sábado, 10 de novembro de 2007

Por que sou rondoniano

Por que sou rondoniano

“Os índios não devem ser tratados
como propriedade do Estado dentro de cujos
limites ficam seus territórios, mas como
Nações Autônomas, com as quais queremos
estabelecer relações de amizade”

Cândido Mariano da Silva Rondon, 1910


Mércio P. Gomes
Professor de Antropologia
Universidade Federal Fluminense



Nos últimos 20 anos a torrente de críticas ao Serviço de Proteção aos Índios, ao general Cândido Rondon e aos antropólogos e indigenistas que pertenceram a esse Serviço, que estiveram ao lado de Rondon, que respeitaram-no e, de algum modo, que se consideravam seguidores do velho general, tem sido tão avassaladora, tão dominante nos meios acadêmicos e indigenistas e tão determinante no convencimento de aprendizes e leigos, que há hoje muito poucos antropólogos e indigenistas que se declaram rondonianos ou ao menos que põem a cara de fora para tecer suas considerações ou fazer sua apologia ao trabalho ou às idéias do velho general.

São poucos, mas são alguns. Eu quero aqui me declarar rondoniano em alto e bom som, e quero argumentar que o faço tanto com orgulho moral quanto com convicção intelectual e histórica.

Defino rondoniano. A pessoa que vê na postura moral, nas proposições éticas, nas idéias sobre o valor dos povos indígenas brasileiros, em si e para o Brasil, no trabalho incansável de tentar convencer os brasileiros da importância dos índios para a nação brasileira -- de Rondon -- um exemplo a ser emulado ética e moralmente, a ser seguido na visão do relacionamento dos povos indígenas com o Brasil e a ser respeitado e debatido na sua visão antropológica sobre o índio.

Em outras palavras, ser rondoniano é defender firmemente o aspecto ético da visão de Rondon sobre o relacionamento do índio com o Brasil, é guardar o respeito pelo trabalho que fez dentro do contexto da história do Brasil em que viveu, é admirá-lo pelo que conseguiu realizar ao criar uma nova ética de dedicação à causa indígena e é tê-lo como referência de diálogo e debate sobre o que é o índio em si e o que é o índio diante de seu destino.

Algumas palavras sobre Rondon. Nasceu numa vila perto de Cuiabá, no Mato Grosso, em 1867, e foi criado por um tio, pois perdera os pais ainda infante. Naqueles tempos da Guerra do Paraguai, o Mato Grosso não passava de alguns aglomerados de vilas e povoados ao longo do rio Paraguai e seus afluentes do Pantanal e do rio Vermelho, em meio a uma extensíssima área de florestas, cerrados e terras roxas ainda pouquíssimo desbravadas. Os povos indígenas conhecidos dos tempos das monções e das frotas e tropas que debandavam de São Paulo para comerciar com o ouro dos arraiais do Mato Grosso já se encontravam em paz e aceitação da nova sociedade de aventureiros e suas formas de sociabilidade e controle político. Os famosos Payaguás, que dominavam os rios da região e haviam resistido bravamente à entrada das frotas, estavam quase desaparecidos. Os orgulhosos cavaleiros Guaicurus (os atuais Kadiwéu) e os diligentes agricultores Chané (os atuais Terena) iriam servir ao lado das tropas brasileiras como batedores e tropeiros. Os Kadiwéu foram brindados, no final do Império, com a “outorga” de uma boa parte do seu antigo território, o qual já havia sido reconhecido e legitimado por um tratado assinado no Rio de Janeiro, em 1791, entre representantes desse povo e o vice-rei do Brasil. Aliás, esse foi um dos dois raros tratados feitos pela Coroa portuguesa com um povo indígena. Para os portugueses, ficou garantida a lealdade dos Guaicurus, numa região disputada com a Espanha, e a passagem de um vasto território do Pantanal para o domínio português, seguindo os termos do Tratado de Madri e, mais tarde, consolidando o Tratado de Santo Idelfonso. Hoje esse território é a Terra Indígena Kadiwéu, com 530.000 hectares. Já os Terena, que antes eram submetidos aos Kadiwéu, sofreram um processo de dispersão com a chegada de migrantes colonizadores para a região de Aquidauana, veriam seu domínio de terras se reduzir a pequenos lotes incrustados no meio das novas fazendas, e hoje travam uma luta desigual para ampliar algumas dessas terras, aliás, boa parte delas demarcada com muita dificuldade por Rondon.

Fala-se que Rondon descendia de linhagens Bororo e Terena. Ele mesmo se orgulhava disso. Com efeito, sua fisionomia não desmerece essa atribuição. Porém, na vida infantil e juvenil de Rondon não há convivência com esses ou outros índios que já se relacionavam com brasileiros não indígenas no Mato Grosso. Assim, ao que parece, sua afeição aos índios e sua dedicação ímpar à causa indígena não nasceram de um comprometimento juvenil ou anterior à sua vida profissional. Rondon se tornou admirador, amigo e, ao final, protetor dos índios por outros motivos.

Aos dezessete anos Rondon foi enviado ao Rio de Janeiro para cursar o Colégio Militar. Além de ser excelente aluno tornou-se positivista aos moldes de seu mestre Benjamim Constant, que viria a ser a principal liderança de caráter civil (embora sendo militar) do evento político que levou à proclamação da República. Pensar e agir como positivista para Rondon passou a ser sua principal característica cívica, militar, ideológica e prática.

A República ressoou verdadeira em amplo sentido para os positivistas. Quando chamados à ordem e ao progresso, seguiam sem titubear. Lembremos que o dístico republicano advém do axioma comteano segundo o qual o dever de cada um deve se pautar pelo “amor por princípio, a ordem por meio e o progresso por fim”. Na formulação da República deixaram cair o amor, que um dia será resgatado, certamente. Quanto a Rondon, não se pode duvidar de que o amor não lhe tenha acompanhado em sua trajetória de vida.

Aliás, trajetória nunca dantes existida, para nunca mais ser repetida. Saído da capital da República foi ser adjunto do general Gomes Carneiro, que fora incumbido de implantar a linha telegráfica ligando Cuiabá ao resto do país. Substituiu seu chefe quando este foi combater os revoltosos na cidade do Desterro e por lá se quedou para sempre. Daí por diante, até a Revolução de Trinta, Rondon viveu por mister de esticar fios de telégrafo por todas partes do Brasil desconhecido, de Cuiabá ao Pantanal, e daí para a vilazinha de Porto Velho, na beira do rio Madeira, 1.700 quilômetros de infinidade, e também por partes do Maranhão, do Pará e de Roraima.

Desde o início da empreitada de Gomes Carneiro depararam-se com terras indígenas, com gente indígena, com o tema indígena. Os contingentes dessas expedições de puxa-fios e guarda-fios eram, em geral, soldados conscritos de quase todo o Brasil, na marra, com pouco incentivo e por motivo de penitência e castigo. Para eles, ser índio significava uma condição inferior da existência humana, talvez uma que eles, de algum modo atávico, identificavam com um passado do qual haviam saído e para o qual não queriam cair de volta. Para os oficiais militares, gente com leitura e o senso do dever, o índio era um ser do misterioso brasileiro inconsciente, bon sauvage e bugre, dono da terra e desperdício econômico, herói e vilão. Melhor seria, se não pudesse ser ignorado, afastá-lo e seguir adiante. Mas para Rondon, membro da Igreja do Apostolado Positivista Brasileiro, sabedor de sua proposta à Assembléia Constituinte de que os índios eram cidadãos por originalidade e que deveriam ser tratados como nações, não como reles grupos sociais, para que, por um processo de convivência harmoniosa (como nunca dantes existira, mas com o qual havia sonhado o Patriarca da Independência), pudessem alcançar o estágio positivo da humanidade, que só viria no futuro por vontade organizada dos homens de bem. Para Rondon, os índios eram seres que deveriam ser respeitados, a quem dever-se-ia pedir licença de passagem, porque justamente a República estava passando por terras deles.

Enquanto isso, no sul do Brasil, no Paraná e em Santa Catarina, as terras do oeste estavam sendo loteadas e doadas a empresas de imigração. Alemães e italianos, desvalidos de suas terras e de suas condições de vida por força das mudanças econômicas em suas regiões, estavam vindo aos milhares para o mundo novo do Brasil. Uma América tropical! E os empresários iam se livrando dos índios que lá viviam, ou escondidos e arredios, ou já estabelecidos em aldeias. Os bugreiros, caçadores profissionais de índios, matavam muitos à bala, envenenando suas aguadas, deixando brindes de cobertores contaminados por vírus de varíola e tuberculose.

O mundo ficou sabendo disso através de um imigrante com dores de consciência que deu alarde num Congresso Internacional de Americanistas, em Viena, em 1907. Levantou-se a celeuma entre o novo espírito republicano de justiça (não se falava em direitos sociais ou humanos, então) e o predominante espírito darwinista de “a luta pela sobrevivência e a vitória do mais forte”. Um cientista de renome, alemão de origem, diretor da seção de zoologia do Museu Paulista, Hermann Von Ihering, jogou lenha na fogueira ao vociferar nos jornais que seus compatriotas não estavam fazendo nada errado, e que, tal qual estava acontecendo em São Paulo com a construção da estrada de ferro ligando São Paulo a Corumbá, a Noroeste do Brasil, se os índios continuassem a ficar no caminho da civilização, a atacar os novos imigrantes e a interromper os trabalhos dos operários da Ferrovia, só restaria para eles a via da sua extinção.

A celeuma durou três anos. Será que os índios, brasileiros natos, não mereceriam alguma proteção e assistência, já que o governo vinha gastando tantos recursos há tanto tempo em prol de imigrantes para se estabelecerem em suas terras? Os incipientes centros de debates e divulgação de ciência brasileiros da época, muitos com afiliação positivista, diversos jornais e alguns políticos, certamente formando algo que poderia ser chamado de opinião pública, e junto, em seus boletins, o Apostolado Positivista Brasileiro, levaram a República a tomar uma atitude: criar um órgão para cuidar da questão. E imediatamente convocaram o coronel Cândido Rondon, de quem já se ouvira falar por suas palestras sobre seu trabalho no Mato Grosso, para vir ao Rio de Janeiro e levar essa nova tarefa a cabo.

O SPI -- Serviço de Proteção aos Índios -- foi instituído no Dia da Pátria de 1910 com a sigla SPILTN -- Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais. Índios e trabalhadores sem terra eram a preocupação dos nacionalistas republicanos de então, ainda sem ideologia de esquerda ou direita, apenas seguindo uma visão positivista da história. Os nacionalistas, ou patriotas, talvez um termo mais adequada à época, protestavam contra o descaso do governo com os homens sem terra que, ou viviam perambulando pelo país, sem ficarem nas cidades porque os empregos eram poucos e tomados pelos imigrantes estrangeiros, ou estavam sendo expulsos das fazendas por mudanças tecnológicas. Um excedente que não percebia remuneração alguma, os jecas-tatus, que, pouco depois, Monteiro Lobato iria jogar na cara da má-consciência brasileira, para ser redimido de sua preguiça e incapacidade pela solidariedade e por melhores oportunidades de vida.

Alguns críticos de Rondon, anos depois, consideraram que ele aceitou dirigir o SPILTN porque queria ver o índio virar um brasileiro pobre e que demarcar terra para índio e localizar (assentar) trabalhadores sem terra eram a mesma coisa. Não, sete anos depois, os trabalhadores sem terra haviam saído do SPI e movidos para outra seção do Ministério da Agricultura, e ficaram, como demonstrou o desenrolar dos tempos, ao deus-dará, até serem de novo percebidos pelo movimento dos camponeses na década de 1950.

Rondon estabeleceu em pouco tempo as bases administrativas do SPI. A partir de uma sede simples no Rio de Janeiro, criou o sistema de inspetorias nas capitais de estados com muitos povos indígenas, como Manaus, Belém e Cuiabá, e em outras que seriam centro de convergência, como Recife, Governador Valadares e Campo Grande. Nas áreas de maior presença indígena, em locais estratégicos, foram sendo estabelecidos postos indígenas para atender a um conjunto de aldeias em sua circunscrição. Cada posto se constituía em uma infra-estrutura de sede, uma base de transporte, um sistema de produção econômica com equipamentos e ferramentas e, se possível, novas técnicas para melhorar a produtividade ou para produzir bens para venda, alguma farmácia e escola básica de alfabetização, professor houvesse. Por volta de 1950, com sua história de altos e baixos de apoio governamental e de carência de verbas, haviam sido instalados sete inspetorias e cerca de 70 postos indígenas em todo o Brasil. Hoje a Funai tem 60 administrações sediadas em cidades e 337 postos indígenas nas aldeias.

O SPI teve, desde seu início, servidores extraordinários, os sargentos, tenentes, capitães e até generais que trabalhavam com Rondon nas linhas telegráficas e que, ao serem forçados a escolher entre seguir a carreira militar e ficar no SPI, preferiram a opção mais dramática. Alguns positivistas, outros sem ideologia ou linha de pensamento, patriotas todos, sem dúvida, mas, acima de tudo, homens buscando um sentido diferente para suas vidas. Tenente Pedro Dantas, major Estigarríbia, general Jaguaribe de Mattos, Luiz Bueno Horta Barbosa, Pimentel Barbosa, Humberto de Oliveira, José Maria de Paula, Manuel Miranda, Alípio Bandeira, Vicente de Paula Vasconcelos, entre os que trabalharam até a década de 1950. Acima de todos, como o maior etnográfico já realizado no Brasil, Curt Unkel Nimuendaju, alemão naturalizado brasileiro, trabalhando aqui e ali como sertanista do SPI, como colecionador de artesanato encomendado por museus europeus e americanos, como conselheiro e assessor de Rondon e do SPI. Depois, já arejado pela antropologia, vieram Darcy Ribeiro, Eduardo Galvão, Mário Simões, Expedito Arnaud, Carlos Moreira, Hans Foerthman, além do médico Noel Nutels e dos grandes sertanistas das décadas de 1940 a 1970, Orlando e Cláudio Villas-Boas, Francisco Meirelles, Cícero Cavalcanti e Gilberto Pinto. Depois de 1970, já com a Funai (dezembro 1967) substituindo o SPI, iria surgir uma nova geração que não somente continuaria o trabalho de seus antecessores no relacionamento com os índios como se abriria para um diálogo mais próximo e mais político ainda. Ao mesmo tempo, essa nova geração de indigenistas não deixaria que os militares comandassem a Funai como pretendiam. Ao contrário, abriu-a ao conhecimento e a participação dos índios, que logo descobririam como ajudar os seus amigos indigenistas no processo de tornar o indigenismo uma missão de respeito e amizade. O processo de demarcação de terras indígenas em extensões maiores deve a essa nova geração de indigenistas tanto quanto aos próprios povos indígenas e suas lideranças que apareceram no panorama político-cultural brasileiro a partir da década de 1970. São tantos esses novos indigenistas, homens e mulheres, em vários postos na Funai, mas especialmente nos postos indígenas, que qualquer menção de nomes suscitaria novos nomes e talvez algum esquecimento indevido.

Talvez nem todos os indigenistas tenham passado pela provação máxima de se verem cercados de índios em pé de guerra e tenham se comportado pelo axioma supremo do indigenismo rondoniano, “morrer se preciso for, matar nunca”. Mas eu mesmo sei de muitos aí que o fizeram.

“Morrer se preciso for, matar nunca” parece uma frase de tratado de martiriologia. Com efeito, muitos servidores do SPI e da Funai morreram em serviço, em seus postos, frente a ataques de índios ou surpreendidos por alguma sortida de guerreiros ousados. Muitos escaparam por pouco. Muitos que escaparam terminaram voltando aos seus postos, como se o que houvessem sofrido não lhes tivesse afetado, ou como se desejassem passar por nova provação.

Ninguém tem certeza do que se passa no coração do homem que trabalhou sua vida inteira no SPI/Funai para se submeter a tais perigos e se comportar com tal determinação. Certamente que o trabalho de mato é fascinante o suficiente para ele agüentar as pressões de todas as sortes e os perigos de morte. Fascinante ou compensador do ponto de vista de sua cruzada humana. O certo é que quem criou e incutiu na formação do indigenista uma atitude de auto-sacrifício pela sorte dos índios foi Rondon. E é certo que essa atitude ética de alcance extremo tem como fonte filosófica o velho positivismo tal como operado no Brasil por seus adeptos originais e ortodoxos, que o realizaram em suas vidas num sentido de sagração religiosa.

Ao longo da história da humanidade os homens são levados ao sacrifício pessoal extremo por três motivos essenciais: Deus e sua fé, a pátria e sua lealdade, e a família e seu amor e instinto de reprodução. O positivismo religioso brasileiro criou uma quarta modalidade, o auto-sacrifício pelos índios, isto é, por terceiros que representam o Outro, um segmento da humanidade aparentemente alheio à sua cultura e sociedade, mas de algum modo parte de sua identidade histórica mais profunda. Só por tal explicação é que se pode entender esse espírito de sacrifício.

De qualquer modo, configura-se aqui uma atitude ética inesperada no panorama moral brasileiro. Essa atitude é também inédita em outras partes do mundo. Se fosse só por isso já bastaria como justificativa para se ser rondoniano.

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