segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

A Funai aos Quarenta Anos: Parte 5

A Funai aos Quarenta Anos: Parte 5

Mércio Pereira Gomes

O movimento pela Constituinte brasileira foi um dos maiores eventos que ocorreram no país em termos de esperanças de mudanças. Arrebatou a imaginação da nossa população quase que na mesma intensidade do movimento pelas eleições Diretas Já, em 1984, e no período de dois meses em que Tancredo Neves agoniou até a morte (março-abril/2007).

O Congresso eleito em 1986, tornou-se constituinte no ano seguinte. A Constituição final foi promulgada em outubro de 1988, com a assinatura de quase todos os deputados, exceto os do PT, é penoso lembrar.

O período de um ano e meio de debates sobre os artigos da Constituição foram intensos em todos os aspectos. Dezenas de reuniões e assembléias foram realizadas em todos os recantos do Brasil para apresentar moções e para criar estratégias de influência. Pode-se dizer que a maioria do povo brasileiro participou da Constituinte e ajudou na formulação de seus artigos. Por isso é que, ao ser promulgada, o Dep. Ulysses Guimarães a chamou de “Constituição Cidadã”.

Os povos indígenas, os indigenistas da Funai, os antropólogos, os jornalistas e advogados engajados na questão indígena participaram ativamente. Conquistamos um bom número de deputados e senadores a nosso favor, entre eles, o próprio senador Mário Covas, que foi o relator geral da Constituição.

Por isso é que o resultado final foi tão promissor para os povos indígenas.

Os artigos principais que tratam dos direitos dos povos indígenas estão contidos no Capítulo VIII do Título VIII, “Da Ordem Social”, e são os artigos 231 e 232. Porém há artigos em várias partes, bem como nas Disposições Transitórias. Esses artigos são por demais conhecidos e assim não os transcreverei aqui. Basta comentar seus aspectos principais e as suas conseqüências para os povos indígenas.

O caput do artigo 231 trata do reconhecimento dos índios por sua identidade, costumes, línguas e tradições, bem como pelos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, às quais a União deve demarcar e proteger e fazer respeitar seus bens. Os parágrafos seguintes tratam de qualificar o quê são essas terras, o aproveitamento de recursos hídricos e minerais e a nulidade de direitos de terceiros sobre elas, salvo benfeitorias, “na forma da lei”. No parágrafo 6º a União tem direito sobre as riquezas da terra por “relevante interesse público”, segundo o que dispuser lei complementar.

Assim, destacam-se quatro pontos a comentar.

O primeiro é que o termo povo indígena ainda não era considerado adequado nessa ocasião, e assim a Constituição fala simplesmente em “índios”. Neste sentido a Constituição ficou aquém do que estava se consagrando como realidade política. Parece que houve um movimento de alguns deputados constituintes para não colocar o termo povo nesses artigos. O termo já aparece no meu livro Os Índios e o Brasil, escrito naquele ano e publicado em novembro de 1988, alguns dias após a promulgação da Constituição.

O segundo comentário é que nunca foram regulamentadas os dispositivos legais previstos nesse artigo, tal como a lei complementar em caráter de relevante interesse público sobre o aproveitamento de recursos hídricos e minerais, nem sobre o que constituem “terras tradicionalmente ocupadas", nem sobre o direito ao valor das benfeitorias produzidas pela ocupação de terras indígenas em boa-fé. Aliás, neste caso, apenas um simples decreto ministerial, o decreto 1775, constitui o embasamento da implementação dessa condição. E ele pode ser contestado a qualquer momento, o que deixaria o processo de reconhecimento e demarcação de terras indígenas a descoberto.

Um terceiro comentário geral é quanto à determinação contida nas Disposições Transitórias para que as terras indígenas fossem demarcadas no prazo de cinco anos. Isto é, todas as terras indígenas deveriam estar demarcadas até 1993. Como vimos, essa determinação está longe de ser cumprida, o que deixa a Funai e os direitos indígenas em suspense. Porque, assim argumentam alguns advogados de fazendeiros, passado esse período não haveria mais terras indígenas para serem demarcadas. Ou, por outra, prevalece a crítica de que a Funai está sempre no atraso, porque há ainda muitas terras não reconhecidas e não demarcadas, e as demandas por novas demarcações prosseguem. Num sentido muito irônico, o fato desse determinação não ter sido cumprida é que permite a Funai fazer novos estudos de reconhecimento de terras indígenas. Acordar os deputados anti-indigenistas para essa realidade é uma temeridade.

O quarto ponto é que a Constituição é lembrada por muitos como o grande marco da ampliação dos direitos indígenas no nosso país. De fato, a partir de sua promulgação, outras constituições de países latino-americanos surgiram com artigos especiais sobre o reconhecimento de seus povos indígenas. Assim, o Brasil foi um marco original do indigenismo latino-americano e tornou-se um exemplo para todo o mundo. Lembremos aqui que a Convenção 169, da OIT, só foi promulgada um ano depois. Por outro lado, há que se valorizar o fato de que o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas sobre suas terras e sua identidade vem desde pelo menos a Constituição de 1934 e foi seguida pelas constituições seguintes de 1937, 1946 e 1967 (outorgada pelos militares) bem como pelo Ato Adicional de 1969. Aliás, por ironia política, que não passa desapercebida por muitos indigenistas, o artigo 198 desse Ato Adicional é tão forte em defesa do reconhecimento das terras indígenas como nenhum outro antes ou depois.

Por sua vez, o Estatuto do Índio traz provisões extremamente favoráveis aos direitos dos povos indígenas e às obrigações da União.

Assim, o papel da Constituição de 1988 é muito importante como ordenador jurídico máximo, sem que se despreze os instrumentos jurídicos anteriores, como o Estatuto do Índio, e a tradição indigenista rondoniana que não perdeu seu vigor, pelo menos no relacionamento com os índios.

Quanto à Funai, na Constituinte, seu papel oficialmente foi quase zero, exceto pela dedicação de seus indigenistas e antropólogos. Com isso, ela ficou ausente e perdeu prestígio. Para muitos, ela estava destinada a ser extinta após a Constituição e a projetada mudança no Estatuto do Índio. Os simpatizantes e militantes da causa indígena ganharam muito prestígio nessa ocasião, criaram novas associações e consolidaram as existentes. A partir daí elas começam a ser conhecidas como “organizações não governamentais” e passam a ter um papel mais determinado no indigenismo brasileiro. Algumas Ongs indigenistas se profissionalizam e seus membros passam a viver dos proventos obtidos pelas doações de patrocinadores de outros países.

Por sua vez, as lideranças indígenas vão ganhando novos foros de reconhecimento no Brasil e no exterior. Elas aprendem a se organizar e buscar patrocínio de Ongs brasileiras, que, a seu turno, buscam apoios de organizações internacionais. A princípio, as instituições internacionais que financiavam as novas Ongs eram de origem religiosa, como o Conselho Mundial de Igrejas, o Pão para o Mundo e outras. Em seguida, alguns países passam a financiar Ongs brasileiras, especialmente a Holanda, Noruega e Suécia, diretamente de suas instituições ou de suas Ongs, que lá são intrinsicamente ligadas ao Estado. Logo mais, as grandes Ongs internacionais e as fundações criadas pelos novos milionários ampliam seu leque de influência pela doação de recursos para Ongs indigenistas brasileiras, e mesmo para antropólogos avulsos, que criam seus próprios programas de apoio a alguns povos indígenas.

Respaldado pelo Artigo 232, o Ministério Público Federal começa a se instrumentalizar para estar ao lado dos povos indígenas e defendê-los. Contrata antropólogos, convida-os a dar palestras, aprende com as novas visões do indigenismo de Ongs. Sua missão é ser contra o Estado, onde está precisamente a Funai. Com seu poder de questionar e cobrar as instituições de governo, começa a exercer grande influência.

Em tudo isso, a Funai perde dinâmica institucional e legitimidade perante a sociedade brasileira, exceto para os próprios índios. E é aí onde ela sobrevive. Não fosse pelo reconhecimento que os índios, especialmente aqueles que vivem e sobrevivem economicamente do fruto de suas terras, continuam a dar à Funai, ela teria perdido toda a sua legitimidade administrativa, política e identitária.

Em 1989 há a primeira eleição presidencial desde 1961. É eleito Collor de Mello e aí começa nova era no indigenismo brasileiro.

No próximo artigo falarei da década de 1990, das grandes demarcações de terras indígenas e da dominação do neoliberlismo indigenista.

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