ÁLVARO TUKANO
Relatos de uma vida de líder indígena
A História do Passaporte Nº CA713599.
Estou na cidade de Manaus, capital do Amazonas, munido de documentos exigidos para tirar o 1º Passaporte de Índio Brasileiro. Já tive muitos certificados de estudos, de Serviço Militar e de outros cursos. Esse Passaporte irá me proporcionar os novos caminhos para que eu possa encontrar os aliados dos povos indígenas. Hei de conhecer muitos povos e líderes indígenas, embarcarei nos aviões de rotas nacionais e internacionais e esse mundo se tornará pequeno.
Hoje, numa Segunda-Feira, dia 17 de novembro de 1980, estou indo no escritório da Polícia Federal para dar a entrada de documentos para tirar o passaporte. Vou viajar para fora do Brasil, vou denunciar os missionários que não respeitam as religiões e costumes indígenas. Eles querem acabar com as nossas lindas culturas no Rio Negro, querem nos dominar, falar por nós.
Como manda o praxe, dei a entrada de meus documentos na sede da Polícia Federal. O agente que me atendeu disse para voltar depois da manhã para apanhar o passaporte. Para passar o tempo fiquei conversando sobre a crise política do país e a situação fundiária dos índios do Rio Negro que estava no ZERO. Não estava demarcada, os índios não estavam informados sobre o valor que a terra tem para viver, trabalhar, caçar e ficar longe da pressão dos patrões.
No dia 19 de novembro de 1980, às 9:00 horas, eu e Dr. Hildebrando Dias, OAB-AM, descendente do Povo Mundurucú, fomos ao escritório da Polícia Federal. Vendo que eu estava acompanhado de advogado fui atendido rápido e saímos felizes com o Passaporte Nº CA 713599 nas mãos. O que parecia difícil foi resolvido. E fomos em direção ao escritório do CIMI para dar a notícia do meu passaporte. O pessoal gostou e o Dr. Deocleciano de Souza, irmão de Márcio, me levou na loja na VARIG para comprar a passagem para Brasília. Às 11:00 horas, já estávamos no Aeroporto Eduardo Gomes. E foi desse jeito que vim a Brasília. E, quando foi às 17:00 horas, os companheiros do CIMI me entregaram a roupa de frio e a passagem no Aeporto Internacional de Brasília. E sob a criosidade de uma jornalista da REVISTA VEJA, fiz a conexão para Rio de Janeiro. Não deu para falar com a jornalista para guardar o segredo e o momento era inoportuno e não dava espantar o Ministro do Interior, o Coronel Mário Andreaza e o Cel João Carlos Nobre da Veiga, Presidente da FUNAI, ambos militares de linha dura.
Hoje, não me resta nenhuma dúvida, que dei o maior drible político no Governo Brasileiro, na FUNAI, não queria que os índios viajassem para outros países. A FUNAI estava impendindo a viagem do meu parente Mário Juruna, Xavante, pois este líder tradicional não tinha instrução e nem documentos para tirar o passaporte. Eu preferi ficar calado e dar o apoio a Mário Juruna quando estivesse no cenário internacional. A nossa briga era contra a ditadura militar e não dava para brincar com Presidente da FUNAI e com certos funcionários desse órgão que seguiam à luz da doutrina achando que os índios não poderiam viajar para fora do país por serem tratados como menores e/ou por “relativamente incapaz”. Na prática era para controlar o índio que brigava pela liberdade de expressão própria, porque os chefes tribais nunca foram relativamente incapazes e, por isso, dirigiram suas comunidades e povos com diálogo democrático, o que não está acontecendo com governo brasileiro que não respeita os princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos
Para mim foi um dia muito importante de minha vida, pois às 19:00 horas, eu já estava no Aerporto Internacional do Rio de Janeiro. Fiquei nervoso e me perdi no meio da multidão de multi-línguas que retirava bagagem. E, em seguida, passei no Balcão da Polícia Federal como qualquer cidadão e entrei no saguão do aeroproto sem conhecer ninguém. Por sorte minha me encontrei com o Padre Egidio Shuwade, cidadão muito bom que logo partiu no outro avião com destino a Holanda, a fim de participar do IV Tribunal Bertrand Russell.
Pensei: E agora, para onde vou? Fiquei sentado, olhando outros que só falavam inglês, faziam compras na loja para levar as lembranças e outros que consumiam a cerveja e outras bebidas. Eles tinham muito dinheiro pelo que percebi, menos eu...Às 21:00 horas eu estava na fila do embarque, meio tonto, pois não sabia quem é que estaria me ajudando a sair dessa confusão. O avião era o jumbo da VARIG; era enorme e ali estavam mais de 320 passageiros e os ricos ficaram num andar de cima e era tudo organizado. As aeromoças deram atenção especial à todos passageiros e fui sentar no banco detrás na ala do meio. Foi legal, porque as moças falavam ainda o português e fiquei pensando: Puxa! Mas que pássaro grande que engoliu tanta gente... D´aqui a pouco esse pássaro vai voar para New York com toda essa gente. Mas, que destino?!...Pois sim, antigamente os nossos antepassados navegaram numa canoa muito grande – pã´miri yukishi, canoa de transformação da humanidade, o barco-cobra grande que veio navegando no fundo das águas da Ásia até Dia Hõpekõ Dhitara, hoje, conhecida como Baia de Guanabara. Fiquei imaginando como foram inteligentes os nossos antepassados mitologógicos para fazer a navegação submarina sob o comando do Doéthiro e quanto tempo teriam levado para fazer essa história que está na minha cabeça... Os nossos antepassados descobriram os caminhos dos oceanos, não escreveram a história nos livros, mas nos informaram através de educação oral até nos dias de hoje. Agora, não. Estou dentro da barriga desse enorme pássaro que vai voar longe...Vou descobrir os caminhos dos céus... Ah! Meu Deus! Era uma verdadeira maloca com tanta gente, o pássaro de asas enormes e cuja barriga mais parecida como a de cobra grande de nossos mitos. Fantástico!...
Pensei: Hoje vou furar o mundo, não quero mais ficar sozinho e buscarei aliados na europa. Hoje, dentro desse avião ninguém mais me pega, nem Dom Miguel, nem Guilherme Adamek, ninguém...Estou voando!...Passados alguns minutos de vôo uma bonita aeromoça me chamou para sentar na última cadeira do avião bem próximo do banheiro. Foi nesse momento que conheci a famosa jornalista Memélia Moreira, descendente de Macuxi, que escrevia matérias quentes no Jornal Folha de São Paulo. Foi um alívio, perdi o medo de viajar sozinho e começamos conversar. Essa senhora conhecia bem como estava a situação indígena pelo Brasil. Assim, conversei com a imprensa brasileira de grande porte dentro do avião. Esse encontro me chamou atenção, porque tudo aconteceu no avião. Eram exatamente 23:30 minutos, lá estávamos voando em direção a New York, USA. Em seguida as aeromoças nos trouxeram lenços quentes que eram úmidos para limpar o rosto e as mãos; serviram bebida e comida grátis para todos os passageiros. Foi bom demais.
No dia 20 de dezembro de l980, depois de 09 horas de vôo chegamos no destino. Tive o meu primeiro choque cultural com os gringos. Eu não falava o inglês, não tinha dinheiro e fiquei na sala de imigração durante 12 horas por não ter o Visto de Entrada nos Estados Unidos. O Aeroporto era gigantesco; desciam e subiam muitos aviões; centenas e centenas de passageiros chegavam e outros partiam. A maioria dos funcionários que trabalham aqui são negros, são desconfiados com os estrangeiros pensando que vamos ficar nesse país para trabalhar e viver por muito tempo. Nessa confusão fiquei pensando: O homem “civilizado” dos USA pode ser amigo do índio? Será muito difícil. Já à noite, às 20:00 horas, saímos num avião Árabe lotado com destino a Amsterdan, Holanda. Foi um dia muito cansativo, passei muitas horas no aeroporto com fome e, agora vou enfrentar mais 07 horas de vôo. Fazia muito frio, caia a neve, doía os ossos das pernas e saía a fumaça pelo nariz quando eu respirava. Enfim, consegui sair dos Estados Unidos.
Foi horrível, ninguém se conhecia no avião. Em terra fiquei sabendo de que os índios norte-americanos e latinos estavam ali presentes naquele mesmo vôo. Vimos muitos jornalistas, televisões e outros curiosos. Não percebi o tempo passar devido o cansaço e só acordei quando o avião pousou em Amsterdan. Quando o avião parou as turbinas recebemos a ordem do comandante para desembarcar, e seguimos de ônibus para saguão, a fim de pegar a bagagem. Era numa manhã de 21 de dezembro, num sábado. Foi nesse momento que conheci o Dom Tomás Balduíno, Presidente do CIMI; Darcy Ribeiro, Antropólogo; Márcio de Souza, escritor amazonense, Padre Egidio Shwad e demais personalidades que lutam para acabar com as ditaduras militares.
Fiquei com muita saudade do Brasil. Me lembrei da História do Brasil quando se fala do Maurício de Nassau que construiu belos palácios e jardins em Recife. Sem dúvida, eu era o primeiro índio Tukano a pisar na Holanda. O país era pequeno e bem valorizado pelos seus habitantes. Haviam muitos canais artificiais, as plantações de florestas e não tinham montanhas. Uma moça loira era a motorista de ônibus e a manhã estava meio nublado, frio demais. Vi as pontes móveis que descem e sobem para os barcos passarem ou carros; vi o gado holandês tão falado no Brasil, as ovelhas e camponeses que vivem nas casas de madeira muito bem montadas e pintadas. Em todas as casas tinham os vasos de flores, era uma terra de jardim. Num país pequeno, quem tem o pedacinho de terra deve ser muito feliz. Os demais vivem nos apartamentos e sustentam o padrão de vida caríssima. A população d´aqui é branca mesmo, não àquela de São Gabriel que se diz ser descendente de “cearense”. Os homens são altos e simpáticos; as mulheres altas e poucos são os negros.
As cidades de Amsterdan e Rotterdan são cortadas pelos canais artificiais, existe muito movimento de embarcações médias que levam os turistas. Os restaurantes são limpos e caros. O povo é trabalhador e os turistas gostam de gastar bem. Já nas estações de trens vimos os estrangeiros nervosos, fumam muito e são diferentes dos holandeses, meio sujos e pedem esmola. Bebem muito e são bravos. Fomos informados de que nesse país o pessoal fuma muita droga em certos bairros e, é por isso, que corre muito dinheiro.
O tempo aqui é muito estranho mesmo, não se vê sol forte como no Brasil. Estamos no inverno; o sol clareia mal das 11:00 horas até às 14:00 horas. O sol passa longe de nosso olhar como se fosse por volta das 6:30 minutos da tarde. Assim o resto do tempo é escuro e, por isso, essa gente consome muita energia e depois se trancam nas suas casas por onde existe o ar quente, água quente e assim vão vivendo. Não andam quase nas ruas, pois é muito frio, doem os ouvidos e os ossos do corpo. É bom saber, também, que esse povo não toma o banho que nem nós, que estamos acostumados se jogar nos rios e ficar à vontade. Eles vestem as roupas pretas e grossas para se protegerem do frio; andam rápido e a maioria usa a bicicleta. Realmente, é o povo diferente. Boa Noite Brasil!
Rotterdan, 22 de novembro de 1980.
O Estado Brasileiro não está sabendo promover os povos indígenas, porque sempre está em briga quando os chefes de nossa comunidades querem a demarcação da terra. Aqui, na Holanda, o povo é bem diferente do Rio Negro.
Está claro que a Congregação Salesiana não tem respeitado os nossos velhos e líderes que defendem pela preservação das culturas, dos cânticos, histórias, os bons costumes dos povos das florestas. Esses missionários têm uma visão centralizadora, não querem dialogar conosco, pregam a palavra de Deus, e a maioria não pratica o que diz a bíblia e são segregacionistas, vivem nas missões por onde existe a doutrina hierarquizada. Nós, por sermos socialistas natos, ficamos confusos com todos esses missionários que introduzem o egoísmo, defendem os interesses pessoais e não de nossos povos. Por aqui, eu vi muitas igrejas evangélicas. Cadê que os missionários católicos do rio Negro vêm “converter” essa gente e dizer, que só Papa é o verdadeiro chefe da igreja? Esse povo pensa diferente. Então, também, pensamos diferente de muitos brancos. Na verdade somos os povos mais antigos do que a História do Brasil. Somos os verdadeiros socialistas, somos simples homens que sempre soubemos cuidar de nossos imensos territórios que tem as extensas florestas, rica em fauna, rios e lagos imensos e limpos em todos os aspectos. Esta civilização não existe na europa.
Hoje conheci muitos índios latinos que fizeram a exposição geral de miséria; da falta de segurança, educação e saúde. Foram criticados os governos militares que sofrem a influência dos Estados Unidos.
Rotterdan, dia 25 de novembro de 1980
Ontem muitos jurados do IV Tribunal Bertrand Russell falaram mal do Governo Brasileiro que discrimina os povos indígenas. Outros elogiaram tão bem o Cacique Mário Juruna que briga contra o Governo Brasileiro para obter o Passaporte para vir a Holanda. Quem será o Mário Juruna? Certamente será o meu companheiro de luta para defender autodeterminação dos povos indígenas. Segundo as informações, o Cacique Mário Juruna nasceu às margens do Rio Couto de Magalhães, em Barra do Garça, MT. Em 1951, o Mário Juruna assistiu o sangrento combate de índios com fazendeiros e colonos por causa da terra na região do Parabubu. Ele acompanhou a caminhada dos sobreviventes que foram rumo a colônia salesiana de Sangradouro. Em 1957, Juruna e os demais parentes se transferiram para a nascente da Reserva de São Marcos. Dali, um ano depois, ele partiu sozinho ao encontro dos brancos e gostou. Em 1975, junto com os irmãos e primos, abandonou São Marcos e fundou a Aldeia Nanucurá.
Hoje, o meu Passaporte NºCA 713599 e do Mário Juruna, NºCA805087, marcam o Novo Tempo de Liberdade para os povos indígenas do Brasil. A minha liberdade começou quando o avião decolou do Rio de Janeiro com destino a New York. Assim tive a oportunidade de ter o diálogo positivo com os representantes de outros povos, e podemos unificar a luta dos povos da América Latina. Através de índios da América Latina ouvi falar de Autodeterminação. Estou curioso, feliz por fazer parte de grupos de pessoas para mudar o pensamento dos futuros missionários salesianos, dos dirigentes da FUNAI que até agora só visam em integrar o índio à comunhão nacional, para eliminar os saberes milenares e, assim calar de vez as nossas vozes. Estou feliz por estar aqui, pois vim defender os nossos territórios, as tradições, o pensamento e saberes dos curandeiros para salvar o mundo dos povos indígenas.
Esta viagem me proporcionou para romper o controle dos missionários e da FUNAI nos aviões da FAB. Sou índio inteligente, sou capaz, livre, sou gente como tantos outros e sempre vou defender a língua do Povo Tukano, . A Justiça foi feita contra a vontade do Coronel da FUNAI – João Carlos Nobre da Veiga, o nosso direito constitucional diz claro: O direito de ir e vir de todo cidadão brasileiro. D´aqui para frente os Direitos Humanos dos Povos Indígenas serão defendidos nos Fóruns Internacionais e Nacionais com o apoio da OAB.
Rotterdan, 25 de novembro de 1980.
A Leitura da Carta do Mário Juruna.
Ontem, dia 24 de novembro de 1980, no Auditório do DOELEN, mais de 500 delegados internacionais escolheram o Cacique Mário Juruna para ser o Presidente do IV Tribunal Bertrand Russell. Foi o momento mais importante, emocionante ver os 500 delegados ficarem em pé e aplaudindo na frente das televisões internacionais e pedindo o fim das Ditaduras Militares na América Latina. O Brasil perdeu a moral no cenário internacional, eu e Mário Juruna estamos lutando juntamente com povo brasileiro para acabar com essa Ditadura Militar. Em parte, os missionários salesianos terão que me engolir contra a vontade, pois serei amargo e crítico pelas suas atuações juntos aos índios do rio Negro enquanto não mudarem de atitude centralizadora.
Na ausência do Cacique Mário Juruna, o antropólogo mexicano, Dr. Guilhermo Bonfil Batalha, assumiu a presidência dos trabalhos interinamente. O Tribunal considerou que a proibição do Governo Brasileiro em impedir a viagem do Mário Juruna, foi o último exemplo de desrespeito à auto-determinação dos Povos Indígenas. Em seguida a mesa recebeu a Carta do Juruna. Imediatamente, o Dr. Guilhermo me convocou na plenária para ler a carta. Nesse instante pensei: Eu? Ler a Mensagem do Juruna para o Mundo? Senti-me arrepiado, emocionado, pois assim começávamos a formar o bom time de oradores e estávamos num time mais importante do mundo, o IV Tribunal Bertrand Russell. Eu não era o jogador de futebol da Seleção Brasileira, mas a sensação era parecida, pois estávamos ali defendendo os índios oprimidos dentro da própria terra. Sim, foi o momento importante.
Falei em Tukano, e disse a platéia que eu estava ali para defender os índios brasileiros, os latinos e outros que necessitam de PAZ, A LIBERDADE. Me apresentei como DOÉTHIRO, meu nome de cerimônia tradicional que o meu avô João IREMIRI me deu. E, disse-lhes, que o nome Álvaro era o nome emprestado, porque os salesianos só batizam os índios do Rio Negro com nome de brancos e de santos. E, falei: Isso está errado! Enfim, saudei a platéia e todos ficaram atentos para ouvir a leitura da mensagem: “ O GOVERNO PARECE TER MEDO DE ME DEIXAR IR PORQUE EU VOU EXPLICAR, VOU CONTAR PARA TODO MUNDO AÍ DA HOLANDA, A JUDIAÇÃO, O CRIME QUE A FUNAI, QUE CORONEL NOBRE DA VEIGA ESTÁ FAZENDO CONTRA AS TRIBOS INDÍGENAS DO BRASIL. ELES TÊM MEDO DE MIM PORQUE NÃO SOU ÍNDIO BOBO, EU TENHO O PROBLEMA, A POBREZA DAS COMUNIDADES INDÍGENAS E EU RECLAMO DAS AUTORIDADES, RECLAMO NA IMPRENSA PARA ATENDEREM AOS ÍNDIOS QUE ESTÃO SEM TERRA, QUE ESTÃO PASSANDO FOME” Palmas!...um minuto.
O Juruna, também, comentou a posição contrária do sertanista Orlando Villas Boas, que votou contra sua ida ao Tribunal Russell, atitude não compreendida por antigos colegas brasileiros e estrangeiros que auxiliaram os irmãos Villas Boas na implantação do Parque do Xingu.
O Juruna disse na imprensa: “ ORLANDO DIZ QUE TRIBUNAL NÃO PRESTA PORQUE NÃO FOI CONVIDADO. O ORLANDO QUER QUE O ÍNDIO FIQUE SEMPRE BOBO, SEM ENTENDER NADA DA VIDA DO BRANCO. ELE FICA EM SÃO PAULO, GANHANDO NÃO SEI QUANTOS MILHÕES PARA DEFENDER A FUNAI, PARA ATENDER O CORONEL NOBRE DA VEIGA QUE ESTÁ MATANDO OS ÍNDIOS...”
Quanto terminei a leitura vi muitas lágrimas em certas pessoas, estávamos falando para mais de 500 delegados. Cumpri a missão e pude sentir o pulsar forte do meu coração. Vencemos o silêncio imposto pela Ditadura Militar.
Rotterdan, dia 25 de novembro de 1980.
O Brasil frente o IV Tribunal Bertrand Russell.
O Dom Tomás Balduíno, Bispo de Goiás Velho, disse que o Governo Brasileiro, através de sua Agência de Desenvolvimento do Ministério do Interior, estava mantendo o processo sistemático de expropriação do Território do Povo Nambiquara nos Estados de Rondônia e Mato Grosso e, bem como outras ações que levarão, inexoralmente, ao seu extermínio. Falou duro contra a FUNAI que emitiu Certidões Negativas que negam a existência de povos indígenas e o seu direito ao território. Disse que a FUNAI AUTORIZOU a empresas particulares a se beneficiarem dos Incentivos Fiscais do Governo para implantar seus projetos agropecuários.
Fez a exposição sobre a BR-364 – que liga Cuiabá a Porto Velho, por onde o 9º Batalhão de Engenharia e Construção, no espaço de um mês, abriu uma picada de 490 km, cortando a Área Indígena. Essa Estrada prejudicará os Povos Indígenas Cinta-Larga, Suruí, Gavião e Uru-Eu-Wau-Wau, grupos que vivem na área de influência do Polo Noroeste – Programa de Desenvolvimento do Noroeste Brasileiro. Dom Tomás explicou que o Desfolhante Químico usado pelas empresas agropecuárias no Vale de Guaporé são o TORDON 155 e TORDON 101, fabricados pela Dow Química e que, contêm o Agente Laranja, susbtância altamente prejudicial ao meio ambiente. Esse veneno foi utilizado no Vietnã e, por isso, pode causar os graves problemas aos povos indígenas e colonos.
Segundo, Dom Tomás Balduíno, a população Nambiquara que era de 10 mil foi reduzida para 200 pessoas. Por isso, o Bispo apelou ao IV Tribunal Bertrand Russell, para que solicite ao Governo Brasileiro a imediata paralização dos trabalhos da BR-364, e exigiu a imediata demarcação da Terra Indígena Nambiquara e, imediata pelo não-financiamento por parte do Banco Mundial para não acabar com a vida dos povos indígenas.
Esse bispo é muito diferente do que o Dom Miguel Alagna, Rio Negro, AM. Portanto, fico contente em conhecer esse bispo que defende os povos indígenas e não está ao lado do Governo que impede a demarcação das terras. Meus parabéns! Pela coragem e dignidade missionária. Outros expositores foram: Ana Lange, antropóloga e Vicente Carelli, fotógrafo que formularam a denúncia contra o Governo Brasileiro. Gostei muito desses brasileiros.
Rotterdan, dia 25 de novembro de 1980.
O Caso dos Missionários Salesianos do Rio Negro – AM.
Os Missionários Salesianos se instalaram no Rio Negro, em Uaupés, no ano de 1914. Portanto, passaram 66 anos de catequese/civilização ocidental que oprime ideológica e sistematicamente os saberes milenares dos pajés, curandeiros, ervateiros e dos caçadores. Infelizmente, a maioria dos índios não está preocupada com estas coisas e nem com a demarcação de terras, porque os salesianos, veladamente, negam a nossa existência de povos indígenas distintos, esses missionários querem a integração imediata dos índios à comunhão nacional.
Hoje, o escritor amazonense acusou As Missões Salesianas que atuam no Rio Negro. Disse que esses missionários esmagam a expressão religiosa indígena, causando com isso o crime de ETNOCÍDIO que consiste na desorganização social do grupo.
A organização espacial dentro da maloca refletia a organização social do grupo e suas ligações políticas e de parentesco, que era o centro da vida religiosa. Os missionários percebendo a importância da Maloca na coersão do grupo, destruíram os mais cedo possível as malocas para desorganizarem o grupo e melhor dominá-los e catequizá-los. Hoje em dia não existe mais nenhuma maloca no Alto Rio Negro do lado brasileiro. No lugar das Malocas, existem casas de taipa típicas do interior do Norte Brasileiro, disse Márcio.
E continuou: “ Os salesianos do Rio Negro executam até melhor que a FUNAI a política de extermínio sistemático dos índios, sendo uma verdadeira multinacional da Fé, que recebe todo apoio econômico dos organismos do Governo. Os Salesianos praticam o ETNOCÍDIO sistemático dos índios Tukano e de outros desde 1915, através de um sistema educacional alienado, intromissão na estrutura tribal, desaculturação profunda, destribalização, proibição de conversarem a própria língua, racismo virulento, negligência genocida na medicina preventiva, exploração econômica criminosa e apropriação ilícita das Terras Indígenas Tradicionais. Além disso, os salesianos vem perpetuando crimes contra os indígenas nos 400 anos da História do Brasil” Mais adiante o mesmo ressalvou e disse que, “ nos últimos tempos a maioria da Igreja modificou sua atitude, confessando seus erros do passado, quando era apenas aliada dos poderosos contra os oprimidos”
Perguntando pelo Júri do Tribunal se havia resistência entre os próprios salesianos a esse tipo de atitude, disse que houve. “Mas, quem se opôs foi imediatamente expulso. Ele elogiou o CIMI Nacional e ressalvou que, “atualmente, à exceção dos salesianos, já há muitos casos de missionários de outras ordens, assassinados lado a lado com líderes indígenas, por tentarem defender seus direitos”. Acrescentou que os salesianos estão mais acuados dentro da própria igreja e, como todo animal acuado, tornam-se cada vez mais opressores, vingativos e exterminadores de índios”. Informou que eles estão registrando terras indígenas no nome da Ordem Salesiana, que tentaram boicotar a visita do Papa em Manaus “ Promoveram um Festival Folclórico dos Índios bem comportados para João Paulo II ver, e a coisa não ficou nisso porque o Mário Juruna e outros líderes não aceitaram e, forçaram mesmo contra a segurança, um encontro com o Papa, que ficou impressionado. O Papa até falou de Nações Indígenas, um critério que os salesianos e o Governo Brasileiro preferem ignorar, não os considerando como nações distintas, com costumes e línguas diferentes, e sim tentando forçá-los à Fé Católica e serem brasileiros” Em seguida, elogiou as Forças Progressistas da Igreja Católica, mas condenou veementemente as missões protestantes. Isso causou impacto negativo já que a Holanda é um país eminentemente protestante.
Feito isso foi a minha vez. Consertei o erro do Márcio e aproveitei em poucos minutos para defender as acusações do meu companheiro. Falei da importância da bebida sagrada – KAHAPIÎ e/ou Ayusca que era oferecida nas grandes solenidades. Todas essas cerimônias foram proibidas pelos salesianos, o que comprovam, portanto, o crime de ETNOCIDIO. Disse que os certos missionários mais parecem com Facistas, que não deixam de ser ditadores e que ficam todo tempo ao lado Governo Federal que viola os Direitos Humanos. E, apesar de não gostar de nossas tradições as freiras salesianas vêm explorando cinicamente o artesanato e que vendem pelo preço alto aos turistas que vão visitar o Museu do Índio, em Manaus e em outras cidades. Para que fizeram então o Voto de Castidade e de Pobreza? Questionei. Fiquei meio nervoso, pois era a minha primeira palestra internacional e, concluí:
- Álvaro: O Português para mim é uma língua emprestada. Não é do meu povo.
O pessoal gostou muito e bateram palmas.
Rotterdan, dia 25 de novembro de 1980.
O Bernardo Strik, o ex-salesiano.
Antes de vir para cá eu já tinha a imaginado como seria a reação de missionários salesianos. Os Salesianos Holandeses tentaram saber o motivo de minha presença, mas não pude conversar devido a dificuldade da língua.
Hoje conheci o Bernardo Strik, ex-salesiano, holandês, casado com uma senhora ligada aos movimentos populares do Brasil. Esse cidadão trabalhou em Humaitá, Porto Velho e Barcelos. Portanto, conhecia bem o trabalho dos Missionários Salesianos, isto é, não foi de graça que deixou a congregação. Ele me levou para casa dele e trouxe vários amigos missionários para conhecer a minha pessoa. Estavam espantados depois que ouviram a exposição do Márcio de Souza. Veio da Itália o Padre Antônio Rasera, ex-inspetor provincial da Amazônia e que fêz de tudo para desmentir a nossa versão. A coordenação do evento não lhe dera importância.
Era numa noite fria quando nos encontramos na casa do Bernardo. Fui cercado pelos salesianos curiosos e nervosos. Tivemos uma conversa dura, informal e o Bernardo Strik entrou a meu favor e contou-lhes como sofrera nas mãos de seus superiores quando trabalhou no Brasil. O Padre Egídio Shwad testemunhou a confusão. O Padre Antônio Rasera e outros se retiraram tristes, não gostaram das palavras do Bernardo Strik. Depois o Bernardo foi me deixar no Hotel e me deu os conselhos para continuar firme na luta pelos direitos dos povos indígenas do Brasil.
E quando foi o dia 02 de dezembro de 1980, o Bernardo convidou a delegação brasileira para comer na casa dele. Foi nessa ocasião que ele se comprometeu ajudar a minha pessoa, através do Jornal O Porantim. Novamente, disse para me prosseguir na luta, porque ajudaria com muito gosto. Ele era uma pessoa muito sincera e tinha pena de mim. Mais uma vez, o Padre Egidio Shwad ouviu a nossa conversa e gostou. Foi assim, numa conversa franca que nos despedimos dos amigos holandeses.
Quando voltei a Manaus, percebi de que o Renato Athias tinha mudado de comportamento e, sem dúvida, deve ter recebido a pressão dos salesianos por ser ex-clérico. O dono do Porantim era um padre alemão, salesiano, Paulo Suess, que deve ter ouvido muita conversa de praça para não aceitar a minha pessoa para trabalhar no Porantim. Fiquei numa situação delicada, sem casa e fui párar na casa da tia Ana Cabral, a irmã menor de minha mãe.
O Renato sempre desviou da conversa, não queria saber nada do meu problema de fome e de habitação. Foi o mais covarde, cínico e desleal com seus princípios anteriores. Ele foi embora estudar em Paris e não me deu nenhuma satisfação. O Ricardo Parente, o sucessor do Renato me mostrou a Carta do Bernardo Strik que fora escondida. Foi nesse momento que comecei desconfiar em certas pessoas do CIMI Nacional, pois o Renato Athias e Ribamar Bessa foram estudar em Paris, isto é, usaram da força política dos índios para serem famosos “revoluncionários” e depois para terem a facilidade para conseguir Bolsa de Estudo em Paris.
A cidade de Manaus tornou-se para mim um verdadeiro martírio; eu estava desempregado, sem dinheiro, sem moradia e perdi a esperança para continuar os meus estudos durante todos esses anos.
Mas, Deus foi muito justo comigo: O Professor Paulo, da organização não-governamental Grupo Kukuro que, também, trabalha no CIMI foi o único homem sério. Foi na casa dele que tive matar a minha fome. Assim eu agradeço a D Helena, a mãe do Professor Paulo que me tratou como se eu fosse o filho dela nos momentos mais duros de minha vida. Comecei a ler os livros do Professor Paulo Monte para passar o tempo e, depois do almoço procurava o Padre Casimiro Bekësta, lituano, meu ex-professor em Pari Cachoeira e com ele ficava lendo os livros que tratavam de costumes indígenas. Repetidamente o Casimiro me dizia: “ As pessoas do CIMI só estão lhe explorando...” Foram os momentos difíceis e tristes de minha vida. Uma verdadeira lição, mas não desisti de lutar pelos nossos direitos.
Entre os dias 10 a 12 de dezembro de 1980, fui participar da Reunião dos Sateré-Mawé, no Rio Andirá, município de Barreirinha, porque eu tinha a convicção forte para organizar o movimento indígena no Brasil e nas instâncias internacionais. A vida era dura, mas esse tipo de vida só cabe as pessoas que sabem valorizar a nossa luta e viver por ela, conhecer novas formas de resistência, ser o verdadeiro índio quando alguém quiser desfazer de nossa identidade.
Em Manaus comecei receber as cartas internacionais do IV Tribunal Bertrand Russell e jornalistas me procuravam para saber mais coisas de índios. Assim, o encontro nos Sateré-Mawé reuniu os índios do Amazonas, Amapá, Pará e Roraima. Expliquei-lhes como fora a minha viagem na Holanda. Os índios organizadores convidaram o Bispo de Parintins – Dom Arcângelo Cerqual, Rio Amazonas, que foi muito simpático com a luta dos índios pela demarcação de terras.