quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Na ditadura Funai demite indigenistas e antropólogos

No período inicial da transição da ditadura para a democracia, por volta de 1977-78, surgiram muitos movimentos em prol de minorias e dos direitos humanos. Um deles foi o movimento dos antropólogos que, juntos com o CIMI, jornalistas e advogados que começavam a defender os povos indígenas, se puseram contra o projeto de emancipação dos índios que o governo Geisel pretendia implementar por volta de 1978. Outro movimento que se galvanizou foi o dos indigenistas da Funai, que pretendia liberar a Funai da presença maciça dos militares, especialmente depois que o primeiro civil, Ademar Ribeiro da Silva, foi nomeado presidente em março de 1979, mas demitido em novembro do mesmo ano. O movimento dos indigenistas e antropólogos da Funai tinha o apoio de muitas lideranças indígenas que despontavam no panorama político brasileiro e de muitos antropólogos fora da Funai. Criou-se a Sociedade Brasileira de Indigenistas, em princípios de 1980, logo alguns dos líderes foram demitidos e, em seguida, pela solidariedade demonstrada por outros, cerca de 68 deles foram demitidos. Alguns conseguiram escapar dessa demissão em massa.

A história da formação da Sociedade Brasileira de Indigenistas (SBI) ainda está para ser contada. Na verdade, a história do indigenismo brasileiro ainda está para ser contada, e espero que venha a ser por pessoas que participaram e participam dessa história. Na matéria que se segue, Rubem Valente, da Folha de São Paulo, analisa os dados encontrados nos arquivos da ASI, da Funai baseados em relatórios de espiões e infiltrados no movimento. É a continuação das matérias anteriores que saíram ontem no mesmo jornal. (Ver logo abaixo.)

O entrevistado dessa matéria é o antropólogo e indigenista Cláudio Romero, um dos líderes da SBI. Ele esclarece alguns pontos interessantes dos dados apresentados por Rubem Valente, mas é discreto quanto às atividades de supostos espiões que trabalhavam na própria Funai e que poderiam estar a serviço dos interesses dos militares. Na verdade, sabia-se que os militares tentaram cooptar indigenistas para espionar os colegas, que ameaçaram muitos com demissões, mas os delatores eram quase sempre gente fora do círculo de indigenistas.

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Funai demitiu antropólogos por protestos durante a ditadura

Documentos de braço do extinto SNI abertos após 30 anos de sigilo revelam espionagem de funcionários do órgão que discordavam das políticas indigenistas

Folha de São Paulo, por Rubem Valente

No segundo semestre de 1980, a política indigenista da ditadura militar sofreu um duro ataque do próprio corpo de especialistas do governo. Um grupo de antropólogos e indigenistas lotados na Funai (Fundação Nacional do Índio) rebelou-se contra a política oficial de "integração" dos índios à "sociedade nacional" e entregou uma carta de protesto ao então ministro do Interior, coronel Mário Andreazza.

Além de pedir a substituição dos coronéis do Exército e da Aeronáutica que comandavam a Funai, os indigenistas protestavam contra a demissão de colegas ligados à nascente SBI (Sociedade Brasileira de Indigenistas), ONG que denunciava mazelas do setor, com repercussão internacional.

A reação foi imediata: 68 indigenistas, antropólogos e outros servidores foram demitidos "por justa causa" ou "indisciplina" nos dias seguintes. Essa é a parte pública do episódio.

A abertura dos arquivos da ASI (Assessoria de Segurança e Informações), o braço do SNI (Serviço Nacional de Informações) na Funai, entregues ao Arquivo Nacional de Brasília após três décadas de sigilo, revela que os antropólogos eram acompanhados por arapongas meses antes do início dessa que é considerada a maior crise indigenista da ditadura.

Ontem, a Folha mostrou que os papéis do SNI também comprovam a espionagem dos missionários que fundaram o Cimi (Conselho Indigenista Missionário), ligado à Igreja Católica, durante o governo de Emílio Garrastazu Médici (1969-1974). Os militares acreditavam que o conselho queria "subverter" o controle do órgão sobre os índios.

O libelo dos indigenistas, usado pelo regime para justificar as decisões, só foi redigido dois meses depois que uma reunião da SBI foi gravada em fita cassete, transcrita e relatada à Funai. A infiltração na reunião da SBI foi também anterior às primeiras demissões.

O arquivo da ASI contém as 19 páginas datilografadas em papel timbrado que resumiram a reunião. No encontro, os dirigentes foram acusados pela perda de territórios indígenas para colonos e posseiros. Os servidores denunciavam que os principais cargos eram ocupados por militares estranhos aos conceitos da tradição do indigenismo brasileiro.

Em vez de apurar as acusações, Andreazza (1918-1988) entregou a carta à ASI da Funai e iniciou as demissões, executadas pelo coronel João Carlos Nobre da Veiga, então presidente do órgão. Veiga havia sido o coordenador do braço do SNI, uma DSI (Divisão de Segurança e Informações) na então companhia estatal Rio Doce Geologia e Mineração.

Outra evidência veio à tona na época da crise. Segundo Cláudio dos Santos Romero, um dos fundadores da SBI, os indigenistas desconfiaram de um espectador de uma reunião que dizia ser "professor em Luiziânia", Goiás. Depois de interpelado, descobriu-se que o homem era capitão do Exército. Romero tirou foto dele e a enviou anonimamente para o coronel do Exército Ivan Zanoni Hauser, um alto funcionário da Funai que estava investigando a SBI. O coronel ficou furioso, disse à Folha.

O indigenista era um crítico da ditadura. No meio da reunião de 1980, pelo relato do araponga, Romero -que presidiu o órgão nos anos 90- levantou-se para declarar que a "cúpula da Funai é terrível e sutil". Houve também denúncias sobre o comportamento de delegados regionais, que supostamente beneficiavam colonos e posseiros em detrimento dos índios.

Outros documentos mostram que a vigilância se estendeu a indigenistas não relacionados com a SBI. Um "relatório de missão" descreve a ida de policiais federais a uma aldeia em Santa Terezinha (MT), para "investigar as atividades de um indivíduo suspeito de possuir curso superior", mas que trabalhava no posto da Funai "como pedreiro". A PF nada concluiu sobre Lázaro Dirceu Mendes Aguirre, formado em filosofia. Ele, que mora até hoje na região e trabalha com os mesmos índios tapirapés, fazia trabalho voluntário.

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