domingo, 11 de maio de 2008
Dia das Mães: Pausa para pensar a Questão Indígena Brasileira
Sob essa linda foto do Lago Caracaranã, localizado na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, vamos fazer uma brevíssima reflexão sobre a situação dos povos indígenas no Brasil e seu relacionamento com a sociedade brasileira nessas últimas três ou quatro semanas.
Naturalmente toda e qualquer reflexão atual parte do momento da suspensão da extrusão dos arrozeiros da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, ato provocado por decisão do STF por influência do ministro Carlos Ayres Britto. O impacto dessa decisão, que desfez o planejamento de quase um ano e o investimento de alguns milhões de reais, provocou a grande celeuma que vem se tornando a homologação da Raposa Serra do Sol. Não poderia ter sido ato mais desastrado para o indigenismo brasileiro.
Pequeno histórico
Quando o presidente Lula homologou essa terra indígena em 15 de abril de 2005, quando eram ministro da Justiça Dr. Márcio Thomaz Bastos e presidente da Funai o antropólogo que aqui escreve, parecia que o indigenismo brasileiro tinha vencido sua maior batalha. Em artigo publicado na Folha de São Paulo chamei esse ato de "coroamento do indigenismo brasileiro". O reconhecimento dessa terra indígena significava não somente o cumprimento de um dever de estado, como já vinha fazendo com tantas terras indígenas, mas, de um modo muito especial, a redenção dos povos indígenas de Roraima que, desde meados da década de 1970, com a ajuda da Igreja Católica, especialmente da Missão Consolata e do bispo Aldo Moggiani, vinham se levantando diante do domínio medieval que predominava em Roraima. Este era um dos argumentos que eu usava internamente no governo em favor dessa homologação: que o Estado brasileiro estava trazendo para a região o modo de civilização moderna que já existia em outras regiões brasileiras, mas que faltava em Roraima.
Novos imigrantes
A chegada de novos imigrantes, com modos de atual diferentes não amenizou o relacionamento interétnico, nem a empáfia medieval da elite tradicional, Ao contrário, as mazelas desse relacionamento se exacerbara pela agressividade capitalista e pela brutalidade social.
Apesar de forçados por lei a deixarem a terra indígena, os novos imigrantes se recusaram a abrir mão de seu poder adquirido no vácuo do declínio do poder da elite tradicional. Conseguiram o apoio desta velha elite, em geral políticos com tenência de terras tradicionais, dos novos imigrantes que dependem do estado burocrático e, desafortunadamente, do Exército brasileiro. Aí, sob a liderança de um deles, o gaúcho Paulo César Quartiero, partiram para a desobediência civil. Descumpriram a lei, o decreto presidencial e todos os acordos feitos com a Funai, com o Incra, com o Ibama, com a Polícia Federal e com a justiça federal, no processo de retirada voluntária. O governo, por sua vez, inerme, apostava no desgaste dessa resistência e fazia vistas grossas para o desacato escrachado e abusado da resistência dos arrozeiros.
O arrozeiros resistiram, protestaram, ousaram e com tamanho destemor lançaram sua questão para o plano nacional. Foram ouvidos.
O Exército
Em seguida, vinda do âmago mais profundo da grande frustração por que passam as Forças Armadas brasileiras, destituídas de qualquer função social e política relevante para a Nação, reverbera a voz do chefe do Comando Militar da Amazônia, o general Augusto Heleno Ribeiro, com toda uma lógica de reclamações institucionais e com um discurso bem composto de cautelas e medos pela soberania brasileira. Ainda sem terem "engolido" a demarcação da Terra Indígena Yanomami (9.600.000 hectares), realizada no governo Collor, quando era ministro da Justiça um militar, o ex-coronel Jarbas Passarinho, enfraquecidos em seus postos de fronteira, os militares fazem ressonar o grito dos arrozeiros como se fora um brado patriótico, transformado em questão nacional, apontam suas frustrações para a questão indígena, para a homologação de uma terra indígena que é um quinto da T.I. Yanomami, e miram seus fuzis contra os povos indígenas de Roraima, levantando suspeitas de antipatriotismo e de possível lesa-pátria. Esse reclamo retumbante ecoa na população brasileira de um modo tal que muitos passam a pensar como diz o general, isto é, que os povos indígenas podem ser um perigo para a soberania nacional, podem até trair o sentimento da nacionalidade brasileira.
O pior de tudo, o mais inacreditável, o mais desrespeitoso ao governo Lula, ocorreu precisamente nesta sexta-feira (9/05) quando o general que comanda o Batalhão de Boa Vista recebeu e apoiou uma comitiva de arrozeiros em seu quartel general, abertamente defendendo sua presença na terra indígena. O general Heleno Ribeiro restringira sua fala à defesa da soberania nacional e ao perigo de terras indígenas sem proteção federal, algo que o ministro da Defesa, Nelson Jobim, e o ministro da Justiça, Tarso Genro, estão empenhados em corrigir elaborando um decreto presidencial favorecendo a presença mais ostensiva de militares em nossas fronteiras indígenas.
Índios emparedados
Por sua vez, os povos indígenas por todos os quadrantes brasileiros se sentiram emparedados por tanta força oposicionista. Há muitos anos não sentiam tanta crítica vinda de tanta gente importante, da mídia televisa e impressa que, descaradamente, sutilmente ou com outras intenções, levantava as mesmas suspeitas do general.
A defesa
Botar os pratos a limpo, esclarecer a opinião pública sobre a verdade dos fatos, sobre a importância dos povos indígenas para o Brasil moderno, tem sido uma tarefa difícil para os antropólogos, indigenistas e profissionais do indigenismo brasileiro. Isto porque os elementos de verdade estão obscurecidos pelos elementos ideológicos e mistificadores da realidade.
Ponto por ponto, diversos escritores, articulistas de jornais, advogados, membros do clero e antropólogos, inclusive este que aqui escreve, vêm tentando desmontar os argumentos falaciosos, exagerados, alarmistas, fora de prumo que tanto o general quanto os arrozeiros e seus epígonos vinham arrolando.
Ao mesmo tempo, sem perder o fio da meada, reconhecem os defensores dos índios, na fala do general, pontos importantes de verdade. A mais importante de todos, que o Estado brasileiro, em toda sua magnitude institucional, está desmontado na Amazônia, não tem forças para agir diante dos problemas existentes, sem falar nas previsões da intensificação desses problemas. Tanto o presente autor quanto, recentemente, a CNBB, reconheceram esse aspecto da fala do general Augusto Heleno Ribeiro.
Em segundo lugar, ficou mais que evidente que a ausência do Estado é inversamente proporcional à influência das Ongs que trabalham na Amazônia, que a têm como ponto de sua atuação e razão de sua existência. Quanto menos o Estado e suas instituições têm poder e agem na Amazônia e em relação aos índios, mais as Ongs têm capacidade de estar presente e de influenciar os povos indígenas. Nesse sentido elas vêm sendo o principal vetor de intermediação dos povos indígenas com a sociedade nacional mais ampla. Não somente seu discurso é mais atraente e proporciona maior arrojo e poder midiático aos índios no cenário nacional, quanto seu aporte de recursos é bem mais generoso e individualizado para as lideranças indígenas que vivem na urbe nacional. As Ongs indigenistas atraem para seu discurso sociológico as jovens lideranças. Nesse sentido e nas condições atuais, a batalha indigenista está pendendo para o lado das Ongs. Elas comandam inclusive a própria Funai.
Conflito à vista
Os índios que vivem em Roraima estão perplexos, confusos e esquentados. Acirrou-se o conflito entre os que defendem os arrozeiros, uma minoria ativa e bem fornida de apoios, e a maioria que quer a saída dos intrusos, também bem orientados e bem apoiados por muitos brasileiros e estrangeiros. E puseram-se na luta política. Podem chegar às vias de fato, o que seria um desastre ainda maior para o indigenismo brasileiro. Tanto um lado como o outro estão com suas espadas desembainhadas. Ontem e hoje estão fazendo ações que podem levar a novos confrontos.
O quê fazer
Por tudo isso, não restam dúvidas de que algo muito grande tem que ser feito no Estado brasileiro para encarar esses desafios atuais e futuros. Em outras partes do Brasil os povos indígenas estão relegados a situações caóticas, com pouquíssima ajuda e assistência. A Funai está desmontada, sem pessoal e sem élan. A Funasa que, volta e meia, é invadida e vilipendiada pelos índios descontentes, comete desatinos indigenistas sem fim, além de ser vítima de seus funcionários pró-tempore, assediada por políticos corruptos de toda sorte e origem. O ministério do Desenvolvimento Social contrata cada vez mais antropólogos e psicólogos para gerir os recursos que tem à disposição da causa indígena, e, como na Funasa, os recursos escoam pelo ralo, sem deixar marcas permanentes de melhoras ou edificação social.
Por que a situação chegou a este ponto? Aí vocês vão me permitir parar por aqui porque é hora de dedicação ao Dia das Mães, a uma tarde de futebol e ao pensar mais profundo sobre a história do indigenismo brasileiro. Uma boa leitura são os artigos que dediquei à Funai por ocasião dos seus 40 anos de existência, a começar pela última.
Bom Dia das Mães!
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