Num ato de extrema lucidez e percuciência e de destemor orgulhoso, o indigenista Rogério Oliveira, da Funai, com larga experiência de campo desde os idos da década de 1970, entre os Xavante, até o presente, onde exerce função não gratificada na Coordenação Geral de Índios Isolados, escreveu a carta abaixo aos seus colegas servidores e funcionários da Funai.
Na carta, Rogério faz uma análise dos motivos que levaram a atual direção da Funai a pedir à AGU para entrar com uma ação de reintegração da posse com despejo de índios Xavante que se encontravam no prédio da Funai. Não são bons os motivos. São ignóbeis, para falar a verdade. E conclama seus colegas indigenistas e servidores a levantar a cabeça e não deixar se esmorecer diante do que está acontecendo.
Essa carta é um sinal dos tempos. Rogério, pela sua coragem de se expor, junto a muitos outros indigenistas e servidores da Funai demonstram que não estão abúlicos diante do poder atual e protestam contra o que está acontecendo, contra o que vem acontecendo nesses longos e desastrosos dois anos e meio na Funai, antecipando o pior que está para vir, se a coisa continuar pelo mesmo caminho.
Há que lembrar que desde 2007 não se demarcava tão poucas terras pela Funai. Na verdade, a atual gestão não demarcou uma terra indígena sequer. Todas as terras homologadas em 2007 vieram das demarcações feitas na gestão anterior, por este que vos escreve. O ano passado nenhuma terra foi demarcada ou homologada. Este ano, prometido para o dia 23 próximo, o presidente Lula irá homologar três terras indígenas que foram demarcadas em 2006. Uma delas é a Terra Indígena Trombetas-Mapuera, com quase 4 milhões de hectares, demarcada em 2006 e só agora pronta para ser homologada.
Há que lembrar que, por efeito reativo desastroso causado pela retórica desmesurada das Ongs, do CIMI e da atual gestão da Funai, o STF lançou uma série de vinte ressalvas ou condições para a demarcação de terras indígenas. Essas ressalvas praticamente inviabilizaram a recuperação de terras indígenas usurpadas em passado recente.
Esse legado horrível tem donos, nomes e endereços. Estão aí, na mídia eletrônica, nos interstícios das aldeias indígenas, nos gabinetes do governo. Não são os indigenistas da Funai, nem é este antropólogo que aqui escreve. São atores esdrúxulos, pequenos potentados que tomaram de assalto o órgão, expulsando raivosa e desavergonhadamente o espírito rondoniano que deveria prevalecer na questão indígena brasileira e que tem sido o inspirador de atos e ações humanas da mais nobre dedicação nos últimos 100 anos em nosso país.
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O indigenismo é para poucos, e é formado e lapidado na
existência nas aldeias, no caminho das roças, nas estradas enlameadas, nas
trilhas na mata, nas subidas das serras, no remar das canoas nos igarapés, nos
rituais que vimos, nas mortes que compartilhamos, nas tempestades que passamos
debaixo de árvores, nas carrocerias dos velhos toyotas bandeirantes, as
conversas intermináveis em volta de uma fogueira.
Para muitos, isso nunca aconteceu, e para tantos esse tempo passou, ou como
dizem os novos entendidos, "estamos ultrapassados". (Moacir Santos,
Indigenista – dez 2009)
Colegas,
A citação acima, de um colega indigenista,
retrata bem o choque de entendimentos que ocorre atualmente na Funai. Hoje, o
grupo que se encontra na Direção da Funai, nega esse capital institucional, e
se delicia com uma aparente vitória, quando obtiveram na Justiça, induzida por
argumentos francamente preconceituosos, a decisão de expulsar os índios que se
encontravam ocupando o prédio da Funai.
Esta carta tem um objetivo claro. Obter o maior numero possível de
assinaturas em apoio à Nota de Repúdio que foi redigida por um grupo de pessoas
que não concordam com a decisão adotada pela atual Direção da Funai de, por
meio de ação judicial, expulsar os índios que estavam ocupando
[i]
o prédio da Funai, com a falsa acusação de que os mesmos estariam colocando em
risco a integridade física dos servidores.
Nesse sentido, é preciso que antes de se decidir pelo apoio ou não a
referida NOTA DE REPÚDIO, cada servidor deve ler os Termos
da ação que motivaram a decisão da justiça, bem como entender a
participação dos personagens envolvidos.
A Ação denominada de Reintegração de Posse foi solicitada pela Direção
da Funai, representada pelo Presidente, Diretor de Assistência, Chefe de
Gabinete e Diretora de Assuntos Fundiários. Mas dizem que com o apoio de alguns
Coordenadores Gerais.
Todos esses personagens acima, a exceção do Presidente, tiveram
participaram direta no recente e lamentável episódio quando os índios xavante
levaram o Diretor de assistência à força para o auditório e lá o teriam
obrigado a atender suas reivindicações, e no tumulto formado, algumas mulheres
xavante teriam ameaçado de morte a Chefe de Gabinete.
A tão lamentável episódio, infelizmente recorrente com diversos colegas
não só na sede, mas em diversas Administrações Regionais, obviamente que devemos deixar claro
nossa posição de repúdio, já que é inadmissível qualquer ato de violência
contra qualquer servidor. Mas a acusação contra os xavante, de colocar a
integridade física dos servidores em risco só é verdadeira se for estendida exclusivamente
à Direção da Funai, que como tal são servidores. E ai, o que se poderia
desejar, seria a solidariedade dos demais servidores, num salutar
espírito-de-corpo, para condenar explicitamente o ato dos xavante contra o
Diretor.
Mas só é possível exigir tal solidariedade, quando verdadeiramente se
atua em ambiente de recíproco respeito e sentimento de colaboração. E
infelizmente, não é assim que a atual Direção trata os servidores. O pouco que
se sabe, são manifestações de escárnio proferidos contra os servidores.
Tratados por “os antigos servidores da Funai, ultrapassados, assistencialistas,
manipuladores de índios”. E talvez, a maior prova do sentimento de desconfiança
que nutre a atual Direção contra “esses servidores antigos”, seja a forma como
conduzem a discussão da reestruturação do órgão, do qual a maioria dos
servidores foi excluída.
Então, o silêncio dos servidores que se seguiu ao episódio entre o Diretor
e os xavante, pode em parte ser explicado por esta razão.
Mas haveria uma explicação a motivar a decisão dos índios? Bom, desde
que a atual Direção da Funai assumiu, muitas das práticas condenáveis de
atender as reivindicações de lideranças, em moldes clientelistas e
assistencialistas foram mantidos. Dentre elas, nomeações de índios, criações e extinções
de unidades administrativas, sem nenhum estudo de viabilidade, se repetiram à
exaustão. E sobre isto, o TCU já fez diversas determinações à Funai.
A cada AER, Núcleo ou nomeação de DAS conquistado por um grupo xavante,
se seguia a imediata reação do grupo que se julgava prejudicado se deslocando
para Brasília para reivindicar o mesmo tratamento. Sendo uma pratica
insustentável é lógico e trágico o que se poderia esperar desse modelo de indigenismo.
Desde então, conviver diariamente com cenas de tradicionais lideranças xavante,
mulheres e crianças dormindo nos corredores, na garagem e em frente aos
elevadores, tem sim um significado de DRAMÁTICA VIOLÊNCIA! E é obvio que não é
a violência dos índios, mas contra eles.
Em ambiente de tão gritante desrespeito e escárnio à dignidade humana,
faltava pouco para acender o estopim que culminou com a agressão (reação?) ao
Diretor. E tentar criminalizar esta reação dos xavante será um crime ainda
maior, por esconder o fracasso daqueles que defendem praticar um novo e moderno
indigenismo
[ii].
É preciso que se diga que não foi o primeiro conflito do Diretor de
Assistência com comunidades indígenas presentes aqui na sede. Mas citar diversos
exemplos que resultaram em claros “constragimentos”, digamos assim, vividos
pelo Diretor, e do conhecimento da maioria dos servidores, poderia provocar o equivoco
de criar falsos debates.
Mas o fato é que houve uma clara diferença de tratamento dispensado
pela atual Direção para semelhantes casos de “constrangimento” vivenciados em
outras ocasiões, apesar da situação análoga aquela que os xavante são agora
denunciados.
Sabemos que a questão xavante suscita acalorados debates e divergências
de opiniões, mesmo entre servidores da Funai. Vistos por alguns como
excessivamente agressivos em suas reivindicações, em detrimento de outras
etnias, podem provocar reações de apoio às medidas duras como as que agora foram
adotadas pela Direção. Mas é um equivoco abissal adotar este entendimento.
Acreditem. Há sutilezas gravíssimas neste episódio. Os índios xavante estão
sendo acusados pela atual Direção de colocarem em risco a integridade física
dos servidores. Isto não é verdade e a Justiça não pode ser induzida, por
deliberada má fé, a proferir uma decisão baseada neste entendimento. Somos nós,
servidores, que herdaremos as conseqüências nefastas deste entendimento, que
terá conseqüências em tenebroso ambiente, cuja superação para restabelecer o
diálogo com os índios, será contaminada por desconfianças mutuas.
No novo cenário de atuação indigenista que se descortina, o maior
capital que uma instituição possuirá, será justamente a capacidade de diálogo
com as comunidades indígenas. E Neste quesito, a Funai, é disparada, a que tem
o maior patrimônio. Mas que está sendo jogada fora pela atual Gestão.
Sou servidor lotado aqui na sede, e como tantos outros, venho
assistindo a uma tentativa silenciosa para acabar com a Funai, em favor de uma
nova instituição que eles insistem em esconder da gente.
Tenho algumas suspeitas, mas não é o caso de se tratar neste documento.
Somente uma forte reação do conjunto dos servidores poderá impedir o
êxito desse grupo de pessoas.
E uma demonstração clara de que os servidores não ficarão parados
diante de decisões arbitrárias que signifiquem a desmoralização da instituição,
dos índios e dos servidores, depende da reação individual de cada um de nós,
servidores e indios.
Decisões claras e incisivas são necessárias em momentos de risco. E
acreditem, não tomar tais decisões, significará o fortalecimento daqueles que
precisam do enfraquecimento da Funai.
Neste momento, com minhas convicções, eu estou assumindo tais riscos.
Deixar claro que existe um projeto em curso, que se levado adiante, sem a
resistência do servidores e índios, levará ao enfraquecimento, desmoralização e
finalmente a extinção da Funai.
Por isso, a minha decisão de assinar o documento Nota de Repudio.
Por isso, a minha decisão de pedir aos demais colegas da Funai e índios
que assinem uma lista de abaixo-assinados em favor da Nota de Repúdio e
consigam o máximo de assinaturas possível.
Eles contam com nosso medo! Eles contam com o apoio político de aliados
que sempre odiaram a Funai! Eles contam com o apoio de aliados que precisam de
uma Funai fraca, para legitimarem suas atividades! Eles precisam de uma Funai
fraca para poderem continuar viajando pelo mundo (e somente no primeiro mundo)
para provar como o estado brasileiro é incompetente para proteger e cumprir a
política indigenista.
E tudo isto eles conseguirão somente com o nosso silêncio. Insisto!
Cada um de nós que escolher o silêncio, fornecerá a principal arma que eles
precisam para se fortalecer.
Reflitam e decidam. Cada um de nós tem nas mãos a condição de impedir
esse projeto irresponsável, que, com o enfraquecimento e extinção da Funai,
jogará os índios em um arriscado cenário de conflitos!
Brasília, 07 de dezembro de 2009
Rogerio
Eustáquio de Oliveira
Técnico
Indigenista
[i] Muitos xavantes saíram pacificamente do prédio na
ultima sexta-feira, 04/12 (após a notícia da morte do cacique Carlos Xavante).
Numa cena lamentável, em silêncio cerimonioso, mulheres e crianças embarcaram
em ônibus na porta da Funai, levando malas e bagagens de doações de roupas
usadas recebidas de moradores de Brasília – seriam estes os xavante que
estariam colocando a integridade física dos servidores em risco?.
[ii] Está análise é uma simplificação apenas para ilustrar
a parte superficial da crise. Fatos muito mais complexos, que exigiriam uma
análise igualmente profunda, devem e precisam ser tratados em outra
oportunidade. Ao tentar atingir os xavante com esta medida violenta de
expulsão, a atual direção revela uma luta surda nos bastidores, e o objetivo
seria atingir grupos políticos que eles acreditam serem seus inimigos.