domingo, 30 de janeiro de 2011

FANTÁSTICO mostra vida cruel e miserável dos Guarani do Mato Grosso do Sul

A reportagem deste domingo do FANTÁSTICO, programa semanal da Rede Globo, mostra alguns dos aspectos mais cruéis e miseráveis da vida dos índios Guarani. Incluiu no cardápio: assassinatos (100 por 100.000, na cidade de São Paulo, por exemplo, são 11 por 100.000), violência doméstica, prostituição infantil, maus tratos paternos, venda de filha, prostituição juvenil.

Diante de tudo isso, o atual presidente da Funai foi entrevistado e disse:


“Solucionando a questão das terras, a gente cria um ambiente favorável para diminuir essa situação de violência que acontece tanto dentro das comunidades como também contra os próprios indígenas”, aponta Marcio Meira, presidente da FUNAI."


Não sei se isso constitui insciência, isto é, falta de conhecimento, alienação da realidade ou o quê, ou se é puro cinismo e indiferença. Pois ele sabe muito bem que não vai resolver a questão das terras, tanto pelas dificuldades inerentes, quanto pelo jeito mal, incompetente e ilusório pelo qual a atual gestão da Funai deslanchou o processo de demarcação no Mato Grosso do Sul. 


Sabe também que os problemas sociais, étnicos, culturais e econômicos dos Guarani são de uma gravidade que vai além da carência de terras e exigem ações de diversas sortes, fortes e determinadas, como a criação de uma entidade pública exclusivamente para os Guarani. 


Devo dizer que a ideia de um Instituto Guarani foi apresentada por mim ao governo Lula em 2004. Fizemos um programa, porém o governo estava preocupado exclusivamente com o escândalo das crianças que morriam nos postos de saúde da Funasa, e achou que resolveria a questão dando força à Funasa e estabelecendo bolsas famílias. 


Por sua vez, a situação se agravou no último ano pela extinção dos postos indígenas e da AER Amambai, bem como pela pouquíssima participação dos índios na gestão de suas administrações. O resultado é o agravamento da anomia cultural e étnica que atinge os índios cada vez mais na atualidade.


Vejam a matéria

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Violência e drogas marcam relação entre índios do MS

Na região de Dourados, em Mato Grosso do Sul, na fronteira com o Paraguai, vivem índios guaranis kaiowás e terenas, que estão entre os povos mais ameaçados do Brasil.

“Meu pai me vendeu para o cara por R$ 2 mil”, conta uma índia guarani. Ela tinha apenas 11 anos quando foi vendida pelo próprio pai. Além dos R$ 2 mil, o comprador pagou ainda uma antena parabólica.

Visite o site do Globo Natureza 
Na região de Dourados, em Mato Grosso do Sul, na fronteira com o Paraguai, vivem índios guaranis kaiowás e terenas, que estão entre os povos mais ameaçados do Brasil. O Fantástico foi a uma das oito reservas criadas em Mato Grosso do Sul por volta de 1920 com o discurso de integrar a população indígena à sociedade. Famílias inteiras foram retiradas das áreas de origem e levadas para lá. Acostumados com muito espaço, os índios tiveram que se adaptar a uma nova realidade.

Só nas aldeias Jaguapirú e Bororó são cerca de 12 mil índios guaranis em uma área que fica praticamente dentro da cidade de Dourados. Falta espaço para plantar.

“Nossa dificuldade é para plantar. Tem pouco. Não tem casa boa. Não tem luz. Tem dificuldade até para comida”, lamenta a índia Élvia Araújo.

Mas o principal problema é a violência.

Mato Grosso do Sul tem a segunda maior população indígena do Brasil. Segundo o Ministério Público Federal, a taxa de homicídio entre os guarani-kaiowá do estado é de cem para cada 100 mil habitantes, quatro vezes a média nacional.

“Um índice superior ao do próprio Iraque. Você tem uma população submetida a um índice de violência extremo”, aponta o procurador da República Marco Antônio Delfino de Almeida.

A proximidade com os brancos trouxe para as aldeias muito mais do que um novo idioma. De carona vieram o álcool, a maconha, a cocaína. Até a droga mais devastadora do momento já chegou por aqui.

“Aqui está rolando de tudo, já. Crack, maconha e até cocaína”, alerta a vice-líder da aldeia, Leomar da Silva, vice-líder da aldeia.

Uma índia de apenas 14 anos diz que está acostumada a fumar maconha com os amigos.

“Quando nós fumamos cinco, bomba aqui. Gostei da maconha até a primeira vez. Quando chego alguém com maconha, eu fumo”, diz.

O consumo de álcool e drogas potencializa a violência. Quando a equipe do Fantástico estava na aldeia Bororó, a índia Márcia Soares Isnardi, de 21 anos, tinha morrido apedrejada. O corpo foi encontrado no dia seguinte na beira da estrada.

“Ela estava tomando bebida alcoólica na casa da mãe dela. E de lá ela subiu para cá. E acabou morrendo no meio da estrada”, lembra o cacique e tio da índia morta, César Isnardi.

Quem sobrevive aos ataques violentos não esconde a tristeza. A índia Lucilene levou uma facada no rosto, quando o marido chegou em casa drogado. “Meu marido me batia porque ele fumava maconha. Fumava e bebia. Fumava droga”, conta.

Nas aldeias não há nenhum tipo de policiamento preventivo. Mas as autoridades têm conhecimento do que acontece por lá.

“Esse tráfico de drogas é o carro chefe de uma série de outros delitos que são consequência: violência doméstica, furtos, roubos”, comenta Antônio Carlos Sanches, delegado da Polícia Federal.

Uma vez por semana, pais de família se unem e vão para as ruas em um patrulhamento comunitário na aldeia.

“Eu peguei um menininho com 14 anos, drogado, louco. O que vai acontecer com esse menor?”, questiona diz uma mulher.

Não muito longe dali, no município de Ponta Porã, as adolescentes indígenas são as principais vítimas da desestruturação familiar das aldeias. Na fronteira entre Brasil e Paraguai, no município de Pedro Juan Caballero, do lado brasileiro, há vários pontos de prostituição de adolescentes, inclusive indígenas. A Iraci faz parte do Conselho Tutelar de Ponta Porã.

“A nossa divisa é só uma rua. E os adolescentes das aldeias que vêm se prostituir sabem desse limite nosso de autoridade aqui. Atravessou para lá, o conselho não pode fazer mais nada”, diz Iraci de Oliveira.

Uma índia tem 17 anos. Ela conta que se prostitui para comprar comida.

Repórter: O que você faz aqui no asfalto?
Índia: Passear.
Repórter: Passear é o quê?
Índia: Procurar dinheiro.
Repórter: Como que ganha dinheiro aqui?
Índia: Fazer programa.
Repórter: Quanto você ganha a cada programa que você faz?
Índia: R$ 30, R$ 40.
Repórter: O que você faz com o dinheiro?
Índia: Fazer comida.
Repórter: A sua mãe sabe que você está aqui?
Índia: Sabe.
Repórter: O que ela diz?
Índia: Vai procurar dinheiro.
Repórter: Ela sabe que você faz sexo?
Índia: Sabe.

Outra menor guarani, do início da reportagem, tenta se recuperar do trauma de ter sido vendida pelo pai ao dono de uma olaria por R$ 2 mil e mais uma antena parabólica.

Repórter: E aí você foi para a casa deste homem? E o que você sentiu?
Índia: Senti medo. Só sabia gritar.
Repórter: E o que ele falava?
Índia: Que ia transar comigo e me abusou.

Nós procuramos o homem que teria comprado a menina, mas ele não foi encontrado.

A Índia, hoje com 15 anos, vive em uma casa de proteção ao adolescente. Ela diz que não quer voltar a viver na aldeia. Vai se dedicar aos estudos e quer ser professora. “Eu quero ser alguém na vida, ter uma profissão”, diz.

“Solucionando a questão das terras, a gente cria um ambiente favorável para diminuir essa situação de violência que acontece tanto dentro das comunidades como também contra os próprios indígenas”, aponta Marcio Meira, presidente da FUNAI.

E os guarani ainda mantêm a tradição das casas de reza. Seu Getúlio diz todos os dias que pede aos deuses para pedir proteção e paz nas aldeias. 

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Atual direção da Funai arrasa AER Goiânia

O famigerado Decreto 7506/09, que pretendeu fazer uma nova estruturação da Funai, em voga desde 29 de dezembro de 2009, fez estragos por toda parte do mundo indígena. As administrações regionais da Funai estão sentindo suas repercussões ainda hoje, e esse desvario terminará criando um tsunami indigenista contra quem concebeu esse decreto e contra quem o está implementando na marra.

Já falamos desse Decreto de muitos modos. Recordemos alguns pontos fundamentais.

Em primeiro lugar, o Decreto 7506/09 extinguiu todos os postos indígenas, sob a justificativa de que eram um resquício da era rondoniana, uma política indigenista rejeitada porque vista como inadequada aos tempos neoliberais, daí sua substituição pelo termo anódino "coordenação técnica local", e que sua presença em terra indígena constituía uma atitude de proteção descabida aos povos indígenas. Agora os funcionários estão nas cidades, e os índios, quando precisam de qualquer apoio, vão às cidades à procura da Funai. Lá, em suas aldeias, ficam a Funasa, com seu indigesto indigenismo sanitário, as escolas dirigidas pelas professoras dos municípios, e os funcionários de municípios ou de ONGs que não deixam de aproveitar alguma coisa que pode vir dos índios: uma verbinha de algum ministério que eles trouxeram, ou uma boa verba de um projetinho obtida de alguma ONG estrangeira. A Funai não sabe mais do que acontece nas terras indígenas, a não ser via os experientes indigenistas e servidores que sentem no ar o processo de mudanças radicais que estão acontecendo com incrível rapidez.

Em segundo lugar, o Decreto extinguiu 24 administrações regionais da Funai, sendo que 10 delas foram substituídas por outras em cidades vizinhas (Redenção por Tucumã; João Pessoa por Fortaleza; Bauru por Itanhaém, etc.), enquanto algumas foram rebaixadas ao nível de "coordenações técnicas locais" (vide Recife, João Pessoa, São Luís, Curitiba, Porto Seguro, etc.), outras ao nível de "frente etno-ambiental" (vide o escandaloso caso de Altamira).

Porém, o caso mais escabroso, mais deletério, mais anti-administrativo, mais vingativo que se viu nesse Decreto de desestruturação da Funai foi o arraso que se fez da antiga e indigenisticamente sólida AER Goiânia, que não somente foi extinta como nem ficou para semente como uma simples coordenação técnica local.

Para atender aos povos indígenas que eram assistidos por Goiânia -- formalmente os índios Tapuios, Avá-Canoeiro e Karajá do Aruanã, mas verdadeiramente, uma gama de comunidades xavante e de outros povos que passavam por Goiânia -- foi criada, ao invés, uma tal coordenação técnica na cidade de Goiás Velho, cidade que nunca teve tradição de indigenismo, tampouco de administração indigenista. Até hoje os indígenas que eram assistidos por Goiânia estão ao deus-dará. Os Avá-Canoeiro da região norte do estado, no município de Minaçu, oito deles, tão-somente, a semente de uma possível reconstituição de um dos povos mais valentes que já houve na história do Brasil, os Avá-Canoeiro estão hoje à mercê de todas as possibilidades de invasão de suas terras e de falta de assistência indigenista. Não fosse, até agora, a dedicação voluntária de um respeitado indigenista de alta cepa, Walter Sanchez, que ainda está por lá, sem nenhuma orientação formal do órgão.

Já os Xavante, que sempre viram em Goiânia uma orientação para encontrar meios de avanço político e econômico, perderam a paciência com as últimas decisões da atual direção da Funai e estão agora prontos a tomar em suas mãos decisões mais drásticas do que até agora vinham fazendo. Eles não esquecem que foi de Goiânia, da sua liderança indigenista maior, que partiu a mais dedicada ação indigenista dos últimos dez anos, qual seja a retomada da Terra Indígena Marãiwatsede, dos índios Xavante. Os Xavante liderados pelo cacique Damião fizeram uma gloriosa retomada, que um dia será contada como uma saga indígena, mas, no seu auxílio, na sua retaguarda, estavam as figuras principais do indigenismo da AER Goiânia. Todos sabem disso e isso não pode ser esquecido.

Pois bem, para arrasar, queimar e jogar sal sobre a AER Goiânia, a atual direção da Funai mandou retirar todo o mobiliário da sede da AER de Goiânia, o que os seus servidores não deixaram fazer. Semana passada jogaram o sal ao publicar em boletim interno da Funai a transferência de todos os funcionários da AER Goiânia, desde o seu principal administrador -- enviado para o Alto Solimões !! -- até os motoristas e funcionários, enviados para administrações em Mato Grosso, Rondônia, Mato Grosso do Sul, Maranhão e Brasília!

Este Blog tem acompanhado a luta destemida dos servidores de Goiânia pela preservação de sua administração. Apelaram para os políticos locais de todos os partidos, inclusive do PT, que os apoiaram; apelaram para o governador e para o prefeito da cidade, que inclusive os apoiaram; apelaram para o arcebispo de Goiânia e para o bispo indigenista Dom Tomás Balduíno, que inclusive os apoiaram escrevendo cartas ao presidente.

Debalde. O presidente não demonstrou qualquer simpatia.

Neste último ano e um mês, os funcionários de Goiânia trabalharam dando plantão no órgão, batendo ponto, demonstrando estar em serviço -- sem que ninguém da atual direção da Funai tenha proferido uma instrução -- a não ser determinar sua retirada e agora a transferência sumária de seus funcionários.

Este Blog quer demonstrar sua solidariedade com os intrépidos e invencíveis servidores da AER Goiânia.

Eles não desistiram.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Missionário do CIMI apresenta sua visão pessoal de seu trabalho

Em entrevista à IHU, Egon Heck, um dos principais missionários do CIMI, dá um depoimento de sua vida pessoal, de sua filosofia como missionário, que mereceu a atenção desse Blog.

Em entrevista que eu dei ao IHU semana passada, falei que o que mais me incomoda na filosofia missionária do CIMI é a visão salvacionista que têm dos índios e do futuro dos povos indígenas. É uma visão que condena os povos indígenas à salvação, e não a um futuro que pode ser trabalhado por eles próprios, junto com a sociedade brasileira.

Baseado na Teologia da Libertação, o CIMI tem buscado incorporar uma visão mais laica da vida indígena, conceber um futuro em que o ser indígena tenha sua potencialidade realizada em sua própria cultura. Creio que alguns missionários do CIMI conseguem alcançar essa visão. Entretanto, acho que estão presos a uma visão política estreita, anti-Estado, anti-sociedade, que os leva a retroceder ao salvacionismo. E isto explica suas ações contraditórias em tantos aspectos de seu trabalho político-missionário.

De todo modo, eis a entrevista de Egon Heck.

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INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS


24/01/2011 - 10:13 - Egon Heck: há 40 anos na universidade dos índios
É impossível separar a vida de Egon Heck, coordenador do Conselho Indigenista Missionário – Cimi, regional do Mato Grosso do Sul, da causa indígena brasileira. Ele não é índio, mas compartilha dos mesmos sentimentos, da vontade de viver em uma sociedade que respeita as diferenças, aprende com a espiritualidade e sonha com justiça social. “Sonho sem ilusão, mas é sonho e tem de ser sempre sonho”. Egon Heck foi padre durante 12 anos e hoje é missionário leigo. Engajado com as comunidades indígenas desde a juventude, adotou esta causa como parte integral de sua própria vida e diz com orgulho e firmeza que este “é um motivo que vale a vida, vale a morte”. Em visita ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, no dia 07-10-2010, quando participou do evento Ciclo de Palestra Jogue Roayvu: História e Histórias dos Guarani, pré-evento do XII Simpósio Internacional IHU: A Experiência Missioneira: território, cultura e identidade, ele nos motivou a pensar que outro mundo é possível. Confira.

Por: Patrícia Fachin

IHU On-Line – Onde o senhor nasceu? Pode nos contar sobre as suas origens?

Egon Heck – Nasci no Rio Grande do Sul, no município de Cândido Godói, na região missioneira do Alto Uruguai. Meus pais, dentro da onda migratória dos gaúchos que foram do extremo sul para o extremo norte do país levando a perspectiva de um modelo de desenvolvimento de país, migraram para o oeste de Santa Catarina. Nesse contexto, de trabalho na agricultura, se desenvolveu a perspectiva da minha educação escolar, a qual está ligada à formação religiosa: estudei em seminários e internatos.

Com algumas possibilidades de rebeldia, a partir do senso crítico e de mudança desencadeados pelo Concílio Vaticano II, fui aderindo às renovações que se deram na década de 1960 e 1970. Em 1967, fiz parte do movimento contra a Ditadura. Na época, os estudantes tinham uma força bastante articulada e eu participei do DCE, do Movimento Estudantil Universitário.

IHU On-Line – Foi neste momento que o senhor teve contato e conhecimento da causa indígena?

Egon Heck – No início dos anos 1970, comecei a conhecer a questão indígena. Alguns colegas haviam criado, em 1968, a Operação Anchieta , que era uma organização de apoio ao trabalho junto aos povos indígenas a partir da inserção de leigos no trabalho missionário junto aos índios, principalmente na Prelazia de Diamantino , que, na época, era a principal região de atuação dos jesuítas com os índios. Envolvi-me nesse trabalho, interrompi os estudos e fiquei um ano em Rondônia, em 1972, quando foi criado o Conselho Indigenista Missionário – Cimi. Concluí o segundo e o terceiro ano de Teologia na PUCRS. Quando voltei à Chapecó-SC, como padre, conversei com o bispo Dom José Gomes , que foi muito sensível ao destinar dois padres para se dedicarem à questão indígena. Nesta época, comecei a estruturar o Cimi na região Sul a partir de Santa Catarina. Todo o trabalho com os guarani do Rio Grande do Sul até os do Espírito Santo foi sensibilizado a partir da Igreja. Até então, o pensamento que prevalecia na Igreja Católica era o de que a questão dos índios era um problema do Estado. Ajudamos a romper essa mentalidade, a sensibilizar as igrejas locais, que começaram a se solidarizar aos indígenas. Em 1969, trabalhei na prelazia de Tefé, que fica no Alto Solimões. Nessa região permaneci por cinco anos e, depois, fui secretário do Cimi, em Brasília. Mais tarde, voltei para a Amazônia e entre 1999 e 2003 fui, novamente, secretário do Cimi, em Brasília. Hoje, atuo no Cimi do Mato Grosso do Sul.

IHU On-Line – Como sua família reagiu diante dessa opção?

Egon Heck – Venho de uma família de descendentes europeus, que carregam uma carga cultural e ideológica de preconceito contra os povos indígenas. Eles eram alimentados pela ideologia de que o trabalho é fundamental e, por isso, é necessário trabalhar 12, 15 horas por dia para produzir o máximo e se desenvolver. Aos poucos conseguimos romper com essa origem histórica que se desenvolveu ao longo dos anos. Minha família nunca foi contra meu trabalho. Depois de praticamente 40 anos de atividade, eles aprenderam a aceitar mais a questão indígena como uma realidade diferenciada. Eles sempre me estimularam a ir bem no trabalho, embora nem sempre tivessem compreensão exata das implicâncias de uma sociedade diferente, plural, baseada no diálogo das culturas. O governo militar propunha que o Brasil precisava ser uma força hegemônica no continente e para isso, todos deveriam ser iguais, pois a diversidade enfraquecia o país. Esse pensamento já faz parte do passado. Fui me desenvolvendo nesse contexto.

IHU On-Line – Como a questão indígena se relaciona com a sua vida pessoal?

Egon Heck – Quando perguntam qual é a minha profissão, levo um susto. Em geral, digo que sou professor. Imediatamente vem a pergunta: Leciona onde? E eu digo: Não leciono, só aprendo; estou há 40 anos na universidade dos índios. Tive a felicidade de ter uma convivência mais próxima com a realidade indígena e, com ela, amadurecer.

Amadureci a questão central: na encruzilhada dos processos civilizatórios, os povos indígenas entram em pauta não pelas suas grandes conquistas, mas a partir de suas propostas de alternativas de vida e possibilidades de relação com a Terra, o planeta. Diante da inviabilidade do sistema vigente, eles se apresentam como uma possibilidade de contribuição de uma visão de mundo diferente. É gratificante estar com eles e poder dizer, com convicção e de coração, que eles trazem essa convicção de um mundo melhor, embora sejam obrigados a abdicar de sua própria identidade diante das pressões e violências às quais são submetidos.

Eles resistiram, estão resistindo. Como dizem: “Passaram 500 anos, agora vamos para os próximos 500”. Estão confiantes de que haverá mudanças profundas nas relações políticas, econômicas e sociais no mundo. Espero que a comunidade tenha essa capacidade, a partir dos povos, da sabedoria, da espiritualidade, das diversas formas de vida, de dar a volta e repor o caminho da humanidade com outros valores. Sinto-me junto e ao lado dos povos indígenas como batalhador por essas mudanças.

IHU On-Line – Como é sua rotina no Mato Grosso do Sul? Tem acesso às comunidades indígenas, conversa com os índios?

Egon Heck – No Mato Grosso do Sul, a convivência direta com eles é complicada em função da situação de confinamento em que eles se encontram. As estratégias de apoio a eles são um pouco diferenciadas do ponto de vista de contatos, visitas e apoio às mobilizações. O ideal desenvolvido no Cimi, que era a questão da encarnação das comunidades, estar com eles, ser um deles, foi ficando difícil. Os próprios povos indígenas não querem que os brancos morem com eles; querem apoio, diálogo; todavia, para isso, não há necessidade de entrar na terra deles.

IHU On-Line – E por que esse posicionamento? É uma preservação da cultura indígena?

Egon Heck – Muitas vezes é uma situação de autodefesa. Havia acusações de que os índios são incapazes e de que os não-índios estão “fazendo a cabeça” deles. Então, para estar isentos disso, eles procuraram manter uma certa distância. Isso não acontece com todos, tanto que alguns missionários moram nas aldeias. Mas, cada vez mais, o próprio processo do movimento indígena e a nossa opção por defender os seus direitos e suas vidas nos levam a nos questionar e nos reposicionar criticamente em relação às formas de relação e de presença.

Houve épocas em que o governo e a Funai proibiram o Cimi de estar nas aldeias; outras, em que os índios acharam que era melhor que nós não estivéssemos nas comunidades; momentos em que o Cimi achou que seria mais frutífera a participação não-presente nas terras indígenas, mas trabalhando a questão na sociedade. Cada período histórico exigiu um reposicionamento em relação às formas de presença solidária e radical, mas nem sempre no mesmo espaço físico.

IHU On-Line – O senhor se sente parte da comunidade indígena?

Egon Heck – Sinto-me partilhando dos projetos indígenas, da utopia indígena de sociedades que consigam ultrapassar esse patamar de dominação, impactos e destruição em curso. Assumi esse projeto de vida.

IHU On-Line – O senhor já recebeu ameaças de morte em função do seu trabalho?

Egon Heck – Na década de 1970, recebi os famosos bilhetinhos do CCC – Comando de Cassa Comunista, que diziam que, caso continuasse com esse trabalho, seria eliminado. A visão solidária em termos da CNBB, dos movimentos sociais, de alguns setores da mídia, ajudam a dar uma cobertura e garantia de que essas tragédias não aconteçam.

IHU On-Line – O senhor tem medo de morrer?

Egon Heck – Não. A causa, para mim, é um motivo que vale a vida, vale a morte. Cada vez mais, me sinto comprometido com essa causa, que é uma causa de vida e que exige uma decisão radical, sem temores e sem medo. Sinto-me tranquilo.

IHU On-Line – Como foi, para o senhor, viver o período da Ditadura Militar?

Egon Heck – Vivemos momentos de temor porque a realidade era muito dura. Por ajudar os índios a participarem de reuniões, fui ameaçado com arma por chefes de postos da Funai. Temia a brutalidade do sistema implantando, que não tinha grandes remorsos em eliminar pessoas.

IHU On-Line – Nos momentos de lazer, o que gosta de fazer?

Egon Heck – Gosto de trabalhar na terra. Nos sábados faço a terapia da terra: planto flores, faço jardins, hortas. Semeando, sentimos a vida desabrochar. No restante do tempo livre, tenho me empenhado em escrever algo sobre a realidade e a conjuntura indígenas. Faço isso como um trabalho-lazer, lazer-trabalho. De resto, gosto de estar com os amigos. O espírito da festa é celebrado pelos indígenas: a vida tem sentido se ela for uma festa. Nós, infelizmente, sacrificamos a vida em função do trabalho, do nosso interesse de produzir cada vez mais. Perdemos um pouco esse espírito da festa. Estou tentando recuperar esse tempo, viver da terra, sentir a vida.

Visita familiar

Somos nove irmãos que vivem espalhados pelo Brasil. Conseguimos nos reunir uma vez por ano. Hoje, com as formas de comunicação digitais, nos comunicamos com frequência. Claro, nada seria igual a uma visita. Tenho aprendido com os índios, além da paciência histórica e da persistência heróica, que a alegria de viver e a espiritualidade fundamentam a vida. Às vezes, nos esvaziamos e ritualizamos coisas que satisfazem e nos deixam acomodados. Perdemos e não temos conseguido recuperar esse espírito da integralidade da vida. Mesmo como missionários, ficamos esvaziados no afã de dar respostas às demandas propostas. Isso nos tira a capacidade de colocar a vida em primeiro plano.

IHU On-Line – A partir da sua experiência, que mudanças são necessárias na Igreja, no sacerdócio?

Egon Heck – Fui padre durante 12 anos. Deixei a vivência do sacerdócio para constituir família; sou missionário leigo por opção. Deixei de ser padre e não deixei de fazer tudo que fazia antes, a não ser as questões sacramentais.

Sou casado há vinte anos e tenho três filhos. Do ponto de vista humano, senti que a realização se tornou mais integral e possibilitou a harmonização do aspecto afetivo da vida. O celibato tira as possibilidades de uma realização mais tranquila de pessoas que, às vezes, não têm vocação para o celibato, mas gostariam de desenvolver uma atividade no ministério da Igreja. Com o casamento, tenho conseguido uma tranquilidade interior e afetiva maior. Os índios, por exemplo, não compreendem o fato de algumas pessoas optarem por ficarem sozinhas. A sexualidade e a afetividade estão imbricadas ao ser humano e não são um departamento que podemos decidir se nos interessa ou não.

A crise mais profunda dos sacerdotes da Igreja se dá, em grande parte, dentro dessa reflexão mais profunda de partir para outros caminhos e não numa via única. Estamos bastante próximos de mudanças nessa área, mas, como todas as tendências estruturais são conservadoras, para mudar, leva séculos.

IHU On-Line – Como define sua fé? Ela foi transformada a partir da convivência com os índios?

Egon Heck – Eu tinha uma fé muito ancorada em alguns aspectos rituais, sacramentais, a qual foi se reencontrando e se redimensionando para uma fé mais libertadora no sentido integral e não tão diretamente acoplada a determinados ritualismos e estruturas. Uma fé mais liberta é uma fé mais libertadora, que consegue ser fermento. Ter contato com outras realidades possibilita um amadurecimento da fé no sentido de libertá-la das amarras e colocá-la numa dimensão de busca e realização. Às vezes, ficamos restritos a espaços e formas. Uma fé que tem uma visão da centralidade da vida, mesmo ancorada na história da salvação, possibilita o diálogo com as outras formas de visão do sobrenatural, das espiritualidades que estão presentes nos povos indígenas. Eles também questionam a sua fé, aspectos de sua vivência; têm enorme dificuldade de entender a fé de um fazendeiro, que invade suas terras e mata pessoas. Eles têm dificuldade de entender a estrutura do cristianismo.

IHU On-Line – Quais são os seus sonhos?

Egon Heck – Sonhos sempre são perspectivas mais amplas. Ainda acredito naquele grito dado em Porto Alegre, há dez anos: “Outra sociedade é possível!” Participei de quatro Fóruns Sociais Mundiais. Sinto-me dentro dessa perspectiva de mudanças profundas da humanidade. Sinto que esse momento se avizinha com mais velocidade em função das posturas de um sistema que não tem freios e não consegue se autoavaliar. Temos de reconstruir outros pilares de humanidade, de vida, de planeta. Não só ouvimos falar, como estamos sentido na prática as consequências de um modelo que não tem nenhuma viabilidade em termos de sonhos.

Outro sonho é reconstruir a dinâmica da terra. É um absurdo ver muitas terras ocupadas com soja e, ao mesmo tempo, enormes acampamentos de lonas pretas na beira das estradas.

Sonho sem ilusão, mas é sonho e tem de ser sempre sonho. Se não conseguirmos mais sonhar, entramos em parafuso, a vida perde seu encanto e as possibilidades vão se restringindo cada vez mais.

sábado, 22 de janeiro de 2011

Guarani Kaiowá ganham escultura e certificado do governo federal

Ironia das ironias. O Governo Federal premiou os Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul com uma escultura e um certificado!

Como dizem os cariocas, "Fala sério!"

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Guaranis Kaiowás recebem hoje prêmio federal

AGÊNCIA BRASIL 21/01/2011 08h30
 
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O governo federal entrega hoje (21) ao povo Guarani Kaiowá o Prêmio Direitos Humanos na categoria Garantia dos Direitos dos Povos Indígenas. Será às 19h30 na Universidade Federal da Grande Dourados, em Dourados.
Há 16 anos, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República premia entidades e pessoas que trabalham na promoção e defesa dos direitos de pessoas ou grupos sociais em situação de risco. O prêmio é composto por uma escultura e um certificado.

sábado, 15 de janeiro de 2011

Entrevista de Mércio Pereira Gomes dada ao IHU - Instituto Humanitas Unisinos

O Instituto Humanitas Unisinos -- IHU -- publica a segunda entrevista sobre a atualidade do indigenismo brasileiro, desta vez com o autor deste Blog.

A entrevista esclarece em mais detalhes alguns pontos apresentados em outro artigo deste Blog, logo abaixo, onde foi discutida a ideia dos três indigenismos que lutam pela hegemonia da questão indígena brasileira.

O autor deste Blog declara-se favorável ao indigenismo rondoniano e sua capacidade de ampliar sua visão da questão indígena, incorporando novos saberes antropológicos e a participação intelectual e pessoal de indígenas e de povos indígenas.

Para quem vem acompanhando este Blog há mais tempo, o autor propugna que os índios devem ser ouvidos em todos os momentos de um empreendimento, desde sua concepção inicial até sua realização. Considera que os índios têm o direito de dizer NÃO a empreendimentos que eles percebam que venha a prejudicá-los, mas também que possam dizer SIM, e participar, se assim o quiserem, com todas as garantias de conhecimento livre e completo, sem ambiguidades.

O autor deste Blog parabeniza o Instituto Humanitas Unisinos pela iniciativa destas entrevistas, e por seu espírito aberto a novas ideias e novas proposições sobre a atualidade brasileira e sobre questões de filosofia política, antropologia e teologia libertária.

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15/1/2011
Os desafios do indigenismo brasileiro hoje. Entrevista especial com Mércio Gomes
Para Mércio Gomes, a política indigenista atual vive uma situação de anomia. Em entrevista concedida por email à IHU On-Line, Mércio avalia a situação dos povos indígenas brasileiros e a politização em torno das decisões sobre o futuro e o destino dos índios no país. “A anomia não acomete só o órgão indigenista e sua incapacidade de diálogo, mas os próprios indígenas que se sentem lesados e abandonados pelo descaso das autoridades e não sabem o que fazer para encontrar seu próprio caminho diante das dificuldades atuais. No ano passado mais de 500 índios acamparam diante do Ministério da Justiça durante seis meses para protestar contra o Decreto 7506 e pedindo a destituição da atual direção da Funai. Debalde, no pouco que foram ouvidos foram ignorados nas suas demandas”, exemplificou.

Mércio Pereira Gomes é professor de Antropologia, com doutorado pela Universidade da Florida (EUA). Leciona na Universidade Federal Fluminense. Trabalhou com o antropólogo, político e educador Darcy Ribeiro, de quem foi subsecretário de Planejamento da Secretaria Especial de Projetos e Educação, no governo do Rio de Janeiro (1990-1994), tendo ajudado a planejar e construir os famosos Centros Integrados de Educação Pública. Foi presidente da Funai entre setembro de 2003 a março de 2007, durante o governo Lula.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Por que a política indigenista atual vive uma anomia?

Mércio Pereira – Em primeiro lugar, porque a política indigenista brasileira está paralisada diante dos problemas criados pela atual direção da Funai. Ela não consegue mais avançar nasdemarcações de terras porque, por intempestividade e por ilusionismo político, provocou os fazendeiros e até invasores recentes (como no caso Marãiwatsede) a não aceitar mais abrir mão das terras que consideram suas por ressarcimento de suas benfeitorias, e porque o STF favoreceu os fazendeiros no acórdão da homologação da T.I. Raposa Serra do Sol, de 19 de março de 2009, ao declarar que terra indígena é somente aquela que os índios ocupavam ao tempo da promulgação daConstituição Federal, isto é, outubro de 1988, uma data quase mística e irreal, que inviabiliza as demandas por recuperação de terras perdidas em outros tempos pretéritos. Por isso é que nos últimos quatro anos a Funai só homologou 16 terras indígenas e não demarcou nenhuma, uma queda brusca em relação às 67 dos primeiros quatro anos do governo Lula.

Em segundo lugar, porque o Decreto 7506/09, assinado pelo presidente Lula a pedido da atual direção da Funai, desestruturou a Funai e levou-a a uma paralisia administrativa. Grandes e importantes administrações, como Recife, Curitiba, Altamira, Oiapoque, Porto Velho, Goiânia, São Luis, Campinápolis, Redenção, São Félix do Xingu e outras mais foram fechadas e os seus encargos foram levados para outras administrações a centenas de quilômetros de distância, a maioria sem capacidade de absorver novos encargos e serviços.

 "A Funai está sem posicionamento sobre assuntos que lhe eram de sua alçada, como educação, saúde, especialmente doenças oriundas do branco"
Em terceiro lugar, os impasses administrativos e políticos se amontoam e não permitem saída pelos parâmetros tradicionais. Além dos graves problemas com demarcação e administração, aFunai está sem posicionamento sobre assuntos que lhe eram de sua alçada, como educação, saúde, especialmente doenças oriundas do branco, como alcoolismo, diabetes, etc., incentivo econômico, comercialização de artesanato, participação política e outras.

Em quarto lugar, houve uma partidarização da Funai, bem como da Fundação Nacional de Saúde - Funasa, no segundo governo Lula, a tal ponto que mais vale ser do PT do que ser indigenista ou mesmo técnico indígena. Assim, a Funai foi tomada por partidários sem compromisso histórico com a causa indígena.

Por fim, a voz indígena de raiz não se faz presente no órgão indigenista. Caciques e lideranças tradicionais não são recebidos pelas autoridades, nem nas administrações onde devem ser assistidos. A Funai atualmente só escuta os índios ligados a associações, que, por sua vez, são diretamente ligados às ONGs ambientalistas e indigenistas. Quando precisa consultar sobre assuntos que lhes interessam, como impactos de empreendimentos hidrelétricos e estradas, terminam consultando apenas suas lideranças comprometidas, não as lideranças de raiz. Daí a grande insatisfação nos casos Belo Monte, na extinção de administrações e postos indígenas, etc.

A anomia não acomete só o órgão indigenista e sua incapacidade de diálogo, mas os próprios indígenas que se sentem lesados e abandonados pelo descaso das autoridades e não sabem o que fazer para encontrar seu próprio caminho diante das dificuldades atuais. No ano passado mais de 500 índios acamparam diante do Ministério da Justiça durante seis meses para protestar contra o Decreto 7506 e pedindo a destituição da atual direção da Funai. Debalde, no pouco que foram ouvidos foram ignorados nas suas demandas.

IHU On-Line – Quais são as perspectivas para os povos indígenas brasileiros que se delineiam a partir do governo Dilma?

Mércio Pereira – Se nada mudar, são as piores possíveis, com a desvalorização da Funai, a anomia indígena e indigenista, o aumento da participação do Congresso na política indigenista, a favor de fazendeiros, a estadualização da educação, a incapacidade de equilibrar a saúde indígena, sem falar no impasse das demarcações e nos conflitos com o PAC.

IHU On-Line – Como ela irá conciliar as obras do PAC com a manutenção da vida e cultura indígenas naqueles territórios onde vivem essas comunidades?



 "A Funai está dominada por pessoas que têm compromisso mais com as ONGs de onde vieram do que com a política indigenista de Estado"
Mércio Pereira –
 Aí é que está, não faço a mínima ideia, não com a atitude que predomina entre os quadros que tratam da questão indígena! Em uma hora, dizem que escutam os índios via conselho indígena, em outra dão licenciamento sem consultar os índios de raiz, e estes protestam. Os índios Gaviões querem fazer seu próprio estudo para decidir se aceitam uma hidrelétrica que os impactem e a Funai põe barreiras na sua determinação. A Funai está dominada por pessoas que têm compromisso mais com as ONGs de onde vieram do que com a política indigenista de Estado. Muito menos com o indigenismo rondoniano. Aí as contradições afloram com muita força e, no limite, resultam em decisões pessoais e forçadas por autoridades superiores, sem o consenso dos índios. Parece que este foi o caso do licenciamento da Usina Belo Monte.
IHU On-Line – Quais são os maiores motivos que fazem os índios não serem reconhecidos no Brasil em sua cultura e dignidade?

Mércio Pereira – Não sou daqueles que acham que os índios são desprezados no Brasil. Acho que a sociedade civil brasileira tem um sentimento positivo em relação aos índios. Ela acha que os índios devem ser respeitados, manter suas terras e preservar suas identidades indígenas e ao mesmo tempo participar na comunidade maior, sem perder sua cultura. Em outras palavras, acho que o espírito rondoniano prevalece na sociedade brasileira. Exceto nas regiões onde há uma concorrência muito grande por terras e recursos naturais, ou na atual política de desenvolvimento da Amazônia. Aí campeia um desrespeito figadal, odiento. Há momentos em que o sentimento positivo cai e vira negativo. Tudo depende das circunstâncias econômicas e culturais. Nesse momento estamos vivendo um sentimento de indiferença, se não de negatividade para com os índios. Até a imprensa está indiferente.

IHU On-Line – Quais são as principais mazelas que acometem nossos índios? Que políticas públicas têm sido pensadas para oferecer uma vida digna às comunidades indígenas?

Mércio Pereira – A falta de terras para uma parte deles, como os guarani, os índios do Sul do Brasil e do Nordeste, a saúde de diversos povos, lembrando a alta mortalidade infantil entre os xavante, o alcoolismo em muitos deles, o desrespeito dos munícipes das cidades novas do Centro-Oeste e da Amazônia recém-colonizada, o arraigado preconceito no Sul do Brasil, as ameaças de destituição de terras, os projetos econômicos, os madeireiros, os ousados garimpeiros, enfim, são muitas as mazelas.

Quanto às novas políticas públicas, acho que estão devendo em todos os aspectos. A Funai não tem verbas suficientes, nem mais até vontade para exercer sua assistência. A saúde tem sido aquinhoada com boas verbas, mas a Funasa nunca conseguiu dar um sentido de bem-estar aos índios, apesar do seu substancial crescimento demográfico. Faltou-lhe sempre uma visão indigenista da saúde e desvio de verbas públicas. A educação, que saiu do governo federal, da Funai, para os estados e municípios, é uma vergonha. Nem se sabe por que oferecem esse tipo de educação, porque no mais das vezes deseduca os índios de suas culturas e não os encultura equilibradamente na cultura brasileira. Há uns 3 a 4 mil índios nas faculdades, mas isto se deve ao esforço hercúleo de cada um deles individualmente, não a uma política clara e com propósitos explícitos.

IHU On-Line – Pode-se dizer que está em curso um extermínio dos povos indígenas em nosso país? Por quê?

Mércio Pereira – A situação indígena atual é difícil e sofrida, mas a ideia de extermínio dos povos indígenas está fora do esquadro, é propaganda para atrair a atenção de financiadores do exterior. A questão indígena é uma questão da identidade nacional e deve ser tratada exclusivamente por brasileiros. A população indígena cresce, mesmo que com muito sofrimento, 85% das terras reconhecidas estão demarcadas ou em processo de demarcação, e o Brasil não tem política de discriminação aos índios.

IHU On-Line – Quais são os principais avanços e limitações da política indigenista rondoniana?

Mércio Pereira – Os avanços são evidentes: (a) o reconhecimento da cidadania indígena e de sua participação na formação do Brasil; (b) a responsabilidade do Estado, em todas suas instâncias, pelo reconhecimento da especificidade indígena, de suas culturas, e a responsabilidade por sua sobrevivência étnica; (c) a demarcação de terras indígenas e o usufruto exclusivo de suas riquezas aos índios; (d) o ideal da multiculturalidade brasileira.

As limitações são evidentes também: (a) capacidade limitada de reconhecer a autonomia dos povos indígenas; (b) dependência do Estado em relação à proteção dos povos indígenas; (c) elaboração limitada de políticas públicas que efetivem a autonomia dos índios junto com sua participação na vida nacional.

IHU On-Line – O que o senhor compreende por “indigenismo cristão"?

Mércio Pereira – É aquele que considera o índio um ser incompleto por sua essência cultural, e que, portanto, precisa virar cristão para ser um ser completo. Se não fosse por essa concepção, talvez a Igreja tivesse uma contribuição mais positiva na história da sobrevivência dos povos indígenas. O histórico cristão é ruim tanto no passado quanto no presente, apesar de sua retórica veemente.

 "Para o indigenismo cristão o índio não tem futuro, só salvação, só redenção"
As culturas indígenas são completas, autointegradas, e estão num mundo muito complexo de contradições. Não são representações dos oprimidos e dos abandonados da Terra. São culturas diferenciadas que precisam ser entendidas por nós, mas que também precisam nos entender para melhor enfrentar as dificuldades que lhes atravessam. O indigenismo cristão-cimista foge do seu passado e pretende trazer uma redenção forçada, messiânica e irreal, realçando aquilo que não pode ser remediado, como o passado. Aliás, seu passado nem é avaliado devidamente, como no caso da expulsão dos jesuítas pelo Tratado de Madri e a destruição dos guarani da região Sul do Brasil. Ademais, esse indigenismo se comporta como se o Estado estivesse contra os povos indígenas, como se todos estivessem contra os povos indígenas, o que o torna bitolado para compreender o mundo atual. Para o indigenismo cristão o índio não tem futuro, só salvação, só redenção.

IHU On-Line – Nesse sentido, quais são as principais críticas e acertos do indigenismo cristão?

Mércio Pereira – Bem, as críticas estão acima. Os acertos se devem tão unicamente ao espírito de transcendência cristã, que, ao final, considera o homem universal e as culturas como representações do divino. Os cristãos que têm essa visão adquirem um comprometimento mais humanista, menos redencionista, mais amoroso e mais leal aos índios e à condição humana.

IHU On-Line – Em que sentido o propósito básico do indigenismo cristão é uma “contradição em termos”?

Mércio Pereira – No sentido de que o indigenismo tem que compreender o outro em si (o índio) e buscar equipará-lo ao mesmo (sociedade não indígena). O radicalismo redencionista cristão exclui a ideia de que o outro tem valor em si. Daí a contradição das ações indigenistas cristãs-cimistas.

IHU On-Line – Como essas duas ideologias indigenistas (rondoniana e cimista) dialogam entre si? Em que aspectos há um rompimento ou avanço de proposições?

Mércio Pereira – O indigenismo rondoniano é laico, acredita que as religiões indígenas têm que ser respeitadas, que os índios são culturalmente autônomos, mas que eles precisam da ajuda do Estado e da nação como um todo para sobreviver diante de uma sociedade economicamente mais forte e ameaçadora.

Considero que, em alguns momentos de sua história, o indigenismo rondoniano e o cristão-cimista coincidiram com essa visão. Por exemplo, na defesa dos índios durante o regime militar, na aliança com indigenistas nessa ocasião, nos primeiros anos da redemocratização e em outros momentos esparsos e pontuais.

Porém, o indigenismo cristão-cimista foi tomado pelo espírito redencionista e saiu fora de esquadro. De lá para cá tem tido uma atitude antiestado que desfavorece a compreensão da situação do Brasil e dos índios em particular. Está imbuído de um espírito jesuítico à la Missões dos Sete Povos, isto é, contra o Estado a todo custo, o que resultou na destruição dos guarani daquela região, e não ao modo vierista, de lutar pelos índios com vigor, mas encontrando caminhos possíveis.

IHU On-Line – O que é especificamente o indigenismo neoliberal? Em que medida ele é um reflexo do tipo de capitalismo que está se praticando atualmente?

Mércio Pereira – O indigenismo neoliberal reflete os tempos atuais de capitalismo consumista, antiestado, antinação e anti-identidade. Os membros praticantes dessa forma de indigenismo não têm qualquer escrúpulo em apelar para agentes estrangeiros para tratar de assuntos indígenas brasileiros,
 "Os membros praticantes dessa forma de indigenismo não têm qualquer escrúpulo em apelar para agentes estrangeiros para tratar de assuntos indígenas brasileiros"
naturalmente expondo as dificuldades brasileiras como se os brasileiros não fossem capazes de resolvê-los. Isso aconteceu muito e de diversas maneiras no tempo da ditadura militar, mas agora já é demais. Há uma ONG que trata da questão dos índios isolados e usa a Funai como uma plataforma para obter recursos de fora, de empresas estrangeiras que se dizem a favor do meio ambiente e dos povos indígenas, de agências de fomento europeia e até da USAID.

O indigenismo neoliberal está ligado ao movimento ambientalista, de onde recebe parte de seus recursos, luta contra os empreendimentos na Amazônia, porém não se incomoda em fazer os estudos etnoambientais desses empreendimentos. Também tem um pé no Estado, de onde recebe verbas em forma de convênios e concessões. Trabalha, portanto, nessa ambiguidade e com isso deixa os índios sem saber a qual senhor serve. Para o Estado, e também para o indigenismo rondoniano, o correto seria dizer que é contra o desenvolvimento da Amazônia e se fixar nisso. Ou dizer que é a favor do desenvolvimento da Amazônia e que nesse processo quer a participação dos índios tanto na constituição do melhor modo (econômico, social, ambiental) de obter esse desenvolvimento quanto na participação sobre os lucros e vantagens, em os havendo.

O indigenismo neoliberal presume que está defendendo os índios do Estado e da sociedade civil e econômica. Mas quem são eles e de onde vêm, se não da sociedade civil e econômica? Na verdade, eles acabam sendo ferramentas inconscientes de um jogo político-econômico que mal discernimos, e nisso metem os povos indígenas à revelia de suas vontades e posicionamentos.

IHU On-Line – Quais são os maiores ensinamentos que os povos originários do Brasil podem oferecer aos demais povos que compõem nossa nação?

Mércio Pereira – Em primeiro lugar, sua originalidade cultural e histórica, que deve ser respeitada em si e como fator de identidade nacional. Em segundo lugar, seu modo de viver e equilibrar suas ações com a natureza. Em terceiro lugar, sua inteligência criativa que um dia florescerá, se o mundo abrir-se a eles.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Missionário do CIMI analisa os três indigenismos no Brasil

Um dos principais membros do CIMI, Saulo Feitosa, dá entrevista ao IHU sobre o indigenismo.

Ele reconhece a existência dos três indigenismos propostos neste Blog, porém analisa essas três modalidades de forma diferente. Chama o indigenismo do CIMI de indigenismo missionário (pergunto: missionário de quê, se não do cristianismo?). Considera que a Funai está sendo trabalhada pelo indigenismo neoliberal, que é corrupta e autoritária, que fez uma reestruturação desastradas, porém, ao mesmo tempo diz que a atual direção da Funai usa "conceitos do CIMI", de um modo que parece estender seu apoio à atual direção do órgão.

Saulo mantém a desgastada cantilena, criada por alguns antropólogos na década de 1980, e hoje já superada pelas evidências dos resultados, segundo a qual o indigenismo rondoniano teria sido importante no passado, mas não é mais no presente, pois seria "integracionista tutelar" (sic). Avalia que Rondon foi algo excepcional, num tempo em que os índios estavam sendo dizimados, porém diz inclusive que as terras indígenas demarcadas são "campos de concentração", e que agora isto está diferente. Não entendi: será que quis dizer que agora as ONGs, os estrangeiros e as missões deitam e rolam nas terras indígenas?

Desconsidera que o indigenismo rondoniano via as culturas indígenas como formas próprias de viver, por isso é que era contra a catequese missionário. Ignora que o indigensimo rondoniano foi ampliando sua atuação no tempo, inclusive obtendo novas categorias antropológicas, através de antropólogos e indigenistas como Darcy Ribeiro, Eduardo Galvão, Carlos Moreira, Orlando Villas-Boas e outros, a ponto de formular o conceito de habitat e com isso favorecer a criação do Parque Indígena do Xingu e assim dando o exemplo para a uma nova conceituação de terras indígenas que permitiu a demarcação de amplas terras indígenas na atualidade. Esquece que o indigenismo rondoniano, ao contrário de outras práticas indigenistas mundo afora, acatou o conceito de autonomia cultural e política dos índios. Lembremos que foi Rondon que chamou os povos indígenas de Nações Autônomas (mesmo como militar!), ainda em 1910!. O fato do indigenismo rondoniano falar em integração dos índios à sociedade nacional é de uma evidência histórica cristalina, e não implica a sua perda de identidade cultural, ao contrário. Esta formulação está no Art. 1º do Estatuto do Índio e em vários outros artigos, muito antes da conceituação genérica da Constituição de 1988. O que passa despercebido ao ínclito missionário é que política de inclusão atualmente praticada é mais assimilacionista do que integracionista, ao contrário da política rondoniana, por exigir mais auto-entrega dos índios aos ditames políticos e culturais dos órgãos vigentes.

Bem, a entrevista é sincera e transparente. Só lendo para entender o que um missionário católico pensa da questão indígena no Brasil.

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4/1/2011
Indigenismo missionário, uma defesa pela vida. Entrevista especial com Saulo Feitosa
“Em termos políticos e ideológicos, há um indigenismo retrógrado, atrelado à perspectiva integracionista que pensa que a única maneira de os índios sobreviverem é se forem integrados à sociedade nacional. Isso significa uma negação da identidade cultural e do pluralismo étnico”. A análise é do vice-presidente do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Saulo Feitosa.
Na entrevista que concedeu por telefone à IHU On-Line, ele acentua que o governo Lula teve “um discurso progressista, mas uma prática conservadora”.
A respeito da orientação política da Fundação Nacional do Índio (FunaiI), constata que a forma como esse órgão está estruturado “é marcada por um forte componente de corrupção e autoritarismo. E isso é difícil de ser mudado”.
Ele classifica o indigenismo praticado pelo governo federal como neoliberal, interessado em “transformar as terras indígenas em espaço de produção para o capital. Tanto o governo quanto entidades que apoiam essa posição prometem o étnicodesenvolvimento, que é uma proposta neoliberal. As terras indígenas são de propriedade da União com usufruto exclusivo dos povos indígenas”.
Feitosa destaca que a evangelização do CIMI se expressa na “defesa pela vida”. E completa: “O indigenismo missionário que fazemos está na luta dos povos indígenas pela manutenção de seus territórios tradicionais, por suas identidades étnicas e pelo fortalecimento de suas crenças religiosas. Nossa relação é de diálogo inter-religioso e intercultural”.Saulo Feitosa é graduado em Filosofia e História, com especialização em Bioética. Atualmente, ocupa o cargo de vice-presidente do CIMI. Desde 1980, vem trabalhando junto aos povos indígenas, acompanhando suas lutas pela recuperação étnica, territorial e cultural.Confira a entrevista.
IHU On-Line – Há uma disputa de poder no contexto da política indigenista atual brasileira?
Saulo Feitosa – Conselho Indigenista Missionário (CIMI), por exemplo, não ocupa qualquer cargo na esfera governamental e não tem essa pretensão. O que existe no Brasil são concepções diferentes de indigenismo. No ano passado o Estado brasileiro completou 100 anos de indigenismo. O indigenismo começou com Marechal Rondon, com a criação do Serviço de Proteção ao Índio e que teve continuidade com a Fundação Nacional do Índio (Funai). Então, temos no Brasil, um indigenismo oficial, governamental, o indigenismo missionário, que é o que nós fazemos, e o indigenismo das organizações não governamentais (ONGs). Há modelos de indigenismo diferentes, portanto. Mas em termos políticos e ideológicos, há um indigenismo retrógrado, atrelado à perspectiva integracionista que pensa que a única maneira de os índios sobreviverem é se forem integrados à sociedade nacional. Isso significa uma negação da identidade cultural e do pluralismo étnico. Esse indigenismo tem como base a figura da tutela. O Estado é o tutor dos índios. E o outro modelo, que foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, que defende a autonomia dos povos indígenas. É esse indigenismo que o CIMI defende.
IHU On-Line – A política indigenista do governo Dilma pode ser diferente da forma como Lula tratou essa questão?
Saulo Feitosa – governo Dilma seria uma continuidade do governo Lula. Este adotou um discurso progressista pautado nos avanços trazidos pela Constituição e pelo artigo 169 daOrganização Internacional do Trabalho, mas muito contraditórios na sua prática. A grande contradição na área da autonomia se deu com a reestruturação da Fundação Nacional do Índio(Funai) sem considerar as comunidades indígenas. Portanto, o governo teve um discurso progressista, mas uma prática conservadora.
 “Na prática, as reservas indígenas que foram criadas dentro dessa lógica rondoniana eram verdadeiros campos de concentração. Hoje, a concepção de terra indígena é diferente”


IHU On-Line – Como o senhor avalia a orientação política da Funai hoje?
Saulo Feitosa – Do ponto de vista teórico, a Funai tem feito uma inovação política e a fundamentação está em processo. Ela adota conceitos que o CIMI trabalha. O problema é que é um órgão criado durante o período militar, inclusive com herança no próprio quadro funcional desse tempo. A forma como ele está estruturado é marcada por um forte componente de corrupção, autoritarismo e isso é difícil de ser mudado. Na prática, hoje, identificamos setores que ainda mantêm essa prática antiga que defendia a tutela dos povos indígenas. A Funai procura fazer a mudança, mas ainda é um órgão bem complicado. Tem regiões do país em que os funcionários se movimentam da mesma forma como faziam durante o período militar.

IHU On-Line – Está em curso ainda a ideia de indigenismo rondoniano?

Saulo Feitosa – Ela existe entre funcionários da Funai. Ninguém nega a contribuição doMarechal Rondon num determinado momento. No começo do século passado tínhamos uma situação de Estado em que os índios eram considerados como nada. O Estado promovia o extermínio dos povos. A visão de Rondon se pautava pela preservação, criar reservas indígenas e tinha, até certo ponto, boas ideias. Mas na prática as reservas indígenas que foram criadas dentro dessa lógica rondoniana eram verdadeiros campos de concentração. Hoje, a concepção de terra indígena é diferente. Do ponto de vista étnico e cultural, as reservas rondonianas eram complicadas, porque os índios eram obrigados a viver em pequenos espaços e também a conviver junto de pessoas diferentes. Então, o indigenismo rondoniano teve uma contribuição importante na perspectiva da preservação, mas não tinha perspectiva de manter os índios autônomos. Era integracionista tutelar.
“O que entendemos como mazelas é resultado da não existência de um Estado de direito, no qual os índios tenham demarcadas as suas terras, como assegura a Constituição brasileira, além de que esses territórios sejam protegidos e tenham condições de oferecer sobrevivência”

IHU On-Line – Qual é a força do indigenismo cristão e o neoliberal hoje no Brasil?
Saulo Feitosa – Não existe um indigenismo cristão. Posso falar de um indigenismo missionário, mas a perspectiva desse indigenismo, em termos de presença, é forte. Essa perspectiva é vivenciada pelo CIMI e não tem qualquer pretensão de cristianizar os índios. Alguns povos foram cristianizados durante o processo inicial da Igreja no Brasil e esses povos nós tratamos como cristãos. No entanto, há povos com pouco e nenhum contato com o homem branco e que não têm relação com a religião cristã. Não temos a perspectiva de mudá-los. A nossa evangelização se traduz na defesa pela vida. O indigenismo missionário que fazemos está na luta dos povos indígenas pela manutenção de seus territórios tradicionais, por suas identidades étnicas e pelo fortalecimento de suas crenças religiosas. Nossa relação é de diálogo inter-religioso e intercultural. Reconhecemos, valorizamos e estabelecemos o diálogo inter-religioso entre esses povos.

O indigenismo praticado pelo governo federal hoje é neoliberal. Ele tem interesse em transformar as terras indígenas em espaço de produção para o capital. Tanto o governo quanto entidades que apoiam essa posição prometem o étnicodesenvolvimento, que é uma proposta neoliberal. As terras indígenas são de propriedade da União com usufruto exclusivo dos povos indígenas.

IHU On-Line – O que o governo tem feito diante disso?

Saulo Feitosa – 
O governo trabalha com uma perspectiva de que essas terras possam produzir de acordo com o interesse do capital. A proposta de governo em trabalhar com os povos indígenas hoje é neoliberal. O CIMI critica esse modelo. Temos experiências na América Latina que defendem o modelo do Bem-Viver em contraponto a essa perspectiva capitalista.
IHU On-Line – Como essas duas ideologias indigenistas (rondoniana e cimista) dialogam entre si?
Saulo Feitosa – A origem do indigenismo brasileiro é rondoniana. O indigenismo nosso reconhece a autonomia dos povos e dialóga com esse outro indigenismo através do apoio direto às comunidades na construção de sujeitos autônomos. Nosso trabalho é de assessoria e acompanhamento das comunidades para que elas possam construir esse processo autonômico e e para que possam dialogar com o governo. Exigindo deste uma política, portanto, satisfatória para esses povos. Nós damos apoio político e assessoria jurídica para que o Estado brasileiro cumpra aquilo que é um dever constitucional. Nosso trabalho se dá nessa perspectiva.
“A proposta de governo em trabalhar com os povos indígenas hoje é neoliberal. O CIMI critica esse modelo”
IHU On-Line – Quais são as principais mazelas que acometem nossos índios? Que políticas públicas têm sido pensadas para oferecer uma vida digna às comunidades indígenas?
Saulo Feitosa – As mazelas são muitas. Podemos começar pelas invasões aos territórios indígenas. Os indígenas que têm as terras demarcadas estão em áreas muito ricas e constantemente invadidas por interesses econômicos. Esse processo de apropriação e roubo é motivo de preocupação. Outra mazela é o esbulho da terra, a sua invasão feita pelos latifúndios, como é o caso do Mato Grosso do Sul. Desses problemas advêm todos os outros, com consequências trazidas para a área de saúde, com um índice de mortalidade infantil muito grande, além de desassistência e epidemias. O alcoolismo e as drogas já chegaram a muitas comunidades, sobretudo àquelas que não tiveram suas terras demarcadas e vivem à beira de estradas. A violência de vários tipos contra os indígenas ainda é imensa. O que entendemos como mazelas é resultado da não existência de um Estado de direito, no qual os índios tenham demarcadas as suas terras, como assegura a Constituição brasileira, além de que esses territórios sejam protegidos e tenham condições de oferecer sobrevivência.

O Estado brasileiro passou por um processo importante de mudanças na legislação, mas a
Constituição atual não tem nada a ver com o indigenismo rondoniano. Em 1988 é reconhecida a autonomia dos povos indígenas sob a perspectiva que lhes assegura continuar existindo de acordo com seus costumes e tradições, o que não era existente na legislação anterior, de 1973. Antes, era previsto que os índios deveriam ser integrados à nação, deixando de ser reconhecidos em sua identidade, como povos diferenciados culturalmente. Apesar da legislação ter avançado na prática, esse indigenismo traz essa contradição. Esperamos que essa situação seja superada e que, cada vez mais, os povos indígenas se tornem autônomos e reconstruam seus projetos de futuro.
 
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