sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Cotas Raciais II: O processo social brasileiro empacado

Cotas Raciais:II
O processo social brasileiro empacado


Mércio Gomes
Antropólogo, professor da UFF


Embora admitindo que a idéia de cotas raciais vem dos Estados Unidos e serve àquele país e ao modo como se dão suas relações inter-raciais, é preciso reconhecer que há razões próprias da realidade sociocultural brasileira que fizeram com que tal idéia fosse emulada por uma importante parte do movimento negro brasileiro, bem como por parte da consciência crítica brasileira. Não fosse isso a política de cotas raciais não teria cativado a atenção do governo anterior, que instituiu cotas em partes de sua burocracia, bem como do atual, que pretende ampliar essa política. Nem tudo é imitação barata.

Quais são essas razões? A primeira é que a redemocratização brasileira, ao rejeitar a ditadura, recusou também quase tudo que a ela antecedeu, inclusive a idéia de progresso da cultura brasileira. Desde a Semana de Arte Moderna (1922), a Revolução de 1930 e os anos 50, o Brasil acreditava que sua cultura, seu modo de ser e de se expressar, estava em desenvolvimento e que iria dar na integração de todas as suas partes num todo completo e integral. Presumia-se, por exemplo, que a música de Villas-Lobos, a pintura de um Portinari, a poesia de Manuel Bandeira, a arquitetura de Oscar Niemeyer eram representações do espírito coletivo brasileiro, tal como, no lado popular, a música de um Luiz Gonzaga, a pintura naif de Heitor dos Prazeres, a poesia de cordel, as esculturas de barro de Mestre Vitalino. Entre o chamado “erudito” e o chamado “popular”, haveria quiçá um fosso de ordem econômico-social, mas estariam unidos por uma mesma liga cultural. Apesar das diferenças de classe, cor ou região, estaria se consolidando uma cultura comum a todos. E esperava-se que todos participassem com espírito de união e aliança.

Pois bem, o espírito que dominou a redemocratização provocou uma ruptura conceitual nesse pensar. O conceito de minoria, que antes valia como não mais que um passo inicial para uma integração futura, ganhou status próprio, de valor singular. As minorias mereciam ser valorizadas como tais. Mulher (que não é minoria mas é tratada como tal) tem especificidades, homossexuais têm especificidade, negros, caboclos, cariocas bronzeados, paulistas quatrocentões, todos têm especificidades, valores e direitos próprios – são singulares e irredutíveis a qualquer outro processo maior. Na Antropologia essa conceituação ficou conhecida como multiculturalismo. A idéia de um todo integral parecia, nessa argumentação, como uma coisa autoritária, totalizante, própria de ditadura. Ou então populista, enganadora. Até as experiências artístico-políticas de esquerda, como a Comissão Popular de Cultura (1960-64), foram rejeitadas pelo novo modo de pensar. Dessa forma, jogou-se fora todo um processo de desenvolvimento da cultura brasileira que afirmava que mais importante que as divergências era o processo de convergência da multiplicidade plástica e comportamental dos brasileiros. Para importantes intelectuais, e aqui basta citar Marilena Chauí, o Brasil era na verdade um mito criado por ilusões ideológicas que reduziam a variedade à unicidade, sendo unicidade sinônimo de elite e autoritarismo. O que existiria na verdade seriam as variedades, a multiplicidade, as minorias, e delas é que se deveria partir para a formulação de um novo país.

Uma segunda razão materializou a teoria e as conseqüências práticas do multiculturalismo. É que desde a década de 1980 o Brasil passou a definhar em seu desenvolvimento econômico. Durante um século o Brasil cresceu, proporcionalmente, em níveis só comparáveis ao do Japão, mais do que os níveis dos Estados Unidos e dos países europeus. Nesse processo, as grandes diferenças sociais iam sendo paulatinamente diminuídas. Concomitantemente, a participação de negros e pardos na sociedade ia crescendo a olhos vistos, de modo que o país sentia que sua forma de racismo – que ignora as especificidades, rejeita as diferenças e quer incluir o negro pela assimilação – ia proporcionalmente diminuindo. As oportunidades de ascensão para negros ou morenos pobres e para brancos ou caboclos pobres pareciam estar surgindo em quantidade suficiente para emparelhá-los na competição social. Um branco acaboclado pobre virou presidente da República ao fim desse processo. Muitos auto-declarados negros viraram figuras políticas e intelectuais importantes. O fim do crescimento econômico estagnou esse processo, deixou os jovens sem perspectiva de ascensão e assim exacerbou as diferenças de percepção social. Ao mesmo tempo, consolidou e aprofundou as diferenças sociais entre classe média e povão.

Somando essas duas razões acontece que o Brasil perdeu a visão, que alguns chamam de ilusão – fundada em bases reais – de que o problema racial brasileiro e nossa forma de racismo poderiam ser combatidos por um processo cultural em andamento. O Brasil perdeu a confiança em si mesmo. A visibilidade da questão racial, especificamente do negro e moreno, já que o acaboclado é freqüentemente considerado branco, se realça com toda força, dado o fato de serem mais evidentes nos escalões sociais mais baixos e nas piores condições de vida. A busca do modelo americano passou a ser para muitos a única alternativa. Ao menos a mais certa, a mais provável para combater as desigualdades socio-raciais.

Eis onde se situam as motivações e razões em defesa das cotas raciais. A realidade social brasileira, objetiva e subjetivamente, aponta para um impasse, está em ponto morto. Para muitos a solução só poderá vir de fora do processo cultural brasileiro.

Publicado na Tribuna de Petrópolis, em 23 de fevereiro de 2003

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