quarta-feira, 30 de abril de 2008

Homologação de Raposa Serra do Sol na berlinda

Repórteres que têm acesso aos gabinetes dos ministros do STF estão pessimistas em relação à decisão do ministro Ayres Britto sobre a preservação da homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

Ontem o procurador-geral da República, Antonio Fernando Souza, deu seu parecer sobre uma das ações contra a homologação de RSS. Isso suscitará a decisão do ministro Ayres Britto. Argumentou que o processo de demarcação que levou ao ato presidencial foi integralmente legal, portanto, perfeito. Assim, sugere pela não recepção da tal ação, aberta pelo senador Mozarildo Cavalcanti, e pela permanência do ato homologatório. Essa matéria está na Folha de São Paulo, logo abaixo.

De que valerá esse parecer? Ao que indicam interlocutores do ministro Ayres Britto, não muito.

Parece que o ministro mudou totalmente sua opinião original que confirmou há três anos o ato homologatório presidencial. Por que tal virada de casaca?

Parece que ele se convenceu de que há moradores na região há muitos anos, falam alguns que têm antepassados que para lá vieram desde 1880, e alguns alegam títulos de propriedade de 1910. Será que foi isso que comoveu o ministro Ayres Britto? Será que ele não viu isso na primeira vez que cuidou do caso?

Parece que o ministro Ayres Britto se espantou com os termos da Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas, promulgado pela ONU em setembro de 2007, sobretudo o Art. 3 que fala no direito à auto-determinação dos povos indígenas por um ato voluntário. Tal artigo foi questão de discussão durante muitos anos. O Brasil terminou aceitando esse artigo com um voto condicionante, lido na própria Assembléia por ocasião da votação. O ministro Britto poderia ter pensado que 145 países, de todas as variações possíveis, da China e Índia (que têm as maiores populações indígenas do planeta, mais de 100 milhões cada uma), passando pela Indonésia e chegando à Finlândia e à Rússia. Todos países com populações indígenas que querem autonomia política e cultural e com muita força e população para tanto. Por que então o Brasil teria medo de que suas populações indígenas se declarassem auto-determinadas e exigissem um estatuto jurídico-político de igualdade? E por que a ONU aceitaria alguma tal demanda, se nem aceita as demandas de povos indígenas tão fortes como os Maitai da Índia, que têm mais de 4 milhões de membros e estão na fronteira com Mianmar?

Um diálogo mais forte com o STF e com as Forças Armadas brasileiras se faz necessário. Se a imprensa não pode fazer isso, que o Executivo ou o Legislativo o faça, sem alarmismo e alardes que só confundem os argumentos e espantam a verdade.

O STF e o Exército têm que saber que o conceito de auto-determinação, mesmo se apresentando nos termos da ONU, vem sendo interpretado diferentemente nos últimos 20 anos por muitos juristas do Direito Internacional. Auto-determinação não implica mais a possibilidade de auto-proclamação do conceito de Nação-Estado, com o quê a ONU poderia recepcionar um pedido de aceitação na comunidade das nações. Portanto, o perigo de um povo indígena, de uma nação indígena autônoma, como já falou Rondon, querer se auto-proclamar nação-estado está longe da realidade prática e mais longe do acatamento jurídico internacional. Auto-determinação tem sentido no interior de uma Nação-Estado, como o Brasil. Daí ter sido aceito por tantos países, até mesmo aqueles que têm muitas reivindicações históricas de separacionismo.

Uma matéria da Folha de São Paulo, assinada por diversos jornalistas, diz que o ministro Britto também se comoveu com a presença de não indígenas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol desde o tempo da ditadura militar, que teria promovido a migração para aquele então território nacional. Acho isso inacreditável. Certamente a questão dos arrozeiros é a parte mais ignominiosa desse affair Raposa Serra do Sol. Sua presença é absolutamente ilegal, imoral e indigna. O ministro Ayres Britto sabe disso e não iria ser persuadido por um argumento desse jaez.

Seja como for, só podemos aguardar para saber o quê dirá o ministro Ayres Britto. Acho que se sua decisão for contrária a RSS, seja por que motivo for, isso irá desencadear uma série de pedidos de revisão de homologações já realizadas anteriormente. Não seria de bom alvitre o ministro fazer isso. Vai bagunçar todo o sistema de demarcação de terras que a tanto custo o Brasil estabeleceu na prática e juridicamente. Em meu artigo publicado segunda-feira, dia 28, em O Globo, em contraposição ao editorial do jornal, alertei para o perigo do ato de desfazimento da homologação.

Para os amigos antropólogos e indigenistas se lembrarem, há pouco mais de dois anos, alertei em entrevista a uma agência de notícias que muitas ações de demarcação estavam sendo contestadas e iriam parar no STF. Alguns pensaram maldosamente que eu estava dizendo que o STF iria barrar as reivindicações dos povos indígenas. Agora estão sentindo a verdade de minhas palavras. Com efeito, o STF tem em suas mãos mais de 100 ações sobre a questão indígena, algumas com mais de 25 anos, como a da Terra Indígena Caramuru-Paraguaçu. Alertei ainda que, eventualmente, o STF iria definir os parâmetros do que constitui o termo "tradicionalidade" ou "tradiconalmente", tal como está no Art. 231 da Constituição Federal. Tradicionalidade é um dos parâmetros que determinam o reconhecimento do direito de povos ou grupos indígenas sobre terras indígenas pela União.

Porém nunca pensei que o STF fosse fazer isso exatamente em relação à T. I. Raposa Serra do Sol, precisamente porque já tinha julgado sua legitimidade.

Por tudo isso, e pelo papel que o Exército está desempenhando nessa questão, especialmente julgando que as terras indígenas em fronteira constituem uma ameaça à soberania nacional, é que temos -- nós antropólogos, indigenistas, a população pró-indigenista brasileira -- que abrir um diálogo sincero e honesto com todas essas forças: o Exército, o STF, os poderes públicos, a Igreja. Não basta argumentar por razões indigenistas, pois essas estão passando ao largo do sentimento da população. É preciso esclarecer que os povos indígenas estão no Brasil, são brasileiros, e que a política indigenista almeja que os índios façam parte da Nação brasileira. Tal como diz o Estatuto do Índio, a política almeja a "integração harmoniosa" na Nação brasileira. A constituição não vai contra isso, como querem alguns exegetas. Ela apenas afirma com clareza que os índios têm direito a manterem seus costumes, línguas e tradições, algo que o Estatuto do Índio certamente nunca supôs o contrário.

As próximas semanas serão muito tensas para os povos indígenas que habitam a T.I: Raposa Serra do Sol, mas também para o indigenismo brasileiro. Cabe a nós nos prepararmos para o que der e vier e saber fazer a hora. O avexados de espírito, por favor, não comecem com a idéia de propor a mudança do Estatuto do Índio e declarar que a Constituição não quer o índio integrado na Nação. Que voltem a ler o conceito clássico de integração tal como explicado por Darcy Ribeiro e Roberto Cardoso de Oliveira, e não o confunda com assimilação. Pensem no tal conceito de "inclusão social", tão badalado nesse governo, ponham a mão na consciência, e vejam que funciona do mesmo jeito, se não mais determinista, que o conceito de integração.

Vejam as duas matérias direto da Folha de São Paulo:

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Parecer do procurador-geral é favorável a manter demarcação de área em Roraima
FELIPE SELIGMAN
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O procurador-geral da República, Antonio Fernando Souza, enviou ao Supremo Tribunal Federal parecer contrário à suspensão do decreto de demarcação da reserva indígena Raposa/Serra do Sol. Esse era o passo que faltava para que o ministro Carlos Ayres Britto leve o caso ao plenário do Supremo.

Britto afirmou que pretende disponibilizar seu relatório até o final da semana que vem. A partir de então, caberá ao presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, decidir quando a questão será julgada. "Como o presidente já se mostrou empenhado, é possível que até o final de maio realizemos esse julgamento tão importante."

O parecer trata sobre uma ação popular protocolada em 2005 pelos senadores Mozarildo Cavalcanti (PTB-RR) e Augusto Botelho (PT-RR), pedindo o cancelamento do decreto editado naquele mesmo ano.

No texto, o procurador-geral afirma que "a alegação de ofensa ao equilíbrio federativo e à autonomia de Roraima está divorciada da realidade". "A área indígena Raposa/Serra do Sol representa pouco mais de 7% do território daquele Estado, que, desde sua criação, conta com a presença de numerosos grupos indígenas, sendo a população em questão ali residente a terceira maior do país."

O governo de Roraima, por sua vez, reclama que 46% do território do Estado já está tomado por reservas indígenas.
O procurador-geral diz que a área não traz risco à soberania nacional. "O risco de abalo à soberania nacional, se presente, haverá de ser eliminado, se for o caso, por mecanismos outros de proteção, sem sacrifício do direito dos povos indígenas."
Na ação, os parlamentares alegaram que a demarcação traria conseqüências "desastrosas" para o Estado.

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STF deve votar contra saída de não-indígenas de reserva
Supremo também vai restringir MPs que mudam texto do Orçamento já aprovado

No caso da Raposa/Serra do Sol, ministros do tribunal argumentam haver cidades inteiras dentro da área demarcada como indígena

ELIANE CANTANHÊDE
COLUNISTA DA FOLHA

VALDO CRUZ
KENNEDY ALENCAR
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O STF (Supremo Tribunal Federal) restringirá a edição de medidas provisórias de créditos extraordinários do Orçamento da União. E tende a modificar o modelo de demarcação contínua da reserva Raposa/Serra do Sol, em Roraima.

No caso da reserva, o objetivo é evitar a remoção de não-indígenas. Segundo a Folha apurou, o STF deve criar "ilhas" na reserva, segundo a expressão ouvida no Supremo.

No das MPs, o Supremo avalia que há abuso do Executivo, que recorre ao artifício para modificar o texto do Orçamento aprovado no Congresso.

Ao julgar o modelo de demarcação da reserva, o Supremo deverá deixar claro que, apesar da pressão de setores e ONGs internacionais, as Forças Armadas não sofrerão constrangimento para atuar em território indígena em todo o país, porque a propriedade das reservas é da União.

O Brasil é signatário da "Declaração dos Povos Indígenas" da ONU (Organização das Nações Unidas), de 2007, que assegura o direito dos índios à terra e aos seus territórios. Isso preocupa as Forças Armadas, porque poderia caracterizar um território autônomo dentro do território nacional.

O comandante militar da Amazônia, general Augusto Heleno, admitiu publicamente que temia "ameaça à soberania nacional", já que a reserva fica em área de fronteira.

O Supremo dirá que a declaração não é convenção, tratado nem tem força de lei. Trata-se de manifestação política.
A demarcação da reserva Raposa/Serra do Sol foi feita em 1998, no governo Fernando Henrique Cardoso, e homologada já na gestão Lula, em 2005. O Planalto começou a recuar na defesa da demarcação contínua devido à tensão gerada pelo processo de retirada dos não-indígenas da área.

Produtores de arroz, por exemplo, ameaçaram entrar em conflito contra índios e a Polícia Federal para ficar na reserva, e o STF suspendeu as ações de retirada dos não-índios para estudar a questão.

Em reunião com líderes indígenas no Planalto, Lula disse que apóia a demarcação contínua, mas, nos bastidores, torce para que o STF mude a regra. Se houver ônus político, será do Supremo, não do governo.

Na opinião da maioria dos ministros do STF, há argumento jurídico para manter na reserva populações não-indígenas que vivem na área, algumas desde 1880 e outras que foram estimuladas pela ditadura militar de 1964 a aderir à colonização de Roraima. A tendência do STF é reconhecer a legitimidade dessas ocupações. Ministros argumentam que há cidades inteiras dentro da reserva e não faria sentido sua remoção.

Atualmente, dentro da reserva já existem duas áreas de exclusão -dos municípios de Normandia e Uiramatã. Políticos do Estado defendem a criação de mais quatro -vale do Arroz, lago de Caracaranã, vila Surumu e a área da hidrelétrica do rio Cotingo, em construção.

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