sábado, 10 de novembro de 2007

Continuação de "Por que sou rondoniano"

Rondon, o homem de Estado

Até a década de 1980, Rondon era considerado um homem de Estado, um estadista brasileiro, e seu nome era respeitado em todos os quadrantes da vida intelectual e política brasileira. Tanto que um território brasileiro, quando passou a ser estado federativo, tomou seu nome como justa homenagem conferida pelo Congresso Nacional. O estadismo de Rondon era entendido de várias maneiras. Em primeiro lugar, como militar que levava seu senso de dever à pátria, em primeiro lugar, e ao Exército, em segundo, acima de quaisquer outras obrigações. Nesse sentido, sua nomeação a marechal é tributo reconhecido nos escalões militares e sua elevação a patrono das comunicações mais ainda. Em segundo lugar, como homem público, no sentido de desenvolver suas atividades profissionais para o bem público e colocar os interesses maiores da nação acima de suas conveniências próprias, pessoais ou familiares. Só para dar um exemplo, entre 1907 e 1927, Rondon passou apenas um ano direto com sua família no Rio de Janeiro, o resto do tempo na lide da linha telegráfica, dirigindo a expedição de Theodor Roosevelt ao rio das Dúvidas, ou visitando aldeias ou serviços de comunicação na região norte do país.

Rondon angariou ao longo dos anos o respeito da opinião pública brasileira, dos índios e caboclos do sertão, dos fazendeiros e dos políticos, das autoridades, celebridades e medalhões do país. Teve inimigos entre os fazendeiros que foram prejudicados pela demarcação de terras indígenas, por políticos que representavam esses interesses, que, freqüentemente, criticavam o órgão no Congresso e planejavam a sua extinção para que a questão indígena fosse dirigida do âmbito do poder estadual. A Igreja Católica o abominava porque Rondon não somente era anticlerical no sentido mais cru da palavra (qual sentimento era conferido por suas convicções positivistas) quanto brigou veementemente com bispados e missões religiosas que penetravam entre os povos indígenas sem considerar o caráter laico da política indigenista. Nesse sentido, Rondon protagonizou, uma vez mais, a velha luta entre Igreja e Estado em relação aos povos indígenas brasileiros.

Aos amigos e aliados Rondon apelava para que não dessem solução de continuidade às verbas da linha telegráfica e do SPI. Ao mesmo tempo sabia driblar as pressões para dar emprego a indicados de amigos, a não ser que o órgão tivesse necessidade e o candidato competência. A sua religiosidade positivista assustava um pouco aos que o conheciam, sobretudo na medida em que o positivismo à brasileira foi se tornando cada vez menos importante, e até esquisito para o gosto do pós-guerra, com a penetração intelectual das ideologias comunista, fascista e liberal para prover os menos fortes de coração.

O estadismo de Rondon era especial no aspecto que mais consideramos: no reconhecimento intelectual e prático da participação dos povos indígenas na formação da nação brasileira bem como no seu propósito de trabalhar para que os povos indígenas fossem respeitados por méritos próprios. Cabia à sua integridade positivista trabalhar para que a República reconhecesse essas virtudes políticas e englobasse os povos indígenas em seu manto protetor. Em carta que Rondon escreveu para um correligionário, em 3 de outubro de 1910, portanto, menos de um mês após a criação do SPI, essa visão intelectual e política está demonstrada de uma forma tão ousada que ainda hoje não se concebeu algo mais radical. Escreveu Rondon: “Ora, os índios não devem ser tratados como propriedade do Estado dentro de cujos limites ficam seus territorios, mas como Nações Autonomas, com as quaes queremos estabelecer relações de amisade [grafia original]”.

Na verdade, a visão rondoniana não é totalmente original. Ela advém diretamente das proposições da Igreja do Apostolado Positivista, e, mais precisamente da proposta encaminhada à Assembléia Constituinte de 1890. Nessa proposta o Brasil devia ser administrado em dois tipos de estados e reconhece os povos indígenas com direitos excepcionais. No decorrer das discussões daquela Assembléia, essa proposta foi completamente ignorada. Eis o texto da proposta do Apostolado Positivista:

"A República Brasileira é constituída: 1o, pelos Estados do Brasil ocidental sistematicamente confederados, os quais provêm da fusão de elementos europeus com o elemento africano e o aborígine americano; 2o, pelos Estados americanos do Brasil, empiricamente confederados, os quais se compõem de hordas fetichistas espalhadas sobre o território da República. Esta federação consiste, de um lado, em manter com elas relações amistosas, hoje reconhecidas como um dever entre nações esclarecidas e simpáticas; e de outro garantir-lhes a proteção do governo federal contra toda a violência que as possa atingir, quer em suas pessoas, quer em seus territórios, que não poderão ser percorridos sem seu prévio consentimento, solicitado pacificamente e somente obtido por meios pacíficos"
Na minha opinião, tudo que o Brasil e os brasileiros sentem de bom e positivo em relação aos índios está encapsulado nessa frase de Rondon. Por sua vez, se algum objetivo maior pode haver de termos uma nação excepcional no seu relacionamento com os povos indígenas que a antecederam, que a formaram e que continuam a existir, a proposta do Apostolado Positivista continua como bandeira a ser levantada, como postura a ser emulada, como proposição política ao menos a ser lembrada e discutida nas suas possibilidades de realização. Excetuando a terminologia que caracteriza os índios como “hordas fetichistas”, a proposta positivista tem balizado o sentimento mais profundo do indigenismo brasileiro. E se, hoje em dia, os detratores de Rondon põem como o máximo de visão indigenista as proposições da Convenção 169, da OIT, ou a recém-aprovada Declaração Universal dos Direito dos Povos Indígenas, da ONU, poderiam honestamente reconhecer nas proposições do Apostolado Positivista um pioneirismo ímpar e um ideal ainda a ser perseguido. De onde seria fruto esse ideal se não do espírito brasileiro de amor ao índio?

A história não se faz sem sacrifício, mas também sem ponderação, sem tradição e sem visão. Ela é realizada pela reflexão crítica mas amorosa sobre o passado, pelo respeito ponderado à realidade social existente, vista duplamente como adversária e como companheira, e pela busca de transformação a partir daquilo que foi construído com consciência e com resultados. O que temos em mãos é uma história heróica do Brasil onde homens dedicaram suas vidas aos povos indígenas movidos pelo espírito de amor ou de compensação ou de aventura ou de desejo de transcendência, não importa o quê, guiados por uma visão extraordinariamente construída por brasileiros delirantes, e encarnada em Rondon. Essa visão cumpriu-se parcialmente, com erros e acertos, e continua fresca e saudável para continuar seu destino. Não sabemos se será cumprida em sua integridade. O certo é que, ao longo da história, ela foi encontrando suas contradições, seus recuos, e suas transcendências. Hoje somos mais conscientes da questão indígena no Brasil por causa desse percurso do indigenismo rondoniano.

Quando vemos outros países engatinhando para entender seus povos diferentes e dar-lhes condições de continuidade e respeito, vemos em retrospecto que muito do que se discute já foi pensado e trabalhado pelo espírito mais generoso da inteligência brasileira. É a partir desse patamar que devemos seguir nosso destino. Sem lastimarmo-nos pelos erros cometidos, sem choramingarmos pelos resultados negativos aqui e ali, mas olhando para o futuro com a mente posta nos acertos e nas novas condições existentes. Entre estas sobressai-se a ascensão demográfica dos povos indígenas, sua presença mais firme e forte no panorama político brasileiro e sua intensa vontade de participação na cultura brasileira mais ampla. Que essa participação seja orgânica, vinda do âmago cultural dos povos indígenas, para quem os jovens participantes devem manter uma lealdade inflexível. Que seja também aberta ao mundo, comunicativa e dialógica para que os demais brasileiros possam ganhar de sua sabedoria e visão de mundo.

Ser rondoniano é, portanto, estar neste mundo de radicalidade do pensamento e da ação, dentro do âmbito de um ideal republicano. Ser anti-rondoniano é ser tão-somente um ressentido da história e um pretensioso no presente. Pode-se até ser cristão e ser rondoniano, contanto que se respeite as tradições e as religiões dos povos indígenas e não se os veja como candidatos ao martírio na cruz. Ser rondoniano é ser darcysista, ser orlandovillasboasiano, chicomeirellesiano, carlosmoreirano, é ser bonifaciano e, mais para trás na história, ser vieiriano e ser lascasasiano. Ser rondoniano é, enfim, ser fiel ao espírito do tempo brasileiro. É respeitar a tradição, sem se submeter ao conservadorismo. É confiar mais no amor entre os homens e na possibilidade de transcendência de suas culturas para entenderem-se uns aos outros.

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