sábado, 16 de junho de 2007

Os grandes sertanistas (cont.)

Continuação da matéria acima sobre os grandes sertanistas da atualidade.

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Os últimos dos moicanos
por Felipe Milanez

A maioria dos sertanistas recusa, porém, o rótulo de herói. “Dedicar a vida para cuidar de índios, mais do que uma ideologia é uma política pública nacional. É uma história feita por muitos”, afirma Antenor Vaz, 20 anos de trabalho com índios, infectado pela malária dezenas de vezes, ameaçado de morte outras tantas. Vaz trabalha atualmente no Vale do Javari e mora na cidade de Atalaia do Norte (AM), mas decidiu deixar o serviço público, desanimado com as condições precárias de trabalho. “Não tem gasolina nem para ligar o motor do barco”, reclama. Deixará dois discípulos em Rondônia, treinados na década de 80. Rieli Franciscato atua na terra indígena uru-eu-uau-uau. Altair Algayer chefia a frente de proteção etnoambiental Guaporé, em contato com os canoês e os akuntsus, etnias que ajudou a salvar da extinção, além do ainda isolado “índio do buraco”, cuja existência foi descoberta em 1997. Algayer, filho de migrantes catarinenses, foi alfabetizado por Vaz nos trabalhos de campo.

A política indigenista brasileira, que segue uma linha protecionista traçada nos últimos cem anos, foi precursora no mundo. A Funai, mesmo com os recursos escassos, tem sucesso relativo em preservar as tribos do avanço do progresso. “No fundo, pensando bem, o nosso trabalho não é proteger, mas servir aos interesses de expansão da nação. É triste pensar assim, mas assim é que é”, reflete o sertanista Welington Figueiredo. Antigo colaborador de Sidney Possuelo, que criou o Departamento de Índios Isolados (atual Coordenação Geral de Índios Isolados) em 1989, Figueiredo, oficialmente aposentado, continua na ativa. Volta e meia, é enviado em curtas expedições.

O sertanista anda incomodado com o extermínio de etnias no Maranhão. “Sei que as coisas são difíceis, mas não dá para aceitar perder a briga com os madeireiros. Eles estão matando todos os guajás”, denuncia. “Hoje tem a Funai, o Ibama, a Polícia Florestal, a Polícia Federal. Como é que não se consegue expulsá-los das terras indígenas?”, pergunta.

Foi entre os guajás, uma vez, que Figueiredo sofreu uma séria ameaça. “Uns jagunços atacaram, nos assaltaram e prometeram que, se a gente voltasse, matariam. Voltei e não me mataram”, afirma.

Outro avesso aos gabinetes refrigerados e às gravatas é Marcelo dos Santos. “Meu lugar é no mato. Essa coisa de usar sapato e cheirar fumaça não é comigo”, afirma.

Nascido no interior de São Paulo, Santos trabalhou a vida toda com os nambiquaras de Rondônia. Ganhou respeito ao impedir a entrada de madeireiras nas aldeias e ficou famoso ao intermediar o contato com duas tribos isoladas que haviam se escondido na floresta após quase ser dizimadas nos anos 80. Foi ele quem descobriu o “índio do buraco”, em 1997.

Em parceria com Algayer, Santos passou mais de uma década a vasculhar os matos nas fazendas de Corumbiara, a contragosto e sem autorização dos proprietários, em busca de vestígios dos remanescentes das tribos da região. Em conversas de botequim, ele sempre ouvia referências a um “índio pelado”.

Em 1995, na mesma semana do massacre de integrantes do Movimento dos Sem Terra na região, Santos e Algayer encontraram os irmãos Pura, jovem com cerca de 20 anos, e Tiramantu, um pouco mais velha, dois dos cinco remanescentes da tribo canoê. Os irmãos guiaram os sertanistas a um grupo de sete akuntsus. Ali perto, dois anos depois do contato com os irmãos canoê, descobriram a maloca do “índio do buraco”, que vivia solitário, escondido e amedrontado.

À época, Santos e Algayer foram acusados de “inventar índios” e sofreram ameaças de fazendeiros e grileiros. Aposentado, Santos acabou afastado de Corumbiara. Algayer foi transferido para Minas Gerais, onde passou a trabalhar com os índios maxacali. No período de afastamento, Santos tentou trabalhar no terceiro setor. “As ONGs são muito organizadas, mas é diferente de trabalhar para o Estado, não tem a mesma legitimidade”, afirma. Santos é o atual coordenador-geral de Índios Isolados da Funai.

O antropólogo Mércio Gomes, ex-presidente da Funai, afirma que os indigenistas, além dos perigos da floresta, enfrentam a desconfiança de burocratas e da academia. “A Funai foi criada pelos militares, como se viesse para substituir o SPI e dar cabo dos índios, apressar sua assimilação, fazê-los cidadãos. Mas a própria fundação não deixou que isso acontecesse”, afirma o antropólogo, que tentou de forma infrutífera, durante os três anos e meio de mandato, aprovar um plano de carreira para os servidores e manter os quadros mais experientes em atividade. “Havia indigenistas que não deixaram que isso acontecesse. Foram criadas novas gerações que se meteram à luta, seguindo o exemplo, a moral e o pensamento do marechal Rondon”, diz.

Realmente, são comuns no meio acadêmico as críticas a Rondon, tachado de autoritário e acusado de querer apenas dominar os índios. Os atuais sertanistas enfrentam a mesma crítica, a de manter as tribos sob seu controle e evitar que elas se integrem à sociedade. Os sertanistas afirmam, em defesa própria, que os contatos tendem a dizimar os índios (quadro à pág. 14). “Não temos condições de prover saúde e dar assistência, seria um massacre”, afirma Meirelles.

Quando podem, agem para impedir as aproximações. É o que tem feito Vaz no caso dos corubos, habitantes do Vale do Javari. Os índios insistem nos contatos esporádicos com os funcionários da Funai. Em maio último, 40 corubos tentaram uma aproximação para conseguir metais e ferramentas, mas Vaz evitou que ela se consumasse. A ação pode fazer a diferença entre a vida e a morte de dezenas de nativos.

Em perspectiva histórica, é possível afirmar que a luta de Santos, Meirelles, Vaz e outros não é nova, apenas atravessa outra crise em um Brasil supostamente mais moderno e desenvolvido. Antes deles, viveram luta parecida os Villas Bôas, que tiveram de aceitar um Parque do Xingu com a metade do tamanho que haviam proposto, e Chico Meirelles, morto antes de ver demarcado o território xavante que havia pacificado. Sem falar em Rondon.

Em 1849, Gonçalves Dias já alertava: “Os índios foram o instrumento de quanto aqui se praticou de útil e grandioso. Eles são o princípio de todas as nossas coisas. São seu lema o mais valoroso caráter nacional. E será a coroa de nossa prosperidade o dia de sua inteira reabilitação”. Se depender dos sertanistas, a hora é agora.

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