domingo, 2 de dezembro de 2007

A Funai aos Quarenta Anos: Parte 4

A Funai aos Quarenta Anos: Parte 4

Mércio Pereira Gomes

Os anos 1980 foram os mais cruciais para a Funai. Houve altos e baixos na formação de quadros, no posicionamento em relação aos índios e no reconhecimento de sua importância no panorama nacional. Ao final dessa década, infelizmente, a Funai estava cambaleada e frágil e tornou-se presa fácil para seus inimigos que iriam tomar conta da questão indígena nos anos 1990.

Essa década começou com a nomeação do primeiro de uma série de coronéis para o cargo de presidente e para cargos de direção e assessoria. Dentre eles há que se destacar, pela truculência, Nobre da Veiga e Zanoni. O chamado Tempo dos Coronéis foi desastroso para a Funai e levou-a a atitudes destemperadas para com os povos indígenas, à incompatibilização com a sociedade civil e a radicalização de seus quadros contra os rumos que o órgão estava tomando. Também esta é a década em que, nos primeiros anos, havia a tensão política em relação à debandada dos militares do centro político e o início claudicante da democracia em função da morte de Tancredo Neves.

Ainda em 1980, com a chegada dos coronéis, os indigenistas se organizaram pela primeira vez e criaram sua associação de classe, a Sociedade Brasileira de Indigenistas (SBI). Contaram com o apoio da maioria dos antropólogos e das incipientes associações de apoio à causa indígena. Os coronéis, sentindo a rebeldia e achando que ainda tinham o poder, ou que deviam demonstrar que tinham o poder, defenestraram todo mundo, uns 40 indigenistas, menos dois ou três que se retrataram. Houve protesto, em vão. Mas, aos poucos, foram voltando ao quadro do órgão, embora alguns só viessem a ser readmitidos com a ampliação do processo de anistia e de compensação dos que sofreram danos pessoais durante o período ditatorial (1964-85). Diversos indigenistas, dos mais conhecidos e conceituados, têm em sua folha funcional várias passagens de demissão e readmissão à Funai. O que só prova sua determinação em trabalhar pela causa indígena.

Nos estertores da ditadura militar, os coronéis se determinaram a apertar o cerco contra os indigenistas, antropólogos, associações indigenistas e, especialmente, contra as lideranças indígenas que estavam despontando com muita força. Em 1982 Mário Juruna foi eleito deputado federal pelo Rio de Janeiro, com 34.000 votos. Com ele foram trabalhar alguns indigenistas entre aqueles que haviam sido demitidos por fazerem parte da SBI. E fizeram um grande papel para o indigenismo brasileiro, assessorando o Deputado Juruna, ampliando o seu raio de atuação e fazendo-o abrir-se para a causa de outros povos indígenas. Sua mais importante contribuição foi, sem dúvida, a formalização do reconhecimento político da importância dos povos indígenas simbolizada pela criação de uma comissão extraordinária de assuntos indígenas. Mais tarde, com a nova Constituição, essa comissão foi extinta e incorporada à comissão de direitos de minorias, onde a questão indígena ficou diluída no meio de outras “minorias”.

Uma grande demonstração de força política e união entre os indigenistas e antropólogos deu-se em janeiro de 1985 contra o decreto presidencial regulamentando a mineração em terras indígenas. Enfrentaram e afrontaram, pode-se dizer assim, tanto o presidente da República, João Batista de Figueiredo, quanto seu poderoso ministro de Minas e Energia, César Cals, e os fizeram recuar da publicação desse decreto. Entretanto, a mineração continuou rolando nas terras dos Cintas-Largas, dos Kayapó e de outros povos, em parte pela pressão dos garimpeiros, em parte pelo acordo que o ministro da Casa Civil do presidente Sarney fez com o presidente incumbente, e em parte com a conivência de lideranças indígenas interessadas. No caso dos Kayapó, só 10 anos depois é que os garimpeiros iriam ser retirados dos garimpos na Terra Indígena Kayapó. No caso dos Cintas-Largas, a mineração de ouro continuou, foi intensificada por outro presidente da Funai, e depois se expandiu para os garimpos de diamante.
Às vésperas da posse do presidente Tancredo Neves, que deveria acontecer em março de 1985, parecia que a causa indígena estava encontrando uma nova formulação. Estava à frente da Funai, surpreendentemente, um delegado da Polícia Federal, Nelson Marabuto. Porém, com a morte de Tancredo e a ascensão de José Sarney, foi nomeado um burocrata da Funai para dirigi-la, Gerson Alves, que claudicava de todos os modos na sua ação indigenista. Ora apoiava os indigenistas, ora os deixava na mão.

Por outro lado, a capacidade de mobilização de um novo estilo do movimento indigenista estava começando a se fazer presente, com o apoio da mídia e de lideranças indígenas carismáticas e fortes. Na visão do novo governo, ainda sem saber que rumo dar ao processo democrático, tudo era perigoso. O processo de demarcação da Terra Indígena Apinayé foi um desafio imenso para eles, sobretudo porque contou com o apoio inaudito de várias lideranças indígenas, com seus guerreiros, no ato mesmo do reconhecimento dos limites, o que incorria na retirada de fazendeiros e posseiros, alguns que haviam sido assentados poucos anos antes pelo Incra e pelo Getat.

Um parêntese de caráter pessoal. De janeiro até novembro de 1985, eu pedi licença da Unicamp e me coloquei à disposição da Funai de São Luís para ajudar a implantar um projeto de desenvolvimento para os povos indígenas do Maranhão, financiado pela empresa Companhia Vale do Rio Doce, que estava à época construindo a estrada de ferro Carajás. O indigenista José Porfírio Carvalho organizou uma equipe de indigenistas e chefes de posto, junto com médicos, dentista e enfermeiros, entre eles José Carlos Meirelles e Slowacki de Assis, e lá discutimos e implantamos uma série de projetos econômicos junto com os Guajajara, Gaviões, Krikati, Timbira, Canela, Urubu-Kaapor e Guajá. Eu assessorava Carvalho nos aspectos antropológicos de todos os povos indígenas do Maranhão, mas minha dedicação maior era para com o povo Guajá, para quem elaborei um projeto de relacionamento de longo prazo chamado Programa Awa. Entre as tarefas principais do projeto estava a demarcação de uma terra indígena. Nessa ocasião eu e Meirelles coordenamos a equipe que vasculhou toda uma área da região do alto Pindaré, Serra do Tiracambu e médio Gurupi para delimitar uma terra indígena para os índios Guajá, de quem sabíamos da existência, mas que não haviam sido contatados. Foi a primeira vez na história do indigenismo brasileiro que uma terra indígena foi reconhecida sem se conhecer e contatar os grupos que lá viviam. Mais tarde essa inovação foi levada a outros sertanistas e frentes de atração e acabou sendo adotada pela Funai como política para os povos indígenas autônomos, tal como prevalece até hoje.

Em outubro de 1985, Gerson Alves é demitido da Funai e Álvaro Villas-Boas é elevado à presidência. Muitos indigenistas são demitidos ou afastados, inclusive o próprio Carvalho, que, daí sairia para criar o Programa Waimiri-Atroari, o povo indígena que mais resistência tinha imposto à expansão da sociedade amazonense ao seu território, e que havia sofrido horrores na construção da rodovia, que atravessa seu território, ligando Manaus a Boa Vista. Além disso sofreram a inundação de 30.000 hectares do seu território causada pela formação do lago que abastece a Usina Hidrelétrica Balbina, em construção. Carvalho dedicou-se a esse programa, depois estendido para o povo Parakanã, que havia sofrido igual impacto após seu contato, em 1971, na rodovia Transamazônica e com a construção da Usina Tucuruí. Hoje esses programas são os mais bem sucedidos de todos os projetos criados nos tempos da Funai, só rivalizando com a ação perdurante dos irmãos Villas-Boas no Parque do Xingu.

Depois de Álvaro Villas-Boas foi alçado Apoena Meirelles à presidência da Funai. Apoena sempre foi um homem de ação e de idéias, dada sua experiência indigenista desde muito jovem e sua formação política, ambas qualidades herdadas de seu pai, o sertanista Chico Meirelles. Apoena reconvocou os indigenistas e reestruturou a Funai estabelecendo cinco superintendências em todo o país para coordenar as ações das administrações regionais e dos postos indígenas. Com isso diminuiu a pressão em Brasília e deu forças a decisões regionais. Nesse tempo foi feito o último concurso para indigenista e o último curso de treinamento. Parecia que a Funai ia engrenar, porém, não ficou mais do que seis meses no cargo porque se recusou a aceitar a indicação de alguns superintendentes, inclusive de um protegido do senador pernambucano Marco Maciel. Caiu em pé, e em seu lugar foi nomeado o dito protegido pernambucano, Romero Jucá, que, ao sair da Funai dois anos e meio, iria ser nomeado o último governador do Território de Roraima, onde desenvolveu uma fulgurante carreira de político e empresário, e é hoje senador da República.

A gestão de Jucá foi marcada pelas maiores demonstrações de desapreço por parte de antropólogos, jornalistas, indigenistas da Funai e simpatizantes da causa indígena. Tudo indica que é de sua responsabilidade a abertura do território Yanomami, ainda não demarcado, mas projetado para ser demarcado em “ilhas”, à entrada maciça de garimpeiros de ouro e cassiterita, fato que terminou provocando a morte de cerca de 15% do povo Yanomami. Também é de sua autoria a prática de firmar contratos com firmas de madeireiros para tirar madeira de terras indígenas, entre elas as dos índios Cintas-Largas, onde também havia garimpos ilegais, embora conhecidos da presidência, de ouro. A folha de ações judiciais contra Jucá é bastante extensa e há evidências contundentes de aproveitamento pessoal de renda de operações ilegais de garimpagem e venda de madeira em terras indígenas. Em conseqüência, foi a partir de Jucá que os índios passaram a pressionar diretamente a Funai tanto pela retirada de presidentes do órgão, a começar pelo próprio, como pela liberação de verbas, estabelecendo a prática de vinda de grupos de todas as partes do Brasil. Ao longo dos anos 1990, essa prática resultou na expulsão de diversos presidentes da Funai, e só foi debelada em 2004, na presidência do autor dessas linhas.

Entretanto, é mérito de Jucá ter conseguido ampliar os quadros da Funai em mais de 2.500 funcionários. A maioria do parco quadro atual da Funai é remanescente desse tempo.

No próximo artigo falarei sobre a Constituinte de 1987-88, sua mobilização e seus resultados.

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