataques aos índios são sempre devastadores e freqüentemente ardilosos e traiçoeiros. Assim foi no Piauí e no centro-sul maranhense, como de resto em todo o sertão nordestino. Porém, às vezes os índios conseguem sobreviver se refugiando em áreas mais ermas e áridas, adaptando-se a uma vida mais restrita e menos rica do que a anterior. Já as frentes agrícolas exigem porções de terra menores, mas o seu uso é intensivo e excludente. O modo de vida do agricultor é menos propenso à agressão e mais vulnerável. Em compensação ele tem que agir com mais força, determinação e intolerância para se defender de ameaças de ataques de índios e manter os que vivem próximo à distância e nos seus devidos lugares.

A frente pastoril necessita pouquíssima mão-de-obra, prescindo do trabalho indígena. Certamente aquela frente que penetrou o Maranhão vindo do Piauí se expandiu sem a mão-de-obra indígena, utilizando exclusivamente o trabalho de peões de extração mestiça e mulata, e até de escravos negros. Os povos indígenas sobre cujos territórios a frente pastoril ia se expandindo desde meados do século XVII foram atacados e dizimados e seus sobreviventes forçados a viver em aldeamentos circunscritos em pequenos lotes de terra e próximos às vilas luso-brasileiras para melhor controle. Nenhum dos Acroás, Pimenteiras, Güegües, Jaicós e Canindés sobreviveram aos dias atuais. Nas frentes agrícolas a mão-de-obra indígena não é de todo descartável, particularmente nos casos em que a população dos colonos não é numerosa e densa o suficiente para produzir e satisfazer as necessidades essenciais de consumo interno. Nesses casos, os povos indígenas ganham uma chance de sobrevivência uma vez que sua força de trabalho pode ser utilizada no contexto de seu próprio modo de produção e não em um modo de produção que desestruture o grupo socialmente. Quando o seu próprio modo de produção é preservado, a economia indígena torna-se capaz de se vincular à dos colonos através de instituições econômicas e mecanismos sociais intermediantes que compõem um sistema que chamamos de economia de troca (vide mais adiante os capítulos XI, XII e XIII.

Para que se estabeleça uma economia de troca, é preciso que os colonos estejam carecendo de bens que os índios possam prover. Em geral esses bens são de consumo alimentar que os colonos não conseguem produzir em quantidades suficientes por estarem ocupados com outras atividades e propósitos mais lucrativos, como o comércio varejista, o transporte de mercadorias, a produção de algodão e arroz para exportação, etc. Mas também pode acontecer que a economia indígena se integre em uma economia de troca pela produção de bens extrativos da floresta, como peles silvestres, óleos, resinas, frutos, etc., os quais os índios conseguem obter com maior facilidade. Ou, por outra, a venda da força de trabalho - a mão-de-obra indígena - pode se tornar o fator integrativo numa economia de troca, mas isto só pode ser realizado de maneira positiva para as sociedades indígenas quando essa participação for sazonal e permita a presença do indivíduo trabalhador por tempo socialmente significativo na sua aldeia de origem. Como vimos no capítulo anterior, desde os tempos das missões, a mão-de-obra tenetehara vem sendo utilizada dessa forma, a baixíssimo custo, com prejuízo social significativo mas não definitivo para esses índios.

Na história recente do Brasil, o confronto de uma fronteira de expansão sobre territórios indígenas tem sido o principal causador da destruição dos índios que habitam esses territórios. O surgimento de uma economia de troca é que vai possibilitar alguma chance de sobrevivência para esses povos, pelo menos no curto prazo. Persistindo uma economia de troca em que o povo indígena envolvido tenha condições de manter sua coesão social, suas chances de sobrevivência crescem, no médio prazo, criando um modus vivendi estável onde cada qual sabe sua posição e age de acordo. Sua sobrevivência a prazo mais longo vai depender das mudanças nessa economia e das novas possibilidades de engajamento positivo ou negativo dos índios e de suas economias.

Raramente uma economia de troca se estabelece em função de uma fronteira pastoril. Com seu modo de produção extensivo e com seu uso de vastas extensões de terras, a fronteira pastoril não necessita da mão-de-obra indígena, a não ser talvez nos primeiros tempos após o estabelecimento de relações interétnicas pacíficas, mas sempre de forma marginal e ancilar. Consequentemente, as tribos indígenas são mais rapidamente devastadas e destruídas ou, na melhor das hipóteses, empurradas para áreas menos nobres que podem virar reservas de terras. Isto aconteceu de modo radical com os índios do Piauí desde que os primeiros bandeirantes e a Casa da Torre lá chegaram no século XVII trazendo gado e instalando fazendas. No Maranhão, uma grande parte dos índios Timbira do cerrado, vivendo na fronteira da expansão de fazendas de gado, foram igualmente destruídos. Mas diversos deles, como os Canela (Ramkokamekra e Apanyekra), os Gaviões do leste e os Krikati foram poupados, basicamente devido ao fato de suas terras, no primeiro ímpeto da expansão, terem sido deixadas ao largo pela fronteira pastoril.

Quanto aos Timbira da floresta, que viviam na fronteira agrícola, nenhum sobreviveu a essa situação de contato. Primeiro porque as epidemias que sofreram foram devastadores e suas populações caíram muito. Depois, porque foram incapazes de reajustar sua organização socioeconômica o suficiente para estabelecer uma economia de troca com os imigrantes. Por volta do fim do século XIX, restavam apenas algumas famílias das grandes etnias Timbira da floresta. Os primeiros Timbira Mateiros ou Txakamekrã a serem atacados e controlados foram levados para São Luís e depois para o baixo Pindaré e incorporados em terras dos Tenetehara; os demais sobreviventes se incorporam aos Canela Ramkokamekra (Crocker 1993; Coelho 1990: 146). Os Krejé do baixo Mearim e os Krepumkateyé do alto Grajaú sobreviveram em pequenas famílias, perderam sua autonomia cultural e se miscigenaram com caboclos brasileiros.

Em suma, o quadro de relações interétnicas que se forma nas fronteiras econômicas é, no todo, violento e danoso aos índios. Porém, é mais complexo em sua formação e mais inesperado em seus efeitos do que sugere a hipótese de trabalho de Darcy Ribeiro. Se tomarmos o casos das várias etnias Timbira - da floresta e do cerrado, ou da agricultura e da pecuária - os efeitos previstos naquela hipótese podem ser considerados como confirmados. Mas o caso dos Tenetehara vai explicitar outros resultados exatamente pela reação que esses índios conseguiram desenvolver. Quando eles se aproximaram ou foram aproximados de frentes de expansão agrícolas, como no baixo Pindaré e alto Mearim, ambas de baixa intensidade econômica exportadora, foram capazes de se relacionar com os imigrantes através de uma economia de troca que prescindiu do recrutamento de sua mão-de-obra em escala que viesse a produzir efeitos desarticuladores para a sua sociedade. Por outro lado, e é aí que está o segredo do sucesso dos Tenetehara, eles souberam se adaptar a essa economia de troca de tal forma que conseguiram não somente crescer em população como se expandir para novos territórios. Esse processo vai se realizar através de uma forma de relacionamento interétnico estruturalmente desigual, que se realiza com tensão e instabilidade, o qual permitiu alguma margem de manobra cultural e econômica para os Tenetehara. Essa forma de relacionamento socioeconômico será chamado aqui de patronagem social, ou relação patrão-cliente, ou ainda clientelismo político e será analisado em sua atualização histórica no próximo capítulo.

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