sábado, 7 de abril de 2007

Artigo no Jornal de Brasilia

Escrevi esse artigo alguns dias depois que o jornalista Washington Novaes escreveu uma de suas belas análises sobre meio ambiente e índios na qual criticava uma observação feita por mim de que os povos indígenas tinham que buscar desenvolver suas economias para garantir sua autonomia política. Sem polemizar com Washington Novaes, a quem muito respeito, tento mostrar que o desenvolvimento das economias indígenas deve ser feito endôgenamente, buscando encontrar as vocações econômicas possíveis para que não haja maiores transtornos em suas sociedades. Ao longo do meu período na presidência da Funai essa idéia só se confirmou e aos poucos até os críticos mais levianos também terminaram chegando à mesma conclusão que a minha.


Pela autonomia cultural e econômica dos povos indígenas

Mércio Pereira Gomes
Antropólogo e presidente da Funai

A imprensa especializada, ao longo das últimas décadas, tem prestado relevantes serviços à causa indígena, ao informar e esclarecer a opinião pública acerca dos vários aspectos da complexa questão indígena, sobretudo sobre os graves problemas acarretados pelo processo de interação interétnica.

Reportagens, artigos e ensaios trazem à luz, para a melhor compreensão do grande público, informações e análise de grande valia sobre as 218 étnicas do país. Graças aos esforços da mídia, a população conhece melhor os chamados brasileiros originários, com seus dramas existenciais, suas dificuldades de subsistência e os problemas que enfrentam em virtude das profundas mudanças ocorridas nos arredores e mesmo no interior de suas terras.

Como vivem os nossos índios na atualidade? O que produzem, como produzem, para que produzem? Suas culturas se modificaram para enfrentar os desafios do relacionamento com a sociedade brasileira; alguns a ela se adaptaram, sempre com dificuldades, há mais de 200 anos, outros há pouco mais de 50 anos.

Entre as mudanças verificadas no dia-a-dia dos indígenas estão aquelas de ordem econômica, a que os antropólogos denominam economia de subsistência. Mesmo assim, eles continuam a ser índios, partilhando sentimentos coletivos, sociabilizando-se por uma ideologia de igualitarismo social e com uma visão de mundo própria, em que novas sínteses do passado com o presente estão sendo estabelecidas.

A esse propósito, nas minhas primeiras declarações, logo após assumir a presidência da Funai, referi-me à necessidade de se implementar medidas voltadas para a viabilização da auto-sustentabilidade dos povos indígenas, ressalvando enfaticamente que a condução desse processo deveria, necessariamente, contemplar também a preservação e a promoção do modo de funcionamento de suas respectivas economias tradicionais, ou seja, produzir excedentes sem criar desigualdades nem desarticular seus sistemas de valores e crenças.

Receio que os propósitos por mim enunciados tenham sido mal interpretados por um ou outro analista, pois nos foi atribuída a intenção de introduzir mudanças radicais nas economias dos índios, que os levariam a deixar de ser índios.

Obviamente, enquanto antropólogo, enquanto homem público e cidadão consciente da importância capital dessas culturas tradicionais, enquanto referências da própria identidade nacional, não seríamos nós que iríamos intentar contra a integridade delas.
Ao contrário, entendemos que a autonomia econômica significa compatibilizar sua produção com as demandas de suas culturas respectivas. Essas demandas não são mais exclusivamente aquelas ditadas por suas culturas tradicionais e sim, aquelas decorrentes do seu relacionamento com a sociedade abrangente.

Não é precisamente isso o que está ocorrendo com todas as sociedades indígenas, exceto com aquelas que se mantêm fora do relacionamento interétnico? Não produzem os índios do alto Xingu artesanato para venda? Por acaso, várias etnias não comercializam os direitos de uso de suas imagens para a produção de filmes e até anúncios publicitários?

Seria ocioso mencionar a variedade de produtos que quase todos os povos indígenas levam ao mercado brasileiro. Do artesanato a produtos agrícolas, de extrativos silvestres a gado – e -- por que não mencionar? -- da mão-de-obra agrícola ao serviço público. Parte dessas atividades é apropriada individualmente, mas uma boa porção dela é consumida coletivamente. Hoje em dia, os parcos benefícios da aposentadoria compõem grande parte da renda coletiva em muitas sociedades indígenas.

Todos que trabalham com povos indígenas sabem disso e sabem, também, que a política indigenista brasileira não está mais sob a responsabilidade exclusiva da Funai. A educação indígena está no MEC; a saúde está com a Funasa; o desenvolvimento etnoecológico com o Ministério do Meio Ambiente, e a defesa de seus direitos constitucionais é compartilhada com o Ministério Público. Estados e municípios atuam diretamente junto aos povos indígenas em vários setores, especialmente na educação, por meio do Fundef, e em relacionamentos clientelistas tradicionais. Muitos povos indígenas são assistidos por igrejas – católicas e evangélicas – e por Ongs, com ou sem auxílio de recursos externos. Em muitos casos a Funai pouco intervém.

O processo de relacionamento interétnico no Brasil ficou por demais complexo e diversificado. É provável que menos de 30% das funções de uma política indigenista estejam sob a égide da Funai. Cada órgão estatal faz sua própria política indigenista, cada Ong e cada confissão religiosa, atua com seus próprios métodos, com a aceitação parcial ou total dos povos indígenas. Entretanto, quando falha qualquer um desses responsáveis diretos pelas demais 70% das funções indigenistas existentes, o ônus recai, injusta e pesadamente, sobre a Funai.

Dar-se conta disso é essencial para que a opinião pública entenda o que se passa verdadeiramente no relacionamento interétnico brasileiro.

Longe de nós qualquer pretensão de conduzir o enfoque da Imprensa para esta ou aquela direção. Mas nos reservamos a prerrogativa de recomendar, por dever de ofício, que esse aspecto da complexa questão indígena seja mostrado claramente, dissolvendo assim as ilusões passadas.

O Estado brasileiro não quer transformar o índio em não-índio; quer que ele seja autônomo cultural e politicamente e que angarie o respeito próprio de sua participação no sentimento da nacionalidade brasileira. Como obter essa autonomia, sem também ser autônomo economicamente, é uma impossibilidade sociológica e política reconhecida desde os gregos antigos.

O desafio está lançado para o Brasil. É um desafio específico para os antropólogos brasileiros e do mundo inteiro: como compatibilizar uma economia igualitária diante do desafio da modernidade?

A política indigenista do Governo Lula encara esse desafio de frente, mesmo sabendo de suas dificuldades, e conclama a todos os de boa vontade a se unirem nesse esforço intelectual e político de grande importância para a continuidade da diversidade étnica e cultural em nosso país.

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