quarta-feira, 4 de julho de 2012

Decreto que cria o Serviço de Proteção aos Índios - SPI

O Decreto nº 8.072, de 20 de junho de 1910, estabelece a criação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais. Vejam que a preocupação do governo Nilo Peçanha e do seu ministro da Agricultura, Rodolpho Miranda, era também com a massa de gente sem terra, perambulando pelas cidades e campos. Só em 1918 é que essa parte do SPI é retirada, ficando exclusivo aos índios.
Vale a pena ler o Regulamento que constituiu o SPI pela simplicidade e pelos objetivos traçados. E principalmente pelas evidentes dificuldades em conseguir cumprir o dever de proteger os índios, que é o principal objetivo do SPI. O segundo seria dar-lhes condições de se equiparar aos demais brasileiros, pelo trabalho e pelo conhecimento. Em nenhum momento se declara ou ao menos está implícito que o objetivo do SPI era controlar os índios, cercear sua vida ou mudar suas culturas para todos ficarem iguais aos brasileiros. Este foi o grande libelo feita por alguns antropólogos do Museu Nacional, nos últimos 20 anos, contra o SPI e contra Rondon, e que a maioria dessa geração de novos antropólogos engoliu a seco. Ainda é tempo de pôr a mão na consciência e mudar suas visões do mundo.

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Decreto nº 8.072, de 20 de Junho de 1910

Crêa o Serviço de Protecção aos Indios e Localização de Trabalhadores Nacionaes e approva o respectivo regulamento.
    O Presidente da Republica dos Estados Unidos do Brazil:
     Resolve, de accôrdo com a lei n. 1.606, de 29 de dezembro de 1906, crear o Serviço de Protecção aos Indios e Localização de Trabalhadores Nacionaes, sujeito ao regulamento, que com este baixa assignado pelo ministro de Estado dos Negocios da Agricultura, Industria e Commercio.
Rio de Janeiro, 20 de junho de 1910, 89º da Independencia e 22º da Republica.
NILO PEÇANHA.Rodolpho Nogueira da Rocha Miranda.

    Regulamento a que se refere o decreto n. 8.072, de 20 de junho de 1910

    Do serviço de Protecção aos Indios e Localização de Trabalhadores Nacionaes
     Art. 1º O Serviço de Protecção aos Indios e Localização dos Trabalhadores Nacionaes, creado no Ministerio da Agricultura, Industria e Commercio, tem por fim:
    a) prestar assistencia aos indios do Brazil, quer vivam aldeiados, reunidos em tribus, em estado nomade ou promiscuamente com civilizados;
    b) estabelecer em zonas ferteis, dotadas de condições de saiubridade, de mananciaes ou cursos de agua e meios faceis e regulares de communicação, centros agricolas, constituidos por trabalhadores nacionaes que satisfaçam as exigencias do presente regulamento.

    TITULO I

CAPITULO I
DA PROTECÇÃO AOS INDIOS
     Art. 2º A assistencia de que trata o art. 1º terá por objecto:
    1º, velar pelos direitos que as leis vigentes conferem aos indios e por outros que lhes sejam outorgados;
    2º, garantir a efectividade da posse dos territorios occupados por indios e, conjunctamente, do que nelles se contiver, entrando em accôrdo com os governos locaes, sempre que fôr necessario;
    3º, pôr em pratica os meios mais efficazes para evitar que os civilizados invadam terras dos indios e reciprocamente;
    4º, fazer respeitar a organização interna das diversas tribus, sua independencia, seus habitos e instituições, não intervindo para alteral-os, sinão com brandura e consultando sempre a vontade dos respectivos chefes;
    5º, promover a punição dos crimes que se commetterem contra os indios;
    6º, fiscalizar o modo como são tratados nos aldeiamentos, nas colonias e nos estabelecimentos particulares;
    7º, exercer vigilancia para que não sejam coagidos a prestar serviços a particulares e velar pelos contractos que forem feitos com elles para qualquer genero de trabalho;
    8º, procurar manter relações com as tribus, por intermedio dos inspectores de serviço de protecção aos indios, velando pela segurança delles, por sua tranquillidade, impedindo, quanto possivel, as guerras que entre si manteem e restabelecendo a paz;
    9º, concorrer para que os inspectores se constituam procuradores dos indios, requerendo ou designando procuradores para represental-os perante as justiças do paiz e as autoridades locaes;
    10, ministrar-lhes os elementos ou noções que lhes sejam applicaveis, em relação as suas occupações ordinarias;
    11, envidar esforços por melhorar suas condições materiaes de vida, despertando-Ihes a attenção para os meios de modificar a construcção de suas habitações e ensinando-lhes livremente as artes, officios e os generos de producção agricola e industrial para os quaes revelarem aptidões;
    12, promover, sempre que for possivel, e pelos meios permittidos em direito, a restituição dos terrenos, que lhes tenham sido usurpados;
    13, promover a mudança de certas tribus, quando for conveniente o de conformidade com os respectivos chefes;
    14, fornecer aos indios instrumentos de musica que lhes sejam apropriados, ferramentas, instrumentos de lavoura, machinas para beneficiar os productos de suas culturas, os animaes domesticos que lhes forem uteis e quaesquer recursos que lhes forem necessarios; introduzir em territorios indigenas a industria pecuaria, quando as condições locaes o permittirem;
    16, ministrar, sem caracter obrigatorio, instrucção primaria e profissional aos filhos de indios, consultando sempre a vontade dos paes;
    17, proceder ao levantamento da estatistica geral dos indios, com declaração de suas origens, idades, linguas, profissões e estudar sua tuação actual, seus habitos e tendencias.
CAPITULO II
DAS TERRAS OCCUPADAS POR INDIOS
     Art. 3º O Governo Federal, por intermedio do Ministerio da Agricultura, Industria e Commercio e sempre que fôr necessario, entrará em accôrdo com os governos dos Estados ou dos municipios:
    a) para que se legalizem convenientemente as posses das terras actualmente occupadas pelos indios;
    b) para que sejam confirmadas as concessões de terras, feitas de accôrdo com a lei de 27, de setembro de 1860;
    c) para que sejam cedidas aos Ministerio da Agricultura as terras devolutas que forem julgadas necessarias ás povoações indigenas ou á installação de centros agricolas.
     Art. 4º Realizado o accôrdo, o Governo Federal mandará proceder medição e demarcação dos terrenos, levantar a respectiva planta com todas as indicações necessarias, assignalando as divisas com marcos ou padrões de pedra.
     Art. 5º Da planta e do memorial recpectivo, que deverá ser o mais detalhado possivel, será dada cópia aos governos estaduaes e municipaes, conservando-se o original no archivo da directoria.
     Art. 6º Satisfeito o disposto nos artigos anteriores, o governo providenciará para que seja garantido aos indios o usufructo dos terrenos demarcados.
     Art. 7º Os indios não poderão arrendar, alienar ou gravar com onus reaes as terras que lhes forem entregues pelo Governo Federal.
     Art. 8º Os contractos dessa natureza que forem realizados pelos mesmos, serão considerados nullos de pleno direito.
     Art. 9º O governo providenciará para que nos territorios federaes os indios sejam mantidos na plenitude da posse dos terrenos pelos mesmos actualmente occupados.
CAPITULO III
DOS INDIOS ALDEIADOS
     Art. 10. Si os indios, que estiverem actualmente aldeiados, quizerem fixar-se nas terras que occupam, o governo providenciará de modo a lhes ser mantida a effectividade da posse adquirida.
     Art. 11. As terras de que trata o artigo anterior serão medidas e demarcadas na fórma do art. 4º.
    Paragrapho unico. O governo, sempre que julgar necessario, fará construir casas para residencia dos indios e estradas de rodagem para ligação dos aldeiamentos aos centros de consumo.
     Art. 12. Na medição e demarcação dos terrenos e na concessão dos titulos, será observado o disposto no presente regulamento e nas instrucções respectivas.
     Art. 13. Quando os indios aldeiados, na forma do art. 10, occuparem terrenos na visinhança de centros populosos, ser-lhes-ha concedida, além da arca destinada á sua residencia habitual, uma superficie de terreno, em logar conveniente, para as culturas a que se dedicarem.
CAPITULO IV
DOS INDIOS NOMADES E DOS QUE SE MANTIVEREM EM PROMISCUIDADE COM CIVILIZADOS
     Art. 14. A directoria, por intermedio dos inspectores, procurará, por meios brandos, attrahir os indios que viverem em estado nomade e prestará aos que se mantiverem em promiscuidade com civilizados a mesma assistencia que lhe cabe dispensar aos mais indios.
    Paragrapho unico. Para o serviço relativo aos indios nomades poderá ser admitido pelo ministerio, sob proposta da directoria, o pessoal extraordinario que fôr preciso.
CAPITULO V
DAS POVOAÇÕES INDIGENAS
     Art. 15. Cada um dos antigos aldeiamentos, reconstituidos de accôrdo com as prescripções do presente regulamento, passará a denominar-se «Povoação Indigena», onde serão estabelecidas escolas para o ensino primario, aulas de musica, officinas, machinas e utensilios agricolas, destinados a beneficiar os productos das culturas, e campos apropriados a aprendizagem agricola.
    Paragrapho unico. Não será permittido, sob pretexto algum, coagir os indios e seus filhos a qualquer ensino ou aprendizagem, devendo limitar-se a acção do inspector e de seus auxiliares a procurar convencel-os, por meios brandos, dessa necessidade.
     Art. 16. Annexas aos campos de que trata o artigo anterior, haverá secções especiaes para apicultura, sericicultura, pequenas industrias, criação de animaes domesticos, etc.
     Art. 17. São extensivos aos indios localizados em «Povoação Indigena» os auxilios conferidos no presente regulamento as tribus cujos terrenos forem medidos e demarcados pelo Governo Federal, além de alimentação, nos seis primeiros mezes de estabelecimento da povoação, soccorros medicos e outros recursos, sempre que forem necessarios.
     Art. 18. O ministro da Agricultura, Industria e Commercio estabelecerá premios para os funccionarios da directoria, nos Estados, que adquirirem perfeito conhecimento da lingua geral dos indios e de seus dialectos.
     Art. 19. O Governo Federal poderá acceitar a transferencia para sua jurisdicção dos aldeiamentos ou quaesquer instituições destinadas á educação dos indios, mantidos por governos estaduaes, municipaes ou por associações, desde que lhe sejam cedidos os terrenos em que forem estabelecidos e as respectivas installações.
     Art. 20. Taes aldeiamentos ou instituições passarão logo ao regimem instituido no presente regulamento para os similares creados pelo Governo Federal.
     Art. 21. Os indios trabalharão livremente e terão pleno direito ao producto integral do seu trabalho.

    TITULO II

CAPITULO I
DA LOCALIZAÇÃO DE TRABALHADORES NACIONAES
     Art. 22. O Governo Federal, por intermedio do Ministerio da Agricultura, Industria e Commercio, e de conformidade com este regulamento, promoverá a installação de centros agricolas, onde serão localizados os trabalhadores nacionaes que, por sua capacidade de trabalho e absoluta moralidade, possam merecer os favores consignados para esse fim.
     Art. 23. Os centros agricolas serão estabelecidos em boas terras de cultura, apropriadas á lavoura mecanica, dotadas de perfeitas condições de salubridade, de mananciaes ou cursos de agua potavel, servidas de meios faceis de communicação e proximas dos mercados consumidores.
     Art. 24. O Governo promoverá, desde já, a fundação de um ou dous centros agricolas, em cada um dos Estados em que julgar conveniente, inclusive o Districto Federal, devendo sempre ser preferidas para esse fim zonas cortadas por estradas de ferro da União, e que reunam os requisitos exigidos pelo artigo anterior.
     Art. 25. O numero de centros agricolas poderá ser augmentado annualmente, conforme permittirem as dotações orçamentarias.
     Art. 26. Si os terrenos preferidos para a fundação de um centro agricola forem de propriedade do Governo do Estado ou do municipio, o Governo Federal procurará obtel-os por doação.
    Paragrapho unico. Os centros agricolas serão de preferencia estabelecidos nos Estados ou municipios que fizerem á União doação de terrenos nas condições estabelecidas no art. 26.
     Art. 27. Occorrendo o facto de pertencerem os ditos terrenos a particulares, será sempre preferida a acquisição por composição amigavel e de conformidade com o valor locativo das terras, verificado pelo preço médio das vendas realizadas no ultimo quinquennio, e só em caso extremo empregar-se-ha o recurso da desapropriação.
CAPITULO II
DA INSTALLAÇÃO DOS CENTROS AGRICOLAS
     Art. 28. A escolha de terras para a installação de centros agricolas deve preceder exame circumstanciado, por parte da Directoria do Serviço de Protecção aos Indios e Localização de Trabalhadores Nacionaes, afim de serem verificadas as condições estabelecidas na alinea B, art. 1º, do presente regulamento.
     Art. 29. Além das alludidas condições, devem os terrenos ter a superficie precisa para o futuro desenvolvimento dos centros agricolas e expansão de suas culturas, devendo possuir igualmente terrenos de matta.
     Art. 30. Nas instrucções do presente regulamento, serão estabelecidas regras que devem ser adoptadas para os trabalhos preparatorios do «Centro Agricola», relativos ao levantamento hydrographico e da linha de perimetro, medico e demarcação das terras, sua divisão em lotes, e respectivas discriminação, abertura de estradas, construcção de casas e todos os trabalhos technicos indispensaveis, que ficarão a cargo da respectiva sub-directoria.
     Art. 31. O Governo Federal estabelecerá nos centros agricolas escolas primarias com curso diurno e nocturno, officinas, campos de experiencia e de demonstração, com aprendizado agricola, depositos de instrumentos de lavoura e as installações necessarias para o beneficiamento dos productos da lavoura local.
    Paragrapho unico. As escolas, officinas, campos de experiencia e demonstração e aprendizados agricolas poderão ser frequentados por filhos de lavradores estranhos aos centros agricolas, de conformidade com as instrucções que regularem o assumpto.
CAPITULO III
DOS TRABALHADORES NACIONAES
     Art. 32. Os centros agricolas serão constituidos com trabalhadores nacionaes domiciliados no mesmo estado e que satisfaçam as seguintes condições:
    a) não ter sido condemnado por crime de qualquer natureza, nem ter soffrido prisão correccional por embriaguez ou contravenções;
    b) ser chefe de familia ou solteiro com mais de 21 annos de idade e menos de 60;
    c) ser trabalhador agricola;
    d) ter capacidade physica e aptidão para o trabalho.
    Paragrapho unico. Os chefes de familia serão sempre preferidos, desde que satisfaçam as condições das letras a, c e d.
     Art. 33. Aos trabalhadores nacionaes que tiverem de estabelecer-se nos centros agricolas serão concedidos os seguintes favores:
    a) transporte para si e sua familia, com direito á bagagem;
    b) fornecimento gratuito de ferramentas, plantas e sementes para as primeiras culturas;
    c) auxilio para a manutenção de sua familia, dentro dos tres primeiros mezes de estabelecimento do «Centro Agricola»;
    d) recurso medico gratuito, pelo prazo de um anno.
     Art. 34. A área destinada a cada «Centro Agricola» será dividida em lotes de 25 a 50 hectares, nos quaes serão construidas casas destinadas aos trabalhadores nacionaes, de conformidade com o plano e as condições estabelecidas pela directoria do serviço.
     Art. 35. Os trabalhadores nacionaes poderão adquirir os lotes que lhes couberem, mediante pagamento immediato ou dentro do prazo de seis annos, a contar da data da sua installação no nucleo, cabendo-lhes, conforme a hypothese, titulo definitivo ou provisorio da propriedade.
    § 1º O prazo fixado para o pagamento do lote poderá ser reduzido pelo adquirente, de modo a permittir-lhe mais prompta acquisição do titulo definitivo de propriedade, cabendo-lhe, no caso, o abatimento que for arbitrado pelo ministro da Agricultura, até o maximo de 20 %, de accôrdo com os seus habitos de trabalho e sua conducta.
    § 2º O abatimento a que se refere o paragrapho anterior, poderá ser elevado a 30 %, si, dentro de quatro annos, da data de sua installação, tiver o trabalhador cultivado com successo, a juizo do governo, toda a área do seu lote, com reserva de 10 % do total das terras, que deverá ser conservada em mattas, de preferencia nas parte altas.
     Art. 36. O preço dos lotes, comprehendendo a casa, será estabelecido pelo ministro da Agricultura, de accôrdo com a proposta do director do serviço, tendo em vista as condições que lhes foram peculiares.
     Art. 37. A amortização do debito contrahido pelo trabalhador nacional começará logo que forem decorridos 24 mezes de seu estabelecimento e será feita em prestações mensaes ou trimensaes, na razão annual de uma quarta parte (1/4) da importancia devida.
     Art. 38. As dividas dos trabalhadores serão escripturadas em livros especiaes, rubricados pelo director do serviço, entregando-se ao devedor uma caderneta em que serão feitos os assentamentos que lhe corresponderem.
     Art. 39. O trabalhador nacional que tiver de incorporar-se a um «Centro Agricola» obrigar-se-ha:
    1º, a estabelecer-se com sua familia, quando a tiver, no lote que lhe fôr designado pelo director do serviço e a cultival-o pessoalmente;
    2º, a não crear animaes sinão em terrenos fechados, de accôrdo com instrucções que lhe forem dadas pelo director do centro;
    3º, a não arrendar, vender ou hypothecar o lote e as respectivas bemfeitorias, nem fazer sobre elle proposta de venda ou qualquer contracto que o prive de cultivar livremente, até que obtenha o titulo definitivo de propriedade; não podendo vendel-o ou arrendal-o, mesmo depois de obtido o titulo definitivo, sinão a pessoas que reunam as condições do art. 32, a juizo do director do serviço e com approvação do ministro;
    4º, a submetter-se ás regras e providencias que forem estabelecidas pelo representante da directoria a bem da ordem e da disciplina, quer em relação aos funccionarios do Centro Agricola, quer para com os seus proprios companheiros.
     Art. 40. Em caso de morte do trabalhador nacional a quem houver sido expedido titulo definitivo ou provisorio de propriedade, passará o lote, na fórma commum do direito, aos seus herdeiros ou legatarios.
     Art. 41. Si o chefe de familia fallecido houver adquirido o lote a prazo, tendo contribuido com tres prestações, será passado titulo definitivo de propriedade em favor da viuva e dos orphãos.
     Art. 42. Si a familia do chefe fallecido ficar em estado de miseria, poderá o ministro, ouvido o director de serviço, expedir a favor da viuva e orphãos o titulo de propriedade, independente de qualquer amortização.
     Art. 43. O Governo Federal procurará estimular os trabalhadores nacionaes, incorporados aos centros agricolas, concedendo premios de animação para certas culturas, organizando exposições regionaes, etc.
     Art. 44. A's familias de trabalhadores, que tiverem filhos maiores de 14 annos, aptos para o trabalho agricola, poderá ser concedida, além do lote destinado ao respectivo chefe, a área de 12 hectares para cada um delles, com a approvação do ministro da Agricultura.
     Art. 45. O trabalhador nacional que se distinguir, por sua actividade, poderá adquirir mais de um lote, a juizo do director do serviço, desde que tenha pago o primeiro, ou quando tenha feito mais da metade do pagamento.
     Art. 46. O trabalhador que deixar de cultivar o seu lote por espaço de tres mezes, a não ser motivo justificado de força maior, a juizo do director do serviço, será excluido do «Centro Agricola», sem direito a indemnização alguma, desde que não se ache de posse do titulo definitivo de propriedade.
    Paragrapho unico. No caso de já haver obtido o titulo definitivo, será indemnizado da importancia que tiver pago aos cofres publicos.
     Art. 47. O trabalhador que, por sua má conducta, tornar-se um elemento de perturbação para o « Centro Agricola», fica sujeito ao disposto no artigo anterior.
     Art. 48. A exclusão, em qualquer dos casos previstos nos artigos antecedentes, será feita por acto do director do serviço, com recurso voluntario para o ministro da Agricultura.
    TITULO III
Da organização do serviço
CAPITULO I
DISTRIBUIÇÃO DOS TRABALHOS
     Art. 49. Os trabalhos previstos neste regulamento ficarão a cargo de uma directoria geral com duas sub-directorias e dos inspectores e mais funccionarios indicados no art. 52.
     Art. 50. A' 1ª sub-directoria incumbe especialmente:
    a) projectar, orçar e dirigir a execução dos serviços de demarcação dos territorios occupados por indios;
    b) escolher as localidades em que deverão ser installadas as povoações indigenas e os centros agricolas;
    c) proceder á divisão e demarcação dos lotes ruraes, levantamentos topographicos, construcção de casas nas povoações e centros agricolas e nos predios necessarios á administração;
    d) projectar e dirigir a execução de obras de saneamento, construcção de caminhos, e reparação e melhoria das estradas de rodagem que interessem ás povoações e centros agricolas;
    e) estudar e construir, nos casos de necessidade, caminhos vicinaes ou de ligação dos centros ou povoações ás estações de estradas de ferro, portos maritimos ou fluviaes, ou a centros commerciaes;
    f) preparar em cada lote rural a área destinada ás primeiras culturas;
    g) instituir e manter no escriptorio um archivo dos projectos, plantas topographicas e outros papeis que se relacionem com as obras em andamento;
    h) executar quaesquer outros trabalhos technicos que lhe forem confiados pela directoria geral.
     Art. 51. A' segunda sub-directoria incumbe especialmente:
    a) propôr e zelar pela rigorosa execução das medidas adoptadas para tornar effectiva a protecção aos indios e evitar a invasão de seus territorios; as que forem conducentes a obstar os conflictos das tribus entre si e com os civilizados, envidando esforços para tornarem-se primeiro pacificas e depois amistosas as relações entre estes e aquelles;
    b) installar e dirigir, na parte exclusivamente administrativa, as povoações indigenas;
    c) crear escolas, proteger o salario dos indios que se empregarem como jornaleiros e adoptar ou pedir ás autoridades competentes todas as medidas necessarias para a manutenção da boa ordem, segurança e desenvolvimento das povoações;
    d) installar e administrar os centros agricolas, fornecendo-lhes gratuitamente ferramentas e sementes, como auxilio de primeiro estabecimento, além de outras vantagens prevista neste regulamento ou posteriormente instituidas em instrucções expedidas pelo director geral por ordem do ministro, mediante proposta ou não do sub-director;
    e) porpôr a creação de campos de experiencia e demonstração junto aos centros agricolas;
    f) ter a seu cargo os trabalhos relativos a exposições regionaes, feiras e premios de que trata o presente regulamento, ou que forem posteriormente instituidos;
    g) executar quaesquer outros trabalhos que lhe forem confiados pela directoria geral, além do expediente da repartição, registro de papeis, e toda a escripturação que fôr necessaria para o bom andamento do serviço.
CAPITULO II
DO PESSOAL
      Art. 52. O pessoal do serviço dividir-se-ha em effectivo e extraordinario.
    § 1º O pessoal effectivo será o seguinte:
    Na séde do serviço:
     Directoria geral:
    1 director geral;
    1 primeiro official (servindo de secretario);
    1 segundo official.
    Primeira sub-directoria:
    1 sub-director (technico);
    2 ajudantes (technicos);
     1 agronomo (technico);
     1 desenhista;
     1 desenhista auxiliar;
     1 terceiro official.
     Segunda sub-directoria:
    1 sub-director;
    2 primeiros officiaes;
     2 segundos officiaes;
     2 terceiros officiaes.
     Portaria:
     1 porteiro;
     1 continuo;
     2 serventes.
    Nos Estados:
    13 inspectores, sendo 1 para cada um dos Estados do Amazonas, Pará, Maranhão, Bahia, Espirito Santo, S. Paulo, Paraná, Santa Catharina, Rio Grande do Sul, Minas, Goyaz, Matto Grosso e 1 para o territorio do Acre;
    10 ajudantes, sendo 2 para cada um dos Estados do Amazonas, Pará, Matto Grosso, Goyaz e para o teritorio do Acre;
    13 escreventes, sendo 1 para cada inspectoria.
    Nas povoações indigenas:
    1 director, 1 ajudante e 1 escrevente.
    Nos centros agricolas:
     1 director, 1 chefe de culturas e 1 escrevente.
     Art. 53. Além do pessoal effectivo, haverá o pessoal extraordinario que fôr indispensavel para a execução dos serviços de demarcação, construcções, levantamentos topographicos, localização e outros que não puderem ser executados pelo pessoal effectivo.
     Art. 54. O pessoal extraordinario, inclusive medicos, pharmaceuticos, professores primarios e mestres de officinas, será nomeado pelo ministro, de accôrdo com as necessidades e sob proposta do director geral; perceberá as gratificações que lhe forem arbitradas no acto da nomeação e será mantido somente emquanto bem servir e durar a necessidade do serviço.
CAPITULO III
ATTRIBUIÇÕES DO PESSOAL
    Do director geral:
     Art. 55. Ao director geral, immediatamente subordinado ao ministro, incumbe:
    a) distribuir, dirigir e fiscalizar os serviços instituidos por este regulamento;
    b) manter e fazer manter, pelos meios ao seu alcance, a observancia das ordens em vigor;
    c) propôr ao ministro, verbalmente ou por escripto, as providencias que julgar convenientes para o bom andamento e melhoria dos serviços;
    d) preparar e fazer preparar as instrucções que houverem de ser expedidas para a installação, regularização e desenvolvimento dos serviços;
    e) apresentar annualmente ao ministro um relatorio dos trabalhos realizados;
    f) prestar ás autoridades federaes e estaduaes, espontaneamente ou mediante requisição, os esclarecimentos necessarios á boa ordem o desenvolvimento dos serviços;
    g) dar posse aos seus subordinados, fazendo lavrar e assignar os respectivos termos de promessa;
    h) impor as penas disciplinares, de conformidade com o art. 68 deste regulamento;
    i) assignar a folha de vencimentos dos funccionarios sob sua direcção, concedendo ou não a justificação das faltas por elles commettidas dentro do mez, á vista do livro do ponto, e requisitar o respectivo pagamento;
    j) rever o expediente e lançar o - visto - quando não tiver de dar parecer nos papeis que tenham de ser apresentados ao ministro.;
    k) ordenar as despezas com o expediente e mais objectos necessarios á directoria e mais dependencias do serviço, dentro dos recursos orçamentarios;
    I) examinar as contas e requisitar ao ministro o pagamento das aquisições quaesquer que se tenham de effectuar para os serviços sob sua direcção;
    m) requisitar das autoridades federaes e estaduaes as medidas necessarias para a manutenção da ordem nos differentes pontes em que exercer a sua jurisdicção:
    n) exercer quaesquer outras attribuições que lhe couberem por este regulamento e mais disposições em vigor.
     Art. 56. O director geral, em seus impedimentos ou ausencias desta Capital, por motivo de serviço, terá por substituto o sub-director da 1ª sub-directoria, e, em falta deste, o da 2ª sub-directoria.
    Do secretario:
     Art. 57. Ao secretario, subordinado e auxiliar immediato do director geral, incumbe:
    a) receber e enviar as respectivas sub-directorias os papeis dirigidos ao director geral e que tenham de ser nellas processados;
    b) receber das sub-directorias e fazer chegar ao conhecimento do director geral os papeis que por elle tiverem de ser despachados;
    c) providenciar sobre a expedição dos actos do director geral, fazendo as devidas communicações;
    d) auxilar o director geral nos trabalhos que este reservar para si;
    e) providenciar sobre a correspondencia epistolar e telegraphica da directoria.
    Dos sub-directores:
     Art. 58. Os sub-directores, auxiliares immediatos do director geral, são chefes das respectivas sub-directorias e, como taes, os unicos responsaveis perante o director geral pelos serviços que por ellas correm.
    A elles incumbe:
    a) auxillar a direcção dos trabalhos segundo as instrucções do director geral, distribuindo ao respectivo pessoal os serviços da competencia de cada um;
    b) dirigir, examinar, fiscalizar e promover todos os trabalhos que competirem ás respectivas sub-directorias;
    c) cumprir e fazer cumprir as ordens do director geral;
    d) apresentar ao director geral, até o dia 20 de fevereiro de cada anno, as notas e elementos que lhe forem requisitados e os que julgarem necessarios para a confecção do relatorio annual da directoria, com os documentos que lhes servirem de base, bem como os dados necessarios para a confecção do orçamento;
    e) apresentar semestralmente ao director geral uma synopse dos trabalhos realizados pela respectiva sub-directoria;
    f) encerrar o ponto dos funccionarios subordinados, á hora regulamentar.
     Art. 59. O sub-director da 1ª sub-directoria terá sob suas ordens immediatas dous ajudantes e um engenheiro agronomo, cujas attribuições e deveres serão discriminados pelo mesmo sub-director, em instrucções expedidas mediante approvação prévia do director geral.
     Art. 60. As sédes das inspectorias, os deveres e attribuições dos inspectores e pessoal das povoações indigenas e centros agricolas serão discriminados em instrucções expedidas pelo ministro da Agricultura, sob proposta do director geral.
     Art. 61. O director geral fará a distribuição dos demais funccionarios pelas diversas sub-directorias, incumbindo aos sub-directores prescrever-lhes os seus respectivos deveres, guiando-se, para isto, pelos regulamentos das repartições do Ministerio da Agricultura.
CAPITULO IV
VENCIMENTOS, NOMEAÇÕES, DEMISSÕES, LICENÇAS, APOSENTADORIAS, MONTEPIO E OUTRAS VANTAGENS
     Art. 62. Os vencimentos dos funccionarios do serviço serão os constantes da tabella annexa.
     Art. 63. Serão nomeados, por decreto do Presidente da Republica, o director geral e os sub-directores, e os demais funccionarios pelo ministro da Agricultura.
     Art. 64. A nomeação do director geral, bem como a do pessoal technico, inspectores, ajudantes e pessoal das povoações indigenas e centros agricolas será de livre escolha do governo.
     Art. 65. A dos sub-directores, primeiros e segundos officiaes será sempre por accesso dentre os funccionarios de categoria immediatamente inferior, que tiverem dado melhores provas de competencia, zelo e assiduidade ao serviço.
     Art. 66. As nomeações dos terceiros officiaes serão feitas mediante concurso, de accôrdo com as instrucções para esse fim expedidas pela directoria geral.
     Art. 67. Ficam extensivas aos funccionarios do serviço as disposições contidas nos arts. 21 e 22 do regulamento da Secretaria de Estado da Agricultura, Industria e Commercio.
     Art. 68. No tocante as licenças, aposentadorias, montepio e penas disciplinares, serão extensivas aos funccionarios do serviço as disposições contidos nos artigos componentes dos capitulos VIII IX e X do regulamento annexo ao decreto n. 7.727, de 9 de janeiro de 1909.
CAPITULO V
TEMPO DE TRABALHO E EXPEDIENTE
     Art. 69. O trabalho, na Capital Federal, começará ás 10 horas da manhã e findará ás 3 horas da tarde nos dias uteis, podendo, porém, ser prorogado pelo director geral, por urgencia de serviço.
    Nos Estados, o trabalho começará nas horas indicadas nas instrucções que forem expedidas pelo ministro, sob proposta do director geral.
CAPITULO VI
DISPOSIÇÕES GERAES
     Art. 70. O Governo Federal procurará aproveitar os indigenas em serviços industriaes compativeis com as suas aptidões, remunerando-os de accôrdo com a sua capacidade de trabalho e conforme o estabelecido para os mais trabalhadores.
     Art. 71. Organizado definitivamente um «Centro Agricola» o Governo Federal entrará em accôrdo com o governo local para o estabelecimento de uma feira semanal nas proximidades do mesmo centro, prestando o auxilio necessario para esse fim.
     Art. 72. Haverá em cada «Centro Agricola» machinas e instrumentos agricolas para serem vendidos pelo custo ou emprestados aos trabalhadores, assim como serão montadas as machinas necessarias para beneficiamento dos seus productos, mediante as condições que forem estabelecidas e a juizo do governo.
    Paragrapho unico. As machinas e instrumentos a que se refere o presente artigo poderão igualmente ser emprestados aos pequenos lavradores das proximidades, assim como as de beneficiamento poderão ser por elles utilizadas nas mesmas condições em que o forem pelos trabalhadores do «Centro Agricola».
     Art. 73. O Governo Federal mandará fornecer gratuitamente aos lavradores, residentes nas proximidades dos centros, sementes, mudas e publicações relativas á agricultura e industrias ruraes, e mediante indemnização a prazo de accôrdo com os recursos orçamentarios, conforme as instrucções que forem approvadas pelo ministro da Agricultura, instrumentos e pequenas machinas de lavoura, vehiculos e animaes para conducção dos productos agricolas e animaes reproductores de raça, especialmente gallinaceos, suinos e caprinos adequados a cada região.
     Art. 74. Em caso de secca ou qualquer calamidade que obrigue as populações ruraes a se afastarem das zonas em que se acharem fixadas, procurará o Governo Federal localizal-as, de accôrdo com o governo estadual, em outras zonas não assoladas do mesmo Estado, constituindo nellas centros agricolas.
     Art. 75. Sempre que houverem de ser feitas derrubadas, aberturas de estradas, aterros e outras obras em proveito de um «Centro Agricola», serão, de preferencia, utilizados trabalhadores nacionaes localizados no mesmo centro, percebendo as diarias que forem fixadas pelo director do serviço.
     Art. 76. Os cargos de director geral, sub-director da 1ª sub-directoria e seus ajudantes serão exercidos, de preferencia, por profissionaes de reconhecida competencia.
    Paragrapho unico, Terão preferencia para os cargos de directores dos centros agricolas os agronomos diplomados e que tenham longa pratica e experiencia de agricultura.
     Art. 77. O ministro da Agricultura, Industria e Commercio expedirá as intrucções necessarias para execução do presente regulamento.
Tabella de vencimentos a que se refere o art. 62 deste regulamento
  VENCIMENTOS ANNUAES
Categorias Ordenado Gratificação
Director geral...................................................................................... 12:000$000 6:000$000
Sub-director........................................................................................ 8:000$000 4:000$000
Ajudante.............................................................................................. 6:400$000 3:200$000
Agronomo........................................................................................... 6:400$000 3:200$000
Desenhista.......................................................................................... 4:800$000 2:400$000
Desenhista-auxiliar............................................................................. 3:600$000 1:800$000
Secretario............................................................................................ 6:400$000 3:200$000
1º official............................................................................................. 5:600$000 2:800$000
2º official............................................................................................. 4:000$000 2:000$000
3º official............................................................................................. 3:200$000 1:600$000
Porteiro............................................................................................... 2:000$000 1:000$000
Continuo.............................................................................................. 1:600$000 800$000
Servente..............................................................................................      -- 1:800$000
Inspectorias    
Inspector............................................................................................. 6:400$000 3:200$000
Ajudante.............................................................................................. 4:800$000 2:400$000
Escrevente.......................................................................................... 2:000$000 1:000$000
Povoação indígena    
Director............................................................................................... 5:600$000 2:800$000
Ajudante.............................................................................................. 4:000$000 2:000$000
Escrevente.......................................................................................... 1:800$000 600$000
Centro agrícola    
Director............................................................................................... 4:800$000 2:400$000
Chefe de culturas................................................................................ 2:000$000 1:000$000
Escrevente.......................................................................................... 1:800$000 600$000
Observações
    1ª O director geral, sub-directores, ajudantes e agronomo, inspectores e seus ajudantes, quando em serviço fóra da séde de seus trabalhos terão direito a diarias que serão fixadas pelo ministro, não excedendo, porém, as quantias de 20$ para o director, 15$ para os sub-directores e inspectores e 10$ para os ajudantes e agronomos.
    2ª O logar de secretario será exercido por um primeiro ou segundo official, escolhido pelo director geral, cabendo-lhe, quando no exercicio do cargo, a gratificação mensal de 100$, além dos respectivos vencimentos.
    3ª A séde de cada inspectoria será fixada nas instrucções a que se refere o art. 60 deste regulamento.
    Rio de Janeiro, 20 de junho de 1910. - Rodolpho Miranda.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Xavante em conflito

Gostaria de apresentar essa matéria jornalística do site Olhar Direto, de Cuiabá, com a expressão: Não me tirem do sério!

É que ela mostra que está ocorrendo um conflito extremamente sério na Terra Indígena Maraiwatsede devido à resistência dos posseiros e fazendeiros lá instalados, que se recusam a obedecer a ordem judicial para se retirar de lá. Porém, tanto pior porque o conflito está exacerbado devido às desavenças internas e a resultante desunião dos Xavante quanto à legitimidade de sua posse sobre essa terra indígena, que foi reconhecida como indígena em 1992, demarcada em 1995 e homologada em 1998, parte da qual os Xavante só conseguiram recuperar em 2004. Um grupo de tantos Xavante, não sei dizer ao certo, não sei se posso acreditar que sejam 150 deles, estão junto com os posseiros, tendo vindo de diversas outras terras indígenas xavante!

Quem poderá suportar uma coisa dessas! Qual o indigenista, qual o antropólogo, qual o funcionário da FUNAI que aguenta saber de uma coisa dessas!?

Só pode ser invencionice de algum modo. Ou exagero.

Sinto-me estranho diante dessa acontecimento e da desunião dos Xavante. Quando entrei na presidência da Funai a terra estava homologada mas não havia nenhum Xavante dentro dela. Por anos eles tentavam entrar e retomar sua soberania sobre o que havia sido demarcado, mas eram sempre dissuadidos por fazendeiros locais. A entrada dos Xavante em parte dessa terra se deu a partir de uma comunicação que eles me fizeram em outubro de 2003, com pedido de apoio à sua luta.

Pois bem, dei-lhes total apoio, de muitas maneiras. Com frequência os recebia em Brasília, os advogados da Funai conseguiam audiências com ministros do STJ e do STF, para onde os acompanhava, e enviei uma equipe das mais dedicadas da Funai, liderada por Edson Beiriz, administrador de AER Goiânia, com a ajuda prestimosa de Cláudio Romero e outros indigenistas.

Em certo momento enfrentei políticos e fazendeiros em Cuiabá, em conturbada reunião convocada pelo governador Blairo Maggi, e com a presença do vice-presidente, atuando como presidente, o falecido José de Alencar, todos pressionando para que eu aceitasse transferir os Xavante para uma pequena gleba de terras a 130 km de distância de sua terra já homologada. Lembro-me que, ao dizer que não faria isso ao presidente em exercício levantou-se um burburinho de que eu estaria desobedecendo ao presidente da República e que, portanto, seria demitido incontinenti. Não fui demitido, evidentemente, não sei por quê ou por obra e graça de quem.

O certo é que os Xavante persistiram e depois de passarem sete meses acampados na beira de uma estrada poeirenta, a BR-158,  ameaçados pelos posseiros e os capangas dos fazendeiros, tendo-lhes morrido duas crianças, conseguimos uma decisão do STF que os permitia finalmente penetrar na área e assentar aldeia. E isso foi feito para sua honra e para a glória da FUNAI.

Agora os Xavante estão desunidos e alguns dizem que essa não é terra deles?!

Tem algo de errado nisso, e precisa ser esclarecido. De todo modo, eis a matéria jornalística, escrita com parcimônia e objetividade. Creiam os que queiram!

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Xavantes se dividem e quatro caciques se aliam a posseiros em bloqueio da BR-158 (veja fotos)


Da Redação - Renê Dióz
Foto: Aprosum/Olhar Direto
À esquerda, bloqueio realizado por posseiros contrários à demarcação da Funai; à direita, lideranças xavantes aliadas ao cacique Damião durante a Rio+20
À esquerda, bloqueio realizado por posseiros contrários à demarcação da Funai; à direita, lideranças xavantes aliadas ao cacique Damião durante a Rio+20
Trezentos posseiros e 150 índios xavantes, liderados por quatro caciques, participam do bloqueio na rodovia federal BR-158, na região do Araguaia, desde a noite de sábado (23).

O ato é uma forma de protesto contra a decisão judicial federal que determina a desintrusão da área remanescente da antiga fazenda Suiá Missú, cujo território foi usado na demarcação da Terra Indígena Maraiwatsede pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Também foram anunciados bloqueios nas rodovias federais 080 e 242, mas a inda não há confirmação de que tenham se concretizado.

Os posseiros se opõem à medida judicial alegando que a demarcação da Funai foi fraudulenta, pois a área de ocupação tradicional indígena, segundo eles, não fica na região de Suiá Missú.

O mesmo argumento é utilizado pelos líderes indígenas aliados aos posseiros; eles não reconhecem a liderança do cacique Damião Paridzané, principal figura indígena a reivindicar as terras de Maraiwatsede tais como foram demarcadas pela Funai.

O cacique Damião, que participou da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20), ainda deve chegar do Rio de Janeiro, onde proferiu discurso inflamado cobrando do governo federal, da Funai e do Ministério Público Federal (MPF) celeridade na elaboração do plano de desintrusão que deverá promover o retorno dos xavantes liderados por ele a Maraiwatsede.

As informações são da TV Record Norte Araguaia, baseada em Confresa, segundo a qual apenas pouco mais de 120 índios ficaram dentro de uma das aldeias da região. Desses, apenas pouco mais de 20 insistem em permanecer nas terras.

Caciques

Ao lado dos posseiros no bloqueio da BR-158 estão os caciques Cristóvão, da aldeia xavante de Barra do Garças, José Luis, da aldeia de Campinápolis, Paulo César, de Nova Xavantina, e Nicolas, que veio de Canarana. O líder dos caciques é o ancião Policato, de 89 anos, tio de Damião Paridzané, nascido no Norte Araguaia e que declara nunca ter vivido nas terras de Suiá Missú. Além do tio Policato, um irmão de Damião, Rufino, participa de protestos contra a demarcação no Posto da Mata, informou a TV Record Norte Araguaia.

Contra a demarcação da terra indígena da maneira como a Funai procedeu, o ancião Policato argumenta com o próprio significado de Maraiwatsede: “mata misteriosa”. Segundo ele, por temor da mata fechada, os xavantes tradicionalmente sempre evitaram ocupar áreas do tipo, preferindo regiões de cerrado.

A verdadeira terra indígena que deveria ser demarcada seria a área de cerrado entre os municípios de Novo Santo Antônio e Serra Nova Dourada, mas o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) já realizou assentamentos ali. Do outro lado, a Funai não volta atrás da demarcação de Maraiwatsede, considerada equivocada e fraudulenta por parte dos xavantes liderados pelo ancião e também por parte dos posseiros.

Além disso, o grupo de Policato aponta que a Justiça Federal, temerosa de uma repercussão negativa, desconsiderou os referidos argumentos ao proferir decisão pró-Maraiwatsede devido à iminência da Rio+20, evento durante o qual a questão seria inevitavelmente exposta à comunidade internacional – tal como foi durante a Eco-92, vinte anos antes, também com destaque para a figura do cacique Damião.
 
Permuta


Por isso, os caciques do grupo aceitam o proposto pelo governo do Estado por meio de projeto de lei aprovado em junho do ano passado para resolver o impasse sobre as terras de Suiá MIssú: o Estado propôs transferir os xavantes que reivindicam permanecer na região para uma outra área, o Parque Estadual do Araguaia. A lei que autoriza a permuta com a União, de número 9.564, foi apontada como inconstitucional pelo MPF.

Funai

A assessoria de imprensa da Funai em Brasília informou que o órgão já foi notificado da decisão, proferida pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), que determina a desintrusão da área de Maraiwatsede. Os técnicos estão trabalhando no projeto de retirada dos não-índios e têm prazo de 20 dias para concluí-lo.

sábado, 9 de junho de 2012

Prefácio de Darcy Ribeiro ao livro OS ÍNDIOS E O BRASIL

Há 25 anos pedi a Darcy Ribeiro para escrever o prefácio ao livro que terminara de escrever, OS ÍNDIOS E O BRASIL. Darcy escreveu e o livro foi publicado pela Editora Vozes em 1988, com segunda edição em 1991. O livro está para sair de novo, em breve, em terceira edição, por outra editora, com adendos, acréscimos e análises renovadas. Compartilho com vocês o Prefácio de Darcy Ribeiro.


PREFÁCIO

Afinal, um livro sobre os índios bom de ler: honesto, sábio, leal. Sim, estas são as qualidades distintivas desse texto de Mércio Pereira Gomes. Ele aqui dá conta da situação existencial dos índios trinta anos depois do meu balanço em Os índios e a Civilização.
Quando procedi àquela avaliação, a expectativa da UNESCO, que encomendou a pesquisa, era mostrar ao mundo o caminho pelo qual os brasileiros estavam incorporando os índios à civilização como parte distinguível da sociedade nacional. Demonstrei que nada disso sucedia. Os índios vinham e estavam sendo exterminados. Cento e quarenta e três povos indígenas sobreviviam, é verdade (mas oitenta e sete haviam desaparecido entre 1900 e 1957), graças ao vigor extraordinário de sua identificação étnica que lhes conferia uma resistência espantosa. Só o alcançaram, porém, a custo de profundas transformações culturais, uma vez que grande parte das suas formas de fazer, de sentir e de conviver se tornavam inviáveis ao contato com a civilização.
Sobreviviam, assim, cada vez menos "selvagens", menos "exóticos", porque cada vez mais incorporados à rede de produção e de consumo. Por dez anos, andei exaustivamente por todo o país e não encontrei em lugar nenhum qualquer grupo de ex-índios confundíveis com os caboclos. Quaisquer que fossem as condições que enfrentassem, por mais que elas lhes fossem adversas, ainda mesmo quando profundamente mestiçado com negros e com brancos, permaneciam índios.


Foi assim que eu me deparei com eles: seja sob a proteção oficial do Estado, seja sob o amparo missionário, seja lutando frente a frente com o contexto civilizatório que os sitiava, todos eram e permaneciam índios. Vale dizer, viam-se a si mesmos como uma comunidade humana original, diferente da neo-brasileira.
A sobrevivência desses índios residia, precisamente, na sua aparente incapacidade para se desfazerem na sociedade nacional. Isto colocava uma questão crucial que ainda vibra, desafiando a Antropologia brasileira: como é que se constituiu o povo brasileiro, se não foi pela assimilação progressiva de grupos indígenas? Vai ser necessário aprofundar muito mais o nosso conhecimento sobre o papel do convívio dos índios com a civilização, debaixo das opressões do escravismo, e sobre as condições em que mulheres apresadas eram prenhadas para parir filhos que não se identificavam com a etnia materna e que eram rechaçados pela paterna. Esses filhos de ninguém é que, ao se avolumarem, iam constituindo uma terceira camada de gente, nem nativa nem européia, que seriam os primeiros brasileiros. Eis como se deu a nossa formação demográfica inicial. Só pela opressão individualizada de cada índio desgarrado de seu povo, os índios deixam de ser índio. No processo histórico-social, tal como ele se dá fora do apresamento, o que de fato ocorre não é o trânsito do índio ao brasileiro, como se pensava; mas o do índio isolado ao índio integrado, ou seja, aquilo que eu chamei de transfiguração étnica.
Já naqueles anos era visível que alguns grupos indígenas estavam crescendo demograficamente, e que a tendência era que, no futuro, viessem a existir mais índios, não havendo a hipótese de que fossem liquidados. Prevaleciam, porém, no conjunto, condições tão terríveis de compressão sobre os índios, que maior era o número dos que se viam exterminados, do que aqueles que conseguiam refazer o seu montante populacional. Passadas essas três décadas, Mércio nos mostra agora o fim do declínio demográfico dos povos indígenas, anunciando, com toda clareza, que vai haver mesmo mais índios no futuro do que no passado imediato.
A praga que mais devastou os povos indígenas, desde o começo dos nossos séculos, foram as pestes européias de extremada virulência que grassavam de tribo a tribo, em cadeias de contaminação generalizada. Epidemias como as de varíola, sarampo, catapora, difteria, gripe, coqueluche, tuberculose e outras. Esse fator de morte se reduziu sensivelmente porque na própria sociedade nacional essas ondas epidêmicas também desapareceram.
Outra praga, o genocídio, vinha diminuindo de freqüência, desde os tempos de Rondon. Ela diminuiu, também sensivelmente, nessas últimas três décadas, mas continua assassinando líderes indígenas, e os assassinos permanecem sempre impunes, o que demonstra a conivência da sociedade nacional com os massacradores de índios.
A terceira peste, que é o extermínio cultural, o etnocídio, induzido tanto pela própria burocracia oficial protecionista, como pela ação missionária, também declinou em seu poder destrutivo. Durante séculos e mesmo nas décadas primeiras do século XX, tremenda foi a opressão psicológica exercida sobre os índios pela desmoralização de suas crenças e pela indução da idéia de sua inferioridade, o que conduzia ao alcoolismo, à preguiça e à anomia.
O fim desse fator de extermínio se deve, de um lado, à mudança de atitude das missões religiosas, principalmente das católicas, que passaram a avaliar, para tentar evitar, os danos terríveis que o etnocídio por elas provocado causavam aos povos que pretendiam proteger a partir de uma ação em que o missionário se definia como agente civilizador. Esta era a face mais hipócrita da civilização: salvar as almas dos índios, facilitando o extermínio dos seus corpos e a espoliação de suas terras. Soma-se a essa forma de opressão a exercida pelo Estado, representado pela burocracia oficial, com o paternalismo amoral do funcionário que se fazia tratar como o "paizinho protetor".
O fato decisivo, entretanto, foi a resistência dos próprios índios que inviabilizou essa forma de etnocídio ao rechaçar o fanatismo missionário e o paternalismo burocrático, impondo respeito às suas próprias lideranças.
Mércio valoriza com muita justeza o papel relevante representado pela opinião pública nacional e internacional. Em muitas circunstâncias, nessas tantas décadas em que tenho lutado pela causa indígena, eu senti que só ganhando a opinião pública, através dos órgãos de comunicação, se conseguia salvar um grupo indígena de uma extorsão ou de um extermínio. É exemplar o caso do projeto de emancipação indígena, no governo Geisel, que, se aprovado, teria entregue todos os grupos indígenas ao arbítrio funcionário, dando aos burocratas o direito de declarar que uma tribo estava emancipada - na prática, abandonada à sua sorte. Foi a reação levantada na opinião pública nacional e internacional que paralisou a vontade genocida daquele governante.
Chamou a atenção, também, para um fator positivo, surgido recentemente, que é o pendor preservacionista de caráter ecológico, que passou a considerar as comunidades indígenas como faces raras do fenômeno humano que têm, também, o direito de ser e de se expressar.
Por tudo isso louvo este livro, com a alegria de ver que, afinal, temos um texto que pode servir de base ao debate sobre a questão indígena, tal como ela se apresenta, hoje, aos olhos dos próprios índios. Vale dizer, tal como se trava sua luta contra os genocidas e os etnocidas, agora não mais sob a égide do missionário ou do protetor, mas sob o mando do próprio movimento índio.
É de assinalar aqui que este índio novo, tão melhor armado para a sua própria defesa, provoca grandes antipatias. O seu símbolo maior, Mário Juruna, chega a desencadear ódios como se fosse um ser detestável. É profundamente lamentável que até a imprensa mais respeitável do país, a exemplo do Jornal do Brasil, tenha mantido, durante anos, uma campanha sistemática de desinformação contra o Deputado Mário Juruna, através dos procedimentos mais antiéticos, indignos da sua tradição jornalística. Essa gente, apodrecida no preconceito, ignora que Juruna surge à luz como um herói do seu povo. Graças à mobilização que ele fez de todos os Xavantes e à declaração de guerra que impôs à sociedade brasileira, ele recuperou para o seu povo mais da metade do território tribal, roubado com a conivência de funcionários da FUNAI. Como esquecer as célebres reuniões do Conselho de Segurança Nacional onde se colocava em discussão se se devia mandar tropas e canhões acabar com os Xavantes, à moda americana, ou se era mais ajuizado mandar demarcar as terras que lhes haviam sido furtadas.
Ao meu juízo, Mário Juruna pode ser considerado um dos melhores, se não o melhor deputado da legislatura passada, se eles se julgam por sua eficácia na defesa daqueles que se propõem representar. Muitas vezes sua ação pareceu ridícula e foi propositadamente deformada na imprensa. Mas é de notar que suas posturas intempestivas se realizavam sempre a partir de uma posição ética, tal como ocorreu quando provou que Maluf subornava deputados.
Irritação ainda maior provoca em outros setores o índio que apela para os mecanismos e linguagens do sistema capitalista para sobreviver no contexto mercantil em que está posto. Índios cobrando para serem filmados? Índios querendo royalties sobre minérios extraídos do seu território? Índios arrendando castanhais? Índios cobrando aluguel de pastos ou de terras agrícolas? Tudo isso parece horrível, tanto para os bobocas, por sua ingenuidade, que só admitem o índio como o selvagem ingênuo, quanto para os sabidos, que preferem negociar com funcionários ladravazes do que com as lideranças das comunidades indígenas.
Em seu diagnóstico pioneiro dessas situações novas, Mércio sempre olha os índios como gente igual a gente, merecedora de respeito, capaz de raciocínio lúcido, gente necessitada de apoio na luta por seus direitos, desde sempre expressos da forma mais clara em toda a legislação nacional, mas desde sempre sistematicamente espoliados.
Adotando a perspectiva de Mércio, começaremos a ver os índios como gente autônoma, cada vez mais precavida, que não carece, nem requer tutelas oficiais ou paternalismos missionários.
Este livro assinala um outro fato novo e relevante, que é o ressurgimento de uma Antropologia socialmente responsável ante os grupos que estuda. Ela ressurge na figura de antropólogos que me lembram Curt Nimuendaju e Eduardo Galvão, deixando para trás a atitude boquiaberta, novidadeira e moralmente irresponsável, que floresceu nos estercais da ditadura.
A sobrevivência dos índios, sua permanência histórica como parte constitutiva e essencial do Brasil, provoca desafiadoramente a necessidade de se criar uma nova Antropologia que responda não somente pelo presente, mas que também tome coragem de ousar pensar para o futuro. Todo o esforço antropológico brasileiro, até agora, vinha sendo no sentido de explicar quem são os índios e o porquê de tantos se extinguirem e uma porcentagem mínima sobreviver. Esta nova geração de antropólogos terá que se aliar aos índios para projetá-Ios no futuro e ajudá-los, por todos os meios, inclusive pelo pensamento, pela inteligência, a encontrar o seu lugar justo numa nação justa e digna.
Darcy Ribeiro

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Presidente Dilma homologa sete terras indígenas

A presidente Dilma Rousseff assinou ontem, em solenidade dedicada ao Dia do Meio Ambiente, a homologação de sete terras indígenas, sendo cinco no estado do Amazonas, uma no Acre e outra no Pará.
 
São terras de tamanhos variados. A Tenharim-Marmelos é a maior, umas das grandes terras indígenas do sudoeste do Amazonas. Seu processo de demarcação já vinha sendo trabalhado há vários anos, na verdade, ela já fora demarcada desde 2006, mas por alguma razão não fora dada por concluída até o ano passado. A T.I. Xipaya, localizada na margem esquerda do rio Xingu, entre as terras dos índios Kayapó e Kuruaya e as terras dos índios Parakanã, Araweté e Assurini, vai dar mais solidez e proteção ao rio Xingu. A T.I. Riozinho do Alto Envira protegerá a fronteira do Brasil com o Peru e vai permitir que os índios que estão fugindo dos madeireiros que estão devastando as florestas do Peru tenham algum abrigo. Essas três terras foram demarcadas entre 2005 e 2008, inicialmente durante minha gestão como presidente da FUNAI. As outras terras indígenas são de menor porte e com contornos que indicam a presença de aglomerados não-indígenas.


Para muitos indigenistas, para os índios que participam do movimento indigenista e para observadores da cena indigenista brasileira, essas homologações podem ser interpretadas como um sinal de que o governo Dilma vai deslanchar uma política mais favorável aos povos indígenas. Junto com elas foi assinado o programa de monitoramento das terras indígenas -- PNGATI -- que poderá ter um papel relevante na defesa das terras indígenas diante das ameaças que se avizinham. Para outros, inclusive, ironicamente, ONGs indigenistas que estão com a mão na botija, trabalhando dentro e fora da FUNAI, esse é sinal de uma mera satisfação, literalmente "para inglês ver", pela passagem da Conferência de Meio Ambiente da ONU, que está para começar.


Talvez as duas visões estejam certas, em dosagens diferentes. O que prevalece neste momento é um desconforto generalizado, primeiro, com a falta de mudanças na FUNAI, como se sua restruturação, criada pelo decreto 7056/09, não tivesse causado danos impressionantes à boa administração da FUNAI, até agora irreparados; segundo, com a crescente exasperação dos índios em relação à sofrível assistência de saúde que vêm recebendo nos últimos anos; terceiro, com a certeza de que o papel da FUNAI está ficando cada vez mais restrito e menos importante para a política indigenista -- e para os índios em suas aldeias, sem dúvida.

Comenta-se para cima e para baixo, até entre indigenistas chapas-brancas e ONGs suspeitosamente oportunistas, que o interesse desse governo na questão indígena se restringe à determinação de diminuir o peso do tema indígena na equação de licenciamento de obras perto de terras indígenas. Daí a presidente Dilma ter suspendido a homologação de algumas terras indígenas para antes passarem pela análise (diga-se, crivo!) do Ministério das Minas e Energia. Certamente para ver elas se incidiam de algum modo com planos de construção de barragens e hidrelétricas. Dada a fragilidade do órgão indigenista no panorama político brasileiro, especialmente no Congresso Nacional (recorde-se que o ano passado o então presidente do órgão foi desbragadamente insultado por parlamentares, em frente ao próprio ministro da Justiça, seu superior, que não esboçou a mínima defesa do seu subordinado), suspeita-se que sua fraqueza anuncia tempos de estadualização de políticas indigenistas.

Será? Será que o governo brasileiro irá voltar atrás, ao século XIX, ao Império, ao tempo anterior ao Marechal Rondon? Não posso acreditar que seja isso o que se trama pelos gabinetes do atual governo. Quero crer que a questão indígena brasileira está passando por um mal pedaço devido à pressão desenvolvimentista do últimos governos, coincidentemente, do PT. Poderia ter sido pela continuidade do PSDB, por tudo que sabemos daquele governo.

Entretanto, para aumentar a angústia de quem acompanha a questão indígena brasileira há muitos anos, e de quem já escreveu sobre a história do Brasil em relação aos índios (ver meu livro OS ÍNDIOS E O BRASIL, Vozes, 1991), pode-se ver que os últimos gestores da FUNAI, seus grupos ideológicos e suas milícias políticas acreditam piamente que estão fazendo um grande benefício aos índios diminuindo a capacidade da FUNAI de atuar diretamente no campo a favor dos índios. Foram esses grupos que fizeram a malfadada reestruturação da FUNAI. E se exultam de orgulho e confiança com as atividades que alimentam a ilusão de que, por se reunir em hoteis e salas de convivência, estão dando encaminhamento aos problemas indígenas.

Vale a pena, entretanto, lembrar o fato de que, no momento em que a presidente Dilma Rousseff assinava as portarias de homologação das sete terras indígenas, a índia Guajajara, Sônia Santos, fez um veemente discurso para a presidente, pedindo mais dedicação e mais comprometimento do seu governo com a causa indígena. Pelo menos os índios têm coragem e franqueza de encarar sua realidade!

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Ministro Lewandowksi dá nova chance à demarcação de terras indígenas

Há alguns dias, precisamente dia 23 de maio, o ministro do STF, Ricardo Lewandowski, negou provimento a uma reclamação proposta pelo Município de Amarante do Maranhão, na qual pedia-se que o processo de estudo com vistas à ampliação da Terra Indígena Governador, dos índios Gaviões-Pykobye, demarcada e homologada desde a década de 1980, com 42.000 hectares, aproximadamente, situada naquele estado do Maranhão, fosse declarado nulo, por liminar, e no mérito, junto com as portarias de estudo e delimitação já publicadas pela FUNAI.

O ato do ministro segue abaixo.

O importantíssimo a ser analisado nesse caso são os novos argumentos trazidos pelo ministro Lewandowski a respeito da matéria. Trata-se da validade ou não de alguns pontos ou "ressalvas" do Acórdão sobre a Homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol proferido pelo STF em 19/03/2009.

Os pontos são: (1) a data da promulgação da Constituição Federal -- 5 de outubro de 1988 -- serve como parâmetro temporal para a legalidade da "ocupação indígena" de determinada área de terra considerada pelos indígenas como suas? E (2) uma terra indígena já demarcada pode ser ampliada?

Essas duas ressalvas vêm sendo usadas por advogados de fazendeiros no Mato Grosso do Sul e alhures (como neste caso da T.I. Governador, no Maranhão) para parar e/ou anular os processos de demarcação de terras indígenas cujos possuidores indígenas alegam serem suas de direito originário. Diversas terras indígenas nessa condição tiveram seus processos parados em estados como Santa Catarina, Maranhão, Ceará, Paraiba, e outros.

Tudo indicava que essas duas ressalvas funcionavam como entraves avassaladores nos processos de demarcação de terras indígenas, umas espécies de protetores jurídicos dos fazendeiros.

Eis que o ministro Lewandowski dá nova interpretação não propriamente a essas ressalvas, as quais ele próprio avalizou-as na ocasião, mas às suas consequências em relação a outras terras indígenas.

Primeiramente, diz Lewandowski que o caso da T.I. Raposa Serra do Sol foi específico, tanto em si, quanto pelo fato de ter se originado de uma ação popular. Ação Popular não pode gerar determinações vinculantes.

Em segundo lugar, declara o ministro que, seguindo a interpretação da ministra Carmen Lúcia sobre outro caso, o poder jurídico brasileiro, ao contrário do jurídico americano, não se rege a partir do direito consuetudinário (Common Law). Portanto, não aceita vinculação automática de uma decisão jurídica, mesmo que vinda do nosso Supremo Tribunal, e que, no caso do Acórdão de Raposa Serra do Sol, não foi determinado para ser uma súmula vinculante.

Por fim, pondera o ministro Lewandowski, o caso desta reclamação do estado do Maranhão já está sendo julgado em apelo reiterado, tendo sido uma vez denegado, pela 20ª Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal.

Interessa a nós indigenistas e antropólogos os argumentos do ministro Lewandowski descritos nas duas primeiras partes. Ele praticamente abre novas potencialidades de demarcação de terras indígenas ao reinterpretar o Acórdão da Raposa Serra do Sol.

É um fôlego novo que pode favorecer a retomada da demarcação de terras indígenas que necessitam serem realizadas o quanto antes.

Mãos à obra, senhoras e senhores do DPI da Funai. Mãos à obra Ministério Público Federal, Advogado Geral da União, antes que seja tarde demais (isto é, que surja outro ministro para fechar essa porteira).


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Sentença do Ministro Ricardo Lewandowski, em 23 de maio de 2012



Trata-se de reclamação, com pedido de medida liminar, proposta pelo Município de Amarante do Maranhão/MA, em que se alega desrespeito à autoridade do acórdão prolatado pelo Plenário desta Corte no julgamento da Petição 3.388/RR, Rel. Min. Ayres Britto, por parte de sentença proferida, em
29/2/2012, pelo Juízo da 20ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal nos autos do Processo 0016759-73.2011.4.01.3400.
 

A decisão ora impugnada, ao denegar mandado de segurança impetrado pela municipalidade reclamante, afastou a alegação de nulidade das Portarias 677/2008 e 1.437/2010, da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, que haviam determinado a constituição de grupos técnicos para a realização de estudos necessários à verificação de eventual equívoco na delimitação – e, por
conseguinte, da necessidade de ampliação – da área da Terra Indígena Governador, demarcada em 1982.


O reclamante sustenta, em síntese, que a sentença reclamada, ao admitir o prosseguimento de estudos técnicos que visam à ampliação de reserva indígena já demarcada e homologada mediante o acréscimo de área não ocupada por índios em 1988, teria contrariado a decisão tomada por esta Corte
na Petição 3.388/RR, que, na apreciação do caso concreto, reiterou a existência de um marco temporal – 5/10/1988 – para a aferição da ocupação territorial por uma determinada etnia indígena e impôs, como salvaguarda institucional da constitucionalidade daquele procedimento demarcatório, a
vedação à ampliação da terra indígena já demarcada.
 

Requer a suspensão liminar do processo administrativo de ampliação da Reserva Indígena Governador até o julgamento final desta Reclamação e, no mérito, a sua integral anulação.
 

É o relatório necessário.

Decido.
 

Bem examinados os autos, constato a manifesta inadmissibilidade desta
ação reclamatória.


Como visto, a reclamação ora em exame aponta o descumprimento do acórdão proferido na Petição 3.388/RR, feito em que o Plenário desta Corte, ao julgar parcialmente procedente pedido formulado em ação popular, declarou, especificamente, a constitucionalidade da demarcação contínua da Terra
Indígena Raposa Serra do Sol e de seu respectivo procedimento administrativo-demarcatório, desde que observadas dezenove condições ou salvaguardas institucionais, inseridas na parte dispositiva da decisão com o intuito de conferir, segundo consta expressamente da ementa do julgado, um “maior teor de operacionalidade ao acórdão”.
 

Originalmente trazidas a lume no voto-vista proferido pelo Ministro Menezes Direto, essas condições foram incorporadas ao voto do Relator, Ministro Ayres Britto, conforme exposto no pronunciamento a seguir transcrito:
 

“Senhor Presidente, quero apenas confirmar com ajuste o meu voto, dizendo o seguinte - peço vênia ao Ministro Cezar Peluso para falar de logo -: o eminente Ministro Carlos Alberto Menezes Direito,
no seu magnífico voto, usou de uma técnica de decidibilidade ou de uma formatação decisória que me pareceu, num primeiro momento, estranha, mas, refletindo melhor, pela importância da causa, eu acho que compreendi perfeitamente a intenção louvabilíssima de Sua Excelência que foi traçar as diretivas para a própria execução desta nossa decisão por parte da União. Então, Sua Excelência transformou fundamentos, transplantou uma parte dos fundamentos para a disposição, para a parte dispositiva da decisão. E pareceu-me uma técnica interessante, inovadora que, embora inusual do ponto de vista da operacionalização do que estamos aqui a decidir, resulta altamente proveitosa.
 

Não tenho motivos para deixar de aderir a essa proposta de formatação decisória, até porque, se formos percentualizar as coincidências dos nossos votos, beiraremos os cem por cento dos
fundamentos, embora com palavras e fontes de pesquisa diferentes.
 

Faço o ajuste, Senhor Presidente, com todo o "conforto intelectual” (grifos meus). Observo, portanto, que o acórdão invocado nas razões desta reclamação apreciou, especificamente, o procedimento de demarcação da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol, não podendo, por isso mesmo, ter sua autoridade afrontada por atos e decisões que digam respeito a qualquer outra área indígena demarcada, como é o caso narrado nos autos. Isso porque não houve no acórdão que se alega descumprido o expresso estabelecimento de enunciado vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário, atributo próprio dos procedimentos de controle abstrato de constitucionalidade das normas, bem como das súmulas vinculantes, do qual não são dotadas, ordinariamente, as ações populares.
 

Não foi por outra razão que o Ministro Ayres Britto, Relator da Pet 3.388/ RR, asseverou, ao censurar o cabimento de reclamação análoga a que ora se examina (Rcl 8.070/MS), que “ação popular não é meio processual de controle abstrato de normas, nem se iguala a uma súmula vinculante”. Destaco, ainda, que o Ministro Cezar Peluso ressaltou em seu voto na Pet 3.388/RR que aquele julgamento representava “autêntico caso-padrão, ou leading case”, cujos enunciados propostos deixariam claro o pensamento da Corte a respeito do tema enfrentado.
 

Todavia, conforme ressaltado pela Ministra Cármen Lúcia ao negar seguimento à Rcl 4.708/GO, as consequências vinculantes do leading case, próprias do sistema do Common Law, não se aplicam, a priori, ao nosso sistema jurídico, uma vez que “o papel de fonte do direito que o precedente tem, naquele, não é desempenhado pelo precedente no direito brasileiro, salvo nos casos constitucional ou legalmente previstos, como se dá com as ações constitucionais para o controle abstrato”. Concluiu, então, a Ministra Cármen Lúcia ressaltando que “o precedente serve, no sistema brasileiro, apenas como elemento judicial orientador, inicialmente, para a solução dos casos postos a exame. É ponto de partida, não é ponto de chegada”.
 

Por fim, recordo que a jurisprudência desta Corte é firme no sentido de que a reclamação não pode ser utilizada como sucedâneo ou substitutivo de recurso, ajuizada diretamente no órgão máximo do Poder Judiciário. Veja-se que contra a sentença judicial ora contestada o reclamante já interpôs, regularmente, recurso de apelação, que será oportunamente apreciado pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região.
 

Isso posto, nego seguimento a esta reclamação (RISTF, art. 21, § 1º), ficando prejudicado, por conseguinte, o exame do pedido de liminar.
 

Arquivem-se os autos.
 

Publique-se.
 

Brasília, 23 de maio de 2012.
 

Ministro Ricardo Lewandowski
Relator
 
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