sábado, 10 de novembro de 2007

Continua: Por que sou rondoniano.

Resultados do SPI

Em que resultaram 48 anos de SPI até a morte do velho marechal de 91 anos? Nesse período diversos povos indígenas foram extintos por força da pressão do homem branco em seus territórios, conseqüência de mortes matadas e de mais mortes morridas de doenças de todos os tipos para as quais não tinham defesas imunológicas naturais: varíola, sarampos, tuberculose, gripes e pneumonias, malárias letais. Muitos foram relegados ao abandono, com seus territórios reduzidos a pequenas glebas de terra e forçados a uma convivência negativa, por autoritária, desmoralizante e assimilacionista. Poucos experimentaram alguma estabilidade demográfica, e isto só a partir de meados da década de 1950, e pouquíssimos foram aquinhoados com a segurança de terras, o crescimento demográfico, a auto-subsistência econômica, a garantia de saúde e a presença de uma educação fortalecedora de sua relação com a sociedade envolvente.

Os críticos de Rondon são useiros em acusá-lo de ter demarcado tão somente pequenas glebas de terra para os Guarani de Mato Grosso do Sul, para os Bororo do Mato Grosso e para os Kaingang de São Paulo e estados sulinos, e com isso ter aberto as terras circunvizinhas para a colonização ou para a instalação de fazendas. Esquecem de propósito de considerar o contexto histórico em que se deu o surgimento e a permanência do SPI.

Em primeiro lugar, as terras a serem demarcadas como indígenas eram consideradas como devolutas, e, desde a Constituição de 1891, tais terras pertenciam aos estados, não ao governo federal. Até que em 1935 um decreto presidencial regulamentou as terras indígenas, já depois do direito indígena às suas terras ter sido reconhecido pela Constituição de 1934. Portanto, era com os estados que o SPI tinha que se entender para obter uma terra indígena, e os estados tinham muito pouco interesse em abrir mão de terras que estavam negociando com imigrantes ou novos fazendeiros e que representavam seus processos de crescimento. Daí a primeira dificuldade do SPI.

Em segundo lugar, os povos indígenas por todas as partes do mundo, e mais ainda no Brasil e nos trópicos, pareciam estar fadados ao extermínio. Suas populações se mostravam declinantes em todas as situações, sejam aquelas de recente contato e relacionamento com a sociedade brasileira, sejam aquelas de longo relacionamento. Deduzia-se assim que os índios não precisavam de tanta terra para sobreviver. Com efeito, em diversos casos, terras que haviam sido reconhecidas e delimitadas, terminavam sendo diminuídas e até abandonadas porque se achava que não haveria mais índios nela morando.

Em terceiro lugar, as condições políticas para a demarcação de terras para os índios eram extremamente adversas durante esses primeiro 50 anos do SPI. Não é só que os governadores não queriam abrir mão de terras negociáveis para doar aos índios, mas as populações locais não o queriam e a opinião pública era, na melhor das hipóteses, indiferente a esse problema. Ademais, desde a Revolução de 1930 o SPI saíra da mira de influência do general Rondon e as demarcações de terras indígenas foram feitas com grande interferência das forças políticas locais. Nessa época é que foram definidos os limites das oito terras indígenas Guarani e das seis dos Terena, ambos do Mato Grosso do Sul, bem como a maioria das terras dos índios Kaingang, de São Paulo ao Rio Grande do Sul. Este último estado destoava dos demais estados brasileiros pois havia criado sua própria política indigenista, por influência do positivismo político que lá prevalecia desde Júlio de Castilhos e por todo o período de Borges de Medeiros, e assim tinha reservado terras para os Kaingang. Já em outros estados, como o Maranhão, o SPI praticamente desaparecera e o processo de demarcação de terras fora abandonado.

Em quarto lugar, mas não menos importante no caso do Mato Grosso do Sul, as terras dos Guarani sempre foram habitadas por um conjunto pequeno de famílias extensas, em pequenas glebas, onde podiam cultivar, caçar, pescar e coletar frutos, ervas e folhas. Nunca foram concebidos como territórios extensos, como querem alguns antropólogos da atualidade, mesmo porque os Guarani modernos vieram em grupos familiares do Paraguai a partir das primeiras décadas do século XIX, para onde tinham se refugiado depois da destruição das Missões dos Sete Povos. Sua penetração no Mato Grosso do Sul começou a se intensificar na chegada da Companhia Mate Laranjeiras, no início do século XX, que os atraía para o trabalho de coletar e preparar folhas de mate. Eles se espalharam por um vasto território, sem dúvida, mas seu modo de viver culturalmente, seu tekó, como falam, prescindia de espaços extensos, necessitando tanto mais de condições de conexões entre eles para que houvesse convivência entre as famílias extensas.

Não se poderia esperar que Rondon e os indigenistas da época tivessem uma visão mais ampla do que aquela dada pelas evidências históricas e pelos estudos antropológicos. Aliás, a grande maioria desses estudos foi realizada por importantes antropólogos paraguaios que falavam o guarani e tinham um vivência muito próximo com essa cultura e com sua resultante mestiça naquele país. Mais tarde surgiram antropólogos brasileiros, como Curt Nimuendaju e Egon Schaden, que não apresentaram evidência contrária ou sugestões sobre aquilo que o SPI estava fazendo, isto é, constituindo oito terras ou reservas indígenas com uma média de 3.600 hectares para os Guarani da região. Mesmo em pequenas extensões, foi difícil demarcar todas essas oito reservas e, ao final do processo, metade delas ficou com tamanhos ainda mais reduzidos pelas pressões dos fazendeiros vizinhos.

Crise e retomada do SPI

A Revolução de 1930 abafou o trabalho do SPI em quase todas as regiões brasileiras. Primeiro, ele foi rebaixado de serviço para simples seção do Departamento de Fronteiras do Ministério da Guerra. As verbas caíram e o efetivo foi drasticamente reduzido em várias partes do Brasil. Segundo, nos primeiros anos da Revolução, Rondon foi visto como persona non grata por ter-se recusado a apoiá-la, tendo em vista sua convicção de que o Brasil deveria seguir o caminho da evolução e não revolução. Porém, o importante desse período foi a inserção de um artigo na Constituição de 1934 que reconhecia o direito dos índios às terras que habitavam de modo permanente. Isto favoreceu a mudança para o âmbito federal das terras devolutas que fossem reconhecidas como indígenas, retirando-as do poder estadual.

A preservação do SPI e a reabilitação do prestígio político do general Rondon, a partir de 1938, quando Getúlio Vargas reconheceu a estatura humanística de Rondon, começaram a mudar o panorama indigenista brasileiro. Nos últimos anos da ditadura getuliana, com o programa “Marcha para o Oeste”, e até o fim do segundo governo Getúlio, o SPI renovou-se, abriu-se para novos quadros, especialmente antropólogos, e começou o processo de demarcar terras indígenas por critérios antropológicos, enfrentando as injunções políticas com mais destemor. O resultado é que a delimitação das terras indígenas passou a levar em consideração as formas culturais dos povos indígenas, suas áreas de produção econômica, inclusive as áreas de perambulação para caçadas e pescarias, e assim as terras indígenas passaram a ter tamanhos bem maiores do que aqueles realizados nas décadas de 1920 e 1930.

O auge desse processo deu-se com a formulação do projeto do Parque Nacional do Xingu, entre 1953 e 1954. Guiados pelo velho general, Darcy Ribeiro, Eduardo Galvão e Orlando Villas-Boas elaboraram e apresentaram por consecutivas vezes ao presidente Getúlio Vargas um grande projeto de preservação e proteção de uma imensa área do alto rio Xingu que garantiria não só a sobrevivência dos povos indígenas que lá habitam, com sua cultura de paz impressionante, a qual aos poucos era dada ao conhecimento do público brasileiro por reportagens dos jornais e revistas populares do país, como garantiria a inviolabilidade de uma parte destacada da Amazônia brasileira. Os formuladores desse projeto antecipavam, assim, a preocupação dos brasileiros com a preservação da Amazônia muitos anos antes da onda que nos atinge na atualidade.

O Parque Nacional do Xingu estava pronto para ser aprovado pelo presidente Getúlio quando se deu sua morte. Contemplava toda a bacia do alto rio Xingu e seus formadores, uma área de mais de 50.000 km2, e tinha como objetivo a preservação desse ecossistema e o reconhecimento da territorialidade dos povos indígenas que lá habitavam. Um projeto extraordinário e que, mesmo que não tenha sido aprovado, quando o foi, em junho de 1961, pelo presidente Jânio Quadros, em sua integridade, tendo diminuído para cerca de 27.000 km2, o Parque Nacional do Xingu marcou dois pontos importantes: primeiro, demonstrou que o propósito do SPI era, de fato, dar condições de sobrevivência aos povos indígenas; segundo, estabeleceu novos parâmetros de reconhecimento e regularização de terras indígenas.

A criação do Parque Nacional do Xingu, depois chamado de Terra Indígena Xingu, mas sempre lembrado como Parque do Xingu, é um divisor de águas no indigenismo brasileiro, mas também um divisor de águas no indigenismo mundial. Nunca dantes se reconheceram terras indígenas com a qualificação antropológica dada ao Parque do Xingu. É obra do indigenismo brasileiro como um todo unido, da visão rondoniana, da visão antropológica de Darcy Ribeiro e Eduardo Galvão, e da experiência vivida dos irmãos Villas-Boas, que lá se estabeleceram por volta de 1945 e lá ficaram até a década de 1970.

A presença constante dos irmãos Leonardo (falecido em 1961, em conseqüência de malárias mal curadas), Cláudio e Orlando (falecidos em São Paulo, já aposentados) deu uma segurança aos povos indígenas que lá habitam e estabeleceu um modus operandi indigenista nunca antes experimentado no Brasil e em outras partes do mundo. O reconhecimento desse fato por antropólogos e visitantes é universal. Os irmãos Villas-Boas respeitavam as culturas indígenas de tal modo que, passados os anos, a cultura xinguana tradicional continua viável e vivível em quase todos os seus aspectos essenciais. O diálogo instaurado entre os diretores do Parque e os índios era franco, leal e mutuamente pedagógico, de modo que os índios foram aos poucos aprendendo as coisas dos brancos e vice-versa. Os irmãos Villas-Boas abriram o Parque para a pesquisa antropológica e para a saúde de qualidade. Concomitantemente, o Parque do Xingu era protegido de invasores fazendeiros e madeireiros não por armas ou militares, mas pelo prestígio da sua direção bem como pelo reconhecimento por parte da sociedade nacional e pelos fazendeiros circunvizinhos dos direitos indígenas obtidos pelo indigenismo rondoniano.

Só recentemente é que o Parque começou a se abrir para o mundo dos brancos, onde a política local das cidades circunvizinhas passou a ter influência, até pelo interesse de alguns jovens indígenas que são cooptados a virarem vereadores e viverem nas cidades. Mas este é um processo que também se verifica entre outros povos indígenas, com entusiasmo por parte de alguns e reticências por parte de muitos. Os resultados sociais em relação à integridade das sociedades indígenas e da sua autonomia cultural ainda não foram avaliados devidamente, mesmo porque o processo é muito recente. Certamente os irmãos Villas-Boas iriam achar que todo esse relacionamento está indo muito rápido, e que o Estado brasileiro, através da Funai, se tivesse condições intelectuais, políticas e financeiras para tanto, deveria tomar providências para resguardar a diferenciação étnica no convívio interétnico e para auxiliar os povos indígenas a continuar vivendo suas vidas com o mínimo de interferência de fora.

Depois do Parque do Xingu o indigenismo rondoniano mudou. Deu um salto de qualidade e acenou para ações futuras no mesmo naipe. O salto, porém, só aconteceu porque o SPI se preparou para tanto. A abertura vem, portanto, desde o Conselho Nacional de Proteção ao Índio, fundado em 1939, o qual foi seguido pela abertura do quadro funcional a antropólogos, primeiramente Darcy Ribeiro, e, logo depois, à criação do Museu do Índio, em 1953, na ocasião em que o Parque era discutido nas altas esferas do poder brasileiro.

O Museu do Índio nasceu para combater o preconceito contra o índio divulgando seu valor humano e cultural e chamando a população a compartilhar do sentimento de brasilidade do índio. Darcy Ribeiro foi o responsável por sua concepção e instalação, sob o beneplácito de Rondon, no âmbito do SPI. O Museu criou uma exposição permanente de arte indígena, abriu o primeiro curso de pós-graduação em antropologia do Brasil e em pouco tempo treinou antropólogos como Carlos Moreira Neto, Roberto Cardoso de Oliveira e Roberto Las Casas, que desenvolveram pesquisas importantes em suas áreas. Mais tarde, durante a ditadura militar, já com a Funai, o Museu do Índio, através do esforço de Carlos Moreira Neto, resgatou grande parte do material etnográfico, etnohistórico e administrativo, na forma de relatórios, fotografias, mapas e croquis que ainda restavam nas velhas inspetorias do SPI, espalhadas pelo Brasil (pois um incêndio criminoso havia destruído quase todo o arquivo da sede do SPI em 1967). Este é o material com o qual muitas terras indígenas foram posteriormente reconhecidas e legalizadas, sem o qual não haveria provas suficientes para comprová-las.

Contato com índios autônomos

A fama de Rondon começou quando ele passou a fazer contato com povos indígenas que viviam autonomamente, ou como ainda se diz, “isolados” do relacionamento com a sociedade nacional. O primeiro desses povos foram os Bororo Ocidentais, que viviam ao norte do Pantanal. Os Bororo Orientais já estavam em convívio há mais tempo e era desse ramo que Rondon teria ascendentes. O segundo povo indígena foram os Nambiquara, através de cujo território passava a linha telegráfica rumo a Porto Velho. O nervosismo dos trabalhadores levaram Rondon a reconhecer um conceito muito importante e novidadeiro e, em conseqüência, a tomar a atitude que logo tornou-se sua marca política e ideológica: que a expedição de esticar fios telegráficos estava penetrando território de um povo indígena, dono soberano das terras pertinentes, e que era de inteira legitimidade desse povo tomar satisfações, inclusive agressivas, sobre essa putativa invasão de seu território. Portanto, para um espírito positivista e republicano, restava tão somente aquiescer a esse fato e procurar contorná-lo. Isso só seria possível pela busca do relacionamento amigável que pudesse levar a uma explicação e ao pedido de permissão para realizar a tarefa pretendida.

Assim, a busca do relacionamento, do contato com povos indígenas não nasceu de uma curiosidade extemporânea, etnológica ou sensacionalista. Nascia da necessidade de dar comunicação e explicação a essa intempestiva entrada no território de outrem. Sendo que este outrem não falava sua língua, não tinha uma formalização de poder político, e, é certo, do ponto de vista de Rondon e da época, estava num estágio de compreensão do mundo, o animista, que o deixava aquém da compreensão correta da ação que estava sendo realizada.

Sobre a visão de Rondon, fruto de seu engajamento com o positivismo evolucionista, a Antropologia faz uma forte ressalva. A Antropologia moderna se estabeleceu no início do século contra a visão de que existe evolução cultural tal como fora proposta pelos evolucionistas do século XIX. Assim, dizer que os povos indígenas viviam no estágio animista se tornara, por volta da década de 1920, uma questão superada. Muito menos que seriam incapazes de uma compreensão política, se lhes fosse dado conhecer os pontos do problema. É evidente que compreender a penetração de uma frente armada em seu território, abrindo picadas, plantando troncos de árvores e esticando uns estranhos fios entre um e outro, estava perfeitamente na alçada dos povos indígenas.

Mas, mesmo que Rondon achasse que os índios compreenderiam seus propósitos, ao serem contatados, por que então a morte ceifou tantas vidas como resultado do contato e a sobrevivência dos povos contatados ficou periclitante por tanto tempo?

O indigenismo rondoniano é acusado de não ter conseguido proteger e dar condições de sobrevivência étnica aos povos indígenas que foram contatados na primeira metade do século XX, como os Kaingang de São Paulo e Paraná, os Xetá do Paraná, os Xokleng de Santa Catarina, as diversas tribos hoje chamadas de Pataxó, do sul da Bahia, os Maxakali e Krenak do leste mineiro, os Nambiquara do Mato Grosso, os Ka´apor do Maranhão, os Kaiapó do sul do Pará, os diversos grupos Tupi-Kawahib de Rondônia, os Parintintin do sudoeste do Amazonas, e outros mais.

O próprio Darcy Ribeiro ao escrever sua avaliação do SPI documentou os modos como esses povos indígenas foram contatados, em cima das demandas urgentes da expansão agrícola nessas regiões, às vezes para protegê-los da sana persecutório de fazendeiros e seringueiros, quase sempre para reconhecer a força avassaladora das frentes de expansão. Analisa também como suas populações foram tão negativamente afetadas, a ponto de algumas delas terem chegado ao ponto de não retorno, de incapacidade de reprodução física e cultural. Os Xetá são o caso mais expressivo, junto com os Makurap e os Jabuti. Esses povos têm hoje menos de dez membros e não têm como recuperar-se nem demograficamente nem etnicamente. Outros povos sobreviveram em pequenos números e tiveram de se unir a outros povos para recuperarem suas populações e manterem um nível de sociabilidade e convivência cultural. Outros recuperaram suas populações e hoje assomam mais numerosos e quiçá mais politicamente seguros do que no passado recente. Mas, em muitos casos, os sobreviventes sofreram graves perdas demográficas nos primeiros 30 anos de contato e viram seus territórios reduzidos a porções muito menores do que antes controlavam.

A crítica, portanto, tem procedência, mas as explicações são igualmente compreensíveis para o contexto da época. Nesse tempo, em qualquer parte do mundo, os povos indígenas estavam em processo de queda demográfica e destituição cultural. No Brasil e nos trópicos do mundo isto parecia ainda mais verdadeiro. Os antropólogos que visitavam povos indígenas o faziam na expectativa de que eles, se não fossem os primeiros, certamente seriam os últimos a visitá-los em condições étnicas de sobrevivência. Os estudos etnográficos eram feitos no espírito de salvamento daquilo que podia ser salvado: amostras da cultura material, a coleta de mitos, a descrição de rituais, a análise de parentesco e das condições econômicas e ecológicas de sobrevivência.

Ao final desse período, logo após a Segunda Guerra Mundial, o Smithsonian Institute, uma das instituições científicas e museológicas mais prestigiosas do mundo, publicou, após mais de oito anos de trabalho, o famoso Handbook of South American Indians, uma espécie de enciclopédia dos povos indígenas da América do Sul. Nessa obra quase todos os antropólogos que pesquisavam ou haviam pesquisado com povos indígenas escreveram resumos etnográficos desses povos, incluindo breves etnohistórias. Em todas elas o sentido era de descenso inexorável das condições de sobrevivência étnica.

Por que era inexorável a morte dos povos indígenas? Para os historiadores era mais do que evidente, e a atribuíam à brutalidade da conquista, à miscigenação e à contínua expansão das sociedades pós-coloniais. Para os antropólogos a explicação foi dada pela teoria da aculturação, segundo a qual, quando dois povos se encaram, excluindo a possibilidade da destruição de um dos dois, a tendência é de que o mais forte passe a dominar o mais fraco e influenciá-lo rumo a mudanças culturais que o aproximem cada vez mais da cultura do dominante. O processo de aculturação iniciava-se a partir do momento em que o mais fraco se sentia abalado pela força do mais forte, perdia sua auto-confiança e passava a adotar elementos culturais do mais forte e ir cada vez mais e irrevogavelmente a se acostumar com o novo modo cultural adquirido, até o momento em que deixaria de ser diferente e passaria a pertencer ao contingente humano e cultural da sociedade dominante. No caso do relacionamento entre povos indígenas e a sociedade ocidental (brasileira) havia o agravante da transmissão de doenças que só com muitas dificuldades e a muito custo eram contornáveis, como a varíola, os sarampos e as doenças pulmonares, algumas das quais nem a civilização ocidental tinha curas à época. Assim, a morte por doenças parecia natural e inevitável. As populações indígenas decaíam inevitavelmente nos primeiros momentos do contato e relacionamento, mesmo quando havia alguma assistência médica. E essa queda continuava nos anos subseqüentes exacerbada pela junção fatal entre doenças, baixa auto-estima e o controle da cultura dominante. Aculturar-se tornou-se sinônimo de incorporação à sociedade dominante e foi visto como um processo inexorável. Não bem um genocídio, mas certamente um etnocídio.

Para Rondon, a morte dos índios que ele contatou pessoalmente ou através de seus auxiliares deve ter-lhe tocado tanto quanto ainda hoje toca a qualquer antropólogo ou indigenista que tenha passado pela mesma experiência. Pois, na verdade, os povos indígenas em contato recente continuaram a sofrer mortes substantivas até pelo menos a década de 1990, mesmo com a presença de médicos e indigenistas experientes. O fato é que, no mais das vezes, os contatos iniciais quase todos foram feitos ou sem a presença de assistentes de saúde ou com dificuldades para a prestação da assistência por causa da desconfiança dos índios com as novas e inesperadas doenças e suas conseqüentes fugas dos locais de contato, convivência e assistência à saúde. Nos últimos 40 anos de contatos verificam-se altos índices de mortandade entre quase todos os povos contatados, como os Panará, os Guajá, Avá-Canoeiro, Assurini, Parakanã, Araweté, Waimiri-Atroari, Arara, Kararaô, Txikão (Ikpeng), Cintas-Largas, Suruí, Zoró, Zuruahá, Kanamari, Zoé, Yanomami, Waiãpi, Kanoé, Akuntsu, Uruweuwauwau, e, se algum foi esquecido, também este deve ter sofrido perdas demográficas imensas. Algumas dessas perdas ultrapassaram a faixa de 50% de sua população nos primeiros dois ou três anos. No entanto, afortunadamente, como em vários casos do tempo de Rondon, passados alguns anos, muitos desses povos contatados pararam de perder população e se encontram em franco processo de crescimento tendo recuperado seu efetivo demográfico original e se expandido, exceções em destaque.

O que significa tudo isso? Que, mesmo em condições de conhecimento adquirido e experimentado sobre as conseqüências mortíferas do contato, este nunca se deu em boa paz e sem quedas demográficas, a não ser em casos de pequenos grupos que fazem parte de grupos maiores já contatados. Aí a presença de parentes já contatados ajuda aos recém-contatados a entender o mundo dos brancos, especialmente de suas doenças.

Quer dizer também que o indigenismo rondoniano em relação aos povos que contatou não provocou as mortes que aconteceram por desleixo ou indiferença, como seus detratores atuais sugerem, mas sim, por incapacidade do indigenismo --e, lato senso, da sociedade brasileira e além, da civilização ocidental-- de resolver os problemas das primeiras semanas e meses de relacionamento, onde uma confiança mútua tem que ser construída para que medicina seja ministrada aos moldes ocidentais, inclusive com capacidade de antecipar epidemias e levar a cura (milagrosa, por incompreensível) no calor da agonia e desespero dos índios acometidos de doenças desconhecidas. Tal incapacidade prevalece hoje em dia, e nenhum indigenista de boa cepa se arrisca a fazer um contato esporádico com um povo indígena. Durante minha gestão de três anos e meio como presidente da Funai evitamos de todos os modos contato com povos indígenas autônomos, mesmo aqueles que já tinham parentes contatados, como os Guajá.

Reconheçamos que há várias pressões para se contatar povos autônomos. A principal, por ser a mais urgente, é quando um segmento de um povo autônomo entra em contato espontaneamente com algum segmento de uma frente de expansão, seja agrícola, madeireira, ou de caçadores. A segunda é quando se ouve dizer que algum grupo brasileiro atacou uma aldeia ou um grupo de índios autônomos. A terceira é quando se sabe que há segmentos de frente de expansão por toda uma área em que se conhece a presença de índios autônomos.

Em qualquer desses casos, há que se tomar providências. No caso terceiro, pode-se protelar o contato tentando proteger o povo em causa. A proteção se dará, em primeiro lugar, pela delimitação de um determinado território como sendo do povo indígena autônomo; em segundo lugar, demarcando esse território in loco; em terceiro lugar, obtendo força policial efetiva (Polícia Federal ou Florestal) para retirar e/ou impedir intrusos de invadir esse local e entrar em contato com o povo em causa. Em todos esses pontos o risco é grande, o medo de que não dê certo maior ainda. Mas é uma estratégia que tem dado certo há alguns anos, pois os contatos têm sido evitados. Nos dois primeiros casos mencionados de urgência aí a necessidade leva á formação de equipes de contato, com todas as dificuldades de ter as pessoas adequadas e a melhor estratégia para o contato e, sobretudo, o pós-contato. Eventualmente diversos povos indígenas autônomos serão contatados nos próximos anos e, além da competência dos indigenistas, do trabalho sério, da formação de equipes, das retaguardas financeiras e assistenciais, há que se contar com a boa sorte.

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