Concluída a Constituição tivemos, um ano depois, a eleição presidencial em que Collor de Mello, tal qual cavalo azarão, sai dos últimos lugares, atropela e deixa para trás os candidatos Paulo Maluf, Mário Covas, Leonel Brizola e Lula, este também no segundo turno, e se consagra o primeiro presidente eleito depois da ditadura militar.
Embora com legitimidade política, por votação irrefutável, pouca gente confiou que Collor seria capaz de consolidar a democracia no Brasil, e foi o que aconteceu. Escudado por seu chefe de campanha PC Farias e por atitudes intempestivas e antidemocráticas, em dezembro de 1992, dois anos e meio depois de sua posse, ele estava cassado pelo Congresso Nacional na esteira de um movimento nacional de rejeição às suas atitudes políticas e às acusações de corrupção. Seu vice, o mineiríssimo Itamar Franco, governou até a posse de seu substituto eleito, Fernando Henrique Cardoso, que ficou no governo até 1º de janeiro de 2003. Estes 12 anos podem ser caracterizados como a era de implantação do neoliberalismo, com repercussões surpreendentemente positivas e negativas para a causa indígena brasileira,
No governo anterior, do presidente Sarney, 32 terras haviam sido homologadas, como o deslanche do processo de demarcação contemporâneo que começara ainda na década de 1970. Naquela década, sob a liderança do general Ismarth, muitas terras indígenas haviam sido reconhecidas, algumas demarcadas in situ, inclusive a grande maioria das terras tradicionalmente conhecidas do Maranhão, Tocantins, Pará e outros estados. Mas, a maior parte dessas terras estava engavetada para homologação presidencial devido às objeções obcecadas dos militares que ainda tinham ascendência sobre a presidência. Collor, encurraldo por críticas e buscando simpatia e apoio entre ambientalistas e a comunidade internacional, no bojo da recém-afamada causa ambiental, e ladeado pelo seu ministro da Justiça, Jarbas Passarinho, um ex-militar defensor da ditadura militar, enfrentou as resistências militares e soltou a caneta de homologações. Assim, 128 terras indígenas foram homologadas nesse breve período de tempo, inclusive a mais difícil de todas, a Terra Indígena Yanomami, que, no Governo Sarney, estava projetada para se constituir em oito “ilhas” de terras num território de 98 mil quilômetros quadrados e com mais de 1.000 km de fronteira com a Venezuela.
Sem diminuir o arrojo de Collor de Mello, há que se reconhecer o trabalho da Funai em toda essa obra, inclusive dos indigenistas e do seu presidente da época, Sidney Possuelo. O trabalho acumulado em tantos anos de atividades demarcatórias foi recompensado por uma circunstância política inesperada. Para muitos analistas, a questão indígena passou a ser reconhecida não unicamente como uma bandeira da esquerda brasileira, mas como uma bandeira que representa a identidade nacional. Com efeito, levando em consideração o fato de o Estatuto do Índio, com toda sua defesa dos direitos indígenas nele contida, ter sido promulgado no período mais duro da ditadura militar (1973), quando governava o general Médici, e agora com a desbragada simpatia de Collor pela demarcação de terras, não se pode pensar senão que a questão indígena brasileira transcende simpatia e militância políticas de esquerda. Esta foi uma lição fundamental para a causa indígena.
No breve governo de Itamar Franco dois indigenistas de renome exerceram o cargo de presidente da Funai, Cláudio Romero, que foi infelicitado pelo Massacre de Haximu, perpetrado por garimpeiros na Terra Indígena Yanomami, e Dinarte Medeiros, que deu um certo equilíbrio ao órgão, que começava a sofrer as agruras que estavam por vir.
Com Fernando Henrique Cardoso opera-se, em pouco tempo, a tomada da Funai por pessoas envolvidas com a idéia de que o órgão carece de legitimidade para tratar da questão indígena brasileira e passa a ser um estorvo na burocracia estatal federal. Entre eles estão Márcio Santilli, Júlio Geiger, Frederico Marés, Márcio Lacerda, Sullivan Silvestre e Roque Laraia, com intervalos de permanência de funcionários da Funai, como Glênio Alvarez, Otacílio Antunes e, por fim, Artur Mendes. Os três primeiros citados tinham por visão a ineficiência do Estado brasileiro para continuar a ser a instância principal de proteção e assistência aos povos indígenas e queriam que essas tarefas fossem distribuídas ou compartidas com as Ongs e com a Igreja Católica. Márcio Santilli, em especial, vem trabalhando desde a Constituição para a extinção da Funai e sua substituição por uma espécie de agência reguladora que financiaria as Ongs e estados para tratar da questão indígena. Daí é que passaram a exercer pressão para que encargos fundamentais da Funai, como a saúde e a educação, fossem retirados da sua alçada de atuação. De fato, conseguiram esse objetivo, no todo para a questão da saúde indígena, que, em 1999, passou para a Funasa, e em grande parte para a questão da educação indígena, que, em 1998, passou para o Ministério da Educação, a qual estadualizou-a e municipalizou-a nos anos seguintes.
Entretanto, essas atitudes anti-Funai, próprias do indigenismo neoliberal que prevalece entre as Ongs indigenistas, não estrangularam a capacidade de demarcação de terras indígenas do órgão. A partir de 1996, com a ajuda de um consórcio de recursos internacionais geridos pela agência de fomento da Alemanha, a Funai se capitalizou, numa época em que seu orçamento foi diminuído enormemente em proporção a aumentos de orçamentos de outras repartições públicas, e deu continuidade à demarcação de mais de uma centena de terras indígenas, inclusive grandes terras na Amazônia Legal e um conjunto de pequenas terras no Mato Grosso do Sul, estas últimas que vieram suplementar as pequeninas terras demarcadas desde a década de 1930 pelo SPI. Os alemães não “salvaram” propriamente a Funai, mas deram um enorme reforço à sua capacidade de ação demarcatória durante todo o período do presidente Fernando Henrique. A respeito de demarcação de terras, há que se considerar também que as décadas de 1980 e 1990 foram um período de estagnação da economia brasileira, onde o valor da terra nua diminuiu enormemente. Daí é que ficou mais fácil para fazendeiros ou colonos moradores de terras depois consideradas indígenas aceitarem sem maiores reclamações os valores das indenizações propostas pelas estimativas da Funai, algo que, hoje em dia, não acontece com tanta facilidade.
A retirada da saúde da Funai foi um dos gestos mais contestados por indigenistas e índios na história recente do órgão. Muitos viram de pronto o que estava para vir, como de fato veio a acontecer. A passagem foi feita por um simples decreto presidencial com as assinaturas coadjuvantes dos dois ministérios que supervisionam a Funai e a Funasa. O plano e a estruturação da Funasa para atender as áreas de presença indígena foi realizado pelo Instituto Socioambiental, na figura de seu principal coordenador, Márcio Santilli, que exercia muita influência pessoal na Casa Civil. A Funasa estava em franco descenso administrativo e em vias de ser extinta, e se alavancou trazendo para si o encargo da saúde indígena e as verbas surgidas com a CPMF. Para se legitimar e ser aceito pelas comunidades indígenas, usou de todos os artifícios para cooptar funcionários e índios, desde cargos e aumentos salariais a participação no processo de terceirização das atividades de saúde. Para tanto arregimentou jovens indígenas a criar suas associações para receber as verbas de contratação de pessoal médico, infraestrutura de transporte, construções e compra de medicamentos, fato que os levou a uma desenfreada ambição de uso de verbas públicas, desvios, peculato e, por fim, desestruturação do poder indígena local pelas lideranças tradicionais. Pior ainda, a terceirização provocou o pouco interesse por parte do pessoal médico em aprender práticas indigenistas que são essenciais para o exercício médico em comunidades indígenas. Os pacientes indígenas passaram a sofrer humilhações e descaso com há muito tempo não sentiam, e a revolta se instalou nas comunidades indígenas com a ação da Funasa. Desde sempre, o descontentamento é geral, tanto por parte dos pacientes quanto por parte dos jovens indígenas e suas associações conveniadas com a Funasa.
A educação não foi extirpada de todo da Funai, pois aí permaneceu um pequeno corpo de professoras com larga experiência de ensino e com as mentes abertas para entender os processos de aprendizado e de conseqüências político-culturais que acontecem com jovens indígenas que são educados no sistema brasileiro. Assim, é através do pequeno setor de educação da Funai que ainda prevalece o sentimento de responsabilidade do estado brasileiro para com a educação indígena. No Ministério da Educação, com todo seu aparato e a nova Lei de Educação promulgada em dezembro de 1996, a educação indígena virou uma questão neoliberal. Apesar da implicação da Lei da Educação para que fosse criado um sistema próprio de educação indígena, os educadores do MEC se refugiaram no sistema geral de educação e determinaram que a educação indígena fosse ministrada nos níveis municipais e estaduais, com a isenção do governo federal. A não ser para repassar verbas e dar instruções gerais. O fato é que, junto com a implantação da progressão automática, a educação indígena passou a ser entendida como um processo que necessita tão somente de algum estudo, já que a progressão é automática. O problema é achar que essa progressão representa, de fato, uma passagem de níveis de conhecimento. Entretanto, esse processo educacional não se diferencia muito daquele aplicado às camadas sociais mais pobres, especialmente das pequenas cidades, embora, no caso indígena, seja potencializada ao máximo pelo fator de diferenciação cultural.
Tanto educação como saúde continuam a ser tratados do modo neoliberal implantado pelo Governo FHC. Difícil escapar dessa herança maldita, e parece que não se quer escapar. Os povos indígenas é que pagam o preço por isso.
Os anos de implantação da década neoliberal não foram passados em brancas nuvens. Os índios nunca deixaram de protestar, e seus protestos foram ficando cada vez mais agressivos. O exemplo maior disso foram as expulsões humilhantes de presidentes da Funai, arrancados de suas cadeiras e arrastados escada abaixo até a garagem do prédio para tomarem o carro e se escafederem. Alguns deles ainda guardam mágoa por isso. A Funai foi uma frustração do Governo FHC, com nove presidentes nomeados, alguns deles pelos respectivos ministros da Justiça, que também foram nove, e nenhuma estabilidade administrativa. Pelo contrário, aos poucos o órgão foi perdendo quadros e verbas, e tornou-se, aos olhos da opinião pública, um verdadeiro embaraço nacional. Segundo o ex-presidente José Sarney, que teve vários presidentes da Funai e acompanha a média distância os acontecimentos da Funai, não haveria na República brasileira órgão mais difícil de se administrar do que este.
Não é para menos. Dada a natureza ampla e intensa do seu objetivo de existência, a Funai padece de carências extremas e sobrevive pela dedicação ímpar, mesmo que às vezes, inconsciente, de seus quadros.
Ao final do período Collor-Itamar-FHC, com a eleição de Lula, a Funai ficou em suspense, pronta para ser extinta ou para ser um simples veículo de mudança, entre outras transformações previstas, na política indigenista brasileira. Isto é o que veremos no próximo artigo, que coincidirá com o quadragésimo aniversário da Funai, dia 5 de dezembro.
terça-feira, 4 de dezembro de 2007
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário