Como muitos indigenistas de sua geração, Xará, o Ezequias Heringer Filho, cresceu sob o signo do protesto contra a ditadura militar. Mineiro, natural de Pombas, no vale do rio Doce, filho de biólogo conceituado que se transferiu para Brasília e seria diretor do Jardim Botânico, Xará cresceu em Brasília, freqüentou a Escola de Aplicação da UnB, criada por Darcy Ribeiro, e entrou na UnB para estudar Artes e Antropologia. Foi atraído pela causa indígena em oposição à causa política strictu senso, e, logo, logo estava circulando pela Funai para daí entrar fundo no mundo do indigenismo brasileiro.
Xará foi dos primeiros alunos da primeira turma de indigenismo formada pela Funai, nos idos de 1972. Sua primeira tarefa foi o trabalho duro de ser peão-técnico indigenista em frentes de atração. Na frente de atração dos Krenakarore (hoje autodenominados Panará) Xará ficou por alguns meses vendo os índios serem abandonados pelo governo, pela Funai dos militares, do General Bandeira de Melo, atraídos pelos ônibus e caminhões que passavam pela BR que atravessou o rio Xingu no rumo da terra de ninguém. As reportagens dessa época mostram índios e índias tristes e esquálidos, nus, pedindo esmolas aos passageiros de ônibus. Uma epidemia de gripe e sarampo dizimou mais de 70% da população Panará. Estavam à beira do extermínio, não fosse a decisão dos irmãos Villas-Boas, a contragosto, por falta de alternativas, de transferi-los para o Parque do Xingu. De helicóptero. Ao todo, 78 Panará vieram para o médio Xingu, em 1974, para morar perto dos Kayabi e depois dos Kayapó-Metuktire. No Parque do Xingu foram recebidos pela equipe médica do Dr. Baruzzi, que os medicou e os vacinou e conseguiu parar a mortandade que os ceifava. Os Panará sobreviveram e, anos depois, em 1995, recuperariam boa parte de seu território tradicional, ao qual foi acrescentada outra parte como compensação, somando no total mais de 494 mil hectares. O novo território Panará está lado a lado com a terra dos Metuktire e com ela e outras terras Kayapó e alto-xinguanas, formam um território de 14.200.000 hectares, a maior gleba de terras indígenas do Brasil, e uma das maiores do mundo.
Em 1975, após a morte do indigenista Gilberto Figueiredo, pelos Waimiri-Atroari, Xará esteve na região e conheceu outro grande drama indigenista brasileiro. A passagem da BR-174 e a entrada violenta do Exército em cena para viabilizar essa estrada, que passa no meio da terra indígena Waimiri-Atroari, levaram a uma queda igualmente enorme da população daqueles índios. Xará conheceu os Waimiri-Atroari em estado de prostração cultural e econômica. Mais tarde, ao visitá-los em 1987, viu-os em condições degradantes, com a mina de bauxita da empresa Paranapanema os explorando e os tratando como mendicantes. Hoje, tivesse ele a oportunidade de ver os Waimiri-Atroari e conversar com os jovens órfãos que conheceu, como Mário e José Maria, iria encontrá-los numa situação indigenista só comparável aos bons tempos dos Villas-Boas no Parque do Xingu. E com mais capacidade de auto-sustentação econômica e poder político autônomo.
Podemos dizer que os Waimiri-Atroari e os Panará, dados como certos a viverem um destino cruel de declínio e mortes, se não extermínio, sobreviveram e estão hoje em situações étnicas bastante confortáveis, com perspectivas de continuidade cultural e até de verdadeiras autonomias político-culturais. Os Waimiri-Atroari passaram de 340 indivíduos, em 1987, para mais de 1400, no final deste ano. Os Panará somam hoje quase 300 indivíduos.
Xará teve um papel fundamental em agregar indigenistas de sua geração contra os militares e os burocratas corruptos que dominavam a Funai, sobretudo a partir do governo Figueiredo, a chamada “era dos coronéis”. Sua personalidade forte e determinada, junto com personalidades igualmente fortes e determinadas dos indigenistas, seus colegas, não davam trégua aos planos militarescos para a Funai e para os povos indígenas. O início aberto de hostilidades dos indigenistas contra a Funai militaresca foi durante os protestos contra o projeto de emancipação dos índios, ainda no governo Geisel. Em 1978 ocorreram debates em tudo quanto era lugar, desde circos (como em Mogi-guaçu, no qual participei como palestrante) até as capitais e cidades interessadas. O Brasil inteiro parece que era a favor dos índios e contra os militares. Em Brasília os debates ocorriam tanto nas arenas políticas quanto nas indigenistas e antropológicas. A simpatia pelos índios chegou ao seu auge em 1982, quando Mário Juruna foi eleito deputado federal pelo Rio de Janeiro, com 34.000 votos, um feito extraordinário e não mais repetido.
Xará aliava as qualidades de indigenista com as de antropólogo. Era homem do campo, sabia andar no mato sem se perder, passar meses vivendo com os índios nas condições indígenas, funcionário público capaz de tomar decisões difíceis. Sabia dialogar com os índios em todas as circunstâncias, desde as conversas de aldeias, no Congresso Nacional e em sua própria casa, em Brasília, que freqüentemente se transformava em uma Meca de peregrinação de índios. Todos eram hospedados com alegria e fartura. Era homem do ofício de antropologia, capaz de obter dados em aldeias, em arquivos, em livros, e discutir sobre temas específicos. Por essa dupla faceta, Xará ajudou muito a construir a ponte entre indigenistas e antropólogos, numa época em que os controladores da Funai alimentavam a disputa entre essas duas profissões irmãs.
Como muitos amigos indigenistas, Xará foi demitido várias vezes da Funai. Em todas elas por motivos de defesa dos interesses indígenas e em rebelião contra as determinações militarescas e anti-indigenistas que dominavam a Funai. Não se fazia de rogado, não mudava de visão e partia para a mesma luta. Nos tempos que passou fora da Funai, trabalhou como indigenista em várias frentes. Em certa ocasião, entre 1982 e 1984, comprou um barco e foi viver com sua mulher Ana Lange, no médio rio Madeira, na região onde vivem os Mura-Pirahã.
Xará é dos indigenistas que mais conheceram povos indígenas no Brasil. Acho que esteve em todos os estados brasileiros e conheceu a maioria das situações indígenas. No Nordeste, conheceu bem a situação dos Potiguara da Baía da Traição, os Fulniô de Águas Belas, os Tuxá de Rodelas. Foi dos primeiros indigenistas a visitar os atualmente chamados Tupinikim, de Aracruz, Espírito Santo, quando ainda não se autodenominavam e eram conhecidos na literatura antropológica como Puri-Coroado. Conheceu bem os índios do Acre e do Mato Grosso, de Roraima e do Pará. Esteve com os Guajajara do Maranhão, os Karajá e Xerente do Tocantins. Conviveu e fez boas amizades com os Xinguanos em geral. Tinha amizades e recebia em sua casa os Panará e os Kayapó.
Xará morreu num inusitado acidente de automóvel em dezembro de 1996.
quarta-feira, 2 de janeiro de 2008
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Um comentário:
Eu conheci pessoalmente o Xará. Juntos estivemos na Baia da Traição, com os Potiguaras, quando eu era o chefe de Pôsto e lutávamos pela demarcação da terra indígena. Assim como Apoena tornou-se um dos meus idolos.
WALFREDO SILVA - Sertanista
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