quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Conselheiro da OAB-MS defende povos indígenas

O Conselheiro da OAB-MS, Marcus Antonio Ruiz- Karaí Mbaraté, proferiu discurso de despedida do cargo de vice-presidente da subomissão especial de defesa dos povos indígenas, da OAB. Suas palavras foram inspiradas no discurso de Martin Luther King "I have a dream" e ecoam os discursos indianistas de décadas atrás, sem perder em emoção e sinceridade.

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 Inspirado no discurso proferido por Martin Luther King (1963) EU TENHO UM SONHO

 “Eu estou contente em estar aqui com os senhores na última sessão do Conselho desta diretoria, capitaneada pelo ilustre advogado Fábio Trad, cuja gestão ultrapassou a função corporativa posicionando-se como porta voz da sociedade civil em diversas lutas e que entrará para a história por sua realizações.

 Hoje, nesta sala veremos a “demonstração da luta pela liberdade e igualdade de direitos em nosso Estado”, impulsionada por ideais elevados como a criação da Comissão Especial de Assuntos Indígenas da OAB/MS, a única em todo o Brasil.

 Vinte e um anos atrás, um grande brasileiro, na qual estamos sob sua simbólica sombra, Ulisses Guimarães , lutou e sonhou pela Promulgação da Constituição Cidadã de 05 de outubro de 1988. Essa importante Lei veio como um grande farol de esperança para centenas de etnias de índios deste país, que tinham murchados nas chamas da injustiça. A Constituição Cidadã veio como uma alvorada para terminar a longa noite de seus cativeiros de exploração e descaso.

Mas, vinte e um anos depois, o Índio ainda não é livre. Vinte e um anos depois, a vida do Índio ainda é tristemente inválidada pelas algemas da intolerância e pelas cadeias da discriminação. Vinte e um anos depois, o Índio vive em uma ilha de pobreza no meio de um vasto oceano de prosperidade material. 

Vinte e um anos depois, o Índio ainda adoece nos cantos da sociedade sul-mato-grossense e se encontra exilado em sua própria terra. Assim, nós viemos aqui hoje para dramatizar sua vergonhosa condição. De certo modo, viemos à capital de nosso Estado para trocar um cheque.

 Quando os arquitetos de nossa república escreveram as magníficas palavras da Constituição de 88, eles estavam assinando uma nota promissória para a qual todo brasileiro seria seu herdeiro. Esta nota era uma promessa que todos os homens, sim, os homens índios, como também os homens não índios, teriam garantidos os direitos inalienáveis de vida, liberdade, alimentação, locomoção, saúde, segurança e a busca da felicidade.

 Hoje, é óbvio que aquele Brasil não apresentou esta nota promissória. Em vez de honrar esta obrigação sagrada, o Brasil e Mato Grosso do Sul deram para os povos indígenas um cheque sem fundo, um cheque que voltou marcado com “fundos insuficientes”.

 Mas nós nos recusamos a acreditar que o banco da Justiça é falível. Nós nos recusamos a acreditar que há capitais insuficientes de oportunidade neste Estado e nesta nação. Assim nós viemos trocar este cheque, um cheque que nos dará o direito de reclamar as riquezas de liberdade, de igualdade e a segurança da Justiça. Nós também viemos para recordar à Mato Grosso do Sul dessa cruel urgência.

 Este não é o momento para descansar no luxo refrescante das salas climatizadas ou tomar o remédio tranqüilizante da conveniência. Agora é o tempo para transformar em realidade as promessas de democracia.

Agora é o tempo para subir do vale das trevas da segregação ao caminho iluminado pelo sol da Justiça verdadeira. Agora é o tempo para erguer nosso Estado das areias movediças da injustiça racial para a pedra sólida da fraternidade. Agora é o tempo para fazer da justiça uma realidade para todos os filhos de Adão. Seria fatal para Mato Grosso do Sul negligenciar a urgência desse momento.

 Este é o verão sufocante do legítimo descontentamento dos Índios e não passará até termos um renovador outono de liberdade e igualdade. Este ano de 2009 não é um fim, mas um começo. Esses que esperam que o Índio se encontre satisfeito, terão um violento despertar se Mato Grosso do Sul voltar aos negócios e maneiras de sempre.

Não oferece a face quem já foi brutalmente machucado. Mas há algo que eu tenho que dizer aos meus patrícios que se dirigem ao portal que conduz ao Palácio da Justiça. No processo de conquistar nosso legítimo direito, nós não devemos ser culpados de ações de injustiças. Não vamos satisfazer nossa sede de liberdade bebendo da guampa da amargura e do ódio. Nós sempre temos que conduzir nossa luta num alto nível de dignidade e disciplina. Nós não devemos permitir que nosso protesto se degenere em violência física. Novamente e novamente nós temos que subir às majestosas alturas da reunião da força física com a força de alma. A nova e maravilhosa combatividade mostrou à comunidade indígena que não devemos ter uma desconfiança para com todas as pessoas não índias, pois muitos irmãos não índios, como vemos aqui hoje, sabem entender que o destino deles é amarrado ao nosso destino. Eles percebem que a liberdade deles é ligada indissoluvelmente a nossa liberdade.

Nós não podemos caminhar só. E como nós caminhamos, nós temos que fazer a promessa que nós sempre marcharemos à frente. Nós não podemos retroceder. Há aqueles que estão perguntando para os devotos dos direitos humanos: “Quando vocês estarão satisfeitos?” Nós nunca estaremos satisfeitos enquanto o Índio for vítima dos horrores indizíveis da brutalidade policial, da fome e do descaso. Nós nunca estaremos satisfeitos enquanto nossos corpos, pesados com a fadiga do trabalho, não poderem ter salário igual aos dos não índios. Nós não estaremos satisfeitos enquanto um Índio não puder retirar uma CNH (Carteira Nacional de Habilitação) ou abrir uma conta bancária por não ter um Registro Civil igual ao dos não índios.

Não! Não! Nós não estamos satisfeitos e nós não estaremos satisfeitos até que a justiça e a retidão rolem sobre nós como águas de uma poderosa correnteza. Alguns dos que nos procuraram vieram de áreas onde sua busca pela liberdade lhes deixaram marcas pelas tempestades das perseguições e pelos ventos da brutalidade policial, das seguranças privadas e da própria classe produtora.

São veteranos do sofrimento e continuam trabalhando com a fé no Grande Arquiteto do Universo, de que sofrimento imerecido é redentor.

Vieram das ruas sujas e beira de estrada de nossas cidades de Dourados, Coronel Sapucaía, Amambaí, Paranhos, Maracaju, Antonio João, sabendo que de alguma maneira esta situação pode e será mudada. Pois estivemos na aldeia Kurusu Ambá em Coronel Sapucaia/MS.

A Comissão Especial de Assuntos Indígenas esteve lá ... Os advogados que a compõe estiveram lá ... A Ordem dos Advogados do Brasil esteve lá... e pudemos ver o sangue do líder kaiowá Ortiz Lopes secando em frente a sua casa onde fora assinado em 2007... Nós podemos ver o medo nos olhos daquelas pessoas... Nós estivemos na delegacia de Cel. Sapucaia... no fórum de Amambái... Falamos com o magistrado e com promotor do caso... Criamos esperança de Justiça para aquela comunidade Guarani e kaiowá ... De que haverá Justiça para Xuritê Kaiowá , para Ortiz ... De que haverá justiça para os professores Olindo Verá e Genivaldo Verá , recentemente assassinados em Paranhos/MS.

Pois MS tem movido uma guerra silenciosa contra os guarani e kaiowá e já a algum tempo ostentamos o odioso título do Estado que mais mata lideranças indígenas no país... Não podemos deixar que caiam no vale do desespero.

Eu digo hoje a este Conselho, meus amigos, embora enfrentemos as dificuldades de hoje e de amanhã, eu ainda tenho um sonho. É um sonho profundamente enraizado no coração de Mato Grosso do Sul.

Eu tenho um sonho que um dia este Estado se levantará e viverá o verdadeiro significado de sua crença – nós celebraremos estas verdades e elas serão claras para todos, que os homens são criados iguais.

Eu tenho um sonho que um dia nas serras da Bodoquena os filhos dos Kadiwéu, Kinikinao, Terenas e seus descendentes e os filhos dos fazendeiros e seus descendentes poderão se sentar junto à mesa da fraternidade.

Eu tenho um sonho que um dia, até mesmo os campos de Coronel Sapucaia/MS, um município que transpira com o calor da injustiça, que transpira com o calor de opressão, será transformado em um oásis de liberdade e justiça.

Eu tenho um sonho que meus dois guris vão um dia viver em um Estado onde as pessoas não serão julgadas pela origem, pela etnia, pela cor da pele e de seus cabelos, mas pelo conteúdo de seu caráter.

Eu tenho um sonho hoje! Eu tenho um sonho que um dia, Mato Grosso do Sul com seu governador que tem os lábios gotejando palavras de negação e discursos dúbios que estimulam práticas racistas; Que nesse justo dia no Estado do Pantanal, meninos índios e meninas índias poderão unir as mãos com meninos e meninas não índios como irmãs e irmãos.

Eu tenho um sonho hoje! Eu tenho um sonho hoje, que na próxima administração desta Instituição, da OAB, a Comissão Especial de Assuntos Indígenas se mantenha e tenha o mesmo valor e importância que é dado a Comissão de Assuntos Agrários e Agronegócios. Pois é sabido senhores, que a picanha que degustamos nos restaurantes finos desta capital tem a presença da mão-de-obra indígena ... no peão que cuidou do bezerro, no empreiteiro que roçou o pasto, no aramador que lampinou os postes da cerca e os palanques do mangueiro. Pois é sabido senhores, que o açúcar do nosso café com creme tem a presença da mão-de-obra indígena naqueles que plantam , cortam e colhem a cana nas usinas deste Estado. Pois é sabido senhores, que a segurança das instituições financeiras que guardam nossos dinheiros tem a presença da mão-de-obra indígena daqueles que se postam armados nas portas dos bancos e no interior dos carros blindados dos transportes de valores.

Pois a presença indígena é inexoravelmente marcante neste Estado! Nesse Mato Grosso do Sul que possui a segunda maior população indígena do Brasil, mas que hipocritamente nós não os enxergamos... Não os vemos por ocuparem os lugares invisíveis... São aquelas pessoas que nos servem água e café, que cuidam de nossos jardins, que lavam nossa roupas... Que fazem nossa comida, que guiam os coletivos, que recolhem nosso lixo, que entregam nossa correspondências, que varrem as nossas ruas... Que cuidam de nossos carros nos estacionamentos, da portaria de nossos edifícios... que saciam a nossa libido em camas estranhas a nossa casa ....

Por isso eu tenho um sonho ! Que um dia todo vale será exaltado, e todas as serras e morros virão abaixo! Os lugares ásperos serão aplainados e os lugares tortuosos serão endireitados e a verdade dos deuses será revelada. Esta é nossa esperança.

Esta é a fé com que regressarei para Jardim, as margens do Rio Miranda. Com esta fé nós poderemos cortar da rocha do desespero uma pedra de esperança. Com esta fé nós poderemos transformar as discórdias estridentes de nosso Estado em uma sinfonia de fraternidade. Com esta fé nós poderemos trabalhar juntos, rezar juntos, lutar juntos, defender direitos juntos, e quem sabe nós seremos um dia livres... Este será o dia!!! Este será o dia quando todas as crianças desta terra poderão cantar o hino nacional com um novo significado; “Se o penhor desta Igualdade! Conseguimos conquistar com braço forte! Em Teu seio, oh Liberdade, Desafia o nosso peito a própria morte!” E se o Brasil é uma grande nação, isto tem que se tornar verdadeiro.

E assim ouvirei o grito da liberdade nas águas do Rio Paraguai, em Porto Murtinho.
Ouvirei o grito da liberdade nas belas montanhas da Serra da Bodoquena, em Bonito.
Ouvirei o grito da liberdade nos engrandecidos campos de soja e trigo de Dourados.
Ouvirei o grito da liberdade nos milharais floridos de Maracaju.
Ouvirei o grito da liberdade nas avenidas largas de Campo Grande. Mas não é só isso.
Ouvirei o grito da liberdade nas águas caudalosas do Rio Paraná, em Três Lagoas.
Ouvirei o grito da liberdade nos ervais de Amambaí.
Ouvirei o grito da liberdade na pedra do Morro do Chapéu, em Aquidauana.
Ouvirei o grito da liberdade nos arrozais de Miranda.
Ouvirei o grito da liberdade nos campos das fazendas de gado do Pantanal.

Em todos os lugares, ouviremos o grito da liberdade. E quando isto acontecer, quando nós permitimos o grito da liberdade soar; Quando nós o deixarmos soar em toda aldeia e todo vilarejo ; em todo estado e em toda cidade; em toda escola e em toda prisão... Nós poderemos acreditar que neste dia, quando todos os filhos de Deus, índios e não índios, patrões e empregados, protestantes e umbandistas, heterossexuais e gays, pessoas com e sem necessidades especiais, poderão unir as mãos e cantar as palavras do Hino Nacional:

Ó PÁTRIA AMADA! DOS FILHOS DESTE SOLO ÉS MÃE GENTIL, PÁTRIA AMADA, BRASIL!

Sala das Sessões
Campo grande 11 de dezembro de 2009
Conselheiro Marcus Antonio Ruiz – Karaí Mbaretê
Vice- presidente da Comissão Especial de Assuntos Indígenas

Um comentário:

Gilberto Silva disse...

"Se soubesse que o mundo se desintegraria amanhã, ainda assim plantaria a minha macieira.O que me assusta não é a violência de poucos, mas a omissão de muitos.Temos aprendido a voar como os pássaros, a nadar como os peixes, mas não aprendemos a sensível arte de viver como irmãos." (Martin Luther King )

 
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