A Funai aos Quarenta Anos: Parte 7 (Final)
A eleição de Lula trouxe imensas esperanças para os índios, mesmo para aqueles que não votaram nele. Trouxe desmesuradas esperanças para o CIMI, que se antecipava como protagonista da questão indígena, para indigenistas e antropólogos simpatizantes do PT, e, de um modo muito sagaz, para as Ongs neoliberais, que apostaram no candidato de FHC, mas que souberam se reorientar rapidamente no panorama político.
O ministro da Justiça nomeado pelo presidente Lula, Dr. Márcio Thomaz Bastos, eminente jurista paulista, grande advogado de causas nacionais, e também do próprio presidente, logo se viu acossado por dezenas de pedidos, de auto-indicações dos eternos candidatos ao cargo e de indicações de políticos. Sentiu o volume de conflito que estava por vir, ouviu e conversou com todos os quadrantes do indigenismo oficial e não oficial, e, sem saber a quem escolher, e por obrigação partidária, acatou a indicação do movimento social do PT para nomear o jornalista, antes indigenista da Funai, Eduardo Almeida, para a presidência da Funai. Creio que este foi seu primeiro arrependimento político no novo governo.
A Funai, desde fins de 2002, estava tomada por delegações e grupos de índios vindos de todas as partes do Brasil, mas especialmente, em maior número, do Nordeste e do Centro-Oeste. Entre 400 e 500 índios esperavam a fumacinha branca da nomeação do novo presidente da Funai. Esperavam uma melhora substantiva, e logo, ou o fim do órgão. Os boatos rolaram mais do que em qualquer outra época, exceto talvez o tempo de Collor de Mello. O incumbente da ocasião não sabia o quê fazer, a não ser entregar o cargo logo que fosse indicado seu substituto. Ele próprio declinou de um leve convite que lhe foi feito para permanecer no cargo por mais algum tempo.
Em janeiro de 2003, alguns dias após a posse do presidente Lula, estoura um conflito de retomada de terras no Mato Grosso do Sul que resulta no assassinato brutal do líder Guarani-Kaiowá Marcos Veron. O CIMI, entendendo o sentimento da ocasião, fortalece sua retórica de imposição. Logo em seguida, novo conflito, desta vez entre índios na Terra Indígena Xukuru, o qual resulta na morte de dois guarda-costas do jovem chefe Marcos Luidson. O conflito resultou na expulsão de um número superior a 200 famílias da terra indígena, por decisão da maioria esmagadora dos demais Xukuru, cerca de 5.000 indivíduos, e levou à vitimização do jovem chefe Xukuru, que passou a ser protegido pela Polícia Federal em virtude de putativas ameaças por parte do grupo expulso. Os expulsos passaram a viver em Recife e em Pesqueira, sob os auspícios da velha Funai, alimentados por uma retórica difícil de se entender politicamente. O incidente foi levado à Comissão de Direitos Humanos da OEA, pelo CIMI, e o Brasil teve que responder a esse caso como réu, um ano depois, já com um novo presidente, este que vos escreve.
A posse do novo presidente foi precedida de uma entrevista destemperada em que a Funai foi considerada um antro de desonestos, a besta-fera dos índios, e ele o salvador. Não podia durar muito. Assim, o órgão ficou ao vento, a tensão aumentando, as delegações indígenas ficando cada vez mais agressivas, os servidores ao deus-dará. Não podendo despachar na Funai, o presidente Eduardo despachava ou no Ministério da Justiça, onde lhe foi concedida uma sala de refúgio, ou no CIMI, que era seu principal aliado. O CIMI também conseguiu emplacar um assessor para assuntos indígenas no próprio Ministério. Mas não parava de exigir atitudes do governo. Em julho, três meses após sua ausência das dependências da Funai, a demissão do incumbente se concretizara.
No alvoroço do vazio político, a Coiab, a Apoinme e outras pequenas associações indígenas resolveram que era chegada a vez dos índios terem seu lugar maior na Funai. O próprio Lula havia dito ou prometido essa oportunidade e agora estava sendo cobrado. Lançaram o nome de Antônio Apurinã, um servidor indígena da Funai, no Acre, militante do PCdoB e terceiro suplente da senadora Marina Silva. Na Funai fora nomeado diretor da Diretoria de Assistência. Se não presidente, um dia senador. Acreditando ou não nessa oportunidade, as Ongs neoliberais e o CIMI apostaram no quanto melhor pior e passaram a fazer a campanha de Apurinã junto a deputados e membros do governo, enquanto procuravam desesperadamente por alguém do seu grupo para ir ao sacrifício. Mas ninguém se voluntariou, vendo a Funai como ela estava em fins de agosto de 2003. Naqueles dias, uma comissão de deputados, indígenas e Ongs foram apresentar suas considerações ao Ministro Márcio T. Bastos. Alguns saíram com o leve sentimento de que a idéia da nomeação de um índio poderia ser aceita, outros com a certeza de que não era ainda a vez de um índio na presidência da Funai.
Nesse tempo -- e aqui os leitores vão me permitir minha entrada em cena, já que passo a fazer parte da história -- fui contatado pelo Dr. Sérgio Sérvulo da Cunha, chefe de gabinete do Ministro Márcio, e conversamos, aqui no Rio de Janeiro, sobre os fatos que estavam sucedendo na questão indígena. O Dr. Sérgio viera ao Rio conversar com outros antropólogos e aproveitou para me conhecer e colocar-me a par de todas as situações que estavam ocorrendo e pediu minha visão da questão. Dei-lha, sem subterfúgios. Dois dias depois ele me telefonou dizendo que o Ministro Márcio gostaria de conversar comigo, em Brasília.
No dia 2 de setembro fui a Brasília conversar com o Dr. Márcio. Conversamos sobre vários assuntos, sobre os povos indígenas, sobre a Funai, sobre a história do indigenismo, sobre as prioridades a serem implementadas nesse governo, caso eu aceitasse o cargo de presidente da Funai. Ao cabo de não mais de 35 minutos, despedimo-nos em boa paz. Nunca havia pensado que seria tão fácil ser presidente da Funai! O jeito do Dr. Márcio conhecer as pessoas me impressionou profundamente. Ter-me entendido em tão pouco tempo só podia ser uma qualidade especial dele. Duas, aliás, porque a segunda era a ousadia de convidar alguém que não era do PT, que não se dava bem com as Ongs neoliberais e que tinha escrito um artigo crítico sobre a história do PT, onde, como única ressalva positiva, reconhecia o valor excepcional de Lula e sugeria que este fosse um governo de coalizão. Como, aliás, estava principiando a ser.
No dia seguinte, o Dr. Sérgio convocou o presidente em exercício, Antônio Pereira Neto, para conversarmos sobre a Funai. Naquela tarde ele me informou que minha nomeação sairia no dia seguinte e que eu precisava me apressar. Para convencer o então todo-poderoso ministro José Dirceu da necessidade de minha nomeação, que já estava causando reboliço no meio indigenista, o ministro Márcio Thomaz Bastos teria dito a ele que seu cargo também estava à disposição de sua “Poderidade”, caso a vetasse. Também fiquei impressionado com o Dr. Márcio por isso.
Deste modo fiz uma rápida lista de pessoas com quem gostaria de conversar e pedi a Antônio Pereira para convidá-los a vir ao Ministério conversar comigo. Vieram meu amigo Carvalho, Rita Heloísa, Carrano e outros, não muito animados, vendo a Funai em pandemônio e a resistência que viria das Ongs neoliberais e do movimento indígena a elas atrelado. De fato, a resistência aconteceu desde o primeiro dia da minha nomeação. Junto com o DO, sairiam nos sites da Coiab, do ISA, do CIMI e de outras Ongs, em combinação, matérias idênticas, nas quais citavam trechos do meu artigo crítico ao PT, minha ligação com Darcy Ribeiro (considerado por eles como um antropólogo “superado”) e Leonel Brizola, com o PPS, como elementos que deveriam me desqualificar da Funai, junto com o propósito que abraçavam de ter um índio na presidência da Funai.
E não pararam em momento algum de fustigar a minha administração, coadjuvados pelo Ministério Público e pelo reagrupamento do PT indigenista em torno de algumas figuras próximas ao Palácio do Planalto. Muito poder contrário, muita mandinga jogada, muita oração malfazeja. Campanhas de maledicência e campanhas sensacionalistas deram a tônica desse período em que, passados mais de 12 anos, as Ongs neoliberais haviam perdido o controle da questão indígena brasileira. Ao final, as reivindicações principais que auto-legitimavam sua campanha por um indigenismo neoliberal, e de desapreço à minha pessoa, foram todas realizadas na minha administração, nos seus tempos precisos. Exceto a assunção da presidência da Funai por um índio, algo que eu cheguei a considerar como possível, mas que eles refutaram quando da minha saída da Funai, por vontade própria, três anos e seis meses depois.
Ser presidente da Funai não é trabalho para amadores. Aqui não irei tecer ainda a história de minha gestão. É cedo e sem importância, por enquanto. Vale a pena tecer algumas considerações sobre o rumo da Funai nesse período e sobre o que poderá estar para vir.
Demarcação de Terras
A Funai cuida de um patrimônio incomparável de terras indígenas demarcadas ou em processo de demarcação, chegando a cerca de 1.100.000 km2, ou 13% do território brasileiro, ou 23% da Amazônia Legal. Logrou esse resultado em 40 anos de existência, mais precisamente, em 30 anos, de finais da década de 1970 para a atualidade. Nada pode esmaecer esse feito, e só os néscios e despeitados tentam apagá-lo.
De resto, há ainda um número razoável de terras indígenas a serem reconhecidas e demarcadas, e a luta para chegar a resultados positivos exige novas estratégias. Não é pela afoiteza e arrogância que a maioria dessas terras serão demarcadas. Por isso é que, no momento atual, poucas das terras pretendidas serão demarcadas. A falta de estratégia levou o atual ministro a portariar quatro terras indígenas no oeste catarinense de uma só vez, num ato que resultou no recrudescimento da resistência organizada de colonos, deputados, prefeitos e a população não indígena, exatamente aqueles a quem a gestão anterior estava tentando minar as resistências por outros modos. Já a demagogia de prometer demarcações de acordo com as pressões também resultará em frustrações e desmoralização do órgão. Por outra, há que se considerar que as Ongs neoliberais e o CIMI desenvolveram a estratégia de manter a Funai sempre na defensiva, devedora de coisas que não estão nas suas possibilidades de resolver com um passe de mágica. Usam a mídia, manipulam as lideranças jovens e as associações indígenas e atiram lama contra a Funai e contra o governo.
No episódio paradigmático da homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, essas Ongs fizeram de tudo para ojerizar a população brasileira contra essa homologação e, no fundo, torciam para que não se o conseguisse, tal o nível de cobranças e sensacionalismo que levantaram no panorama político nacional e no plano internacional. Creio que, no momento em que o presidente Lula assinou a homologação, no dia 15 de abril de 2005, contrariando toda a classe política de Roraima, grande parte dos militares e boa parte dos parlamentares de esquerda e de direita, muitas dessas Ongs sofreram pela diminuição de doações aos seus orçamentos. Mas não diminuíram na busca de novas sensações e no aumento das estatísticas de terras indígenas a serem demarcadas.
Por outro lado, as Ongs neoliberais sabem e fingem não levar em conta que uma centena de ações sobre questões indígenas se encontram no Supremo Tribunal Federal, algumas com mais de um vintena de anos paradas, sem soluções à vista. Há que se perguntar, por que o STF se senta em cima desses processos? Que modos seriam adequados para resolver esses problemas? Baste que se cite alguns dos casos mais antigos, como as terras indígenas Caramuru-Paraguaçu e Kadiwéu; ou os mais politizados, como Ñanderu Marangatu e Monte-Mor. Há dezenas de processos em tribunais de várias instâncias que barram a progressão de demarcação de terras indígenas no Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Santa Catarina, São Paulo, Paraíba, Ceará, Pernambuco, Bahia, Pará, Amazonas, Roraima, Acre, Rondônia, enfim, quase todos os estados. Como isso será resolvido? Certamente não será no grito, nem nos argumentos simplórios usados pelas Ongs neoliberais e transmitidas para as associações indígenas. Assim, o desvirtuamento sensacionalista que fizeram da explicação que dei em uma entrevista sobre a importância do STF na resolução desses problemas é produto de seu pouco discernimento e da má fé que os dominam.
Por tudo isso, a Funai não pode ficar à mercê do discurso das Ongs nem às suas pretensões. Há que se entender que, para que o processo de demarcação de terras indígenas continue, será necessário se criar novas estratégias de reconhecimento e de retomada, com uma paciência e um senso de oportunidade que passam longe do voluntarismo e do preciosismo jurídico que querem usar para esse propósito. Do contrário, os índios é que serão prejudicados.
Participação e Diálogo com os índios
Há muitos anos que a Funai e seus quadros aprenderam a dialogar com os índios. No início paternalista, aos poucos foi criando sua forma de diálogo que é, em muitos casos, superior ao diálogo que antropólogos avulsos pensam que mantêm com os índios, e muito mais sincero e fraterno do que o diálogo, este sim, paternalista e patronizante, que as Ongs neoliberais praticam. Dei-me conta disso ao ser presidente do órgão e ao avaliar o diálogo que vi em todos os quadrantes do indigenismo e do anti-indigenismo brasileiros.
Mas há muito mais que fazer para que a Funai saiba estar aberta para os índios e acolha a sua participação em todas as instâncias. Há algum tempo jovens indígenas vêem tendo uma participação maior nos afazeres públicos da Funai, exercendo cargos de direção. Essa prática vem desde a década de 1940, quando o SPI criou a categoria de “aprendiz” e contratou indígenas para esses cargos. Na década de 1980 novas lideranças foram alçadas a cargos de chefias locais, como os postos indígenas. Hoje uma boa parte das administrações regionais e núcleos da Funai são dirigidos por indígenas, com qualidade de atuação equivalente, em média, àquelas dirigidas por não indígenas. Na minha presidência dupliquei o número de indígenas administradores e nomeei dois indígenas para cargos de coordenação-geral. Uma delas provou ser uma líder e uma gestora invejável. O outro ajudou na organização das conferências regionais e na Conferência Nacional dos povos indígenas.
É preciso que os não indígenas da Funai, técnicos indigenistas, servidores burocratas, servidores de campo, enfim, todos os servidores do quadro, entendam que uma de suas tarefas é ser aberto para o ensino de suas funções aos indígenas. Isto, sem que se use de um paternalismo demagógico. É tarefa difícil, mas deve estar no conceito de um novo indigenismo a ser praticado nos próximos anos.
Como em todas as situações humanas, existem lideranças e existem lideranças. Umas nascem de seu enraizamento em suas comunidades, outras advêm de seus conhecimentos do mundo ao seu redor. Ambas têm validade e o ideal seria a integração das duas. Porém, com muita freqüência, são as lideranças curtidas na vida da cidade que têm a voz mais aguda nas reivindicações e assim despontam com mais importantes. A Funai sempre tentou equilibrar as duas categorias de lideranças, mas, ultimamente, tem sido atropelada pelas lideranças citadinas, encasteladas no movimento indígena. As associações se equipam melhor financeiramente e em termos de comunicação e ganham poder sobre as lideranças tradicionais. Esse processo foi exacerbado na década neoliberal e é difícil de encontrar um caminho diferente.
A extraordinária Conferência Nacional dos Povos Indígenas, realizada entre dezembro de 2004 e abril de 2006, foi o grande momento de trabalho comum e síntese dessas lideranças, com participação de ambas. Porém, logo após, não se pôde dar continuidade aos encaminhamentos propostos, houve graves problemas na aceitação das indicações de membros para participar da Comissão Nacional de Política Indigenista, e, ao final, as lideranças do movimento indígena ganharam a vez no grito e se impuseram sobre as lideranças tradicionais.
Entretanto, as contradições vão continuar. A grande maioria dos povos indígenas brasileiros têm lideranças curtidas nas lutas internas e no conhecimento dos costumes de seus povos. Eles é que guardam a diferença étnica essencial para a continuidade de suas existências. A dominação das lideranças citadinas ligadas às Ongs neoliberais irá provocar desarranjos nas lideranças locais, se não houver um equilíbrio verdadeiro. Para isso, certamente o indigenismo rondoniano da Funai poderá ajudar imensamente.
Um novo indigenismo rondoniano
Seria temeridade minha tentar pensar o quê seria esse novo indigenismo rondoniano. Porém, as bases para esse indigenismo continuam a ser os atos e atitudes e visões que Rondon aplicou em seu tempo e que a Funai e seus indigenistas deram continuidade, aos trancos e barrancos.
As bases e algo mais. De todo modo, nesses quarenta anos de existência da Fundação Nacional do Índio, haveremos de acreditar que haverá novas oportunidades para se levar adiante um tal projeto.
quarta-feira, 5 de dezembro de 2007
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