segunda-feira, 1 de setembro de 2008

A Luta pela Raposa Serra do Sol continua. Parte II

Os jornais nacionais estão entrando de cabeça na campanha anti-indígena que vem sendo promovida neste último ano e especialmente desde o período em que o governo federal lançou uma desastrada ofensiva para retirar os arrozeiros da T.I: Raposa Serra do Sol e não obteve êxito, e a Funai criou com extremado alarde cinco grupos de trabalho para definir 36 novas terras indígenas em Mato Grosso do Sul. Isto sem falar nas portarias intempestivas de demarcação de terras indígenas em Santa Catarina, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso assinadas pelo ministro Tarso Genro logo que entrou no ministério. Nenhuma de suas portarias prosperou; ao contrário, provocaram o início desse movimento anti-indígena, que começou pela resistência de pequenos agricultores e políticos de Santa Catarina e em seguida por grandes fazendeiros, políticos e os governadores dos dois outros estados. Juntando-se a Roraima a campanha tomou ares de movimento nacional.

A simpatia expressa pelo povo brasileiro aos povos indígenas se encontra em seu nadir, seu ponto mais baixo, desde o período de Juscelino Kubitschek. Nunca houve tantas celeumas que atribuíssem aos índios a culpa original e que os levassem ao desgaste que sofrem atualmente.

O recente voto do ministro Ayres Britto, voto que demonstrou muita sensibilidade à causa indígena, quase que pronunciado por um antropólogo apaixonado, repercutiu negativamente não somente nos meios econômicos interessados (fazendeiros e políticos a eles ligados), mas igualmente na opinião pública refletida em cartas dos leitores e em artigos curtos que alguns jornais incentivam os leitores, como O Globo. Os grandes jornais escreveram editoriais contrários de um modo acintoso.

O mote encontrado pelos fazendeiros e interessados é que a defesa dos povos indígenas e a própria ação da Funai estão ameaçando a Constituição brasileira e a sociedade rural com a virtual cassação do direito à "propriedade"!

Pode ser que esse mote não pegue no sentimento da população brasileira em geral, que ainda guarda muito respeito pelos índios, mas é mote forte para inflamar a elite brasileira e uma classe média rancorosa que acha que os índios são privilegiados nesse país. Aliás, o discurso do "privilegiado" ecoa por todos os cantos.

Neste sábado, O Estado de São Paulo trouxe uma matéria em que o ministro Ayres Britto se defende da insinuação sugerida em matéria anterior onde anônimos quatro ministros do STF teriam julgado o voto do ministro "romântico" e "superficial". Ayres Britto se defende, o que não era necessário, se ele tivesse convicção filosófica sobre o que pronunciara, afirmando que grandes juristas teriam dado apoio ao seu voto.

A campanha anti-indígena está clara. O jornal conservador paulista quer deixar no ar um sentimento de dúvida e de censura sobre esse voto.

A mesma matéria anuncia uma campanha que a CNA -- Conselho Nacional de Agricultura -- vai fazer contra a Funai e os índios alegando que o direito à propriedade está sendo ameaçado. Vai ser campanha nacional, com dinheiro e com marqueteiros criando motes e bordões contra os índios, sempre ressalvando que eles são a favor dos direitos dos índios e que querem o seu desenvolvimento.

Mas não é só o Estadão que está danado. A Folha de São Paulo lançou um editorial em que condena a assinatura do Brasil da Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas, incriminando o Itamaraty por esse ato diplomático. Esse distinto jornal sabe muito que a Declaração não é vinculante, não constitui tratado, nem convênio, e nem vai passar pelo Congresso Nacional para ser votado com força de lei, como o foi a Convenção 169 da OIT. É tão somente um gesto de boas intenções do Estado brasileiro no qual foi acompanhado por outros 143 países, alguns com disputas indígenas muito mais perigosas para suas integridades, tais como a China, Índia e Indonésia. Quatro países teriam votado contra, entre esses a Austrália, não por ser necessariamente contra, mas por ter um governo conservador naquele momento. Logo depois, votado um gabinete progressista, logo se dispôs a se redimir e pedir perdão aos Aborígenes Australianos pelo que a nação fez contra eles. Já os Estados Unidos não votam nem declaração contra pedofilia! O Canadá, no período de discussão da dita Declaração, período que ocorreu durante 11 anos, dos quais eu pessoalmente participei nos últimos quatro anos (2003-2007), sempre cumpriu um papel de mediação entre os povos indígenas e os demais países, e teria votado favoravelmente não fosse pela eleição de um gabinete conservador há dois meses da votação final do projeto de Declaração e do envio à Assembléia Geral da ONU.

O editorial da Folha de São Paulo bate na tecla, já batida pelo diplomata aposentado Rubens Barbosa, de que consta nessa Declaração o artigo (3º) que dá aos povos indígenas o direito à auto-determinação e com isso o direito a definir seu estatuto político, como se isso levasse diretamente ao direito de declarar-se independente. Nesse sentido, seria bom os redatores da Folha lerem o livro do Relator da ONU para Direitos Indígenas, S. James Anaya, que recém esteve no Brasil, onde ele, como jurista, demonstra que o conceito de auto-determinação deixou de restringir-se ao sentido dado pela ONU que serviu de base à libertação das colônias africanas, e passou a significar o direito de um povo de ter controle sobre sua cultura e seus costumes e de se posicionar diante do mundo com autonomia, sem intervenção de outros povos. O editorial também critica o Brasil por acatar a terminologia "povo indígena", algo que não consta na nossa Constituição. Também aí houve uma mudança de sentido sobre o termo povo, bem como sobre o sentido de unicidade da relação entre povo e nação. Ainda por cima, um dos últimos artigos da dita Declaração explicita que nenhum artigo pode ser usado com o fito de provocar desmembramento territorial ou desafio à soberania do país onde os povos indígenas concernentes estão abrigados. Por tudo isso, custa crer que a Folha ignore esses caveats e tenha sido simplesmente ingênua em seu editorial.

A guerra de Raposa Serra do Sol virou guerra santa. Extrapolou os limites locais, que é uma disputa entre os povos indígenas que nela habitam e um punhado de arrozeiros ousados que desafiam inclusive a legalidade do estado brasileiro. Não tem nada a ver com a questão de propriedade privada, algo que até se poderia dizer da questão que se desenrola no Mato Grosso do Sul.

Nesse sentido apelo mais uma vez para a capacidade do STF de fazer Política com P maiúsculo em relação a essa questão, conforme está na postagem que fiz na sexta-feira passada.


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Ayres Britto rebate críticas e diz ter apoio de juristas

O Estado de São Paulo, por Felipe Recondo e Mariângela Gallucci, de Brasília

O relator da ação que contesta a demarcação da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol (RR) no Supremo Tribunal Federal (STF), Carlos Ayres Britto, rebateu ontem as críticas feitas reservadamente por colegas ao seu voto, lido na sessão de quarta-feira do STF.

Ministros afirmaram que Ayres Britto tratou determinadas questões de forma superficial e um deles classificou seu voto de "romântico". "Se algum ministro tachou o meu voto de superficial é porque o leu superficialmente", respondeu Britto.

E acrescentou que, ao contrário dessas avaliações, recebeu o apoio de juristas renomados. "Não é como pensam Paulo Brossard, Celso Antônio Bandeira de Mello, Dalmo Dallari, Weida Zancaner, Samuel Rodrigues Barbosa, Marcelo Leite, entre outros", afirmou.

Britto votou por manter a demarcação contínua da terra indígena, exatamente nos moldes determinados pelo governo, e defendeu a retirada imediata dos arrozeiros.

Logo depois do voto, o ministro Carlos Alberto Menezes Direito pediu vista do processo. Ainda não há data definida para a retomada do julgamento.

Porém, ao menos quatro ministros ouvidos pelo Estado revelaram que pretendem fazer ressalvas à demarcação. A preocupação principal é com a soberania nacional. Esses ministros dizem que podem propor a redução da área destinada à reserva para deixar livres para as Forças Armadas as faixas de fronteira do Brasil com a Venezuela e a Guiana. A demarcação permaneceria da forma contínua. Um dos ministros chegou a propor que esse recuo seja de 150 km, como previsto no Artigo 20 da Constituição.

Eles argumentam que a reserva na fronteira com a Venezuela e a Guiana podem atrapalhar o trabalho das Forças Armadas e colocar em risco a segurança da região.

Além disso, reforçam o argumento, citando a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, da Organização das Nações Unidas (ONU), assinada pela Brasil. Por esse documento, os índios podem decidir sua condição política, têm liberdade para estabelecer relações com povos do outro lado da fronteira e dispõem de autonomia para decidir assuntos internos.

Apesar desse receio, o ministro da Defesa, Nelson Jobim, já declarou que a presença de índios na região não comprometeria o trabalho das Forças Armadas.

CONTRA-ATAQUE

Os detalhes da mobilização que a Confederação Nacional da Agricultura (CNA) organiza para contra-atacar o voto de Ayres Britto serão definidos em reunião marcada para o dia 16, na sede da entidade, em Brasília.

O presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários e Indígenas da CNA, Leôncio de Souza Brito Filho, adiantou que a entidade realizará ampla campanha de mídia para conscientizar o brasileiro sobre a "insegurança jurídica" que afeta o crescimento do setor produtivo.

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