sábado, 28 de fevereiro de 2009

Menina Tukano é tratada por pajés e médico

O índio José Barreto (à esq.), pai de L., e o médico Monteiro, no Hospital Getúlio Vargas, em Manaus. A parceria salvou a menina de 12 anos

O Brasil é um país extraordinário por sua capacidade de improviso e de experimentação. O acontecimento abaixo prima pelo inusitado -- um conflito entre concepções indígenas e brasileiras sobre a cura -- e a solução encontrada é fruto da capacidade de experimentação e renovação das duas culturas que balizam essas concepções aparentemente antagônicas.

Eis um resumo do acontecimento:

No começo de janeiro uma menina Tukano, cujo povo vive na Terra Indígena Alto Rio Negro, no norte do estado do Amazonas, foi mordida em sua aldeia por uma cobra jararaca. O próprio pai a levou para a cidade de São Gabriel da Cachoeira para tomar soro antiofídico, mas, de lá foi transportada por avião para Manaus. Ao chegar ao hospital sua situação estava bastante comprometida e os médicos decidiram que teriam que amputar seu pé para salvá-la. Acontece que seu pai e alguns pajés Tukano acharam que a menina podia ser curada pelas rezas tradicionais e por ervas medicinais da cultural tukano. Aconteceu um impasse entre a cultura tradicional indígena e a cultura ocidental científica. O hospital a princípio se recusava a aceitar a presença de pajés nas dependências internas de tratamento intensivo. Os pais apelaram para o Ministério Público Federal, que entrou com uma ação contra o hospital favorecendo a decisão dos Tukano. Com isso a menina foi retirada do hospital e levada para uma casa de saúde indígena, em Manaus, onde continuou a ser tratada pelos pajés Tukano. Daí um médico do Hospital Universitário trouxe uma nova solução. Contatou o pai da menina e os pajés e propôs que ambos tratassem a menina, sem amputar seu pé. Para isso os pajés exigiram que as enfermeiras que fossem atender à menina seguissem uma série de regras de resguardo, como bem, não estivessem menstruadas nem fizessem sexo 24 horas antes de estarem em antendimento. Pois bem, parece que tudo foi acertado e a menina está sendo atendida assim e -- milagrosamente, ou cientificamente, ou etnicamente -- está melhorando!

Agora, perguntemo-nos: onde no mundo isso poderia acontecer senão no Brasil?

O encontro conceitual e emocional entre as duas culturas polares foi mediado pelo pajé e pelo médico e auxiliado pela procuradora. O diálogo foi possível graças ao respeito mútuo.

A cultura brasileira e a cultura indígena tukano estão de parabéns por seus representantes respectivos que souberam encontrar um modo auspicioso de diálogo e entendimento.

Vamos torcer para que a menina se recupere completamente e que uma lição seja tirada desse episódio extemporâneo, e que, por suas virtudes, creio que virá a ser repetido, com as devidas cautelas, muitas e muitas vezes no futuro.

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Juntos, médicos e pajé evitam amputação

Índios dividem com médicos o tratamento de uma menina num hospital do Amazonas internada depois de ter sido picada por uma jararaca

Revista ÉPOCA, por Mariana Sanches

Todos os dias, às 9 da manhã, um pajé da etnia tucano cruza os corredores do Hospital Universitário Getúlio Vargas, em Manaus, e entra em uma das enfermarias. Ali, faz um ritual com rezas e ervas selvagens em torno da índia L., de 12 anos, debilitada por causa da picada de uma cobra jararaca em seu pé direito. Quando o pajé sai do quarto, as enfermeiras retornam com seus curativos, analgésicos, anti-inflamatórios e o soro antiofídico. Mas não qualquer enfermeira. Por exigência dos tucanos, só têm contato com a índia as mulheres que não estão grávidas, que não tenham mantido relações sexuais nas últimas 24 horas e que estejam fora do período menstrual.

A mistura da medicina ocidental com as tradições indígenas no tratamento de L. é resultado de mais de um mês de negociações entre médicos e índios. Até a Procuradoria da República no Amazonas se envolveu na discussão. A história começou no início de janeiro, quando L. foi atacada pela cobra na região do Alto Rio Negro, na fronteira com a Colômbia. No local não há luz elétrica nem posto médico. A cidade mais próxima, São Gabriel da Cachoeira, fica a 14 horas de lancha. Os pais de L. enfrentaram a viagem. “Eu queria que ela recebesse o soro e depois fosse tratada em casa mesmo, como já fizemos com outras pessoas na tribo”, diz o pai, José Barreto. “Mas os médicos se desesperaram e quiseram mandá-la ao hospital em Manaus.” Era o início da confusão.

Internada no Pronto-Socorro Infantil João Lúcio, L. sofreu cirurgias para retirar os tecidos necrosados pelo veneno da jararaca. “Começaram a tirar pedaços dela, não explicaram nada e disseram que seria preciso amputar a perna”, diz o pai. “Eu pedia que deixassem o pajé entrar e fazer os rituais, mas não deixavam.” A direção do hospital diz que o uso de ervas poderia piorar o quadro de L. e que rituais naquela ala hospitalar seriam inviáveis. “A menina estava internada ao lado de uma UTI com 150 pessoas”, diz Joaquim Alves, diretor do hospital. “Como eu poderia permitir que eles fizessem rituais e perturbassem o silêncio recomendado nas UTIs?”

Os tucanos recorreram à Procuradoria da República. “Eu entendi o apelo do pai da criança. Se tivesse um filho com recomendação de amputação, gostaria de consultar outros médicos. Eles queriam consultar os seus sábios”, diz a procuradora Luciana Gadelha. O pai tirou L. do Pronto-Socorro João Lúcio e a levou para uma casa de saúde indígena, onde ela só recebia os cuidados dos pajés. Ficou nessa situação até que o diretor do Hospital Universitário Getúlio Vargas, Raymisson Monteiro, propôs um acordo inusitado: aliar o tratamento indígena ao tratamento médico convencional. As enfermeiras aceitaram se submeter às restrições. Os índios ganharam tempo e espaço para os rituais e seus chás de ervas, mas abriram mão de colocar unguentos sobre os ferimentos. Em três dias de tratamento simultâneo, L. deixou de ter febre. A pele cresceu e cobriu os ossos do pé, antes expostos pela ferida. A amputação foi descartada.

A história de L. deixou o médico Joaquim Alves intrigado. “Sinceramente, não sei o que fazer se, como cirurgião, digo que um pé precisa ser amputado para evitar infecção generalizada e o pajé me diz que pode curá-lo com unguento. É fato que a menina está melhorando, mas como saber se isso é efeito dos rituais ou mera coincidência?” Entre as possíveis explicações para a melhora, uma é que algum dos remédios – os da milenar farmacopeia indígena, os da avançada medicina ocidental, ou ambos – tenha surtido efeito. Outra é que a crença nos feitiços compartilhada pela comunidade seja capaz de provocar mudanças benéficas no organismo do doente. De qualquer forma, o caso de L. é um exemplo de como a cooperação entre dois tipos de medicina pode funcionar.

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