sábado, 16 de junho de 2007

Os grandes sertanistas da atualidade

Vejam essa matéria fabulosa publicada no Carta Capital desta semana sobre os grandes sertanistas da atualidade. O autor é Felipe Milanez, que trabalhou como jornalista na Funai e foi um dos responsáveis pela renovação da Revista Brasil Indígena.

É um perfil de José Carlos Meirelles, Marcelo dos Santos, Antenor Vaz, Afonsinho, Altair Algayer, Rieli Fransciscato e outros que merecem o reconhecimento de todos nós como os seguidores do espírito do Marechal Rondon, dos irmãoes Villas-Boas, de Chico Meirelles. São pessoas de grande capacidade de trabalho e de alto senso de responsabilidade. Conhecedores dos povos indígenas, dedicados às suas vocações, representam a nova geração de indigenistas e sertanistas brasileiros, numa prova de que a política indigenista brasileira é histórica e tem continuidade. Note-se que nenhum deles vive da mídia e se faz de um ser que não é.

Tenho a honra de me sentir amigos de todos eles, com quem trabalhei na Funai, com quem visitei suas áreas de trabalho.

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Os últimos dos moicanos
por Felipe Milanez
A saga e o cotidiano do restrito grupo de sertanistas que dedica a vida a proteger índios isolados
Refúgio
São 3 da manhã. No posto de fiscalização Xinane, às margens do rio Envira,
em uma área de densa floresta amazônica na fronteira do Acre com o Peru, o sertanista José Carlos dos Reis Meirelles está com os olhos arregalados e desperto. Desde que parou de fumar quatro maços de cigarros por dia, há alguns anos, Meirelles dorme bem. Gosta de acordar antes do sol nascer, em meio ao barulho e à movimentação dos poucos funcionários que trabalham no posto. Nessa hora, o mosquito carapanã, que ataca à noite, já foi dormir, enquanto os piuns, que comem de dia, ainda não acordaram, e a pele ganha um alívio. Nessa hora, também, “os parentes, que ficam ali no mato, paradinhos, às vezes o dia inteiro, enxergam a movimentação e desistem de mexer com a gente”, diz. Os “parentes” são os índios autônomos, isolados, que vivem na região.

No ano em que a Fundação Nacional do Índio (Funai) completa 40 anos, Meirelles, o “ermitão do Acre”, é um dos poucos remanescentes de indigenistas e sertanistas que dedicaram a vida a catalogar e proteger tribos isoladas. Apesar de glamourizada pela saga dos irmãos Villas Bôas, Orlando, Cláudio e Leonardo, que se tornaram figuras midiáticas, reconhecidas em todo o mundo, a labuta é árdua. Os obstáculos são muitos e grandiosos: doenças capazes de provocar a morte, índios dispostos a se defender a qualquer custo, fazendeiros, madeireiros e pistoleiros, prontos a preservar suas terras à bala, animais selvagens. Em campo, há dez funcionários nas cinco frentes de proteção espalhadas pela Amazônia Legal. O salário médio é de 1,5 mil reais. A maioria, como Meirelles, recusa os holofotes e leva uma existência ascética e anônima. E seguem à risca o lema do marechal Cândido Rondon, pioneiro na política indigenista: “Morrer se preciso for, matar nunca”.

“Vir pra cidade é bom. Dá para tomar cerveja, gelada ainda por cima, banho em chuveiro, ligar a tevê e ver besteira, ficar tranqüilo com a mulher”, afirma Meirelles, enquanto aguarda sair do forno uma lasanha de peixe preparada pela esposa Teresa. Em uma rara e curta folga, em fevereiro deste ano, o indigenista foi descansar em Feijó, no Acre, onde vive a família. “A Amazônia é legal na tevê, lá de cima do avião, mas vai agüentar esse monte de mosquito, pium, carapanã, cobra, onça, carrapato, bicho-do-pé, espinho. Aqui é difícil”, brinca.

Primo do cineasta Fernando Meirelles, diretor de Cidade de Deus, nascido no interior de São Paulo, ele reclama da boca para fora. Pior, para tipos como ele, seria assumir um cargo burocrático na sede da fundação em Brasília, entre quilos de papéis e reuniões arrastadas. “Eu não suportaria”, confessa Meirelles. Em fevereiro do ano passado, ele assumiu a Coordenação-Geral de Índios Isolados, em Brasília, no lugar de Sidney Possuelo. Não agüentou três meses no cargo. Preferiu voltar para o meio do mato.

Os sertanistas ainda em atividade dividem-se em dois grupos. Ou são idealistas de classe média, criados em cidades no Sudeste, ou filhos de migrantes que foram atrás de uma vida melhor na Amazônia. Este é o caso de Afonso Alves da Cruz, o “Afonsinho”, nascido em São José do Xingu, reconhecida terra de pistolagem. Altair Algayer e Rieli Franciscato são filhos de migrantes do Sul que se estabeleceram em Rondônia, trabalharam para fazendeiros e “mudaram de lado” depois de conviver com o pessoal da Funai. Antenor Vaz, Marcelo dos Santos, Wellington Figueiredo e Sidney Possuelo são do time dos que vieram das grandes cidades, foram em busca de aventuras e se envolveram na ideologia indigenista nacional em vigor nos anos 1970.

Em comum, possuem o caráter destemido, a defesa intransigente dos povos indígenas e aversão aos corredores burocráticos. Preferem a mata, apesar dos perigos. Meirelles, por exemplo, quase morreu em 2004 durante um ataque de índios da etnia masku. Uma flecha atravessou seu rosto, entrou pela bochecha e saiu pelo pescoço, enquanto pescava em um igarapé próximo ao posto Xinane. A primeira reação foi pular do barco e correr pelas águas rasas. As flechas zuniam perto do ouvido. Após várias ligações para a Funai, o Exército e o gabinete do então governador Tião Viana, Meirelles foi resgatado por um helicóptero militar. Menos de um mês depois, ainda em recuperação, voltou ao posto na floresta para cuidar dos “parentes brabos”.

Afonsinho tem história semelhante. No fim da década de 70, ele foi escalado para fazer contato com um grupo da etnia arara que atacava operários da Transamazônica, o megalômano projeto da ditadura militar que pretendia cortar a floresta com a estrada. “Eles só deixavam os ossos, parece que comiam tudo”, recorda o sertanista, que tem hoje cerca de 70 anos (ele mesmo se confunde com a idade desde que a falsificou para entrar no antigo Serviço de Proteção ao Índio, predecessor da Funai. Só maiores de 18 anos eram aceitos).

Em uma das incursões para tentar o contato, a equipe da Funai foi atacada. Afonsinho conta os detalhes: “A primeira flecha entrou aqui, sobre o pulmão. A outra, quando eu já estava caído, mais embaixo, pegou o meu rim”. Depois de ser flechado, o senhor ainda voltou lá? “Voltei, claro. Sou amigo deles, me dou bem, falo a língua”, narra o sertanista, que atualmente chefia o posto Arara, na terra indígena Cachoeira Seca do Iriri. Afonsinho dedicou a vida ao contato com os índios. O pai, cearense de nascimento, era seringueiro e não podia ouvir menções a índios sem correr para pegar uma espingarda. O filho, ao contrário, nunca disparou um único tiro contra os nativos. No ramo desde 1951, virou uma espécie de amuleto na Funai de Altamira, respeitado pelos funcionários e pela burocracia em Brasília. Trabalhou na pacificação dos caiapós, que recebiam os intrusos a golpes de tacape, e dos araras. Em 1996, fez contato com os corubos, chamados de “caceteiros”, no Vale do Javari (AM).

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