Pois bem, assim o fizeram, solenemente, conscientemente, e lá passaram a se abrigar. Logo decidiram fazer desse prédio e da área de um hectare e meio que o circunda, um espaço cultural para todo e qualquer índio que passe pelo Rio de Janeiro. Nesses últimos meses, vendo a premência de serem expulsos e o prédio arrasado, vêm pensando em criar um verdadeiro Centro Cultural Indígena, um Museu ao Vivo, interativo, vibrante.
Uns dois anos atrás um desses índios me pediu para fazer uma reflexão sobre o que isto poderia significar para a questão indígena brasileira. Que momento é esse em que tantos índios estão vivendo nas cidades? O que tem de positivo nisso? Vale para alguma coisa, ou é simplesmente sinal do processo de inserção ou integração e assimilação social?
Aí está o resultado da minha reflexão. Este texto, que tem sido usado por esses índios e pelos seus próprios advogados, bem como por defensores públicos federais e outras pessoas que tomaram as rédeas da defesa judicial para contestar os propósitos malévolos do governador Cabral (mais um Cabral na vida dos índios) de arrasar com o prédio e usar todo o terreno para área de deambulação dos torcedores da próxima Copa do Mundo.
Ora, dizem os índios. Essa Copa só vai durar quatro semanas, enquanto eles durarão para sempre! Eles, como os demais índios no Brasil!
Ademais, argumentei em Encontro que aconteceu ontem na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, melhor seria que a Dona Dilma visse a importância de, ao lado do glorioso Estádio do Maracanã, os índios, essa minoria mais pequena do Brasil, mas também a que bate mais fundo no coração dos brasileiros, estarem se representando perante o mundo. Não seria a glória para o governo Dilma que os estrangeiros soubessem que os índios têm um espaço nobre na cidade do Rio de Janeiro?
Nem sei se a presidente Dilma reflete sobre esse tema, ou se está a mercê das desvirtuadas opiniões dos seus indefectíveis conselheiros. Eu, por mim, não pejo em apelar a ela, em nome de Darcy Ribeiro, que criou o Museu do Índio naquele local, central na cidade do Rio de Janeiro, para combater o preconceito, para que permita a presença dos índios e de seu Centro Cultural Indígena, criado pelos próprios índios, por sua luta e determinação, bem no centro da cidade e bem no rebuliço da Copa do Mundo.
É de lembrar que o Centro Cultural Luiz Gonzaga, a conhecida e popular Feira dos Nordestinos, localizado no bairro de São Cristóvão, do outro lado da linha do trem, perto do Maracanã, foi criado pelos nordestinos, para eles e para todos os que vivem no Rio de Janeiro.
O Centro Cultural Indígena pode se tornar um novo marco cultural no Rio de Janeiro. Espera-se o apoio dos cariocas e a decisão dos governantes atuais.
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O
reconhecimento do valor do “Museu do Índio”
para os
índios que
vivem no Rio de Janeiro
LAUDO ANTROPOLÓGICO
Mércio P Gomes
Antropólogo, Professor da UFF e UFRJ
Ex-presidente da FUNAI
Novembro 2010
LAUDO ANTROPOLÓGICO
LAUDO ANTROPOLÓGICO
O reconhecimento do valor do “Museu do Índio” para os
Índios que vivem no Rio de Janeiro
A cidade do Rio de Janeiro é reconhecida no mundo inteiro pela alegria de
viver de seu povo, mestiço e multitudinário, como dizia o grande antropólogo,
vice-governador e senador da República, Darcy Ribeiro, pela gentileza com que
tem recebido e continua a receber outras culturas, e pela capacidade criativa
de apresentar novas ideias e costumes dentro da cultura brasileira. Aqui no Rio
de Janeiro tudo pode acontecer, se for feito pelo seu povo, e se tiver o
caráter de criatividade e compartilhamento com todos.
Inspirados por esse espírito é que vivem nesta cidade uma quantidade
ainda desconhecida de índios brasileiros (entre 1.200 a 1.500, de diversos
povos ou etnias) que, saindo de suas terras por motivos variados, aqui se
estabelecem para desenvolver aptidões e virtudes pessoais, para se mesclar
culturalmente com o povo carioca, para gozar a alegria de viver nesta cidade,
para sofrer na labuta do dia a dia, arrancando modestas, se não pobres,
condições socioeconômicas, para lutar por suas aspirações pessoais, para
vivenciar experiências que os engrandeçam e, ao final, para se fortalecer
pessoal e coletivamente e manter com isso sua identidade étnica.
Os índios que vivem no Rio de Janeiro fazem parte do grande processo
brasileiro de miscigenação sociocultural que formou, aos trancos e barrancos, o
nosso povo. Dão continuidade a esse processo, porém, nos dias de hoje, com um
diferencial muito especial. Os índios que aqui vêm viver ou passar tempos não
têm em mente mergulhar no caldeirão sociocultural e perder sua identidade
étnica. Ao contrário, querem viver outra experiência a qual a contemporaneidade
brasileira, após mais de 500 anos, os está permitindo viver. É a experiência de
viver na sociedade brasileira e preservar sua identidade étnica.
Ter condições econômicas, sociais, culturais e morais de manter a
identidade étnica é a grande luta por que passam os índios que vivem nas
cidades brasileiras, de Manaus e Altamira, na Amazônia, a Porto Alegre e Campo
Grande, no sul e sudoeste do país.
Viver no Rio de Janeiro se apresenta em condições semelhantes, mas com
peculiaridades singulares, não somente pelas características da cultura da
cidade, mas também pela capacidade que tem seu povo de reconhecer o valor de
culturas diversas, por portar uma atitude universalista, não provinciana.
Os documentos aqui apresentados em anexo, o histórico da constituição do
prédio desde meados do século XIX, junto com as matérias de jornais relacionadas
com a questão que abordaremos em seguida, demonstram a atitude receptiva do
povo carioca e da opinião pública em geral para com a singela e decidida
reivindicação dos índios pela guarda do antigo “Museu do Índio”.
O simbólico e o sagrado do antigo
“Museu do Índio”
Neste prédio, que ainda hoje, ainda que dilapidado por fora e a
descoberto por cima, com paredes úmidas e descascadas, se mostra garboso e
varonil, aos olhos de quem o mira, ao passar pela rua Mata Machado, cercado
pelas avenidas Maracanã e a Radial Oeste, confrontando o glorioso Estádio do
Maracanã, durante pelo menos 68 anos (1910-1978), abrigou o melhor do
pensamento, da ação e do descortino moral dos brasileiros mais ilustres que
jamais pensaram e trabalharam pela causa indígena no Brasil, quais sejam, o
Marechal Cândido Rondon, Darcy Ribeiro, Orlando Villas-Boas, Noel Nutels,
Eduardo Galvão, Carlos Moreira Neto e outros mais. Este prédio foi sede do
Serviço de Proteção aos Índios (SPI), criado por Rondon em 1910, que
estabeleceu as bases filosóficas, morais e práticas da política indigenista
republicana. Depois serviu como sede do Museu do Índio, criado por Darcy
Ribeiro em 1953, sob a égide de Rondon e Getúlio Vargas, de onde surgiram as
grandes ideias para consolidar a política indigenista brasileira diante dos
desafios novos que surgiam, com a criação de Brasília, a abertura de grandes
estradas, a entrada de inumeráveis contingentes populacionais pelo Centro-Oeste
e pela Amazônia.
Durante esse decênios, os índios do Brasil foram lutando por sua
sobrevivência, e, no processo, foram reconhecendo neste prédio o lugar onde
alguma parte de seu destino estava sendo traçado, sempre com esperanças de que
fosse para melhor. Para aqui afluíam comitivas e mais comitivas de índios de
diversas procedências, em tempos quando uma viagem do rio São Francisco para o
Rio de Janeiro era uma aventura de duas semanas ou mais de viagem. Os índios
nordestinos, como os Tuxá, Fulni-ô, Pankararu aqui vieram falar com Rondon na
década de 1920, os Truká e Kariri, nos anos 1940; na década de 1950, vieram
todos, os Kayapó logo após o primeiro contato em 1953, os Kraô, Canela, Terena,
enfim, os Bororo – de quem Rondon descendia – vieram para simplesmente
conversar com Rondon, ouvir dele uma palavra de alento e esperança de um futuro
melhor, nesse prédio do Museu do índio. Este prédio guarda esse memória em suas
paredes, no ar que nele se respira. Assim, pensam os índios que por ele já
passaram.
Não é por outras, e muito menos por poucas, razões que esse prédio e seu
terreno se tornaram símbolo do que se fez de bom pelos índios neste país!
Eis, portanto, a razão principal do interesse simbólico e, para eles,
sagrado, dos índios que hoje vivem no Rio de Janeiro e se aboletaram no terreno
do velho Museu do Índio, com a esperança de que ele venha a ser reformado e
entregue ao seu desígnio maior. Seus pais e avós dele falaram quando estiveram
no Rio de Janeiro em épocas tão passadas, parece hoje. Aqui foram recebidos
pelo Marechal Rondon, por Darcy Ribeiro, e deles obtiveram a garantia da
palavra de que suas situações, em suas terras, seriam resolvidas. Que havia
alguém a olhar por eles no centro do poder da república brasileira.
A invenção do comunitarismo urbano
Há uma outra razão para que o Museu do Índio seja venerado pelos índios.
É a sua busca por uma forma própria de urbanidade cultural. Os índios que vivem
atualmente nas dependências do velho Museu do Índio são membros reais e
auto-conscientes de suas comunidades originais. Não são “descendentes”
desgarrados que hoje pretendem recompor alguma identidade étnica. Vivem como
índios em suas comunidades e terras, seja no Nordeste, como os Potiguara,
Pataxó, Pankararu, Fulni-ô, Xocó, Kariri, Guajajara e Krikati, seja do
Centro-Oeste, como os Krahô, Karajá, os Kamayurá, seja do Sul, como os Kaingang
e Guarani, seja do norte, como os Tikuna (do alto Solimões!), Munduruku,
Mayoruna, Tukano (do alto rio Negro!). Como, de tantas partes, de tantas
tradições diversas, vieram estar juntos nesse umbigo cultural do Brasil, o Rio
de Janeiro?!
Bem, aqui eles estão por querem viver outra vida, conforme já
apresentamos no início desse texto. Mas aqui eles querem reviver e inventar uma
vida urbana, aquela vida que lhes parece o mais diferente de seu mundo, e que
eles querem sofrer vivendo-a e querem amar vivendo-a.
Os índios mencionados, e outros mais, que vêm e vão, estão nesse velho
prédio do Museu do Índio, porque, conscientemente e também inconscientemente,
querem inventar um novo modo de ser indígena. Não querem deixar de ser índios!
Querem ser índios de um modo diferente, como gente urbana, no redemoinho da
cultura brasileira.
Porém, não querem, não pretendem ser mais um caso no melting pot brasileiro, no caldeirão de mistura interétnica que se
formou e tem formado nosso Brasil. Querem permanecer indígenas. Querem
continuar com suas ligações com seu mundo rural, sertanejo, amazônico, étnico,
tribal. Vêm e vão. Escrevem, se comunicam por telefone e internet com seus
mundos longínquos, ganham dinheiro e enviam para seus parentes em suas terras,
convidam seus jovens amigos e irmãos para também virem viver e usufruir dessa
vida.
Por que fazem isso?
Porque querem que seu povo, suas culturas entendam por dentro o que é o
mundo dos brasileiros não indígenas. Eles sabem que, sem conhecer de perto, sem
experimentar, quais antropólogos que o fazem de seus mundos, esse mundo da
civilização ultra-moderna, eles, povos indígenas, terão pouca chance de
sobreviver, de manter suas culturas, de preservar seu senso de universo, seu
sentimento do sagrado, diante das avassaladoras mudanças por que passa a
civilização contemporânea.
Inventar uma urbanidade étnica, sem perder sua identidade, eis a razão
maior dos índios que vivem no velho prédio do Museu do Índio.
É preciso que a sociedade carioca, que o povo do Rio de Janeiro, e que as
autoridades que fazem e desfazem essa cidade, que promovem e destroem coisas
belas, na frase de Caetano Veloso dirigida a São Paulo, se sensibilizem com
essa iniciante comunidade de jovens indígenas que querem passear, viver e trabalhar
numa boa nessa cidade maravilhosa.
Eis meu depoimento, à guisa de laudo antropológico, do meu melhor
entender, como antropólogo e ex-presidente da Funai, sobre a reivindicação dos
índios urbanos do Rio de Janeiro pelo lugar especial, tradicional e sagrado, do
Museu do Índio, como seu espaço novo de vivência urbana transcendental.