sexta-feira, 18 de julho de 2008

O Índio na História: Cap.8 - O Tempo do Serviço de Proteção aos índios

Capítulo VIII
O Tempo do Serviço de Proteção aos índios


O século XX alvoreceu com a Rebelião do Alto Alegre, que foi o acontecimento mais abrupto e violento, e ao mesmo tempo mais significativo, da história recente dos Tenetehara. De certa forma essa rebelião pode ser vista como uma reação tardia ao devastador ataque que os Tenetehara sofreram no início do século XVII pelas tropas de Bento Maciel Parente, o qual submeteu esse povo ao domínio colonial. A explosão de violência e a resistência guerreira que caracterizaram essa rebelião alavancou os Tenetehara a uma posição menos submissa e mais respeitosa na convivência com a sociedade regional e com as autoridades públicas.

Ainda assim, no passar dos anos, essa convivência continuou a se realizar nos moldes da relação de patronagem. Os brasileiros regionais e as autoridades públicas não abriram mão de sua superioridade social em relação aos Tenetehara, tratando-os como seres inferiores, portadores de uma cultura indigente, sem compreensão maior da vida social brasileira, capazes apenas de agüentar a dureza de uma vida nas matas, indolentes, sem previdência e, ao mesmo tempo, ingratos, temperamentais, infantis, inconfiáveis, dados a arroubos de violência e traição. Por sua vez, os Tenetehara viam os civilizados como usurpadores de sua condição original, de suas terras e de suas mulheres, inconfiáveis, violentos, maltratantes, enganadores, aproveitadores, odientos, mas, ao mesmo tempo, gente de poder e riqueza de quem se precisa para viver uma vida que não era mais como a de seus antepassados. É nessas condições e sentimentos que se realiza a patronagem interétnica no Maranhão, e que dá o tom através do qual a sociedade tenetehara vai afinando suas expectativas culturais, reagindo e se adaptando às mudanças que vão ocorrendo ao seu redor.

A proximidade e a intensidade do relacionamento interétnico vão aumentando dia-a-dia em função do crescimento das populações respectivas de índios e civilizados, bem como da atuação, ou ausência, do novo órgão indigenista. A continuada queda populacional, depois a virada para o sustentado crescimento demográfico, o processo arrastado porém tenso da demarcação de terras e a participação social e política mais ampla dos próprios Tenetehara serão novos fatores que irão pôr em questão os hábitos e expectativas mútuas instaurados desde o século anterior. Ao final, pela década de 1980, a patronagem já não dá mais conta de suportar as novas exigências da convivência interétnica e entra em crise. Este capítulo vai analisar o desenrolar das primeiras sete décadas do século XX, ou mais precisamente da fundação (1910) ao final da atuação (1967) do Serviço de Proteção aos índios (SPI) sobre os Tenetehara.

A criação do Serviço de Proteção aos Índios - SPI

O Serviço de Proteção aos índios foi instituído pelo Decreto 8.072 de 20 de julho de 1910 e inaugurado simbolicamente a 7 de setembro. Há alguns anos o índio vinha sendo objeto de um renovado interesse nas grandes cidades brasileiras (lembrando o interesse despertado nas décadas de 1840 e 1850), como parte até de uma busca de identidade republicana, nacionalista, e era discutido em vários setores intelectuais, especialmente na Igreja do Apostolado Positivista Brasileiro, e por extensão entre os positivistas em geral, no Museu Nacional, ambos no Rio de Janeiro, e no Centro de Ciências, Letras e Artes, de Campinas, São Paulo. O assunto suscitava igualmente interesse político e de âmbito nacional, não estando restrito aos estados amazônidas, pois havia índios autônomos até em São Paulo e Minas Gerais. Em 1907 um cientista social, que havia passado algum tempo entre os imigrantes alemães do sul do Brasil, acusou o governo brasileiro de fazer vistas grossas diante dos massacres que “bugreiros”, a mando desses imigrantes, estavam perpetrando contra índios Coroados (Kaingang) que viviam autonomamente no Paraná e Santa Catarina. Nesse mesmo ano o cientista teutônico, diretor do Museu Paulista, Hermann von Ihering, publicou um artigo em que considerava impossível compatibilizar o progresso com a presença de índios no estado de São Paulo, e por extensão em todo o Brasil. Por sua vez, a construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, que atravessava São Paulo em direção ao Mato Grosso, esbarrava com a resistência de bandos autônomos de índios Kaingang, resultando em algumas mortes e ferimentos de trabalhadores e na contratação de matadores de índios. Semelhantes notícias de ataques a índios vinham de outros quadrantes, como do vale do Paranapanema, no oeste paulista, ao longo do rio Doce, de Minas Gerais ao Espírito Santo, e no sul da Bahia. O escândalo assomava de grandes proporções, e em decorrência formou-se um movimento na imprensa para pressionar o governo Nilo Peçanha para resolver esses problemas. Como havia também um movimento para que o governo tomasse providências em relação à multidão de lavradores sem terra, negros e mestiços que perambulavam pelas cidades, em oposição a imigrantes estrangeiros que já recebiam atenção oficial, o governo achou por bem juntar os dois problemas, e assim criou o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN) . Entretanto, logo ficou evidente tanto a grandeza dos encargos atribuídos ao novo órgão, quanto a incompatibilidade entre os dois setores, e, a partir de 1914, o órgão passou a cuidar exclusivamente de índios. Em 1918 a tarefa de localização de trabalhadores nacionais foi retirada formalmente e o órgão passou a ser conhecido como SPI .

Para o Estado brasileiro, republicano de pouco mais de duas décadas, o SPI iria fazer parte de sua política de ampliação de controle do território nacional e de abertura de novas terras à expansão agrícola, uma tarefa estratégica desde os tempos de Colônia e da qual o Império tinha se incumbido por meio de órgãos equivalentes. Já os fundadores e organizadores do SPI esperavam fincar bases sólidas capazes de proteger os índios dos efeitos mais deletérios do relacionamento com a sociedade brasileira e de dar-lhes condições materiais para chegarem a um patamar mais alto em suas culturas. Seus mais ardorosos defensores se irmanavam como militares e cientistas e se articulavam através da filosofia positivista, que no início do século era um dos principais marcos teóricos da discussão sobre o Brasil, tendo, além de profissionais liberais, vários políticos e governadores de estado como adeptos (Nachman 1977). Os propósitos doutrinários do SPI propugnavam que, com a proteção às pessoas e às terras indígenas, bem como através de uma dose de intervenção de ordem laboral e educacional, obviamente não religiosa, os índios eventualmente evoluiriam de seu suposto estágio de organização matriarcal e religião animista para um tipo de sociedade mais contemporânea, integrando-se efetivamente na sociedade brasileira. O índio era um ser puro, não contaminado pelos vícios da civilização, e, ao transcender seus limites culturais poderia vir a ser um exemplo para a sociedade brasileira, especialmente as camadas mais pobres. Um índio melhorado faria o Brasil melhor, eis o que mais profundamente inspirava os positivistas, que, naquela quadra exerciam bastante influência em meios militares e em segmentos da classe média educada. Os mais ortodoxos deles se arregimentavam em torno da Igreja do Apostolado Positivista, enquanto os simpatizantes se espalhavam em revistas e jornais, como professores, militares, engenheiros e outros profissionais liberais, ao todo movimentando muitas associações pelo país afora (Lins 1967; Nachman 1977).

Um membro militar desse movimento, que já despontara por sua liderança e seu trabalho frente à equipe nacional de implantação de linhas telegráficas pelo interior do país, era o então coronel Cândido Mariano da Silva Rondon. Quando o governo considerou a oportunidade de criar um órgão para tratar da questão indígena não havia dúvidas de que Rondon seria o seu chefe. Durante sua vida e após sua morte, Rondon tornou-se chefe inconteste do SPI, um herói nacional, um “pai” para os índios, com um prestígio e admiração nacionais sem paralelo. Além de ser patrono da Engenharia do Exército, seu nome foi dado a um dos estados amazônidas, Rondônia.

A história da criação do SPI já foi contada por alguns de seus protagonistas, como o próprio Rondon (1937), Horta Barbosa (1923), Bandeira (1919), Brazil (1937), Oliveira (1947), Souza (1955), Vasconcellos (1939, 1941) e outros estudiosos, como Stauffer (1959-1960) e Lima (1992), e seu desempenho até a década de 1960 foi avaliado positivamente por Ribeiro (1962). Em outro estudo (Gomes 1991) fiz uma breve análise sobre o SPI e a atuação da FUNAI, que o sucedeu em fins de 1967, em pleno regime militar, até os dias de hoje. Em breve avaliação pode-se dizer que Rondon e seus companheiros tinham a convicção de que os índios brasileiros eram parte integrante e original da nação brasileira, a qual tinha sido em toda a sua história extremamente cruel e injusta para com eles. Havia assim um elemento de expiação de culpa que a nação devia assumir. Os próceres do SPI se inspiravam num célebre texto escrito por José Bonifácio em 1823, no qual os índios, apesar de serem vistos como gente indolente e sem cultura, deviam ser integrados à nação através do ensinamento, do exemplo e da persuasão, nunca por violência e sim por métodos brandos (Bonifácio 1998). Rondon, como positivista, acreditava que o Estado brasileiro devia assumir, como representante de toda a nação, a tarefa de redimir os índios e dar-lhes melhores condições de vida e de respeitabilidade. Nesse sentido, os inimigos dos índios, que eram muitos, seriam ipso facto inimigos da nação.

A atuação do SPI, junto com a FUNAI, tornou-se, na realidade, o principal fator de influência sobre o relacionamento interétnico em todo o Brasil até o final do século XX. Isto não significa que esses órgãos indigenistas tenham sido capazes de intermediar como se propunham o contato direto entre índios e brasileiros, o qual desde o início permaneceu nos moldes da relação patronalista, nem que seu poder oficial tenha sido satisfatoriamente acatado pelos brasileiros em suas relações com os índios, muito menos resguardado pelos próprios índios. Ainda assim, a presença federal desses órgãos tornou-se um obstáculo à natureza espoliativa da sociedade de fronteira brasileira e proveu os índios de meios oficiais com os quais puderam reagir a injunções políticas e econômicas regionais e à sorrateira cultura de esbulho dos brasileiros com os quais mantêm contato.

Desde então tanto os brasileiros como os Tenetehara têm consciência da presença de um órgão indigenista do Estado e de seu poder de intervenção. Nos primeiros anos esse poder parecia muito com o poder dos diretores parciais do tempo do Império, mas aos poucos foi sendo imposto um novo estilo de defesa dos índios, mais aguerrido, mais ideológico, portanto mais convicto, e com respaldo federal. É certo que, nem o SPI nem a FUNAI foram capazes de elevar os índios à condição de cidadãos plenos, com direitos específicos, ou, no caso dos Tenetehara, de equipará-los em direitos e respeitabilidade aos demais brasileiros, e isso por vários fatores. Primeiro, seus planos de ação têm sido invariavelmente inconsistentes, tanto na sua formulação programática quanto na sua prática. Freqüentemente são realizados com base em expectativas irreais ou falsas sobre o comportamento dos índios. Segundo, seus funcionários têm sido quase sempre despreparados para essa difícil tarefa de mediação, com interesses pessoais e culturais próprios, havendo, até a década de 1980, muito pouca participação dos próprios índios. Terceiro, são órgãos do governo brasileiro e portanto seguem os ditames de sua política do momento, a qual leva muito pouco em consideração os interesses dos índios. Quarto, muitos dos administradores brasileiros dos programas do órgão indigenista, os inspetores, delegados e encarregados dos escritórios regionais e os chefes de postos indígenas, têm sido incompetentes e não raro levianos e corruptos. E quinto, a forma de relacionamento imposto pelo SPI e seguido pela FUNAI trata os índios como homens relativamente capazes, cujas demandas são freqüentemente vistas como infantis e sem sentido, e cujo modo de ser precisa ser modificado para que haja progresso e sua culturas se alinhem com a cultura brasileira envolvente. Entretanto, a afirmação da responsabilidade do Estado brasileiro para com os povos indígenas, através de uma política indigenista e de um órgão gestor, e a consolidação da aceitação do índio no panorama nacional são legados da atuação do SPI e dos companheiros de Rondon.

O SPI administrou a questão indígena a partir de leis e regulamentos que só foram ganhar respaldo constitucional a partir da Constituição de 1934. O primeiro regulamento interno do SPI consta no próprio ato de sua criação e diz respeito à filosofia geral do órgão, ao modo geral de instalação de inspetorias regionais, visita às áreas indígenas, edificação dos postos indígenas e modo de tratar com os índios. Em 1911 ele foi confirmado pelo Decreto n.º 9.214, que mais amplamente traçou as bases da política indigenista que haveria de permanecer, com modificações posteriores, até o fim do SPI. O Código Civil de 1916, apesar das objeções feitas pelo grande jurista Clóvis Bevilácqua (Ribeiro 1962: 115), exonerou o índio da condição de órfão e da tutela dos juizados respectivos, mas o consignou como pessoa de capacidade civil restrita, equiparado aos menores de 21 anos, aos pródigos e às mulheres casadas. O SPI foi instituído dentro do Ministério da Agricultura e lá ficou até 1931, quando passou para o Ministério da Indústria e do Trabalho até 1933, sendo daí rebaixado como um simples setor do departamento de fronteiras do Ministério do Exército, e, enfim, novamente incluído na Agricultura a partir de 1939. A direção central se localizava no Rio de Janeiro, de onde partiam as recomendações para instalação de postos, demarcação de terras, contato com povos indígenas autônomos, admissão e demissão de funcionários, etc. Desde sempre a liderança do órgão ficou com o general Rondon, que o administrava com o auxílio de companheiros militares e civis que entraram no órgão desde o princípio, como Luís Bueno Horta Barboza, José Bezerra Cavalcanti, o Capitão Manoel Rabelo, Vicente de Paula Vasconcellos, o Tenente Antonio Estigarribia, José Maria de Paula e outros. Após a primeira quinzena de anos de experiência com muitas etnias indígenas e diversas condições interétnicas, o governo federal promulgou, por recomendações do SPI, a Lei n.º 5.484 de 27 de junho de 1928, que regulou a situação jurídica dos índios, colocando-os sob a tutela do Estado, como já de fato o era. As etnias indígenas foram classificadas segundo o seu maior ou menor grau de proximidade, relacionamento e consequentemente conhecimento com a sociedade brasileira envolvente. Assim, as etnias que ainda não se encontravam em contato com a sociedade brasileira, antes conhecidos como índios selvagens, passaram a ser rotulados como grupos nômades; os que tinham contato mais permanente passaram a ser chamados de grupos aldeados ou arranchados; uma terceira modalidade seria de grupos reunidos em povoações indígenas e uma quarta em grupos incorporados a centros agrícolas. Cada categoria seria assistida diferencialmente, embora nunca foi estabelecido com precisão em que se constituíam as duas últimas categorias, já que não havia povoações indígenas diferentes dos seus aldeamentos, nem havia centros agrícolas com presença de índios desde que a localização de trabalhadores nacionais saíra da responsabilidade do SPI. De qualquer forma, essa classificação projetava o destino que se queria dar ao índio, isto é, sua incorporação na massa de brasileiros agricultores pobres.

O estatuto de capacidade civil restrita continua a se aplicar genericamente a todos os índios, independentemente do nível de aproximação e semelhança com a sociedade e cultura brasileiras, ou de outras considerações, simplesmente porque o Congresso Nacional ainda não criou um novo código civil.

No que diz respeito aos Tenetehara, passados quase 400 anos de relacionamento, a condição de menoridade relativa apresenta algumas vantagens e outras desvantagens. Sendo menores são protegidos pelo Estado em seus direitos civis e coletivos, ou étnicos, inclusive quanto à invasão de suas terras por brasileiros. Também significa que não podem ser punidos diretamente por autoridades civis ou militares por delitos civis ou crimes contra o Estado, nem mesmo por roubo ou assassinato. É claro que essas prerrogativas não são seguidas estritamente apesar de poderem ser evocadas a qualquer momento. Por outro lado, sendo menores os Tenetehara estão impedidos de estabelecer relações comerciais com outrem, a não ser pela intermediação do órgão tutor. Na prática, isso pouco funciona, mas, nos casos de exploração da mão-de-obra indígena ou esbulho de seus bens, pode ser usado para desfazer tratos verbais entre índios e seus exploradores. Por outro lado, atrapalha quando um índio deseja fazer um cadastro com agências de crédito, como um banco do estado, um relacionamento que poderia diminuir a presença do relacionamento patrão-cliente que tem funcionado como sistema de crédito entre índios e brasileiros. Além do mais, os Tenetehara não podem, em tese, votar em eleições, nem se candidatar a cargos públicos, o que poderia dar-lhes uma certa força na política dos municípios próximos às suas terras. Porém, de fato, essa desvantagem tem sido ultrapassada na prática, desde o exemplo que foi dado a toda a nação pelo líder Xavante Mário Juruna, quando se elegeu, à revelia de seu status de menor, deputado federal pelo Rio de Janeiro, em 1982. O estatuto de menor de 21 anos de idade não exclui os Tenetehara da participação no sistema de previdência social, com pensão rural para os indivíduos acima de 65 anos e assistência de saúde para todos, a qual é provida pelo Instituto Nacional da Previdência Social.

SPI em ação no Maranhão

Uma boa parte das ações indigenistas que o SPI realizou no Maranhão dizem respeito aos problemas de escolha, definição, disputas e controvérsias sobre a demarcação das terras dos índios, cujo processo será tratado em toda sua amplitude no Capítulo X. Aqui tratarei mais diretamente das questões relacionadas com a criação de postos indígenas, a ajuda econômica e a assistência à saúde, o modo de relacionamento que estabeleceu com os índios e a mediação propriamente dita entre os índios e a sociedade regional.

O SPI foi instalado como 3ª Inspetoria Regional em São Luís do Maranhão em 15 de março de 1911, no salão nobre do Palácio dos Leões, sob o beneplácito do governador Benedito Leite, pelo então Tenente Pedro Ribeiro Dantas, auxiliar direto do General Rondon. Estava presente o ex-promotor, redator do jornal “O Norte” e político de Barra do Corda, Frederico Figueira, que levantou vivas ao ministro da Agricultura Rodolfo Dantas, a Rondon, Gonçalves Dias e José Bonifácio e elogiou o sentido do SPI como órgão que iria favorecer o aproveitamento da mão-de-obra indígena para “nossas indústrias” (“O Norte”, n.º 946, 15/4/1911).

Após uma primeira avaliação in loco pelos rios Pindaré, Turiaçu e Gurupi, o inspetor Pedro Dantas determinou o estabelecimento de dois centros agrícolas, um no município de Alcântara e outro no rio Pindaré, além de dois postos indígenas de atração para os Urubu-Ka’apor, um no rio Gurupi, na boca do rio Jararaca, e o outro no rio Turiaçu, perto do povoado Palmeiras. A preocupação maior do Capitão Dantas, como de resto do SPI e da sociedade regional, era a pacificação dos Urubu-Ka’apor, que naqueles anos aterrorizava todo o oeste maranhense, especialmente os moradores e os Tembé-Tenetehara do rio Gurupi. Nesse afã, os Tembé iriam ser deixados de lado e sofreriam uma terrível queda demográfica entre 1920 a 1949, passando de 1.200 para uns 70 e poucos indivíduos, sem que os postos que serviam aos Urubu-Ka’apor e a eles próprios os assistissem devidamente.

Por volta de 1918 o inspetor Pedro Dantas já tinha um levantamento global dos índios que viviam na sua jurisdição. Provavelmente ele, ou auxiliares seus, haviam feito viagens pelos rios Pindaré, Grajaú e Mearim, pela Estrada do Sertão e pelas terras da região Grajaú-Barra do Corda. Esse levantamento dá um total de 78 aldeias indígenas existentes no Maranhão com uma população total de 4.661 índios (sendo 1.378 homens, 1.328 mulheres, 1.104 meninos e 851 meninas), sem incluir os arredios Timbira que perambulavam pelo Grajaú e Pindaré, os Guajá, cujo nomadismo já era conhecido desde o século passado, e os próprios Urubu-Ka’apor, entre os rios Gurupi, Maracaçumé e Turiaçu. Mas contém os Tenetehara que viviam no baixo Grajaú, no município de Vitória do Mearim, índios que vão ser esquecidos desde então pelas autoridades do SPI. Infelizmente não há detalhamento por etnia, o que impede uma melhor avaliação. Pelos meus cálculos a população tenetehara do Maranhão, alguns anos depois daquele levantamento, isto é, no início da década de 1920, chegava a 4.100 ou pouco mais. Assim, o levantamento de 1918 peca por omissão, pois, na minha estimativa, ao contarmos os 600 Canela de Barra do Corda, os 300 Timbira do rio Grajaú, os talvez 100 remanescentes Crenzés e Pobzés do baixo Mearim (então município de São Luís Gonzaga) e os 600 e tantos Krikati e Gaviões do cerrado grajauense, a população indígena do Maranhão deveria estar por volta de 5.700 índios. Em 1918 deviam ser uns 6.000. O referido levantamento menciona a inclusão dos índios Tembé, que deveriam ser uns 1.100 àquela época. Porém se os excluirmos do cômputo geral, a estimativa do SPI devia ser mais ou menos correta.

Nos primeiros anos da década de 1920 todo o trabalho de contato com os Urubu-Ka’apor passou para a órbita da inspetoria do Pará, e os Tembé-Tenetehara do Gurupi também passariam a ser jurisdicionados a partir de Belém até a década de 1970. Assim, deixaremos de lado os eventos e questões relacionadas com essa região, os quais foram analisados por Darcy Ribeiro em várias ocasiões. O que vai concentrar a atenção do SPI no Maranhão são as regiões do Pindaré e de Grajaú-Barra do Corda, onde respectivamente serão instalados o primeiro posto indígena e o primeiro posto de vigilância.

1. Posto Indígena Gonçalves Dias, atualmente P. I. Pindaré

O posto indígena Gonçalves Dias foi instalado na confluência do rio Caru com o Pindaré, nas proximidades de onde já houvera a missão jesuítica de São Francisco Xavier (1726-1740) e a Colônia Januária (1854-1889), como se fosse a continuação de um velho e mal interrompido relacionamento. Foi concebido também para ser um centro agrícola, como parte da política de localização de lavradores daqueles anos primeiros do SPILTN. Assim, sua instalação se deu perto de onde estava o povoado de Santa Cruz, com algumas famílias de lavradores brasileiros. Ao seu lado, ao seu dispor e para sua melhor atuação, havia uma aldeia tenetehara com algumas famílias indígenas, reencenando o modelo que vinha do século passado e que continuaria por mais alguns anos até que fosse estabelecido uma clara separação entre índios e lavradores pobres.

Existem pouquíssimas informações sobre os primeiros anos deste posto indígena, como de resto sobre este primeiro período da 3ª Inspetoria que vai até a década de 1940. Os seus arquivos foram jogados fora por um delegado da FUNAI em 1975 e um incêndio queimou grande parte dos arquivos centrais do SPI, já em Brasília, em 1966. Os poucos documentos que restaram nas inspetorias regionais foram coletados em meados da década de 1970 pelo antropólogo Carlos Moreira Neto, que criou um arquivo de documentação do que sobrou no Museu do índio, do Rio de Janeiro. Assim, do que foi possível pesquisar nesses documentos, para os anos 1914, 1918, 1929, 1930, 1933, 1934, 1941, 1942, 1943, 1948, 1949 e pela década de 1950, dos dados obtidos nos diários de campo e no livro de Wagley e Galvão, e das informações que colhemos em campo com velhos ex-funcionários, inclusive com o filho natural e mestiço do primeiro chefe do posto Gonçalves Dias, foi-nos possível traçar o quadro seguinte sobre esse primeiro posto do SPI no Maranhão.

O primeiro encarregado, como então se chamava o responsável pelo posto indígena Gonçalves Dias, foi um homem educado, de orientação positivista, chamado Luiz Riedel. Os Tenetehara velhos contam que ele era alemão, mas seu português escrito demonstra perfeito domínio. Em um único relatório conhecido, datado de 31 de dezembro de 1914 , Riedel se dirige ao inspetor Pedro Dantas para relatar a instalação e funcionamento do seu posto, bem como o relacionamento com os Tenetehara da região e sua população. Em oito páginas manuscritas, Riedel situa o posto na confluência do rio Caru com o Pindaré, enumera as atividades de construção dos edifícios do posto e feitura de roças, e arrola o número de aldeias e a população tenetehara que estão sob sua jurisdição. Ao todo estima que há cerca de 1.200 Tenetehara no vale do Pindaré, sendo 200 no alto rio Caru, 400 no alto Pindaré, na região conhecida como Sapucaia, onde havia povoado de civilizados, e 600 nas 15 aldeias da Estrada do Sertão, que ia de Santa Inês, abeirando o rio Zutiua, até a aldeia Presídio. Esses números parecem muito parcos, especialmente no caso do alto Pindaré e pelo tamanho médio das aldeias da Estrada do Sertão. Registre-se ainda que não é mencionada a presença de índios no baixo Pindaré, tais como as aldeias Ilhinha, Tarupau, ou Lagoa Comprida, cuja existência vem desde meados do século XIX e que aparecem nos documentos posteriores. Parece outrossim que Luiz Riedel não teria incluído as aldeias do rio Buriticupu. Meu próprio cálculo é de que a população desses lugares mencionados devia estar em torno de 1.700; seria de 2.000 incluindo as aldeias do Buriticupu. Em relação aos dados de 1900, quando havia cerca de 3.000 Tenetehara em toda a região, a queda populacional é da ordem de 33%. O relatório menciona também que havia até meados daquele ano uma aldeia tenetehara próximo ao posto, com 45 índios, mas que, devido a uma epidemia de malária (impaludismo), 29 deles teriam se retirado para mais distante e estabelecido nova aldeia. Apenas dezesseis índios em seis famílias permaneciam na aldeia do posto. Naquele ano de 1914 Riedel havia inaugurado uma escola, em prédio próprio, tendo matriculado 24 meninos, por certo a maioria de brasileiros do povoado ao lado. Acontece que, com a mudança dos seus pais para a nova aldeia, a freqüência havia caído para apenas cinco alunos, os quais estavam “aprendendo regularmente a cartilha da infancia, escriptas e etc”.

Algumas preocupações assinalam o teor desse relatório e indicam o sentido que o recém criado SPI pretendia imprimir em suas atividades. Em primeiro lugar estava o controle da população indígena, os Tenetehara primeiramente, depois os ainda não contatados Urubu-Ka’apor, Timbira e Guajá. Os Ka’apor tinham suas aldeias no Gurupi, a oeste, e nas cabeceiras do Turiaçu, a norte. Os Timbira constituíam na verdade dois grupos: um que tivera suas aldeias no baixo Turiaçu, os Krejé, desde meados do século anterior haviam se deslocado para o Gurupi; o outro ficava a leste, com aldeias no rio Grajaú, e, desde finais do século XIX, vinham atacando as boiadas que passavam pela Estrada do Sertão, tendo em 1890 atacado a própria Colônia Januária, lugar agora do posto Gonçalves Dias. Quanto aos Guajá, são encontrados vestígios de sua presença no caminho que Riedel mandara abrir para conectar o posto às aldeias tenetehara localizadas na Estrada do Sertão. Ele promete se esforçar para contatar os Guajá, os quais, na verdade, só irão ser contatados em 1973. As demais aldeias tenetehara são alcançadas por via fluvial. Riedel enfatiza por diversas vezes que os índios estão prestando “atenção” ao posto e vice-versa, com isso querendo dizer que os índios estão seguindo suas determinações. Mas reclama que os Tenetehara que vivem no lugar Sapucaia não dão a devida atenção ao posto em virtude da influência dos moradores brasileiros. Há, portanto, um posicionamento político claro de se ter o monopólio do relacionamento com os índios. Estava também em suas atribuições a mediação econômica, e Riedel não deixa de relatar que havia feito diversas viagens a Colônia Pimentel e à cidade de Engenho Central (depois Pindaré-mirim) para comercializar os produtos dos índios, especialmente farinha de mandioca e óleo de copaíba. Os Tenetehara do lugar Sapucaia estavam sendo “desatenciosos” para com o posto devido ao seu envolvimento econômico com os moradores locais, que lhes compravam sua produção de copaíba e fumo a preços aviltantes.

Em segundo lugar, há uma preocupação em estabelecer o posto indígena de uma boa infra-estrutura, tanto para melhor se impor no ambiente regional como representante oficial do Estado, do governo, como para ensejar o desenvolvimento econômico dos índios. A descrição da construção de edifícios para serraria, carpintaria, olaria, casa de máquinas, grandes roças e a escola ocupa boa parte do relatório. A intenção era realmente de estabelecer algo como um centro agrícola.

Em 1918, o posto Gonçalves Dias foi atacado por um grupo de guerreiros Urubu-Ka’apor, que chegaram a matar um Tenetehara e ferir alguns mais. Não há informações sobre se à época o encarregado era ainda Luiz Riedel. O certo é que, da sua estadia com os Tenetehara, Luiz Riedel deixou um filho com uma índia, Benevenuto Riedel, que nasceu numa aldeia do rio Caru por volta de 1915 ou 1916. Parece que houve um outro ataque de guerreiros Ka´apor, e, com o colapso do preço da borracha e a saída dos moradores civilizados, não parecia fazer sentido manter o posto no rio Caru. Assim, foi transferido para o rio Pindaré num local a jusante da Colônia Pimentel, duas léguas a montante de Engenho Central (Pindaré-mirim), e em frente ao incipiente povoado de Santa Inês, que era o ponto final da Estrada do Sertão e um valhacouto de fugitivos da justiça. Deste local o SPI achava que daria para controlar e assistir as aldeias do baixo Pindaré, da Estrada do Sertão e, subindo o rio, as aldeias fluviais. Aparentemente não havia pretendentes a dono daquela área. Foram construídos nova sede e novas casas para oficinas e se atraiu algumas famílias tenetehara para virem morar em aldeia ao lado. Com efeito, o novo posto se consolidou, passando a servir de base para as atividades do SPI, e depois da FUNAI, por todo o vale do Pindaré, só restringindo a sua influência quando um novo posto foi instalado no alto Pindaré, próximo à embocadura do rio Caru, em 1973.

Nas décadas de 1920 e 1930, o posto Gonçalves Dias iria ter uma história regular de assistência aos Tenetehara, com poucas verbas e pouquíssima disposição para realizar algo mais do que mediar, quando possível, as trocas econômicas entre índios, regatões e comerciantes. Num relatório da 2ª Inspetoria do Pará, em 1930, alguns meses após a pacificação dos Urubu-Ka’apor, fica-se sabendo que a Inspetoria do Maranhão estava extinta e suas atividades incorporadas à do Pará. Sobre o posto Gonçalves Dias, o inspetor que escreve o relatório, Virgílio Bandeira (1924-40), menciona que estivera no posto em 1925 e depois em 1928 e que o achara em melhores condições. Obviamente ele estava instalado de poucos anos. Sua sede era um “chalet branco” e, com as casas ao lado, parecia uma fazenda regional. Havia uma população de 92 Tenetehara, ou 28 famílias, às quais foram acrescentados mais 28 Tenetehara, em nove famílias, em janeiro de 1929. A população civil, isto é, de brasileiros, era formada por empregados do postos, que, com suas famílias perfaziam 31 pessoas. Trabalhavam nas roças do posto, como vaqueiros, oleiros, carpinteiros e outros ofícios, mas não eram lavradores independentes, pois o posto não era mais centro agrícola. A escola tinha 27 alunos, com uma freqüência média de 20 alunos . A atividade pecuária fazia parte dos projetos de assistência econômica aos índios, mas, por muitos anos, o gado iria ser sempre “gado do posto”, servindo mais aos seus agentes do que aos Tenetehara.

Os Tenetehara que viviam no posto Gonçalves Dias foram se acostumando com a presença de chefes que se apresentavam com segurança e autoridade perante os brasileiros regionais, autoridade esta que emanava de um sistema político em cuja cabeça estava o general Rondon, de quem se falava como o “pai dos índios”, ou “papai grande”, representação máxima do “governo”. Com os karaiw do posto os Tenetehara foram aprendendo a ter um relacionamento mais paritário do que jamais haviam vivenciado, pois a maioria eram empregados humildes, que obedeciam ao chefe e que deviam tratar os índios com brandura e dedicação. Muitos se casavam com índias ou viravam compadres. O posto tentava controlar as relações econômicas dos Tenetehara com os donos de bodegas e compradores de peles e óleo de copaíba que viviam em povoados ou em moradas na beira do rio ou na Estrada do Sertão. Os capítulos XI, XII e XIII constituem um estudo detalhado dessas relações. O chefe do posto se interpunha como uma autoridade que exigia a obediência às suas determinações desses vendedores e compradores, bem como de qualquer brasileiro que tivesse explorado algum Tenetehara, economicamente ou moralmente. Os Tenetehara confiavam nesse apoio, enredavam dos maltratantes, embora vissem que nem sempre as coisas aconteciam conforme mandado pelo chefe do posto. Às vezes nem gostavam de tanta interferência. Seu relacionamento com o chefe era baseado na patronagem, o que implicava hierarquia e acordos. Mas, ao contrário, da patronagem com brasileiros avulsos, havia aqui tanto mais autoridade de mando quanto mais impunidade no não cumprimento. Os chefes de posto sabiam que não podiam forçar situações adversas aos índios, e estes sabiam que podiam desobedecer e apelar para autoridades mais altas, em ambos os casos porque sabiam que a filosofia do SPI exigia o respeito ao índio e o acatamento de suas motivações, exceto nos casos extremos de violência e assassinato. Havia chefes mais duros, chefes mais brandos, assim como havia Tenetehara mais obedientes e os mais rebeldes.

Não há informações sobre os encarregados do posto Gonçalves Dias até o relatório que José Teodoro Mendes envia ao Inspetor Virgílio Bandeira dando conta de sua administração no ano de 1934. É provável que José Mendes tenha entrado no SPI antes de 1931, quando, após a Revolução de 1930, o órgão perde força política e passa a ser um departamento do novo Ministério da Indústria e do Trabalho, até outubro de 1933, quando é transferido para o Ministério da Guerra. Nesse período o SPI vai perder verbas e assim desativar diversos postos indígenas ou deixar sem poder de atuação tantos outros. É o que aconteceu no Maranhão, especialmente na região de Barra do Corda, como veremos mais adiante. No relatório geral da 2ª Inspetoria do Pará e Maranhão, de 1933, o posto Gonçalves Dias é dado como cuidando de uma população de 1.512 índios em 21 aldeias. Já o relatório de José Mendes apresenta, para o ano seguinte, uma população de 1.165 Tenetehara vivendo em 18 aldeias, o que dá uma média de 64 pessoas por aldeia. É possível, portanto, que as três aldeias e os outros 347 índios fossem Timbira do baixo Mearim ou Tenetehara do médio Grajaú, incluídos no relatório de 1933. As aldeias arroladas por José Mendes são: Aldeia do Posto (com 97 pessoas); Contra-Erva (31); Rodagem (54); Lagoa Comprida (79); Tarupau (55); Ilhinha (53); Gabriel (94); Grota (62); Caruzinho (125); Pau Santo (52); Palmeira (131); Batatal (18); Limão (33); Cigana (42); Queimadas (39); Pariranaua (47); Jenipapo (75), e Tauari Queimado (78). As primeiras seis aldeias são localizadas no baixo Pindaré, perto do posto e do lago Tarupau, que é formado pela embocadura do rio Zutiua. As três seguintes são aldeias do médio e alto Pindaré, com uma população bastante baixa de 281 pessoas. A aldeia Caruzinho, apesar do nome, não era mais localizada na beira do rio Caru, de onde os Tenetehara teriam saído por medo de ataques dos Urubu-Ka´apor, alguns descendo para o baixo Pindaré, outros subindo para as aldeias da Sapucaia. O encarregado menciona que as aldeias do Gabriel e do Marcelino são as maiores do alto Pindaré, mas não arrola esta última na sua lista, nem tampouco se refere à região da Sapucaia, onde se sabe que ainda em 1942 havia a aldeia da Grota. As demais nove aldeias estão na Estrada do Sertão até Tauari Queimado, e não inclui as aldeias mais acima no alto Zutiua, centradas nas aldeias do Presídio e Cururu, que por essa época eram já supervisionadas pela Vigilância de Barra do Corda.

O encarregado José Mendes escreve que uma epidemia de varíola grassara forte naquele ano de 1934, com algumas mortes, e que por isso diversas famílias tinham pedido licença para fazer aldeia na mata, onde seria mais sadio para passar o inverno (estação das chuvas), e não ficar na beira do rio. No ano anterior um grupo de índios Urubu-Ka’apor, já em relacionamento pacífico com os postos indígenas do rio Gurupi, apareceu no posto para pedir brindes e por algum motivo se aborreceu com os Tenetehara, atirou flechas em alguns e matou um deles, antes que os Tenetehara pudessem reagir. Depois fugiram. O incidente é lembrado pelos velhos Tenetehara com quem entrevistei na década de 1970. José Mendes escreve ainda que o engenho do posto havia fabricado 946 quilos de açúcar e cita a compra de diversos produtos dos índios trazidos das aldeias do alto Pindaré. Diz que a compra não fora tão grande porque havia dois civilizados morando naquelas aldeias e comprando os produtos dos índios por preços irrisórios. No curral do posto havia dezessete rezes.

Em 1936, um evento inesperado vai tirar o posto do marasmo e colocá-lo fora de atividade permanente por algum tempo. Sob a alegação de que José Teodoro Mendes era comunista e estaria insuflando os índios a fazer parte da abortada intentona comunista, a polícia da vila de Engenho Central invadiu o posto, metralhou a sua sede e prendeu José Mendes, causando um enorme alvoroço entre os índios. Logo ficou claro que a causa dessa invasão partia de acusações feitas por pessoas que estavam interessadas na retirada dos índios e na liberação da área . O susto foi grande, os boatos e ameaças continuaram a circular e o SPI achou por bem manter José Mendes em São Luís por algum tempo. O posto Gonçalves Dias entrou em dormência por dois ou três anos, com funcionários vindo de São Luís para marcar presença na região, mas não permanecendo muito tempo. Esse incidente indica que gente estabelecida na região se aproveitou da falta de prestígio e apoio políticos federais do órgão indigenista naqueles anos para desmoralizá-lo. A presença de índios numa região que lentamente começava a crescer pela chegada de imigrantes nordestinos e mascates sírios suscitava nessa pequena elite rural a premonição de que melhor seria se livrar deles enquanto era tempo. Não conseguiram realizar seu intento, mas continuariam a minar a autoridade dos chefes de posto em relação aos índios e às suas terras.

A partir de 1939, o SPI começou a recuperar seu prestígio nacional e isso repercutiu imediatamente no posto indígena Gonçalves Dias. Em meados de 1939 diversas famílias tenetehara lideradas por José Viana se mudaram do baixo Grajaú para a aldeia Lagoa Comprida, na embocadura do Zutiua com o Pindaré, fazendo um caminho de volta da migração que iniciara um século antes. Certamente vieram porque a vida em suas terras do baixo Grajaú estava ficando difícil e porque havia alguns novos atrativos no posto do baixo Pindaré.

Em dezembro de 1939 aconteceu um incidente que iria repercutir por muitos anos na memória oral local e na história do SPI. O índio Urubu-Ka’apor, conhecido como Uirá, que estava sendo conduzido de volta à sua aldeia via rio Pindaré, saltou do barco e foi devorado por piranhas, já perto do posto indígena Gonçalves Dias. Uirá vinha acompanhado da mulher, filho e um servidor do SPI, após ter passado alguns meses de viagem “à procura de Maíra” - que é também o herói civilizador desse povo - desde sua aldeia no rio Turiaçu até São Luís. Havia sofrido horrores nas mãos incompreensíveis da população rural e das autoridades das cidades por onde passara, e, não encontrando meios de chegar à morada de Maíra, achara melhor pôr fim à vida. Esse acontecido extraordinário, que chamara a atenção da sociedade ludovicense, foi interpretado como um ato de heroísmo suicida por um indivíduo que não se conformava com as conseqüências que advieram do contato interétnico com seu povo (Ribeiro 1974: 13-30).

Em fevereiro de 1941, o posto Gonçalves Dias recebeu a visita do sertanista José Maria da Gama Malcher, que alguns meses atrás estivera em São Luís tomando providência para a reinstalação da nova 3ª Inspetoria Regional do Maranhão. O propósito de Malcher era re-estruturar o velho posto e fazer um levantamento da situação dos índios do Maranhão para decidir onde instalar novos postos indígenas. O órgão indigenista estava passando por uma reformulação encetada pela nova visão política do Estado Novo e a reconciliação de Rondon com Getúlio Vargas. Nessa ocasião o SPI voltou a pertencer ao Ministério da Agricultura, ganhou o Conselho Nacional de Proteção aos Índios como órgão de assessoramento, e passou a receber um montante mais elevado de verbas . Malcher viera acompanhado de José Teodoro Mendes, a quem prestigiou por sua longa temporada junto aos Tenetehara, sendo efetivado a partir do fim daquele ano como o novo inspetor do Maranhão. Malcher era já o inspetor da 2ª Inspetoria do Pará, onde permaneceu até 1947, quando foi chamado para administrar o setor de orçamento e administração (SOA) do SPI, no Rio de Janeiro, do qual passou a ser diretor geral entre 1951 e 1955. No posto Gonçalves Dias Malcher revigorou a escola indígena, contratando a professora Maria Dolores Maia, que permaneceria com os Tenetehara, embora transferida em 1948 para o posto Araribóia, em Barra do Corda e depois para a aldeia Ipu, no município de Grajaú, até sua aposentadoria, em 1973 . Malcher não visitou as aldeias fluviais do rio Pindaré, mas fez uma viagem a cavalo, do posto Gonçalves Dias até a cidade de Grajaú, passando pelas aldeias localizadas na Estrada do Sertão, e daí até Barra do Corda, visitando alguns aldeias do rio Mearim. Seu relatório cita as aldeias a partir do posto indígena: Ilhinha, na beira do Pindaré, depois, já na Estrada do Sertão, Contra-Erva, Lagoa Comprida, Limão, Cigana, passando por diversas taperas (aldeias abandonadas) até chegar a Tauari Queimado, de onde seguiu para o Presídio ao redor da qual havia as aldeias de Cururu, São Félix, Canabrava, Vamos Ver, Capinão, Sambaíba e Saco, todas dos índios Tenetehara. Em seguida foi à cidade de Grajaú e de lá para Barra do Corda passando pelas aldeias Colônia e São Pedro. No seu relatório dirigido ao Diretor do SPI, José Maria de Paula, Malcher propõe a criação de um novo posto indígena para servir aos índios Timbira e Tenetehara do rio Grajaú, as aldeias tenetehara do alto Zutiua e Buriticupu, e os Krikati e Gaviões do cerrado grajauense. Em Grajaú Malcher iria criar a Sub-ajudância de Grajaú, que já tivera um representante na década de 1930, o qual havia sido demitido por Virgílio Bandeira “por fazer parte do esquema de corrupção”, segundo fora informado Malcher. Em Barra do Corda iria reforçar a Ajudância de Barra do Corda, além de estabelecer um posto indígena para os Tenetehara do alto Mearim, o qual foi localizado na aldeia São Pedro, com o nome de Tenente Manuel Rabelo e um para os índios Canela do cerrado barracordense, chamado posto indígena Ajuricaba, depois renomeado Capitão Uirá. Além disso, Malcher deixou instruções e planos para a delimitação de novas terras indígenas, como veremos no Capítulo X.

Em novembro de 1941 o posto Gonçalves Dias recebeu outra visita ilustre, deste vez de uma equipe de pesquisa vinda do Museu Nacional, chefiada pelo antropólogo Charles Wagley e com os estudantes Eduardo Galvão, Nelson Teixeira e Rubens Meanda, a qual permaneceu na região até março de 1942. Do posto indígena eles partiram para visitar diversas aldeias da Estrada do Sertão e do alto Pindaré. Em fevereiro de 1945, Eduardo Galvão retornou por quatro meses e complementou os dados dessa pesquisa, a qual foi publicada em inglês em 1949 e em português em 1961. O diário de campo de Galvão seria publicado postumamente em 1996. Esses trabalhos e outros artigos publicados separadamente contém os dados mais importantes sobre a cultura tenetehara até agora coletados e analisados. Minhas pesquisas realizadas na década de 1970 consubstanciam muitas das observações daqueles autores. Esses dados se encontram mais ou menos diluídos na elaboração do presente trabalho. Mais especificamente, os dados econômicos colhidos por Wagley e Galvão são apresentados e analisados nos capítulos XI, XII e XIII.

Quanto à população tenetehara, Wagley e Galvão, citando o censo de 1940 do SPI, estimaram que havia “mais de 2.000 Tenetehara”, assim discriminados: 350 a 400 nos rios Gurupi e Capim (este no Pará), de 900 a 1.000 no rio Pindaré e na Estrada do Sertão e os demais nas treze aldeias da região de Barra do Corda-Grajaú. (Na verdade, essa população devia chegar a 3.500, pois os Tenetehara da região de Barra do Corda-Grajaú chegavam a 1.200 e os do Zutiua e Buriticupu somavam quase 1.000.) Embora sem informações precisas sobre a população tenetehara do século passado, Wagley e Galvão sentiram que esta estava em curva descendente. A conclusão mais sombria desse trabalho foi a de que os Tenetehara estavam em franco processo de aculturação e assimilação, vivendo um intenso relacionamento com a sociedade regional em expansão e com a tendência para abandonar muitos dos seus costumes originais. Previram assim que eles se assimilariam na população cabocla maranhense “no espaço de uma geração ou pouco mais”.

Desde fevereiro de 1941 o novo chefe do posto Gonçalves Dias ficou sendo José Hélio Mendes Berniz, que lá ficaria até dezembro de 1947. No fim daquele ano Berniz foi denunciado por alguma improbidade administrativa e especificamente pelo uso de maconha, hábito comum aos Tenetehara e que também fazia parte dos costumes de muitos maranhenses sérios e pundonorosos. Certamente José Berniz não seria o único servidor do SPI a fazer uso do pytympiarahy, ou “fumo muito brabo”, como chamam os Tenetehara .

Em julho-agosto de 1951, Darcy Ribeiro esteve por quatro semanas no posto Gonçalves Dias, esperando a chegada de um grupo de índios Urubu-Ka’apor e o chefe do posto para o levar através da mata para as aldeias do rio Turiaçu, como parte da segunda etapa de sua pesquisa entre esses índios . Vale a pena notar que, em seu diário de campo, Ribeiro (1996: 299-333) analisou que os Tenetehara, ao contrário do que previa o livro de Wagley e Galvão, não lhe pareciam a ponto de deixar de ser índios, mesmo porque o preconceito contra índios e contra quem abandona a aldeia e passa a viver entre os civilizados continuava muito forte e desencorajador . Observou que diversos Tenetehara viviam junto aos civilizados, sempre em condições de inferioridade, e muitos nem faziam roças permanentes, vivendo da venda do coco babaçu. Estava se desenhando um período de anomia que iria durar até praticamente meados da década de 1970.

Deveras, como previam Wagley e Galvão, a década de 1950 foi terrível para os Tenetehara do Pindaré. Sua população decresceu velozmente por causa dos terríveis surtos de varíola, coqueluche e impaludismo que acometeram aquela região, provavelmente devido a novas cepas trazidas por lavradores nordestinos que se esparramavam pela Estrada do Sertão e pela beira do rio Pindaré. Pelos fins daquela década a economia tradicional de produtos extrativos do alto Pindaré entrava em colapso com a exaustão das copaibeiras, o desinteresse por resinas e a proibição de venda de peles silvestres. Assim, as aldeias do alto Pindaré foram esvaziadas e seus sobreviventes desceram para o posto Gonçalves Dias ou se deslocaram para a área do Buriticupu em demanda do posto Araribóia.

Esse processo ocorreu sem que a 3ª Inspetoria do Maranhão, a qual desde maio de 1948 e até maio de 1962, ficara nas mãos de um dedicado servidor, o advogado positivista amazonense, Dr. Sebastião Xerez, pudesse intervir adequadamente. O papel do Dr. Xerez será visto mais adiante na análise sobre os Tenetehara da região Grajaú-Barra do Corda, quando não porque de lá sobraram mais relatórios e correspondências que explicitam suas idéias e ações como inspetor. Em relação aos Tenetehara do Pindaré Xerez manteve uma relacionamento menos caloroso, talvez até menos dedicado e menos esperançoso. Ao ver as condições de existência do posto Gonçalves Dias, com mais de vinte funcionários civis mais preocupados em si próprios do que na sorte dos índios, e com uma população indígena desesperadamente ociosa, vivendo da quebra do coco babaçu e quase sem fazer roças de mandioca, Xerez pensou em desativar o posto e transferi-lo de volta para o rio Caru. Essa idéia nunca foi levada adiante, mas permaneceu como uma possibilidade e uma ameaça aos Tenetehara do baixo Pindaré até meados da década de 1970.

Na sua segunda visita ao posto Gonçalves Dias, em 1949, Xerez foi agredido verbal e fisicamente por alguns Tenetehara que foram insuflado por aqueles que Xerez e o inspetor anterior haviam demitido e pela indignação que sentiram com o fato de Xerez tentar impor uma política de ressarcimento dos brindes (machados, facões, enxadas, peças de chita, etc.) que o SPI doava aos índios. Xerez teve que correr e se refugiar numa sala do posto indígena, conforme relatou a Darcy Ribeiro (1996: 309), mas não guardou rancor dos índios.

Como consciencioso inspetor do SPI, servindo desde a década de 1930 em estados amazônicos, Xerez achava que os Tenetehara, especialmente os do Pindaré, estavam mal acostumados em receber tudo de graça, sem entender que teriam que retribuir de alguma forma. Desse jeito os índios jamais aprenderiam a ganhar responsabilidade e a tocar as suas vidas sem a tutela de um órgão indigenista. Na sua visão, uma das mais importantes tarefas de sua missão era equipar os postos indígenas com maquinário e técnicas que pudessem fortalecer as economias indígenas e ao mesmo tempo incentivar os índios a produzir excedentes que os permitissem tornar-se auto-suficientes. Porém a economia de excedentes lucrativos, no alto Pindaré, como veremos no Capítulo XII, estava presa à extração de óleos, resinas e peles silvestres, as quais com o passar dos anos entraram em depleção. No baixo Pindaré, nas aldeias perto do posto, o principal produto era o coco babaçu, mas que alcançava preços irrisórios. Os índios haviam se desacostumados a plantar grandes roças de mandioca para fazer farinha e vendê-la. Em 1960, um chefe do posto Gonçalves Dias iria sugerir que se instalasse uma serraria para fazer tábuas das madeiras nobres - cedro, em especial - que havia na área ao redor do posto, e requisitou de Xerez serras e serrotes adequados. Havia uma demanda enorme por madeira por causa da crescente cidade de Santa Inês e de dezenas de povoados. Mas em pouco tempo ficou tarde demais, pois logo o cedro e outras madeiras de lei foram derrubadas, poucas aproveitadas para venda, pela onda de imigrantes camponeses que iam devastando as matas ao longo do Pindaré até sua confluência com o Caru, terras que haviam sido reservadas aos Tenetehara.

Em fevereiro de 1953, a população tenetehara sob a jurisdição do posto Gonçalves Dias era de 563 (pouca mais da metade da década anterior), sendo 233 homens, 215 mulheres, 68 meninos (menores de 12 anos) e 47 meninas. Como se pode verificar a população infantil era muito pequena, do que se deduz estar havendo um alto índice de mortalidade infantil. Em dezembro somavam 584, tendo as mulheres aumentado para 220, os meninos para 72 e as meninas para 59, portanto com algum crescimento natural. Havia ainda na ocasião duas aldeias no alto Pindaré, Boa Vista, chefiada pelo cacique Maurício, e Espera Grande, sob a chefia de Antônio. Esses dois líderes vieram ao posto em março para negociar 11 latas de copaíba, 35 peles silvestres, 15 alqueires de farinha, 8 kg de tabaco, 15 kg de resina de jatobá e alguns “paneiros” de tapioca. A aldeia ao lado do posto chamava-se Kriviri, e havia ainda duas nas vizinhanças, Olho d´Água e Lago Gordo. Mais adiante, Faveira, perto de onde antes existira a velha aldeia Ilhinha, abrigava Camiranga, da Sapucaia, índio importante na década de 1940, que tinha tido cinco mulheres de uma vez e controlara o excedente produtivo de duas aldeias no alto Pindaré, descera para viver na área do posto, onde iria morrer. Na Estrada do Sertão, a partir da desembocadura do rio Zutiua, havia as aldeias Lagoa Comprida, Tarupau, Anajá e Bacabal, todas de pouco tamanho. O povoado de Santa Luzia ia crescendo e tomaria as terras dessas últimas aldeias.

Durante a primeira metade da década de 1950, o chefe do posto Gonçalves Dias foi Édson de Melo Sá, que iniciara-se no SPI como servente em São Luís. Já se percebe que era grande, e seria permanente, a carência de funcionários preparados, o que iria resultar na contratação de pessoas que tivessem algum traquejo com índios, que soubessem agradá-los e ao mesmo tempo dominá-los. Muito do pessoal que chegava à chefia de posto indígena começava nos escalões mais baixos, como servente, enfermeiro ou motorista. Durante o SPI exigia-se que soubessem escrever com alguma clareza, mas no tempo da FUNAI essa exigência caiu ainda mais. O posto Gonçalves Dias, pelas dificuldades cada vez maiores que iria passar nos anos seguintes, iria ter variados chefes, só os experimentados agüentando passar tempo mais prolongado. Em 1958, o novo chefe era Júlio Alves Tavares, que havia sido enfermeiro em Barra do Corda, e que iria trilhar uma carreira sólida, inclusive como chefe da Ajudância de Barra do Corda, durante vários e salteados anos na década de 1960, e até como inspetor substituto, por alguns meses em 1964 e 1965.

Em março de 1960 Júlio Alves Tavares escreveu um relatório no qual concentrou sua atenção na descrição detalhada, inclusive com fotos, da infra-estrutura material do posto Gonçalves Dias, construções, currais, pastos, gado, e pouquíssimo sobre os índios. A velha escola do posto estava desativada por falta de professores, fáceis para contratar e difíceis para permanecer no cargo. A focalização na infra-estrutura se devia tanto à visão que Júlio Alves Tavares devia ter do seu trabalho, que não era de sair fora dos limites burocráticos, quanto à própria concepção do Dr. Xerez, que àquela altura se preocupava em manter o posto com condições de funcionamento diante das dificuldades que vinha sentindo em demarcar alguma área de terras para os Tenetehara. Essas terras, cujos planos de demarcação vinham desde 1941, estavam já cercadas de camponeses, uns humildes, outros gananciosos, todos mal suportando a idéia de que os índios tinham prioridade sobre eles. Nos anos seguintes iria se intensificar o flagelo das invasões por imigrantes atraídos pelo desenvolvimento que a SUDENE começava a realizar na região do Pindaré e para o oeste, com um grandioso projeto de povoamento e colonização e a construção da BR-262, ligando São Luís a Belém, e que, naquele trecho, saía da cidade de Santa Inês e atravessava o rio Pindaré precisamente por dentro da terra indígena, deixando-a vulnerável à entrada de passantes a pé, montados, e mais tarde de automóveis.

Em 1960, umas poucas famílias dos índios Timbira do baixo Mearim, (os antigos Pobzés e Crenzés) pediram ajuda ao SPI, e Xerez, sem condições de criar um posto para eles e demarcar terras, estando tão próximo da crescente cidade de Bacabal, achou por bem instalá-los nas terras do posto Gonçalves Dias. Os desolados Timbira vieram e passaram a conviver com os Tenetehara, quase sempre em desconfiança mútua e às vezes com alguma agressividade. Alguns Timbira até que tentaram situar uma aldeia no médio Pindaré, no lugar Mineiro Grande, mas a chegada de tantos invasores os fez recuar para as terras ao redor do posto. Todavia, nenhum desentendimento atávico impediu que, no processo de expulsão de invasores, os Timbira fossem de crucial importância, auxiliando os Tenetehara de todos os modos possíveis, e em alguns casos com riscos de vida.

Em janeiro de 1962 Hugo Ferreira Lima, outro enfermeiro da região de Barra do Corda, veio chefiar o posto Gonçalves Dias, lá ficando até junho de 1964. Sua primeira providência foi subir o rio Pindaré para visitar os Tenetehara que estavam por lá. Já eram pouquíssimos, e ele pôde apenas constatar a chegada maciça de imigrantes e a exploração que os índios estavam sofrendo. Sua principal preocupação passou a ser a retirada ou expulsão dos invasores da área indígena projetada por Xerez. Em junho de 1962 ele próprio, com a ajuda dos Tenetehara, conseguiu expulsar treze homens que estavam retirando madeira. Mas as invasões vinham de todos os lados: lavradores, quebradores de coco babaçu, pescadores, birosqueiros, madeireiros derrubando as últimas árvores de lei. Aliás, o próprio Hugo Ferreira Lima deu licença, em outubro de 1962, para os índios venderem 78 toras de pau d´arco e 85 toras de cedro (a Cr$1.000,00 cada uma). Hugo apelou insistentemente para todos as autoridades possíveis: o major-chefe de polícia de Pindaré-mirim, por exemplo, que respondeu que só retiraria invasores depois que a área fosse demarcada; o sargento comandante do posto policial de Santa Inês, sucessivamente os delegados das polícias de Santa Inês, Pindaré-mirim, Monção e Bom Jardim, os prefeitos dessas cidades, um delegado especial em Pindaré-mirim, o capitão da Polícia Militar Estadual, o Dr. Geraldo, coordenador da SUDENE local, encarregado do Plano de Povoamento do Maranhão, sem contar os constantes telegramas ao inspetor do SPI em São Luís. Este, à época Olímpio Cruz, chegou a acionar a procuradoria geral da República, que requereu providência ao juiz da cidade de Penalva, que se deslocou até a área do posto em outubro de 1963 . Tudo em vão, pois nada foi conseguido nesses anos e até meados de 1975. Entretanto, por tanta insistência, uma faixa de terras com pouco mais de 15.000 hectares foi sendo resguardada, mesmo com invasores, e esta é que viria a ser demarcada.

Entre 1963 e 1965, um missionário inglês ligado ao Summer Institute of Linguistics (SIL), David Bendor-Samuel, esteve nessa área a pesquisar a língua tenetehara com o intuito de aprendê-la e traduzir o Evangelho. Também visitou os Tenetehara da região de Grajaú-Barra do Corda. Na sua visão os Tenetehara estavam passando por um período extremamente desagregador. Testemunhou o arrendamento de lotes de terra, em geral capoeiras velhas, a imigrantes para fazer roças de mandioca e arroz, e de babaçuais para coletar e quebrar coco, sendo o pagamento realizado por porcentagem da colheita e do valor estipulado da quebra do coco, pago aos chefes do posto, às vezes a alguns líderes Tenetehara ou Timbira. Após aprender a língua tenetehara, o missionário persistiu na doutrinação religiosa e até conseguiu converter duas ou três famílias de Tenetehara à sua religião . Pelo menos é como crente que a família do velho Manuel Viana passou a se identificar, procurando não beber, não freqüentar as festas sertanejas, nem fumar tabaco e maconha. Em geral, tal disciplinamento social tem sido difícil de seguir e a maioria dos conversos, aqui, como em outras culturas indígenas, e como desde sempre, termina abandonando a nova crença após a partida do pastor de sua área.

Em agosto de 1963, a população do posto Gonçalves Dias estava reduzida a 252 Tenetehara e 22 Timbira, menos da metade da população de uma década atrás, e um quarto do início da década de 1940. Não havia mais aldeias na Estrada do Sertão, e no alto Pindaré sobreviviam não mais que umas poucas famílias tenetehara, tendo suas terras sido tomadas por roças, centros agrícolas, povoados e fazendas obtidas por meio de grilagem. Em ambas as margens do rio Pindaré, até a confluência do rio Caru, iam surgindo pequenos povoados com casas de pau-a-pique, cobertas de folha de babaçu, encarando o rio, por onde vinham as lanchas a motor deixando mercadorias e levando arroz, o principal item de venda desses pobres lavradores. De cada povoado partiam caminhos para dentro onde novos imigrantes derrubavam a mata para fazer roças e se agregavam em novos pequenos povoados. As terras pareciam não ter dono e as famílias eram atraídas pela esperança de tomar algum pedaço para si.

Os Tenetehara agora se concentravam nas aldeias Kriviri, Olho d´Água e Faveira, esta última já quase desabitada, pois estava perto do porto das lanchas que demandavam o rio Pindaré. A queda populacional se devia não só a mortes naturais de adultos (que continuavam a ocorrer, conforme os relatos dos chefes de posto) , e certamente a um alto índice de mortalidade infantil, mas à intensificação do processo de assimilação de indivíduos tenetehara pelo sistema sociocultural dos novos imigrantes, causada em parte pelo sentimento de anomia e desesperança dos Tenetehara em sua própria cultura. O SPI era incapaz de barrar esse processo, que parecia a todos inexorável.

Os anos finais do SPI, no Pindaré, foram marcados por esse esmorecimento tanto dos Tenetehara quanto dos seus funcionários. Parecia que nada podia ser feito para contornar a situação de extrema gravidade pela qual passavam os índios e o velho posto. Um breve momento de reação aconteceu com a reativação da velha escola indígena José de Anchieta, a partir de outubro de 1964, com a ajuda dada pela SUDENE, que também ocasionalmente ofertava bens de consumo aos índios. Porém, naquele mês o próprio representante da SUDENE foi acusado de malversação e afastado da região. Seu substituto não se interessou por índios. Os últimos chefes do posto Gonçalves Dias foram Édson de Sá Melo (jul/1964 a dez/1965), Manuel Pereira Lima (jan/1966 a out/1966), e Bento Vieira, mais um enfermeiro de Barra do Corda (dez/1966 a jan/1968). Bento Vieira iria passar o posto para o primeiro chefe nomeado pela FUNAI, o tenente Domingos Justino Novaes, que conheceremos no próximo capítulo. Édson Sá e Bento Vieira voltariam a chefiar o posto Gonçalves Dias em anos variados, bem como um outro enfermeiro vindo de Barra do Corda, Virgílio Galvão Sobrinho, o que prova que eles eram entendidos no assunto de cuidar de índios.

A década de 1960 foi péssima para os Tenetehara sob todos os pontos de vista, e a lembrança que guardam desse período é das piores possíveis. A tensão com os lavradores imigrantes era terrível e sentiam-se abandonados pelos chefes de posto, a quem acusam de embolsar os dinheiros dos arrendamentos de terrenos para roças e dos babaçuais. É bem possível que alguns desses chefes de posto tenham embolsado rendas ou até compartilhado delas com alguns índios, mas não da forma sistemática que iria ocorrer logo com a mudança para a FUNAI.

A população dos Tenetehara estabilizara no patamar do início da década, oscilando em torno de 250 pessoas. Os Timbira se sustentavam em duas dezenas em função dos casamentos com civilizados e dos nascimentos de mestiços. Os Tenetehara continuavam a viver perto do posto, na aldeia Kriviri, no Olho d´Água e em duas ou três moradas (tekohaw) perto da rodovia, já com vistas a um melhor acesso às cidades de Santa Inês e Bom Jardim. Quase todos subsistiam pela venda do coco babaçu, do arrendamento de babaçuais e lagoas pesqueiras, uns poucos fazendo anualmente uma rocinha de mandioca e caçando um resto de caça que ainda sobrava nas pequenas bolas de mata. Alguns passaram a beber com avidez e diversos morreram atropelados quando voltavam das cidades ou das biroscas que vendiam cachaça. Um ou outro rapaz foi servir ao Exército, mas já ninguém se passava para o lado dos civilizados, pois a intensidade do relacionamento acirrara as divergências socioeconômicas e as diferenças étnicas. O gado vacuum que havia no posto, com currais e pastagens, experimento de assistência econômica aos Tenetehara, o qual em certos períodos chegara a mais de 200 cabeças, se tornara um dos prêmios pecuniários para os encarregados do posto, ou para o seu vaqueiro oficial, ou ainda para algum inspetor mais ousado, pois, em 19 de abril de 1965 o inspetor José Fernando Cruz passou recibo de Cr$ 2.020.000,00 pela venda de 28 reses do posto. Em janeiro de 1968 havia 68 rezes.

Essa situação, aparentemente sem saída positiva, iria se prolongar pelos anos seguintes, já com a FUNAI. Cogitou-se mais seriamente em extinguir o posto, entregar a área ao estado e transferir os índios para a área entre o Caru e o Pindaré que estava em melhores condições de ser preservada. Porém a reversão na curva demográfica dos Tenetehara a partir dos primeiros anos da década de 1970 e a sua insistência em ficar onde estavam iriam forçar a FUNAI a encontrar recursos humanos e jurídicos para demarcar a Terra Indígena Pindaré, em 1977, trazendo novas perspectivas de continuidade étnica para os Tenetehara dessa área e do alto Pindaré, bem como alguns problemas novos, como veremos no próximo capítulo.

2. A Vigilância, depois Ajudância de Barra do Corda

Vale lembrar que, por ocasião da instalação da 3ª Inspetoria do Maranhão, em São Luís, o político e jornalista Frederico Figueira fizera um discurso em que torcia pela arregimentação racional da mão-de-obra indígena - qual colonizador atávico do século XVII - mas também augurava bons tempos para o SPI. Naquele ano de 1911 ele iria fazer mais discursos sobre a questão indígena, os quais seriam publicados no jornal de Barra do Corda, “O Norte”. Num desses discursos Figueira atribuiu a eclosão da Rebelião do Alto Alegre não aos insuflamentos da sociedade local, nem à selvageria indígena, mas ao “caráter altivo dos índios à procura da liberdade” . Não resta dúvidas de que era um discurso de caráter positivista e bem sintonizado com a visão filosófica do SPI, algo inesperado para uma sociedade que dez anos antes havia sofrido uma perda de duzentas pessoas.

Contudo, só em dezembro de 1913 é que o inspetor Pedro Dantas iria nomear alguém para instalar uma sub-inspetoria ou vigilância, em Barra do Corda. Este alguém seria ninguém menos que o Coronel Pedro José Pinto que, doze anos antes, havia sido o militar que comandara as tropas que desbarataram os Tenetehara do Alto Alegre, perseguindo-os em outras aldeias e refúgios até pôr a situação sob controle. Não há indícios de que os Tenetehara guardassem algum ódio especial ao Coronel Pinto, mas o que motivara essa nomeação era a necessidade do SPI tomar pé da situação dos índios Canela (Kenkateye) do Ribeirão da Chinela ou das Cacimbas, que haviam sofrido um covarde massacre em 25 de outubro daquele ano perpetrado por capangas da família Arruda. O massacre ocorreu depois que os índios foram atraídos para uma fazenda, embriagados com cachaça e amarrados, sendo mortos por tiros de rifle e cutiladas de facão. Segundo os jornais da época seriam mais de 30 índios assassinados. Nimuendaju (1946: 32), com base nas conversas que teve com alguns sobreviventes, que perderam a autonomia de sua aldeia e passaram a viver entre os Canela Apanyekra e os Krahô, calculou o número de mortos em mais de 50.

Assim, é de supor que o Coronel Pinto teria iniciado os trabalhos de instalação da Vigilância de Barra do Corda, inclusive fazendo as primeiras contratações na região. Certamente abriu um processo contra os assassinos dos Canela, o qual, entretanto, estava arquivado alguns anos mais tarde, ninguém tendo sofrido sanções . Não há notícias a mais sobre a atuação do Coronel Pinto na região, mas os índios velhos guardam memória de sua passagem como sub-inspetor. Naqueles anos quando iam a Barra do Corda os Tenetehara se abrigavam debaixo da ponte, em condições de miséria, e parece que o Coronel Pinto proibiu que isso continuasse, o que não deu resultado pois os índios continuaram nessa condição de extrema humildade até a chegada de Sebastião Xerez. Barra do Corda, apesar do espírito indigenista de um Frederico Figueira e da ilustração de outros intelectuais locais, como Olímpio Fialho , mantinha vivas as lembranças da Rebelião do Alto Alegre e sentia ódio e desprezo, mas também medo, dos Tenetehara, que comercializavam seus produtos agrícolas com mascates, nas fazendas, nos povoados e na cidade. Já os índios Canela, tanto os Ramkokamekra da aldeia do Ponto, como os Apanyekra, da aldeia Porquinhos, e ainda os Kenkateye, da aldeia Cacimbas, pareciam a todos mais submissos e tratáveis, embora dessem muito trabalho por freqüentemente matarem gado que perambulavam em suas terras. Umas poucas pessoas, em especial das famílias Uchoa, Miranda e Martins, as quais, desde o Império tiveram posições de mando nas diretorias parciais, se arvoravam “conhecedores dos índios”, e se relacionavam diretamente com eles, comprando seus produtos silvestres e usando de sua mão-de-obra para abrir roças ou retirar madeira.

Quando o SPI procurou gente disposta a trabalhar em prol dos índios foi entre estes membros da classe dominante barracordense que fez seu aliciamento. O primeiro deles parece ter sido Marcelino Miranda (neto do desbravador Melo Uchoa), provavelmente por indicação de Frederico Figueira. Marcelino iria comandar a Vigilância entre 1917 e 1922, abrindo mão para se candidatar e ser eleito deputado estadual, e deixando seu filho Raimundo Miranda como chefe da Vigilância até 1944. Marcelino Miranda, provavelmente junto com Frederico Figueira, é que foi responsável pela negociação que resultou no decreto estadual que criou as primeiras áreas indígenas no Maranhão, uma para os Tenetehara e outra para os Canela, em 1923, como veremos detalhadamente no Capítulo X. Durante mais de vinte anos foi Marcelino quem impôs as diretrizes de relacionamento com os índios e com a inspetoria do SPI. Ele mantinha há muitos anos interesses econômicos com os Canela e Tenetehara e por vezes viria a ser acusado de exploração da mão-de-obra indígena ou de vender produtos aos índios por preços altos demais. Esta última acusação lhe foi feita em relatório do Sub-inspetor Raimundo Nonato Maia, quando de suas duas visitas a Barra do Corda, em 1926 e 1928, para inspecionar a demarcação das terras indígenas . Um intelectual local, com graças de jornalista e poeta, que em 1938 abraçara o Integralismo, Olímpio Cruz, iria trabalhar, a partir de 1942, como chefe do posto Capitão Uirá, dos índios Canela. Em 1948 foi nomeado auxiliar de sertanista e passou a chefiar a Ajudância de Barra do Corda até 1962, quando assumiu a Inspetoria em São Luís até dezembro de 1963, voltando à Ajudância até sua aposentadoria em fins de 1964 . Nos anos seguintes muita gente de Barra do Corda iria trabalhar nas hostes do SPI, muitos por interesse exclusivamente de garantia de emprego público federal, coisa rara e preciosa na região, alguns com maior dedicação e uns poucos ficando íntimo dos índios até por casamento.

Na década de 1920 o esforço maior do SPI em Barra do Corda foi com o processo de demarcação da área decretada pelo governo do estado aos Tenetehara. Como algumas aldeias se recusaram a deixar suas terras para se transferir para dentro da área delimitada, ocorreram diversos casos de conflito entre os índios e lavradores. Para isso a presença da Vigilância era de grande importância, dando tranqüilidade aos índios de que teriam defensores, se eles tivessem razão. Fróes de Abreu, que esteve em diversas aldeias tenetehara e canela em 1928, escrevendo sobre a cultura e a vida daqueles índios, constata o apoio que eles podiam ter a esse respeito. Embora explorados no que produziam e vistos como selvagens, os índios eram defendidos pelo chefe Raimundo Miranda quando algum brasileiro lhe fazia algum mal ou o acusava de algum malfeito. Os índios em geral tratavam o chefe com respeito e submissão, mas já então alguns ousavam se aborrecer e discutir com ele. O relatório de visita do sub-inspetor Raimundo Nonato Maia discorre sobre um incidente em que o próprio chefe Raimundo Miranda, ao chamar o índio Tenetehara Herculano Ribeiro de patife por não pagar uma dívida contraída com seu pai, este retorquira chamando-o de ladrão. Sem dúvida, os Tenetehara, embora fossem considerados como “trabalhadores e capazes de, em pouco tempo, viverem independentes com conforto relativo”, conforme o relato de Nonato Maia, não eram osso mole de roer.

A década de 1930 vai passar sem quaisquer acontecimentos ou eventos de significação entre os Tenetehara da região Grajaú-Barra do Corda. As dificuldades políticas, administrativas e financeiras do SPI o deixaram incapacitado para exercer mais atividades, ou pelo menos não há documento dessa época. Raimundo Miranda exerce inconteste o papel de chefe da Vigilância, num tempo de pouco desenvolvimento econômico e movimentação demográfica na região. A Vigilância de Barra do Corda coordenava as atividades de vários funcionários e trabalhadores braçais que viviam em algumas aldeias indígenas. Na aldeia São Pedro, localizada na beira do rio Mearim, havia uma escola indígena, criada na década de 1920, cujo professor era um Tenetehara, o professor Felipe Boni. Em seu crédito está a alfabetização de mais de uma centena de Tenetehara, até sua morte, em 1948, quando já vivia na aldeia Geralda, localizada no rio Grajaú. A poucos quilômetros a montante estava a aldeia Colônia, velha sede da antiga Colônia Dous Braços, que era representada pelo cacique Silvano, que passou a ser funcionário braçal do SPI em meados da década de 1930, efetivado a partir de 1941. As demais aldeias tenetehara eram assistidas a partir dessas duas, ou diretamente de Barra do Corda. De vez em quando estouravam surtos de varíola, sarampo, coqueluche e impaludismo, os flagelos dos índios naquela época. A Vigilância pouco podia fazer e a população tenetehara crescia muito lentamente. Já os Canela, que foram visitados por Curt Nimuendaju por três espaçados períodos entre 1929 e 1937 continuavam a decrescer em população (Nimuendaju 1946).

A partir de 1940, com as mudanças gerais no SPI, a Vigilância de Barra do Corda passou a funcionar como uma Ajudância, com poderes de coordenação dos diversos postos indígenas criados em todo o centro-sul maranhense. Logo de início três postos postos indígenas foram criados, um para assistir aos índios Canela, divididos entre as etnias Ramkokamekra e Apanyekra, um para os Tenetehara do município de Barra do Corda, e um para os Tenetehara, Timbira, Gaviões e Krikati do município de Grajaú. Sendo imensa a área do município de Grajaú foi instituída uma sub-ajudância. Todas essas ações foram realizadas pelo inspetor José Maria da Gama Malcher, quando de sua passagem por Grajaú e Barra do Corda, vindo de sua viagem de inspeção a partir do posto Gonçalves Dias, entre fevereiro e maio de 1941.

Em relação ao seu compromisso com a demarcação de terras indígenas, a reinstalação da 3ª Inspetoria Regional do SPI reorganizou o quadro de funcionários para contar com uma turma de demarcação com o propósito de concluir as demarcações iniciadas em anos anteriores e criar algumas outras terras para os Tenetehara. Malcher havia tomado consciência da amplitude do problema indígena no Maranhão e dos territórios que deveriam ser reservadas aos índios. Esses dados serão detalhados no Capítulo X.

3. O Posto Capitão Uirá

O posto indígena criado para os Canela, chamado inicialmente Ajuricaba, depois Capitão Uirá, em homenagem ao Urubu-Ka´apor Uirá, foi instalado na velha aldeia do Ponto, dos Ramkokamekra, e funcionou pelos trinta anos seguintes paralelo ao posto dos Tenetehara. Seu primeiro chefe foi um jovem barracordense chamado Orículo Castelo Branco que, ao tentar defender os Canela das invasões de gado de fazendeiros locais, foi acusado de insuflador e teve que ser transferido para outra inspetoria indígena. Esse acontecimento teve a intervenção inclusive do governador-interventor do Maranhão, Paulo Ramos, e do ministro de Agricultura, que tentavam responder aos reclamos dos fazendeiros.

O segundo chefe do posto foi Olímpio Cruz que lá ficou até 1948, quando foi convidado por Sebastião Xerez para dirigir a Ajudância de Barra do Corda. Na década de 1950 o posto foi chefiado por diversos encarregados de menor expressão, sempre sob a supervisão da Ajudância. A tensão com os fazendeiros locais teve um desfecho trágico em agosto de 1963, quando a aldeia do Ponto foi atacada por um bando de mais de 120 homens que invadiram o território canela a mando de fazendeiros locais . O ataque à aldeia principal só não resultou em muitas mortes por causa da destreza militar dos guerreiros Canela, liderados por Raimundo Roberto, que conseguiu ganhar tempo para retirar mulheres e crianças ao atrair os agressores para áreas de espinhais e carrascais. Ao final de alguns dias, seis índios foram mortos, quase todos velhos que ficaram na aldeia, um deles desafiando os atacantes de peito aberto no pátio da aldeia. Os Canela fugiram de seu território e foram se abrigar nas terras dos Tenetehara, onde ficaram desconfortados por viverem em mata de transição até 1966, quando voltaram e reconstituíram sua velha aldeia.

Naquela ocasião, era inspetor do SPI o barracordense Olímpio Cruz, que reagiu com protestos e pedidos de ajuda aos governos federal e estadual, mas não conseguiu enquadrar os agressores. Cruz se sentiu arrasado e desmoralizado e deixou a chefia da inspetoria, voltando à Ajudância de Barra do Corda. Em 1966 o então diretor do SPI Coronel Hamilton de Oliveira Castro propôs que as terras dos Canela fossem entregues ao INCRA para distribuição entre lavradores brasileiros, o que demonstra a falta de senso e lealdade da direção do SPI após do golpe de 1964. Entretanto, o que ocorreu foi o contrário: uma rápida movimentação no sentido de garantir aquelas terras, acrescidas em muito mais do que havia sido doado em 1923, para os Canela. Com efeito, a T.I. Canela tornou-se a primeira terra indígena no Maranhão a ser demarcada, depois homologada, registrada em cartório municipal e tombada pelo Serviço de Patrimônio da União, com uma área de 120.000 hectares, ainda em 1973.

3. O Posto Indígena Tenente Manuel Rabelo, depois Guajajara

Em abril de 1941, o inspetor José Maria da Gama Malcher criou, na aldeia São Pedro, um segundo posto indígena para os Tenetehara o qual recebeu o nome de Tenente Manuel Rabelo. No trajeto entre Grajaú e Barra do Corda, Malcher viera pela velha estrada da Sibéria, passando pelas aldeias de São Pedro e Colônia. Não se sabe porque preteriu a Colônia para ser sede do novo posto, mas São Pedro já era uma aldeia importante, tendo um professor tenetehara, Felipe Boni, bastante conceituado entre os índios e funcionários do SPI, desde o início da década de 1920. Situada na beira do rio Mearim, São Pedro era alcansável de Barra do Corda por via fluvial, em pequenos batelões, e por uma pequena estrada carroçável e cavalgada por tropas de burros. Assim, os servidores da Ajudância poderiam com alguma presteza se deslocar para o posto; e os Tenetehara dessa aldeia, bem como das outras suas vizinhas, poderiam lá concentrar seus produtos e transportá-los para vender em Barra do Corda. Fróes de Abreu havia visitado a aldeia São Pedro em 1928, bem como algumas mais das circunvizinhanças, e diversas fotos de seus habitantes podem ser encontradas em seu livro. Nessa ocasião já alguns poucos Tenetehara sabiam ler e escrever, inclusive o capitão da aldeia Colônia, Francisco Lopes, que mais tarde se mudaria para a aldeia da Pedra e depois iria fundar a aldeia do Ipu, em 1948.

O primeiro chefe do posto foi Sylio Ribeiro Manhães Delgado, que parecia ser um homem inapropriado para a tarefa, pois logo-logo entraria em conflito com o professor Felipe Boni. Este apresentou um relatório em que acusa Sylio de bater nas crianças, ser grosseiro e repreender os índios de público, o que consiste em ofensa inaceitável. Já Sylio acusou Boni de castigar as crianças na escola, inclusive a sua. Em nenhum momento Felipe Boni é acusado de ser mau professor ou relapso na escola. Ao contrário, tanto Fróes de Abreu quanto o próprio Malcher se admiraram da dedicação de Boni ao magistério e seu espírito nacionalista. Em relatório de setembro de 1941 o chefe da Ajudância Raimundo Miranda sugere que melhor seria retirar Sylio, e colocá-lo como escriturário, o que eventualmente foi feito mesmo porque Sylio adoeceu em seguida. Por sua vez, Felipe Boni foi transferido para o posto Araribóia, criado em fins daquele ano na beira do rio Grajaú, onde ficaria até sua morte em 1947. Um inesperado distúrbio ocorreu naqueles primeiros meses de instalação do posto Tenente Manuel Rabelo quando o armazém de guardar material do SPI foi saqueado por um grupo de dezesseis índios liderado pelo Tenetehara Gregório Carvalho, reconhecido como índio civilizado inclusive por ter se casado com uma civilizada negra, uma karaikuzà. O incidente foi contornado pelo inspetor Raimundo Miranda e Gregório continuou a viver na área indígena, mas afastado das aldeias, nas terras próximas da antiga missão do Alto Alegre, se relacionando com as poucas famílias de lavradores que lá viviam.

O chefe de posto seguinte foi Mariano Melo Sá, que ficaria até 1947, não havendo nenhuma documentação a mais a seu respeito. Nos primeiros meses de 1948 o novo chefe seria José Mendes Berniz, que saíra do posto Gonçalves Dias e estava sendo processado, junto com Edson de Melo Sá e José Teodoro Mendes, por alguma malfeito administrativo e pelo uso de maconha. O chefe da Ajudância à época era Euclides Neiva, que viera substituir Raimundo Miranda, e abrira esses processos junto com o Inspetor da 3ª Inspetoria Otto Ernesto Mohn. A própria professora Maria Dolores Maia, que fora transferida para o posto Tenente Manuel Rabelo, parecia ter ficado de mal com os Tenetehara de lá e terminaria sendo alocada no posto Araribóia e daí para a aldeia Ipu, onde seria instalado uma escola. Todo essa situação só se acalmaria com a chegada e assunção do cargo de inspetor de Sebastião Xerez.

Em 1948 o posto passou a ser chefiado por José Aucê, um mestiço de índio do Amazonas que Xerez trouxera como auxiliar. José Aucê ficaria como chefe do posto Tenente Manuel Rabelo até 1957 ou 1958. Sua mulher, Maria Rita Aucê, também foi contratada como professora da escola do posto. O casal deixaria boas lembranças entre os Tenetehara da região, tendo se mudado para Brasília em meados da década de 1960.

Até o final do SPI, o posto Tenente Manuel Rabelo iria ser um lugar tranqüilo, mas não teria mais a mesma importância que nas décadas anteriores pois sua abrangência seria quebrada com a nomeação de funcionários para se estabelecer na aldeia Sardinha, na beira do rio Corda, e na Vila Uchoa, ou aldeia Canabrava. Esta última se tornaria um posto indígena em outubro de 1964 com o nome Brigadeiro Eduardo Gomes, enquanto Sardinha seria posto só em fins da década de 1980.

4. O Posto Indígena Araribóia e a Sub-ajudância de Grajaú

Entre o baixo Pindaré, onde estava o posto Gonçalves Dias e a cidade de Grajaú, cavalgando pela Estrada do Sertão, Malcher se espantou com o tamanho dessa região sem nenhuma supervisão do SPI, com uma quantidade expressiva de aldeias tenetehara, timbira, gaviões e krikati desassistidas e sofrendo a exploração de tropeiros, vaqueiros e fazendeiros de todos os quilates. Até então esses índios tinham sido assistidos com raridade pela Ajudância de Barra do Corda, que ficava distante demais. Fazia-se necessário a criação de um posto e, ao mesmo tempo, de alguma forma de representação do SPI na cidade de Grajaú. Em sua passagem pela cidade Malcher travou conhecimento com o promotor local José Gonçalves e o convidou para chefiar a Sub-ajudância que iria criar em seguida. Segundo os Tenetehara, este servidor do SPI, conhecido como Zeca Gonçalo, foi quem conseguiu dar um final ao serviço de canoas que subiam e desciam o rio Grajaú e cujos remeiros e vareiros eram quase exclusivamente índios Tenetehara. Uma infinidade de índios teriam morrido na “corrida de canoas” e muitos ficaram permanentemente escarificados pela pressão que as varas exerciam sobre os músculos do peito. Sob essa sub-ajudância ficaria o posto a ser criado bem como as aldeias tenetehara que se situavam entre o rio Mearim e seu afluente o riacho Enjeitado, cuja aldeia principal era Pedra, localizada no interior dessa área. Mais tarde, as aldeias de Ipu e Bacurizinho iriam se realçar entre as demais.

Zeca Gonçalo permaneceu como sub-ajudante por alguns anos, talvez cinco ou seis, mas não deixou documentos sobre sua atuação. A partir de 1950 a Sub-ajudância de Grajaú passou a ser chamada de Delegacia e ganhou destaque pela chefia do grajauense Raimundo Vianna, de família de modestos fazendeiros, que aí permaneceria até 1958, mantendo influência econômica sobre os índios até 1965 e exercendo alguma influência difusa na região até 1977. Nesses anos Vianna iria trocar uma minuciosa correspondência com Sebastião Xerez, deixando um valioso acervo sobre as relações do SPI para com os índios, boa parte do qual foi utilizado na análise econômica inclusa no Capítulo XI.

A escolha do local de instalação do posto indígena Araribóia foi questão de disputa entre Malcher e o agente sertanista José Olímpio, que ele enviara em agosto de 1941 para realizar a tarefa de escolha e instalação. Malcher queria que o novo posto fosse localizado na aldeia Tauari Queimado, a qual, após agregar os habitantes de diversas aldeias como Genipapo, Queimadas, e Pariranaua, estava com quase 400 habitantes (sic!). Tauari Queimado estava na Estrada do Sertão, de onde se podia alcançar as aldeias tenetehara e as dos Gaviões e Krikati, e a umas duas ou três léguas do rio Grajaú. Entretanto, José Olímpio, depois de passar por Tauari Queimado e de lá se deslocar até o rio Grajaú e contatar os Timbira Krepumkateyé, terminou escolhendo o local conhecido como Geralda para instalar o posto, argumentando em carta com Malcher pela maior comodidade e rapidez de comunicação. Ademais podia ajudar aos Tenetehara que se localizavam no baixo rio Grajaú. Malcher ainda duvidou e enviou o agente Orículo Castelo Branco para verificar esse local, mas Orículo desistiu no meio da viagem e voltou a Barra do Corda sem uma posição a respeito da localização. Enfim, o posto foi criado em outubro de 1941, ganhando o nome de Araribóia. Foi uma escolha absolutamente desastrosa.

O posto Araribóia era alcançável pelas canoas que subiam e desciam o rio Grajaú. A cavalo ficava a uma distância de umas doze léguas da cidade de Grajaú e umas vinte de Barra do Corda. Perto do local escolhido havia duas pequenas aldeias tenetehara, restos das aldeias bem maiores que compreendiam a antiga diretoria parcial da Chapada, com mais de 600 Tenetehara, por volta de 1881. Em 1924, quando Emil Snethlage visitara as aldeias de Oratório e Catingueiro, os Tenetehara somavam mais de 200, mas a partir de então foram sendo dizimadas pelas doenças e pelo trabalho no serviço de canoas. Havia também nas vizinhanças as duas últimas aldeias dos Timbira Krepumkateye do médio Grajaú, que, ao serem reunidas numa só somavam cerca de 190 pessoas . Os dois principais capitães eram o Major Clementino e Balbino Taropá. José Olímpio dá notícia de que havia outra aldeia timbira, chamada Mangueira, no distrito de Bacabal, cujos habitantes jamais seriam assistidos pelo posto. (Serão seus sobreviventes que irão morar no posto Gonçalves Dias em 1960.) Assim, Timbira e Tenetehara foram convidados a viver no posto, onde foram instaladas benfeitorias de produção agrícola como uma casa de farinha e máquinas para moer cana-de-açúcar, bem como uma escola para as crianças, cuja professora veio a ser dona Maria Dolores Maia, a professora que trabalhara no posto Gonçalves Dias. Na instalação do posto, José Olímpio, que ficou como seu encarregado até 1946 ou 1947, foi auxiliado pelo professor José Rego, que deixou uma pequena história dos índios, com um pequeno vocabulário da língua krepumkateyé. José Rego iria trabalhar na sede da Inspetoria naqueles anos até fins da década de 1950.

A insalubridade do local Geralda, infestado de mosquitos e sujeito a muitas doenças, especialmente malária, coqueluche e sarampo, iria fazer terrível cobro à população indígena. Logo morreriam o Major Clementino e Balbino Taropá e nos anos seguintes quase uma centena e meia de seus compatriotas. Num relatório escrito por Olímpio Cruz, em agosto de 1947, consta que restavam apenas 30 Krepumkateye, sendo apenas quatro homens adultos para vinte mulheres, entre eles o capitão Francisco Tonakam. A sífilis, cuja contaminação se dera pelo contato sexual com os barqueiros que passavam nas canoas, estava alastrada entre todos, inclusive tendo feito diversos meninos quase cegos. Com isso, como se já tivesse sugado o que de bom havia, o posto passou a ser visto como inviável, e em 1948 foi desativado, sendo seu pessoal e maquinário transferido para outro local com mais densidade indígena.

A aldeia da Geralda, que servira de sede ao posto, ficou durante muitos anos sob nenhuma assistência oficial. Os Tenetehara quase todos se mudaram para as aldeias do rio Zutiua, enquanto as mulheres Krepumkateye tiveram que se casar com os campônios locais e passaram a viver quase como camponeses. Parecia que a assimilação à população local e a perda das terras indígenas seria o destino final desses Timbira. Realmente, nos anos seguintes instaurou-se um processo muito intenso de miscigenação, absorção de costumes regionais e perda de condições de sobrevivência étnica. Porém, anos depois, em fins da década de 1970, sob a liderança da velha Balbina, e sua filha Iracy, esta embora casada com um civilizado, os remanescentes Timbira convenceram o chefe da Ajudância de Barra do Corda a ajudá-los na luta pela demarcação de uma área que era considerada pelos índios como pertencente ao antigo posto Araribóia. Depois de muita luta para expulsar os posseiros que lá viviam há muitos anos, em 1988 essa terra foi demarcada com o nome de T.I. Geralda-Toco Preto, nome das duas aldeias que estão nas duas margens do rio Grajaú, com cerca de 13.000 hectares.

A transferência do posto Araribóia foi uma decisão tomada pelo novo inspetor do SPI, o Dr. Sebastião Xerez, aconselhado por pessoas da região, entre os quais Olímpio Cruz e Raimundo Vianna. Desta vez, a região escolhida para o novo posto era excelente, compreendendo o perímetro formado pelos riachos Zutiua e Buriticupu, que nascem próximos um do outro, saem em direções opostas, e depois viram em ângulo reto rumo ao norte, descendo em paralelo até desembocarem bastante distantes um do outro no rio Pindaré. A aldeia Tauari Queimado por esse tempo estava desativada e, tomada por lavradores imigrantes, passaria a ser conhecida como povoado Arame, devido à cerca de arame que os missionários ingleses haviam feito ao redor de sua casa de missão antes de 1941, conforme Malcher havia anotado em seu relatório de 1941. Grande parte de seus habitantes Tenetehara havia morrido em conseqüência de uma grave epidemia de varíola em 1947 ou 1948, e os sobreviventes haviam se mudado e se agregado às aldeias mais acima na beira do rio Zutiua.

O posto Araribóia seria instalado na aldeia tenetehara do Funil que se localizava num área bastante salubre e aprazível entre a floresta amazônica e o cerrado maranhense. Em toda essa região, os Tenetehara somavam uns 800 a 900 indivíduos, população que já fora mais alta no passado, caíra nas primeiras décadas do século XX e começava a crescer desde então, inclusive pelo adicionamento de índios que saíram das aldeias do alto Pindaré e da Estrada do Sertão a partir da década de 1950. Viviam em relativa autonomia, longe de cidades (100 a 120 quilômetros de Grajaú), mas com proximidade a povoados de sertanejos antigos à beira da Estrada do Sertão, e de distritos que logo se tornariam cidades, como Amarante e Montes Altos. A alguns quilômetros ao sul estavam os índios Gaviões-Pukobye e mais a sudoeste os Krikati, povos indígenas que também ficaram sob a incumbência do posto Araribóia.

O posto iria florescer na década de 1950, chefiado desde 1954 pelo auxiliar de sertão Benevenuto Riedel, oriundo do Pindaré, filho mestiço do primeiro chefe do posto Gonçalves Dias, nativamente fluente em português e tenetehara, e homem hábil no trato com índios e caboclos regionais . Os Tenetehara viviam em relativa paz, sem ameaças de fora, pois a chefia do posto controlava muito bem a entrada e saída de visitantes. Além da economia interna, os Tenetehara desenvolveram bastante sua economia de troca de produtos da floresta, principalmente amêndoa de cumaru, cera de jutaicica e almécega, e peles de animais silvestres. O delegado de Grajaú era o patrão principal desse comércio, e o chefe de posto não deixava de ganhar um pouco como bom intermediário que era.

A Delegacia de Grajaú assistia também às aldeias que se localizavam a 22 quilômetros a sudeste da cidade, entre o rio Mearim e seu afluente o riacho Enjeitado. Segundo um mapa de 1856 , essa região, a mais setentrional da mata de transição, já era habitada por uma ou duas aldeias tenetehara. Na década de 1950 havia quatro a cinco aldeias nesse território. A principal delas talvez fosse ainda a velha aldeia da Pedra, ou Lagoa da Pedra, que se localizava no centro da área, afastada da beira do Mearim. Fora fundada por fugitivos da Rebelião do Alto Alegre, no início do século. Entre 1930 e 1940 lá morara com sua esposa um missionário protestante, Ernesto Wooten, que tentara converter os Tenetehara, antes da aldeia São Pedro, e depois da Pedra. Com efeito, alguns índios adquiriram um certo conhecimento da Bíblia e uns poucos se identificavam como crentes em algumas ocasiões. Uma meia dúzia deles aprendeu a ler e escrever com o velho Ernesto, e pelo menos de um deles falava-se que era seu filho natural, tal a profusão de cabelos no corpo e os olhos claros. No fim da década de 40, cansados das dificuldades em obter água, muitos membros da aldeia da Pedra saíram e formaram as novas aldeias do Ipu e Bacurizinho, na beira do Mearim. Nessa mesma ocasião alguns deles desceram mais ao sul e situaram a aldeia do Talhado. Já na divisa leste dessa área, na beira do igarapé Enjeitado, estava a mais que centenária aldeia do Bananal.

Uma breve análise da gestão do Dr. Xerez

Como vimos anteriormente, de 1948 a 1962, e até praticamente 1967, a 3ª Inspetoria do Maranhão seria dominada pela figura do advogado positivista Sebastião Xerez. No seu primeiro relatório à diretoria do SPI, o Dr. Xerez traçou em linhas gerais o quadro administrativo da situação que encontrou na sede e nos postos indígenas, dos problemas fundiários a serem resolvidos, dos princípios filosóficos que o guiavam e das metas que pretendia atingir. Começou por estranhar a figura do seu antecessor, Otto Ernesto Mohn, que “tinha elementos de ideologia diversa” entre seus conselheiros. Certamente não seriam positivistas, nem integralistas, o que sobra para simpatizantes do Partido Comunista, algo que não estava fora das possibilidades naqueles anos bem como, aliás, na década de 1950. Xerez era um seguidor das normas positivistas e freqüentemente costumava citar as máximas de Comte, tais como “induzir para deduzir, a fim de construir”, ou “amor por princípio, ordem por meio e progresso por fim”. Em relação aos índios ele compartilhava da visão ortodoxa do SPI, segundo a qual os índios estavam vivendo no estágio cultural animista, mas que, pela doutrinação saudável por meio da moral e do exemplo dos superiores e o contato com a tecnologia eles poderiam evoluir para uma compreensão mais abrangente de sua condição e poderiam até servir de modelo para a sociedade brasileira, especialmente a dos segmentos mais pobres. As eventuais acusações que lhe seriam jogadas contra sua moral, as incompreensões por parte de índios e brasileiros, a agressividade pessoal de alguns e as denúncias de improbidade que Xerez iria sofrer seriam todas apagadas ou sublimadas em nome de suas convicções filosóficas e de sua missão. Quando Darcy Ribeiro esteve no Maranhão, em julho-agosto de 1951, e conversou com Xerez, achou-o um homem de convicções, obstinado até demais, uma das figuras mais afirmativas que encontrara no SPI (Ribeiro 1996: 308-310).

A primeira tarefa espinhosa que Xerez teve que resolver foi o problema dos Tenetehara que viviam nas aldeias que se encontravam fora da área decretada em 1923. Em 1948, essas aldeias eram Farinha, Mundo Novo, Boa Vista, Uchoa e Montevidéu e somavam uns 300 habitantes. O problema, que poderia ter sido evitado, se o SPI tivesse antes demarcado duas áreas de terras de 52.272 hectares e 41.382, como planejara em 1941-42, se agravara por causa da instalação de uma projeto de colonização criado em 1944 por Getúlio Vargas que abrangia cerca de 300.000 hectares, inclusive as terras daquelas aldeias. Havia pressão federal, estadual e municipal para o SPI convencer os índios a abandonarem aquelas aldeias e se estabelecerem nas terras já delimitadas e reconhecidas pelos barracordenses como terras indígenas. O diretor do projeto de colonização, um político local, Dr. Eliezer Rodrigues Moreira, inclusive já tentara ele próprio persuadir os índios, oferecendo-lhes brindes e vantagens, e tentara colocar pessoas de sua confiança na Ajudância de Barra do Corda. Em vão. Entretanto, Xerez conseguiu convencer os índios de que eles teriam tudo ao chegar aos locais que escolhessem ficar, inclusive roças já feitas e casas já construídas. Duas aldeias novas foram planejadas, uma na beira do rio Mearim, perto da velha aldeia Colônia, a outra no rio, Corda, não muito longe da aldeia Sardinha. Um contrato foi feito com empreiteiros locais para fazer casas e as roças. Quando chegou a hora da mudança, na estação de estio de 1949, só havia 15 casas construídas (das 35 planejadas) na beira do rio Corda. O grupo de índios que chegou ao rio Mearim logo iria passar privação de comida e sofrer com uma epidemia de sarampo e coqueluche, que tirou a vida de oito deles e os fez dispersar pelas aldeias vizinhas. No rio Corda, a nova aldeia denominada Vila Indígena Uchoa (em homenagem à maior das aldeias abandonadas) manteve-os por alguns anos até que em 1954 ou 1955 a deixariam para se mudar para o local da antiga aldeia Canabrava, dos tempos do Alto Alegre. Essa transferência não aconteceu sem trauma e desgosto, como poderemos sentir nos relatos de dois velhos Tenetehara que dela participaram, transcritos no Capítulo XV. De todo modo, Xerez provara às autoridades locais e à direção do SPI que era um homem capaz, de princípios mas também de realismo. Sua gestão daí por diante raramente seria desafiada pelas autoridades locais. Na direção nacional do SPI Xerez era reconhecido como um dos melhores inspetores do órgão. Seus encaminhamentos sobre a questão da demarcação das terras indígenas serão apresentados no Capítulo X.

Xerez administrou a região de Barra do Corda-Grajaú através da Ajudância e da Delegacia dessas duas cidades, comandadas respectivamente por Olímpio Cruz e Raimundo Vianna. Xerez apoiou com recursos as atividades de fomento econômico realizadas por esses dois agentes, sempre de uma forma paternal mas com um controle rígido sobre as verbas . Parte desses dados será analisada no Capítulo XII, sobre a economia de troca tenetehara.

Xerez adquiriu uma casa para servir de sede da 3ª Inspetoria em São Luís e outra em Barra do Corda. Em 1956 a biblioteca da Inspetoria continha 729 volumes de obras de história, romance e outros assuntos. Esses livros e seus arquivos foram guardados zelosamente, até serem vendidos como papel velho por um delegado da FUNAI em 1975.

Os Tenetehara de Grajaú-Barra do Corda nas décadas de 1950 e 1960

Ao contrário do que sucedia na região do Pindaré, o centro-sul maranhense continuou a sua vida de região de sertanejos e fazendeiros de médio porte, com agregados que tomavam conta do gado e dos algodoais, com suas roças de mandioca, arroz e abóboras para subsistência. Da floresta ainda se extraía resinas, amêndoas de cumaru e peles silvestres, cujo comércio era realizado por alguns poucos patrões, inclusive o agente de Grajaú. Em fins da década de 1940, terminou para sempre o desgraçado serviço das canoas que desciam o rio Grajaú carregando sacas de algodão, couro de gado e produtos silvestres, os quais passaram a ser exportados via terrestre, por rodovia carroçável, de precárias condições até a década de 1980. Ao mesmo tempo no início da década de 1950 surgia o serviço de aviação de pequeno porte, ligando São Luís ás cidades interioranas, o qual iria facilitar sobremaneira a vida do inspetor Xerez e o transporte de bens leves e correspondência.

Desde a renovação do SPI, a partir de 1940, foi criado um programa, conhecido como “aprendizes índios” ou “apríndios” de contratação de índios para ajudar nas tarefas obreiras dos postos indígenas. Em geral eram contratados como trabalhadores braçais para fazer roças, mas também podiam ser vaqueiros, barqueiros, auxiliares de ensino e de enfermagem. O primeiro Tenetehara a ser contratado foi o professor Felipe Boni, ainda na década de 1920. Em 1935, o chefe da Vigilância, Raimundo Miranda, contratou o Tenetehara Silvano Pereira da Silva, da aldeia Colônia, que foi efetivado em 1940. Dois outros Tenetehara foram contratados ainda na década de 1940, tendo sido despedidos por Xerez. Um deles foi José Maria Cabral, da aldeia São Pedro, que foi substituído por José Amorim, contratado em 1948. Agenor Boni de Souza. Alcebíades Carvalho. Inácio Pereira da Silva, Aristides Chagas e José Galdino foram contratados em 1949, Celestino Lopes em 1953, Antonio Goiabeira em 1954, Raimundo Silvino em 1956 e José Pompeu em 1958, todos das aldeias de Barra do Corda. Na década de 1960 viriam as contratações de Domingos Soares, da aldeia Presídio, que trabalhava na aldeia Urucu, e Suely Boni da Silva, filha do professor Felipe Boni, casada com um karaiw que também iria trabalhar no posto Araribóia. Por alguns meses em 1964 foram contratados os Tenetehara Pedro Marizê e Alderico Lopes da aldeia Bacurizinho, mas não foram efetivados na ocasião. Todos esses índios se tornariam pessoas de influência em suas aldeias e nos postos que serviam, e seus descendentes se tornariam igualmente importantes na atualidade .

Assim, a vida dos Tenetehara da região Grajaú-Barra do Corda transcorria de uma forma aceitável, como num lento processo evolutivo, diria o inspetor Xerez. Com o uso de vacinações que os enfermeiros da Ajudância começaram a realizar naqueles anos, os Tenetehara passaram a sofrer menos epidemias e sua população começou a crescer. Em 1949, Xerez contara 868 índios Tenetehara nas aldeias que pertenciam ao posto Tenente Manuel Rabelo. Em 1953, incluindo a aldeia de Bananal (que mais freqüentemente é computada com as aldeias do posto Araribóia), essa população já era de 1.210, nas aldeias Colônia, Coquinho, Coroatá, Jurema, São Pedro, Vila Uchoa, Sardinha, Chupé e Bananal, demonstrando já um pequeno crescimento demográfico.

Em 1955, talvez o ano auge da administração do Dr. Xerez, as crianças Tenetehara eram assistidas em escolas indígenas nas seguintes aldeias: posto Tenente Manuel Rabelo, com 35 a 40 alunos; aldeia Sardinha, com 40 alunos; aldeia Vila Uchoa, com 35 alunos; Escola Pedro Dantas, no posto Araribóia, com 55 alunos; aldeia Borges, com 24 alunos; e aldeia Ipu, com 19 alunos. Entretanto, a velha escola do posto Gonçalves Dias estava desativada.

Os Tenetehara sob a jurisdição do posto Araribóia, incluindo os que moravam no alto Mearim, somavam em torno de 1.600, sendo 350 nas aldeias Pedra, Mangueira, Ipu, Bacurizinho e Canto do Rio, situadas nas terras entre o rio Mearim e seu afluente o riacho Enjeitado; e umas 1.200 nas aldeias Toari, Curupaty, São José, Vamos Ver, Cururu, Guaruhu, Guarimãzinho, Lagoa Comprida, Presídio, Borges e Funil, localizadas na zona do posto Araribóia, além das aldeias Catingueiro, Urucu e Juruá, próximas do rio Grajaú. Essa população, que incluindo os 560 Tenetehara do Pindaré - metade do que eram em 1940 - somava umas 3.400 pessoas, foi a menor população dos Tenetehara em toda sua história, conforme veremos em detalhe no Capítulo XIV.

Em agosto de 1963, num balanço feito pelo inspetor Olímpio Cruz, a população tenetehara chegava a 3.613, número que parecia não ter aumentado substancialmente por causa da queda no Pindaré para 252 pessoas. Pois, no posto Tenente Manuel Rabelo já eram 1.547 Tenetehara distribuídos nas aldeias São Pedro (203), Sardinha (212), Coroatá (81), Jurema (52), Descanso (38), Arroz (75), Colônia (63), Siquizer (75), Canabrava ou Vila Uchoa (305), Lagoa Comprida (190), Porco (40), Coquinho (73) e Bananal (140) . As aldeias do posto Araribóia somavam 1.814 Tenetehara distribuídos nas aldeias Funil (132), Borges (85), Buritirana (30), Guarimãzinho (56), Bacurizinho (45), Guaruhu (80), Cabeceira (95), Lagoa Comprida (166), Cururu (230), Vamos Ver (110), Presídio (140) e Curupaty ou Mandacaru (26); além das aldeias perto do rio Grajaú, Juruá (57), Urucu (59), Jaburu (12) e Catingueiro (41); e aquelas localizadas no rio Mearim, perto da cidade de Grajaú, Ipu (135), Bacurizinho (160), Cocal (45) e Pedra (110) . Portanto, essa população estava em franco crescimento desde a década de 1950, e na década de 1970 iria se multiplicar a índices superiores a 4% ao ano.

Entrementes, a partir de 1958, 1959, começaram a chegar lavradores pobres à procura de terras na região de Grajaú-Barra do Corda, muitos dos quais foram sendo acomodados pelo projeto de colonização já existente desde 1944, que tinha terras reservadas para tanto. Entretanto, esse projeto, apesar de ter feito a carreira política de alguns barracordenses, tais como o próprio primeiro diretor, Eliezer Moreira, e, na década de 1970, Fernando Falcão, nunca produziu resultados sólidos e permanentes. As terras eram boas, mas os pobres lavradores não ficavam muito tempo. Durante alguns anos, a elite da cidade andou comprando lotes dos colonos que desistiam, mas também as fazendolas que construíam não davam ganho à altura. Na verdade, a forma cultural que lastreava esse projeto, bem como daquele criado a oeste do baixo Pindaré, parecia inadequada às expectativas dos colonos, que se sentiam tolhidos por regras de comportamento e crédito. Assim, muitos imigrantes preferiam se localizar fora do projeto, em sítios onde podiam fazer roças de arroz e ser aviados por patrões locais. Assim foram engrossando os pequenos núcleos de povoamento, como São Pedro dos Cacetes, que existia como local onde moravam algumas famílias de lavradores desde 1928, e outros que foram se formando naqueles anos, como Jenipapo dos Vieiras, Jacaré e Pau Ferrado. Esses e outros centros agrícolas, localizados alguns dentro da área reservada aos Tenetehara, outros nas vizinhanças, foram virando povoados e atraindo novos lavradores.

Naqueles anos, a Ajudância de Barra do Corda, talvez sentindo a pressão dos tempos e sem poderes para exercer uma ação contrária, tentou contemporizar com esses lavradores, permitindo inclusive o arrendamento de lotes para a abertura de roças e a venda de madeira. Esses arrendamentos aconteceram no limite nordeste da área indígena, perto das aldeias Canabrava e Cocalinho, onde ia se povoando Jenipapo dos Vieiras (feito município na década de 1990), e das aldeias Lagoa Comprida, Leite e Urucu, cujas terras não haviam sido oficialmente delimitadas nem demarcadas até então. Diversos documentos da época, entre 1964 e 1968, indicam que alguns chefes da Ajudância de Barra do Corda, como Olímpio Cruz, Júlio Alves Tavares e Hugo Ferreira Lima , bem como o novo chefe da Ajudância, já sob a FUNAI, Domingos Justino Novaes (que acumulava o cargo como chefe do posto Gonçalves Dias), davam aval a tais empreitadas e recolhiam renda dos seus resultados. Eles eram coadjuvados por alguns Tenetehara, entre eles Domingos Soares, funcionário do SPI que vivia na aldeia Urucu, e Agenor Boni, filho do falecido professor Felipe Boni, que exercia papel de chefia nas aldeias da região. Tais feitos jamais haviam sido permitidos por Sebastião Xerez, mas também a pressão nos anos idos havia sido bem menor.

A antiga missão do Alto Alegre, que havia sido abandonada de fato pelos capuchinhos desde a Rebelião de 1901, mas não de direito, pois não haviam deixado de registrá-la em cartório de Barra do Corda em 1939, começou a ser reativada com a chegada de uma nova geração de capuchinhos. Dos seus escombros, a igreja foi reconstruída em 1960. A ordem resolveu atrair imigrantes para povoar e garantir as terras, cobrando-lhes uma renda pelo seu uso. Como o Alto Alegre estava perto do povoado São Pedro dos Cacetes, os dois passaram a ser pólos de atração de novos imigrantes. Pela metade da década de 1960 o Alto Alegre tinha uns 80 moradores, enquanto São Pedro dos Cacetes já tinha mais de 200 casas. Os chefes da Ajudância não sabiam o que fazer, desistindo de qualquer ação de retirada de moradores, mesmo porque havia dúvidas da legitimidade e legalidade das partes, inclusive do SPI. Os Tenetehara reclamavam, não aceitando abrir mão da parte que lhes fora reservada desde o decreto estadual de 1923, cujos momentos de demarcação acompanharam passo-a-passo. Esse problema só seria resolvido trinta anos depois, como veremos no Capítulo X.

Nas aldeias do município de Grajaú, entretanto, as pressões exógenas eram menores. A Delegacia de Grajaú estava quase desativada desde a saída de Raimundo Vianna em 1960. O auxiliar de sertão, João Batista Chuvas, substituiu Vianna, depois, em 1964, Antonio Ferreira do Nascimento passou a ser seu chefe até fins de 1967. Domingos Soares, que antes fora responsável pelas aldeias do rio Grajaú, ficou como encarregado por algum tempo depois. Nesse período, a partir de 1964, os Tenetehara Pedro Marizê, Alderico Lopes e Roberto Lopes foram contratados como prestadores de serviços com vistas a serem efetivados para supervisionar as aldeias do Mearim, a partir de Bacurizinho e Ipu, área relativamente tranqüila, pois só nas proximidades da aldeia Bananal começava a surgir confusão com lavradores imigrantes. Já as terras entre o Zutiua e o Buriticupu, sob a supervisão de perto do posto Araribóia, estavam ainda longe do ruge-ruge que iriam sofrer a partir da década de 1970. Porém as últimas aldeias à margem esquerda do rio Grajaú - Catingueiro, Jaburu e Curupaty - foram abandonadas pelos Tenetehara, restando somente aquelas da margem direita, Urucu e Juruá, que naqueles anos tinham se vinculado à Ajudância de Barra do Corda e cujas terras estavam sendo invadidas.

Assim, também na região Grajaú-Barra do Corda, a década de 1960 iria cobrar um preço alto aos Tenetehara e sobre a 3ª Inspetoria Regional do SPI, incluindo a Ajudância de Barra do Corda e a Delegacia de Grajaú. Porém, em comparação com o que acontecia ao mesmo tempo no Pindaré, o desastre era bem menor, especialmente porque sua população crescia e se consolidava na luta para reter as terras que consideravam suas.

O SPI e a assistência à saúde dos Tenetehara

Desde o início, o SPI tinha consciência de que o pior flagelo dos índios, especialmente dos povos recém-contatados, eram as doenças trazidas pela civilização. A varíola, o tifo e os sarampos eram doenças em tese já controláveis pela vacinação, mas a malária (impaludismo ou sezão), a coqueluche, as gripes e pneumonias vinham em surtos freqüentes e incontroláveis. A tuberculose e as doenças venéreas vinham e ficavam, tornando-se crônicas, endêmicas e de difícil cura. E a mortalidade infantil chegava a porcentagens altíssimas, provavelmente a até 400 por 1.000 . Até a década de 1950, pode-se dizer que o SPI teve poucos recursos e quase nenhuma iniciativa para cortar o mal pela raiz, pela vacinação em massa, ou para aliviar o sofrimento e o definhamento das populações indígenas pelo Brasil a fora. Surtos de varíola, sarampo, malária e doenças respiratórias e crônicas arrasaram aldeias inteiras, em alguns casos até 80% de uma população atingida, dando a impressão de que não havia solução para a extinção dos povos indígenas do país.

Os Tenetehara não constituíram exceção. Sua população caía visivelmente em quase todas as regiões de povoamento, e mesmo onde ela parecia estável ou em algum nível de crescimento, como na área do Bacurizinho, por exemplo, a morte rondava na forma de epidemias e alta mortalidade infantil. Ainda assim, à moda sertaneja, com pouquíssimos recursos farmacêuticos à mão, o SPI fez um esforço para tentar prover alguma assistência médica aos Tenetehara ao longo dos seus 57 anos de existência. Ao menos era de praxe que o chefe de posto, ou algum civilizado trabalhando no posto, tivesse algum conhecimento de remédios farmacêuticos e soubesse atender os índios nas doenças para as quais eles não tinham nenhuma forma de cura. Segundo relatos que ouvi de velhos sertanistas, como Benevenuto Riedel, Florindo Diniz e João Cantu, que conheceram outros sertanistas da década de 30 e 40, de fato, eles, que sabiam ler uma bula, freqüentemente prestavam assistência através da prescrição de remédios que chegavam aos postos indígenas. Quando eventualmente aparecia um médico ou enfermeiro prático, todos se submetiam de bom grado às suas prescrições e distribuições de remédio. Não é de surpreender a importância do prático de enfermagem haja visto que muitos deles terminaram se tornando chefes de posto ao longo dos anos do SPI e depois com a FUNAI.

A partir da década de 1940, o SPI começou a prover alguma assistência de saúde mais sistemática aos Tenetehara tanto da região do Grajaú-Barra do Corda, como do Pindaré. Até então, a maioria das aldeias tenetehara haviam tido pouquíssima assistência de saúde, além da moda sertaneja. Os Tenetehara da aldeia da Pedra, por exemplo, eram dos poucos que haviam recebido alguma assistência através do missionário inglês, que lá havia morado entre 1930 e 1940, bem como de um médico ou enfermeiro ocasional na cidade de Grajaú. Em 1975, alguns velhos Tenetehara da aldeia Bacurizinho me informaram sobre duas grandes epidemias anteriores a 1940: uma que ocorreu no início da década de 1910, que é descrita como sarampo, e outra no início da década de 1930, descrita como varíola. Esta última epidemia é confirmada pelas marcas deixadas nas faces e ombros de alguns dos sobreviventes que encontrei. Em nenhum caso os índios chegaram a ser socorridos pelo SPI. A opinião dos sobreviventes é de que ambas as epidemias tiveram efeitos devastadores, matando tanto crianças como adultos.

Em 1929, ao visitar a aldeia do Bananal, Fróes de Abreu (1931:111) viu vários Tenetehara com tuberculose e alguns supostamente com doenças venéreas. É de se aquilatar que ao longo do período do SPI essas doenças existissem de forma endêmica em um grande número de aldeias tenetehara (bem como timbira) da região do Grajaú. Wagley e Galvão, entretanto, não relatam essas condições nas aldeias da região do Pindaré. No fim da década de 1940 e início dos anos 50, o sarampo grassou com virulência incomum nos vales dos rios Grajaú e Pindaré. A grande aldeia Tauari Queimado, que tinha talvez até 400 habitantes, localizada na beira do rio Zutiua, ao lado da Estrada do Sertão, ficou despovoada após um desses surtos, em 1948. Assim, pode-se concluir que uma das causas fundamentais do esvaziamento dos Tenetehara no vale do Pindaré, exceto no alto Zutiua e Buriticupu, deve ser creditado a ocorrência de epidemias de coqueluche e sarampo. Assim raciocinam também os relatos de vários Tenetehara velhos que viveram nesse tempo.

Mesmo nas décadas de 1950 e 1960, a assistência permanente de saúde dada pelo SPI limitava-se à distribuição de alguns poucos remédios farmacêuticos e alguma instrução sobre como tomá-los. O acompanhamento era esporádico e a cura se dava mais pela capacidade de resistência do indivíduo do que pelo tratamento em si. A malária, conhecida regionalmente como impaludismo, maleita ou sezão, que grassava no centro-sul maranhense naquela época, era das doenças mais visadas, por ser exatamente tão óbvia a sua manifestação. O atendimento dado pelo SPI consistia basicamente na doação aos chefes de família tenetehara de 3 a 6 comprimidos à base de quina por doente. O comprimido “Aralem” era o mais comumente receitado e sua atuação durou por três décadas mais. Naqueles anos havia apenas um enfermeiro prático do SPI para atender toda a região do Grajaú, e dois ou três no município de Barra do Corda, e prescrevia-se um comprimido por dia para um paciente adulto e meio para crianças. Esses comprimidos eram fornecidos, por convênio com o SPI, pelo Serviço Nacional do Controle da Malária (SNCM), que mais tarde virou a SUCAM e expandiu sua atuação para todos os recantos do Maranhão, usando como método profilático principal a borrifação das casas com DDT para matar os mosquitos anofelinos transmissores do plasmódio da malária.

Na década de 1950 o SPI incrementou seu serviço de saúde por todo o país, especialmente a partir do estabelecimento do Parque Nacional do Xingu, que chamou a atenção do público para os problemas de saúde dos índios. Foi criado um programa de imunização contra a varíola e tratamento da tuberculose. Em 1953 quase todos os índios do posto Tenente Manuel Rabelo estavam vacinados contra varíola. Em 1958, 863 Tenetehara do posto Araribóia haviam sido vacinados. Em setembro de 1966 nova vacinação nas aldeias de Barra do Corda foi feita pelo enfermeiro Floro Brandes. Quando a FUNAI formou sua equipe médica, por volta de 1970, que tomou pé da situação médica dos postos indígenas que serviam aos Tenetehara, sua atitude era de que a varíola estava erradicada, portanto não mais requeria a atenção das autoridades sanitárias. Porém um relatório redigido pelo enfermeiro do posto indígena Bacurizinho, em 1973, indicava a suspeita da presença de cinco casos de varíola, os quais, no entanto, nunca foram confirmados Quanto à tuberculose, a vacina BCG e os tratamentos à base de sulfa e antibióticos foram transformando a doença em mais curável, ou ao menos muitos contaminados iriam sobreviver por mais tempo do que o esperado, já que, em muitos casos, os programas de tratamento não eram seguidos à risca, como devido, para completa cura. Esses programas foram continuados pela FUNAI de forma mais consistente. Entre junho e agosto de 1968, 350 índios das aldeias Canabrava, Lagoa Compria e Urucu haviam sido vacinados contra febre tífica.

Os Tenetehara do Bacurizinho tiveram bastante sorte por viverem próximo à cidade de Grajaú, onde, desde fins da década de 1950, havia sido construído e aparelhado um moderno hospital de clínicas. A iniciativa desse empreendimento se devera a um membro da família Beretta, dona da famosa marca de armas italiana, que era médico e havia se tornado frade capuchinho depois da Segunda Grande Guerra. Quis o destino que Frei Alberto Beretta viesse missionizar no interior do Maranhão, onde os capuchinhos da Lombardia haviam persistido, e onde tomou gosto em se relacionar com os Tenetehara. O hospital desde então tem funcionado uma entidade sem fins lucrativos, e ultimamente é conveniado com o sistema único de saúde, atendendo às necessidades de saúde de quaisquer pessoas (índios ou brasileiros, pobres ou ricos) que o procurem. Frei Alberto foi seu diretor e médico principal até sua morte, em 1984. Por mais de duas décadas ele prestou assistência médica gratuita em todas as ocasiões que os Tenetehara precisaram, inclusive mandando a ambulância do hospital ir pegar os doentes na própria aldeia. Em alguns anos de bonança financeira, a FUNAI chegou a fazer convênios com esse hospital, abrindo mais espaço para os Tenetehara e os Timbira da região Grajáu-Barra do Corda.

SPI: uma avaliação parcial

O Serviço de Proteção aos Índios foi extinto em 5 de dezembro de 1967 e substituído pela Fundação Nacional do índio através do decreto-lei 5.321. Nos prévios três anos havia estourado uma série de escândalos em que supostamente alguns dos seus servidores foram considerados até como assassinos, ou cúmplices de assassinatos, de índios; outros foram considerados corruptos, venais e despreparados. O escândalo maior foi a descoberta pela imprensa de um massacre de uma aldeia inteira de índios Cintas-Largas, em Mato Grosso, na altura do paralelo 11, entre cujos assassinos, a mando de um grande especulador de terras, estava um ex-funcionário do SPI. Um procurador da república, Jardes Figueiredo, abriu um inquérito, que teve larga repercussão na imprensa, no qual, ao final, ninguém parecia ter ficado sem nódoas. Até o trabalho de pessoas como Noel Nutels, o sanitarista que criara o serviço de combate à tuberculose, e último diretor do SPI no governo João Goulart, os sertanistas Francisco Meirelles, pacificador dos Xavante, e os irmãos Villas Boas, diretores do Parque Nacional do Xingu, de alguma forma foi posto em questão. Com certeza uma ala do regime militar da época queria dar um fim ao órgão indigenista, na expectativa de dar fim também aos índios . Integrar os índios à sociedade nacional, através do trabalho, da educação e da aculturação, era um mote que estava presente em parte da elite política brasileira, e uma linha de militares queria ver isto cumprido. A imagem que se queria projetar de um Brasil grande e em desenvolvimento, com espírito moderno, também não parecia se coadunar com o jeitão do velho SPI. Foi nesse espírito, e sob um fundo de combate à imoralidade e a incúria, que o SPI foi extinto para surgir a FUNAI.

Encarando objetivamente a história do SPI, não podemos fugir à obrigação de pesar os prós e os contras dos seus 57 anos de atividades. Desde a sua extinção, muitos antropólogos já fizeram tais avaliações, quase todas reprobatórias. Afinal, nesse período, muitas etnias foram extintas e quase todos os povos sobreviventes perderam grandes contingentes populacionais. Poucos tiveram suas terras demarcadas e garantidas, e pouquíssimos adquiriram os meios econômicos e educacionais para fortalecer suas culturas e suas conceituações perante a sociedade brasileira. Do lado positivo, pode-se dizer que foi o SPI que estabeleceu uma visão humanística e uma atitude prática de dedicação e auto-sacrifício poucas vezes vistas em associações de caráter estatal e laico. Foi o SPI que projetou o índio à categoria de brasileiro ante quod altre e forneceu os argumentos para a sua inserção especial nas constituições brasileiras desde 1934. Por fim, pode-se dizer que foi na última década de sua existência que a maioria das etnias indígenas brasileiras, tendo descido aos seus nadires populacionais, começaram, imperceptivelmente, a crescer, revertendo a tendência de 450 anos de declínio demográfico, que parecia a todos inexorável .

Em relação aos Tenetehara, espero que a análise descritiva ora apresentada possa nos ajudar a aquilatar o grau de relevância da atuação do SPI. No baixo e médio rio Grajaú, o resultado é absolutamente negativo, pois os índios ficaram à mercê dos fazendeiros e coronéis locais e, apesar de sua resistência até a década de 1960, perderam suas terras. No alto e médio Pindaré e em todo o Gurupi, sua ação foi deficiente ao ponto de abandono, pois os índios sofreram baixas de quase 90% de suas populações e seus territórios teriam sido perdidos não fosse por eventos inesperadas, como a chegada de imigrantes Tenetehara vindos do baixo Grajaú, e a atuação da FUNAI. Nas demais áreas, porém, por circunstâncias favoráveis do relacionamento interétnico, o SPI foi capaz de solidarizar-se, talvez apesar de suas intenções assimiladoras, com o propósito dos Tenetehara de manter sua identidade étnica, e ensejar condições que ajudaram à sobrevivência desse povo, inclusive com a pré-garantia da posse das suas terras. Porém, no balanço final, não restam dúvidas de que o mérito dessa sobrevivência deve ficar com os próprios Tenetehara, que não concebiam outra opção honrosa senão lutar para serem eles mesmos. Nesse sentido, a ação positiva do SPI foi obra das circunstâncias históricas por que passou o Brasil, em que o Estado e parte da sociedade foi ganhando uma compreensão mais progressista da realidade indígena, compreensão esta que em alguns casos foi realizada positivamente. No mais, o que vinha acontecendo era o surgimento dos índios como fautores de um novo destino que eles começavam a traçar para si próprios.

6 comentários:

Anônimo disse...

Olá Mércio! Foi com bastante emoção que vi em sua obra, os nomes de: LUIS RIEDEL e BENEVENUTO RIEDEL (meu bisavô e avô materno). Minha mãe (Maria Madalena) e eu (Marcos Kennedy) estamos tentando conseguir mais informações sobre LUIS RIEDEL. Você tem como nos ajudar? Obrigado Marcos Kennedy.
marcoskennedy.sousa@bol.com.br

Anônimo disse...

Olá Mércio!Estou emocionado por esta lendo um pouco da história de meu avõ Benevenuto Riedel fico grato.

Anônimo disse...

Nossa, sou Camila Riedel, neta de Benevenuto Riedel e bisneta de Luiz Riedel, eu estou feliz por ter lido um pouco sobre eles, Minha avó Celestina Riedel mãe de minha mãe, Dinalva Riedel, estamos querendo saber como fazemos pra ter acesso a mais documentários sobre meu avô e bisavô...
Agradecemos!

Unknown disse...

Olá eu sou Cláudia Riedel filha de Benevenuto Riedel e Celestina neta de Luis Riedel fico muito feliz de ler o livro que conta a história do meu pai e avó

Unknown disse...

Olá sou Rayryanny Riedel Filha de Regina Riedel e neta de Benevenuto Riedel bisneta de Luís Riedel estou muito emocionada de ter conhecido um pouco da história dos meus avós. Gostaria de saber mais sobre ele e me aprofundar mais na história deles.

Anônimo disse...

Olá, gostaria de comprar seu livro. Por favor, chamar no zap. 99 99116 5505

 
Share