quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Pausa para Reflexão sobre o Brasil: Propostas de Mangabeira Unger


OITO OPÇÕES PARA DEFINIR O RUMO DO  BRASIL
                
        Oito séries de opções definem o modelo de desenvolvimento que convém ao Brasil. Modelo que transforma a ampliação de oportunidades econômicas e educativas no motor do crescimento. E que afirma a primazia dos interesses do trabalho e da produção sobre os interesses do rentismo.


1.Reposicionar o Brasil na divisão internacional do trabalho. Deve o país optar contra caminho, como o da Nova Zelândia ou do Chile, que combina  produção e exportação de produtos primários com tentativa de formar elite internacionalizada de serviços. O Brasil é grande demais para abandonar sua vocação industrial. Ao manter-se fiel a ela, precisa também optar contra estratégia como a que a China seguiu: apostar, por muito tempo, em trabalho barato e desqualificado. Não prosperaremos como uma China com menos gente.


2. Financiar internamente nosso desenvolvimento. Dividir ao meio a seudo-ortodoxia econômica que os governos brasileiros abraçaram em décadas recentes.  Reafirmar a parte útil -- o realismo e a responsabilidade fiscais --, mesmo à custa de renunicar, por algum tempo, a instrumentos de uma política contra-cíclica. Repudiar a parte nociva -- a tolerância de nível baixo de poupança pública e privada e a consequente dependência do capital estrangeiro para financiar nosso desenvolvimento.
Em tese, o nível de poupança é mais efeito do que causa do crescimento. A mobilização inicial dos recursos nacionais representa, entretanto, condição para a afirmar estrátegia rebelde e inovadora de desenvolvimento.
A elevação da poupança pública requer disciplina fiscal. Já para elevar a poupança privada, temos de construir mecanismos que organizem e aproveitem a poupança previdenciária.
O aumento da poupança privada e pública será, porém, indiferente ou nocivo sem canais que encaminhem a poupança de longo prazo para o investimento de longo prazo. E que evitem que seu potencial produtivo se desperdice num casino financeiro. Investimento e inovação: este é o binômio crucial.


3. Redefinir a política agrícola. Agropecuária, ainda a principal atividade econômica do Brasil, tem tudo para exemplificar o vínculo entre diversificação da produção e democratização das oportunidades. Para isso, precisa pautar-se por três objetivos entrelaçados. Fazer da agricultura familiar agricultura empresarial. Agregar valor aos produtos agropecuários no campo. Construir classe média rural forte como vanguarda de massa de trabalhadorea agrícolas mais pobres que avançara atrás dela.
Este projeto vingará no contexto da solução do maior problema físico de nossa agricultura: a recuperação de pastagens degradadas que hoje formam grande parte do território nacional. (No Brasil, para cada hectar sob lavoura há quatro entregues à pecuária extensiva.) Se recuperarmos parte desta área, dobraremos a área cultivada e triplicararemos nosso produto agrícola sem tocar uma única árvore.


4. Reorientar a política industrial. Se abrirmos para as pequenas e médias empresas o acesso ao crédito, à tecnologia, ao conhecimento, aos mercados globais, criaremos dínamo de crescimento includente. São elas a parte mais importante de nossa economia; é ali que se gera a maior parte do produto e é ali que está a vasta maioria dos empregos.
Organizar fora dos centros industriais travessia direta do pré-Fordismo industrial para o pós-Fordismo industrial, sem que o todo o país tenha de penar no purgatório de um paradigma de produção --  produção em grande escala de bens e sereviços padronizados, por meio de mão de obra semi-qualificados e processos produtivos rígidos e hierárquicos -- que já se vai tornando superado no mundo e que inibe nossa ascensão na escalada da produtividade. O Brasil todo não deve ter de virar a São Paulo de meados do século passado para depois tornar-se outra realidade.


5. Reorganizar as relações entre trabalho e capital. Não se inova nisto desde Vargas. A maior parte do povo brasileiro está fora do regime legal. Quase metade da população economicamente ativa continua na informalidade. Parte crescente dos empregados na economia formal encontra-se em situações precarizadas, de trabalho temporário, terceirizado ou autônomo.
Construir, ao lado do regime estabelecido de leis trabalhistas, um segundo corpo de regras, destinado a proteger, a organizar e a representar os trabalhadores inseguros das economias informal e formal.


6. Capacitar o povo brasileiro.
A primeira prioridade é reconciliar a gestão local das escolas pelos estados e municípios com padrões nacionais de investimento e de qualidade: federalizar -- na prática, não apenas na lei -- os padrões. Para reconciliar gestão local com padrões nacionais é preciso criar instrumento para consertar redes de escolas locais que caiam repetidamente abaixo do patamar mínimo aceitável de qualidade. O meio é associar os três níveis da federação em órgãos conjuntos que possam vir em socorro destas escolas, assumi-las temporariamente, confiá-las a gestores profissionais independentes e devolvê-las consertadas.
         A segunda prioridade é mudar a maneira de aprender e de ensinar no Brasil. Substituir decoreba -- o enciclopedismo informativo superficial -- por ensino analítico e capacitador, com foco no básico: análise verbal e análise numérica.
         O lugar para iniciar esta obra é o elo fraco: a escola média. E o instrumento mais promissor é educação secundária com fronteira aberta entre o ensino geral e o ensino técnico. Ensino geral que subordine memorização a análise. Ensino técnico que priorize o domínio de capacitações práticas flexíveis e genéricas em vez de priorizar a aprendizagem de ofícios rígidos.


7.Reconstruir o Estado. Não existe ainda no Brasil o Estado capaz de executar o programa que aqui se esboça. Nosso Estado continua a ser balofo e incapaz. Há três agendas de gestão pública a executar simultaneamente.
A primeira agenda, a do profissionalismo burocrático, é a obra incompleta do século 19 em matéria de administração pública. Temos ilhas de profissionalismo no Estado. Continuam a flutuar em oceano de discricionariedade política.
A segunda agenda, a da eficiência administrativa, está associada ao século 20.  Reinventar para o setor público práticas de gestão empregadas no setor privado: padrões de desempenho, garantias de transparência, mecanismos, dentro e fora do Estado, para avaliar, incentivar e cobrar resultados. Transformar o direito e o processo administrativos. Metade do que temos é camisa-de-força, baseada em desconfiança. A outra metade é o oposto: a delegação de poderes discricionários a potentados administrativos. Ambas as metades precisam ser substituídas por regras e procedimentos que permitam reconciliar fidelidade aos objetivos com flexibilidade na execução.
A terceira agenda, a ser característica do século 21, é a do experimentalismo na maneira de prover os serviços públicos, inclusive de educaçaõ e de saúde. Não precisamos escolher entre a provisão burocrática de serviços padronizados de baixa qualidade e a privatização destes serviços em favor de empresas à busca de lucro. Pode o Estado ajudar a organizar e a financiar a sociedade civil independente para que ela participe da provisão competitiva e experimental dos serviços prestados pelo Estado ao cidadão. É a melhor maneira de qualificá-los.


8. Institucionalizar a cultura republicana.
O primeiro ponto de partida é substituir federalismo de repartição rígida de competências entre os três níveis da federalismo por federalismo cooperativo que os associe em ações conjuntas e em experimentos compartilhados.
O segundo ponto de partida é adotar medidas que comecem a tirar a política da sombra corruptora do dinheiro. Financiar publicamente as campanhas eleitorais para diminuir a influência do dinheiro privado. Rever o processo orçamentário para que o orçamento deixe de ser palco pantanoso da negociação entre os interesses poderosos. Substituir a maior parte dos cargos de indicação política por carreiras de Estado.
Utopia? Tudo isso é factível com instrumentos que já temos à mão. O objetivo é dar braços, asas e olhos à vitalidade brasileira.
 
Roberto Mangabeira Unger é Professor Titular da Universidade de Harvard (EUA).

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