segunda-feira, 28 de maio de 2012

Dinarte se foi (para alguma aldeia por aí)

Dinarte Nobre de Madeiro faleceu sábado passado, à noite, vítima de um ataque cardíaco fulminante. Ninguém sabia que ele tinha problemas de coração. Aliás, problemas de quase nada de saúde, porque por qualquer dessas coisas ele sempre resolvia acendendo umas velinhas. Passavam. Portanto, Dinarte, se morreu mesmo, e não está por aí visitando alguma aldeia ou posto indígena, pelo que soubemos, morreu foi de raiva! Digo isso porque, alguns dias atrás, sua singela e encantadora casa, na Praia de Maracajaú, a 100 km de Natal, fora assaltada e roubada, com ele presente. Levaram seu carro e uns teréns de casa. Daí ele foi a João Pessoa para ver se passava a raiva, e aí seu coração não aguentou. Ademais, por essa e por outras, Dinarte só podia morrer era de raiva, que era a forma como ele se indignava com as injustiças que aconteciam e sobre as quais ele não podia fazer nada.

Este era o espírito de Dinarte. Um sujeito transparente e passional, modesto por natureza, porém auto-confiante e despachado, atento, dedicado e apaixonado pela causa indígena e pelos índios, como sociedades e individualmente, fiel e carinhoso com os amigos, incapaz de guardar rancores ou amargurar ressentimentos e sempre disposto a conciliar, a esquecer querelas e buscar entendimentos. Além do que, vivia de bom humor (a não ser nos momentos de raiva), era bom de prosa, excelente cozinheiro e parece que ousado e cortejador com as mulheres.

Quero prestar  minha homenagem a este homem consagrando-o, em primeiro lugar, como um dos maiores indigenistas da geração que entrou nos primeiros anos da Funai.

Dinarte Madeiro trabalhou diretamente, como indigenista, com dezenas de povos indígenas, e conheceu e fez amizade pessoal com quase todos os diferentes povos indígenas brasileiros. Só para mencionar algumas de suas tarefas indigenistas, e deixando para que outros indigenistas e amigos dele preencham as lacunas nos comentários que desejem adicionar a esta postagem, menciono as seguintes:

1. Trabalhou de perto, nos seus primeiros anos de funcionário da Funai, com índios do médio e alto rio Tapajós -- os Munduruku, Kayabi e Apiaká; lá foi responsável pela criação da Ajudância de Itaituba, responsável pela demarcação de diversas terras, inclusive da grande terra Munduruku, a qual foi homologada ao tempo de minha passagem pela Funai. O tempo de Dinarte por essa região é que o marcou como indigenista, que proporcionou-lhe o amor pela causa indígena.

2. Com os Tikuna e outros povos do alto rio Solimões, sediado em Tabatinga.

3. Com os Yanomami, especialmente como responsável pela retirada de mais de 10.000 garimpeiros daquela terra indígena. Esse evento foi realizado durante um ano de trabalho duro, com uma equipe de corajosos indigenistas e policiais federais. Poucas pessoas acreditavam que a expulsão de tantos garimpeiros, com tanto apoio dado pelas autoridades locais e até pela mídia nacional, fosse possível de acontecer, e o fato de ter sido realizado demonstrou a força da Funai e a capacidade do Estado brasileiro de resolver grandes pendências que afetam os povos indígenas, sem esquecer a determinação de Dinarte. E este fato não deve ser esquecido dos anais do órgão indigenista!

4. Com os Kayapó, em especial, mas também com quase todos os povos do estado do Pará e Amapá, num período de grandes conturbações, invasões, criação de vilas e cidades. Com os Kayapó, Dinarte teve um papel igualmente determinante na retirada de madeireiros e garimpeiros que infestavam aquela terra indígena.

5. Com os Guajajara e os demais índios do Maranhão.

6. Com os Fulniô, em especial, de quem se fez amigo e, por assim dizer, correligionário, já que se dizia entre os amigos que Dinarte tinha tido a raríssima honra de ser batizado no ritual sagrado dos Fulniô, o ritual do Ouricuri.

7. Com os Tuxá, Pankararu, Pankararé, Xokó, Kiriri, e outros índios dos dois lados da bacia do São Francisco, a quem valorizou como culturas e etnias, quando nem sempre se fazia isso na Funai.

Dinarte Madeiro tornou-se indigenista por acaso, por destino, por sorte. Nascido no velho bairro de Igapó, do outro lado do rio Potengí, na cidade de Natal, Dinarte cresceu como menino de família simples, trabalhadora, com pequeno sítio de lavoura de mandioca, algum gado e fruteiras. Meio urbano e meio rural, mas com oportunidades de educação e tendência para ser urbano. Com porte simpático e espigado, bom de prosa, foi ser vendedor de aparelhos eletro-domésticos num grande maganize de Natal, do qual chegou a ser gerente, com grande potencial de crescimento profissional. Aí aconteceu o inesperado, sua verdadeira fortuna, por assim dizer. Em 1971, se deixou enfeitiçar com a ideia de ir para o Amazonas e tentar sorte maior por lá. Não me lembro como, em Belém, aconteceu de entrar na Funai e ser enviado para Itaituba, no médio Tapajós, para iniciar os trabalhos de estabelecer uma Ajudância para assistir aos índios da região. Aí, após uns cinco anos de labor, subindo e descendo o Tapajós, deslanchou sua vitoriosa carreira de indigenista.

Dinarte começou como simples telegrafista e almoxarife, passou para chefe de posto e daí para administrador que foi de umas tantas ajudâncias, delegacias, administrações e superintendências da Funai, espalhadas pelo Brasil, mais especialmente na Amazônia e no Nordeste. Em Brasília foi coordenador geral e diretor de assistência -- setores mais atuantes diretamente com demandas indígenas. Nessas capacidades e atividades, Dinarte conheceu muitos índios, de quase todas as etnias, e com eles se relacionou sempre no diálogo, na conversa franca, na busca de soluções. Dinarte achava que os índios mereciam tudo o que pediam, que o Estado tinha uma dívida imensa para com os povos indígenas, e que tinha que pagar essa dívida. Ele, Dinarte, se considerava a serviço dessa missão.

No começo do governo FHC Dinarte foi convidado pelo ministro Jobim para ser presidente da Funai. Sua gestão durou dois anos, resultando na demarcação de mais de 30 terras indígenas, numa época em que a ousadia, a coragem e a habilidade indigenistas davam resultados. Deixou a presidência da Funai não por desentendimentos com índios ou colegas indigenistas, mas porque o ministro queria dar o cargo para um homem de ong, que prometia modernizar e reestruturar o papel do Estado para com os índios, mas terminou inaugurando a fase de presidentes da Funai que iriam ser retirados à força pela insatisfação dos índios.

Disse no começo desse texto que Dinarte merece ser considerado um dos maiores indigenistas do Brasil dos últimos 50 anos. Sua história de 40 anos de atividades diretamente ligada aos índios deixa um legado claro e concreto. Os índios e os indigenistas que privaram de sua convivência são testemunhas desse legado. A Funai não pode esquecer esse legado. Os esnobes poderão até considerar esse julgamento um exagero, alegando que Dinarte não tinha curso de ciências sociais, nem mesmo fizera o curso de indigenista da Funai. Como ele poderia ser um indigenista? Bem, Dinarte tornou-se indigenista por vontade própria, por convicção humana, por intuição e por dedicação indeclinável aos índios. Ele é um dos exemplos da tradição inconsciente do povo brasileiro à causa indígena, uma demonstração viva de que no Brasil existe um respeito muitas vezes recôndito em cada brasileiro pelo índio, como ser humano diferenciado e como brasileiro nato e histórico. Dinarte não precisou de cursos para se tornar indigenista; ele se fez indigenista por sua vivência com os índios, mas também porque tinha uma intuição humanista e um alto sentimento de brasilidade.

Um testemunho pessoal: Quando fui presidente da Funai, entre setembro de 2003 e março de 2007, tive Dinarte como conselheiro, como coordenador-geral de projetos especiais e como coordenador da Amazônia. Já o havia conhecido quando ele fora delegado da Funai em São Luís, mas foram nesses anos que convivi de perto e aprendi a respeitá-lo. Depois de uns três anos, tivemos uma discussão mais forte sobre algum motivo indigenista que não mais me recordo, e ele resolveu intempestivamente (e com raiva) pedir demissão de sua coordenação. Como já era aposentado da Funai, deixou o órgão e foi trabalhar como consultor da Vale, em cuja capacidade ajudou os Xikrin e Kayapó a se posicionarem com firmeza em relação aos projetos de mineração perto de suas terras. Nem por ser demitido por mim, Dinarte deixou de manter sua amizade a mim e solidariedade à minha gestão. Menos ainda a lealdade aos povos indígenas. Quando eu precisava de algum conselho dele, alguma consulta sobre algum problema indigenista, ele se colocava prontamente à disposição para vir ao meu escritório e ajudar. Também, em várias ocasiões passei muito bem usufruindo de seus dotes culinários e dos deliciosos camarões que ele importava de Natal, e o visitei uma vez em sua linda casa de praia.

Muitos indigenistas vão sentir falta de Dinarte e sua memória ficará conosco para sempre. Muitos mais índios vão se lembrar dele. Isto é o que importava para ele. Isto é o que todo indigenista almeja.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

VITÓRIA DOS ÍNDIOS PATAXÓ-HÃHÃHÃE

O mInistro Ayres Britto, presidente do Supremo Tribunal Federal, acabou de encerrar a sessão (inesperada, pois estava agendada para a próxima semana, daí a ausência de índios e seus adversários na plateia) que tratou da Ação Civil Originária 312, impetrada pela FUNAI, em 1982, pedindo a nulidade de títulos conferidos pelo governo da Bahia a fazendeiros dos municípios de Camacuã, Pau Brasil e Itaju do Colônia.

O ministro proclamou o resultado pela nulidade de todos os títulos desses fazendeiros que insidem sobre a Terra Indígena Caramuru-Catarina Paraguaçu, demarcada pelo SPI e governo da Bahia desde 1937.

Esta é a maior vitória dos índios brasileiros e do indigenismo praticado pela FUNAI desde a homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em abril de 2005.

Para mim, que acompanho essa causa não só como antropólogo, mas também como brasileiro comum, esta vitória é um feito extraordinário e merecedor de todos os encômios que se queira dirigir ao STF, apesar de ter demorado tanto a decidir pelo assunto.

Eis que está proclamado pelo STF que a Terra Indígena Caramuru-Catarina Paraguaçu, com 54.000 hectares, localizada na zona cacaueira do sul da Bahia, pertence única e exclusivamente aos índios PATAXÓ HÃHÃHÃE!!!

Confesso minha completa emoção e alívio com esse veredicto. Assisti a boa parte da votação, alertado por um amigo índio via Facebook. Ouvi a ministra Carmen Lúcia proferir seu voto como relatora, seguindo os termos e a qualidade cristalina já apresentada pelo voto do antigo relator, ministro Eros Grau, o qual vale na contagem.

Não ouvi os votos dos ministros Cezar Peluso, Joaquim Barbosa e Rosa Weber, nem o voto contrário do ministro Marco Aurélio, porém ouvi as considerações finais do ministro Celso de Melo, que votou positivo, e os considerandos finais sobre a proclamação do resultado apresentados pelos ministros Fucs, Britto, Peluso e o próprio Ayres Britto. Este último fez questão de proferir e comentar seu voto, o que deu um resultado final de 7 votos positivos contra 1. Não votaram os ministros Ricardo Lewandoski, por ausência do país, Dias Tofolli e Gilmar Mendes, por impedimento,  já que ambos defenderam essa causa como procuradores da União, antes de serem ministros do STF, e Luiz Fux, porque é quem substituiu o ex-ministro Grau, cujo voto foi computado anteriormente.

Enfim, por 7 votos a 1 o STF declara que a Terra Indígena Caramuru-Catarina Paraguaçu pertence por direito constitucional aos índios PATAXÓ HÃHÃHÃE. Dá para se fazer uma súmula sobre esse assunto, o qual foi analisado e relatado em termos jurídicos por diversos dos ministros citados.

A Terra Indígena Caramuru-Paraguaçu não pode ser mais revogada, nem posta em dúvida. Os Pataxó foram redimidos de todo seu sofrimento passado, desde o primeiro contato a que foram submetidos, em 1923, por todas as perseguições anteriores e posteriores, pelo esbulho de suas terras, pelos enganadores e malfeitores que os exploraram, por alguns funcionários do SPI, que inescrupulosamente arrendaram terras a colonos que chegavam àquela região, até a morte de Galdino Jesus dos Santos, há 15 anos, pela maldade de playboys de Brasília, e até todos seus mortos recentes.

Estão de parabéns os índios PATAXÓ, em primeiro lugar. Mas também muita gente que esteve ao lado dos Pataxó.

A FUNAI merece todo nosso respeito, por nunca ter vacilado sobre esse tema. Diversos indigenistas e advogados de antanho e da atual era da FUNAI. Menciono aqui Porfírio Carvalho e Odenir Oliveira como indigenistas que ajudaram os Pataxó a voltar às suas terras, e Moacyr Lira e Ricardo Coutinho como advogados da FUNAI.

Presto minha homenagem ao CIMI -- Conselho Indigenista Missionário -- por sua persistente defesa e comprometimento com os Pataxó, em todas as instâncias, desde assistência jurídica até solidariedade e atuação indigenista.

Presto uma saudosa homenagem ao antropólogo Carlos Moreira, que reavivou a etnohistória indigenista, renovando o Museu do Índio, nos anos 1980s, e criando o Setor de Documentação do Museu, e que tanto serviço tem prestado à recuperação de direitos e de terras indígenas. Ele sonhou com a redenção dos Pataxó.

Homenageio a antropóloga Maria Hilda Barqueiro, por seu belo trabalho etnohistórico de resgate da história de todos os povos indígenas do sul da Bahia, aqueles índios que um dia foram chamados de Aymoré, os variados povos indígenas de cultura Botocudo, Baenan, Mongoió e tantos outros de quem sabemos em pitorescas gravuras de pintores do início do século XIX. Quando presidente da FUNAI acolhi o livro da Hilda para publicação, e deve ser publicado pela FUNAI.

Meus cumprimentos calorosos aos líderes Pataxó da atualidade, que tanto e incansavelmente lutaram por seus direitos, quase sempre sob perigo de morte, e com sacrifício para muitos de seus parentes. Entre eles, e esquecendo nomes importantes, cito, por conhecimento pessoal, Nailton Muniz Pataxó, Gerson Pataxó, Adilson e Luiz Titiá .

Agora caberá ao governo Dilma acionar os poderes de sua administração, da segurança pública e da Polícia Federal, e do desenvolvimento econômico, para que tudo se resolva na calma,e que os fazendeiros que ocuparam por tanto tempo essa terra indígena se retirem sem causar mais dores e sofrimentos aos índios.

Que seja pela paz e pela boa vontade. Seja como for, não poderá haver recuos!


 
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