Lembro-me que, em agosto de 2008 (e esse Blog registrou esses momentos), quando o STF estava para analisar e julgar as ações civis públicas contra o decreto de homologação da T.I. Raposa Serra do Sol, quando era momento da Funai e dos soi-disant "amigos dos índios", as Ongs neoliberais e o CIMI, ficarem calminhas, pianinhas e ajudarem os ministros a deliberar sobre o assunto sem pressão -- NÃO -- meteram-se a pressionar o STF, acolheram com salvas a chegada do relator especial da ONU para assuntos indígenas, que aqui chegou se comportando com um "salvador de índios", dando lições de moral a todo mundo, levaram representantes indígenas em passeatas pela Europa para "sensibilizar" a opinião pública, isto é, as Ongs e os governos que enviam dinheiro às Ongs brasileiras, até ao Papa Bento XVI os índios apelaram, e, como que para coroar, alardearam em pleno Mato Grosso do Sul que os GTs criados para levantar terras indígenas naquele estado planejavam mapear 25 municípios e deles reconhecer cerca de 600.000 a 1.000.000 de hectares!!
Resposta:
Primeira tacada: Mesmo o festejado voto de Carlos Ayres Britto favorável ao decreto de homologação presidencial veio carregado da mais dura pena contra novas demarcações de terras indígenas. Qual seja, declarou que só se pode reconhecer como ocupação tradicional indígena a terra que estiver sendo ocupada na data da promulgação da Constituição Federal, 5 de outubro de 1988. (Essa mesma Constituição que esse indigenismo neoliberal considera a redentora dos índios, como se não houvesse a história do indigenismo rondoniano a criar no Brasil a predisposição cultural favorável aos índios.) Nem antes, nem depois. Isto é, se um grupo ou comunidade indígena estivesse estado ocupando determinada terra algum tempo antes daquela data, mas tivesse saído por algum motivo, não teria mais direito sobre ela, a não ser que conseguisse provar que tinha mantido ânimo de voltar a ela e que de lá fora retirado forçosamente.
Segunda tacada: O ministro Menezes Direito pediu vistas do processo, o que adiou sua decisão para o dia de Sâo José, de 2009. No seu voto, nessa última data, o ministro insere , com as bençãos de 10 dos 11 ministros em todos os pontos, menos um, 19 ressalvas que consolidam a mudança radical dos parâmetros que norteavam a demarcação de terras indígenas. Dessas 19 ressalvas, duas se destacam: a 17ª que declara não se poder ampliar terra já demarcada; a 19ª que determina que os entes federativos, i.e., estados e municípios, têm que estar presentes e ativos em todas as fases do processo demarcatório, inclusive daqueles que estão em curso, não dos que já foram consolidados.
Não se pode negar que essas três condicionantes afetam radicalmente o destino de demarcação de terras indígenas.
Desde então, todos as terras que estão em processo de demarcação e tiveram algum tipo de contestação que fere a natureza dessas ressalvas estão paralisados, seja pelos tribunais regionais, seja pelo STF.
Nesta sexta-feira passada, dia 29/01, enquanto a cúpula da Funai dava prosseguimento ao esquartejamento do órgão, ao fechar as unidades gestoras das administrações e núcleos de apoio extintos, deixando os funcionários inaptos a fazer os pagamentos dos fornecedores contratados anteriormente, o ministro-presidente do STF, Gilmar Mendes, do alto de sua capacidade de conceder liminares durante o recesso judiciário, deu mais uma liminar sobre questão indígena. Neste caso, a uma ação cautelar do estado de Roraima pedindo para a Funai se eximir de declarar terra indígena uma terra que está sendo ocupada por um assentamento oficial do Incra, inclusive, recentemente, com pessoas vindas da extrusão da T.I. Raposa Serra do Sol.
Ao que sucede, essa terra seria uma extensão de uns 4.000 a 5.000 hectares da Terra Indígena Serra da Moça, com cerca de 25.000 hectares, demarcada na década de 1990. Por volta de 2000, 2001, quando o INCRA se movimentou para assentar famílias não indígenas naquela área, agora chamada de Assentamento Nova Amazônia, a comunidade Wapixana da Serra da Moça protestou que essa terra era tradicionalmente dela, que não havia sido demarcada antes por erro ou desleixo, e que ia perder acesso ao rio Uraricuera, e buscou meios para contornar a situação. Nas negociações entre Funai, INCRA e comunidades indígena, em 2004 chegou-se a um pré-entendimento de que poder-se-ia estabelecer uma faixa de terra de uso comum entre índios e não índios que permitiria o acesso dos índios ao rio. Entretanto, tal entendimento não prosseguiu e um grupo indígena resolveu se estabelecer na área do assentamento e marcar presença lá, alegando ocupação tradicional. O Conselho Indígena de Roraima pediu a Funai um GT para reconhecer essa terra como indígena. Eis o histórico por trás da questão e eis como o ministro-presidente do STF, Gilmar Mendes, deu seu voto favorável ao estado de Roraima.
Ultrapassada a preliminar suscitada, cumpre asseverar que este Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da Petição no 3388, Rel. Carlo Britto, DJ 25.9.2009, o conhecido caso Raposa Serra do Sol, fixou a data da promulgação da Constituição de 1988, 5 de outubro de 1988, como o marco temporal para o reconhecimento, aos grupos indígenas, dos direitos originários sobres as terras que tradicionalmente ocupam, consoante explicitado no seguinte trecho da ementa do acórdão:
“11. O CONTEÚDO POSITIVO DO ATO DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. 11.1. O marco temporal de ocupação. A Constituição Federal trabalhou com data certa -- a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) -- como insubstituível referencial para o dado da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. 11.2. O marco da tradicionalidade da ocupação. É preciso que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica”.
Ademais, registre-se que esta Corte, ao explicitar as condições impostas pelo texto constitucional para a demarcação de terras indígenas, deixou assentado ser “vedada a ampliação de terra indígena já demarcada” (condição no 17).
No caso, é possível vislumbrar o propósito do grupo indígena denominado “Comunidade Lago da Praia” de ampliar as dimensões de terra indígena já demarcada, em dissonância, portanto com o que estabelecera este Supremo Tribunal Federal.
A análise sumária dos autos revela - haja vista as diversas manifestações do INCRA que atestam essa assertiva – que o grupo indígena somente passou a ocupar a área alvo do conflito em data posterior à promulgação da Constituição de 1988.
Por outro lado, consoante afirmado pelos requeridos, não há nenhum ato material de demarcação de terra indígena, mas o assentamento de índios em área destinada a projetos de reforma agrária.
Assim, tendo em vista a complexidade do caso, o fato de se tratar de área marcada por conflitos fundiários e as alegações do requerente no sentido de que novos grupos indígenas estariam se deslocando para a região, entendo ser necessário provimento judicial que promova a manutenção do status quo, garantindo os assentamentos já realizados, até que este Supremo Tribunal Federal possa analisar o mérito desta ação.
Com essa liminar, como em três outras dadas no final do ano passado para os casos de terras em Roraima e em Mato Grosso do Sul, inclusive contestando decretos de homologação do presidente Lula, o ministro Gilmar Mendes aplica as ressalvas e considerações do voto fatídico no dia de São José e abre para os seus colegas posterior análise e deliberação.
No futuro próximo ou longínquo, quem sabe, o STF vai decidir, como um todo ou em turma, sobre esse e mais três ou quatro casos já deliberados liminarmente pelo seu presidente, e muitos outros mais, talvez umas duas dezenas que estão sem resolução há anos. Qualquer decisão será importantíssima e a partir dela se definirá o processo de demarcação de terras indígenas daqui por diante, e até não sabemos quando.
Muito provavelmente, os ministros do STF seguirão a decisão liminar do ministro-presidente, já que ela se respalda em decisão tomada por todos eles. Mas, ninguém sabe ainda. Como diz o ditado, de cabeça de juiz não se sabe o que vem. Ficamos na expectativa de que, pelo menos em alguns casos, o STF reconheça atenuantes ou nuanças que possam ser deliberadas sem ajuda dessas ressalvas.
Esta é a herança maldita e mais perniciosa dessa atual gestão da Funai. Aos povos indígenas a quem foram prometidos dias melhores restará apenas o gosto amargo do desapontamento e da desesperança. Tudo isso feito pela soberba, pela arrogância e pela impiedade do indigenismo neoliberal.
É como se o indigenismo brasileiro, de cunho rondoniano, tivesse de começar do zero. Negociar tudo de novo, caso a caso, até obter novos resultados. Como há 100 anos, quando Rondon criou o Serviço de Proteção aos Índios.
Para a decisão completa do ministro Gilmar Mendes, ver aqui.